12 – Dias de Inferno na Síria

6 de setembro de 2016

Quando foi capturado por forças paramilitares do governo Assad, o repórter Klester Cavalcanti avançava no seu objetivo de entender o lado humano da guerra da Síria. E foi na prisão que pôde entender de fato as marcas que a guerra deixa.

 

Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Klester Cavalcanti
Lettering por Luiz Amorim

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Livro “Dias de Inferno na Síria”, de Klester Cavalcanti

Transcrição

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Este programa é patrocinado por Oktoplus. Hoje em dia, são tantos os programas de fidelidade que existem por aí, que não é incomum a gente se sentir à deriva no meio do oceano. Pelo menos é assim que eu me sinto toda vez que recebo um email lembrando que estou cadastrado no programa de milhas de alguma companhia aérea, os pontos no meu cartão de crédito, do meu banco, e tantas outras coisas por aí. O Oktoplus é um aplicativo feito para perdidos como eu. Nele eu consigo concentrar em apenas um lugar todos os programas de fidelidade que eu participo e que eu nem lembrava. Inclusive, ele me lembra a ficar atento ao meu saldo e, principalmente, quando os meus pontos expiram. Se quiser entender mais o que estou falando, puxe o aplicativo para o seu celular, cadastre suas contas e evite perder a chance de fazer aquela viagem para o Nordeste que tanto deseja, ou ainda aquela panela antiaderente que você namora a meses. São mais de 40 programas disponíveis na Oktoplus para que você possa manter o controle de tudo. Para mais informações, acesse oktoplus.com.br. Oktoplus é com K, ou seja, começa com “ok”, o que já é um bom começo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: …do carro, mandou eu sair, ele não falava inglês. Aí, colocou a arma na minha nuca e saiu me conduzindo, né, com a arma, que caminho eu deveria fazer. E aí, assim, esse cara me levou até… uma, uma… uma escada que só descia, num corredor bem estreito, um corredor que era um pouco mais largo que os meus ombros… e aí, eu fui descendo, esse cara atrás de mim com a arma na minha nuca… e quanto mais eu descia, mais escuro ia ficando tudo… e aí, eu falei, “Ah, acabou, não tem mais o que fazer”, aí, nessa hora, fechei os olhos, entreguei a alma a Deus e esperei o tiro.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Aí, assim, desci, fui descendo com os olhos fechados né, a cabeça baixa, à espera do tiro. E fui tateando cada degrau com os pés, lentamente, com a certeza que ia ser morto, né. E aí, desse jeito, né, descendo os degraus bem devagar, com a cabeça baixa e os olhos fechados, eu senti uma pancada na minha cabeça e ouvi um barulho.

(EFEITO SONORO: SONS DE IMPACTO COM REVERBERAÇÃO)

Klester: Naquele momento, eu tive certeza que eu tava morto. Eu achei que o barulho era o tiro, né. E eu mantive os olhos fechados, né. Aí, foi muito louco porque eu até pensei assim, “Cara, que bom que foi rápido, não doeu, né?” Aliás, essa foi uma coisa que eu pensei quando eu tive aquela certeza de que eu ia morrer, que eu pensei, ainda bem que não vou morrer decapitado na frente de câmeras, né? Assim, vai ser um tiro, não vai doer, vai ser rápido, que bom que vai ser assim. E aí, quando eu já tava pensando, né, se eu tinha morrido né, tava na minha, quieto, parado, com os olhos fechados… e aí, eu senti alguém me empurrando. E eu lembro que foi estranho, né. Pensei, “Cara, acabei de morrer, tem alguém me empurrando aqui, mas que é isso, né?” Aí, o cara empurrou de novo. Mas quando eu abri os olhos, eu vi que o que eu achei que era uma parede no fim do corredor da escada, que não tinha saída, achei que era uma parede… não era uma parede, era uma porta de ferro de correr. O barulho que eu tinha ouvido e a pancada que eu senti na minha cabeça era minha cabeça batendo na porta de ferro, né, porque eu tava de olhos fechados. Então, minha cabeça bateu na porta de ferro, fazendo aquele barulho todo. E aí, essa porta de ferro, alguém abriu e lá dentro era uma delegacia meio improvisada. Eu fui pra Síria preparado para morrer. Na minha cabeça e no meu coração existia essa possibilidade de morrer, né. Agora, ser preso, não.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Klester havia ido para a Síria com um único objetivo, ir para Homs, uma das primeiras cidades onde a Guerra Civil começou a esquentar entre as forças rebeldes e o exército do país. E mesmo tendo se preparado para morrer, o inesperado aconteceu. Ele foi preso por forças paramilitares logo nas primeiras horas em que adentrou a cidade e foi lá que ele passou o resto dos seus dias no país.

Klester: Teve um delegado que escreveu um documento em árabe, mandou eu assinar. Eu falei que não ia assinar porque tava em árabe, né. E aí, o cara tava fumando, ele pegou o cigarro e veio com cigarro na direção dos meus olhos, do meu olho esquerdo, dizendo que ia me cegar… se eu não assinasse, ele ia me cegar. E eu falei que não ia assinar, não ia assinar. Ele veio com o cigarro bem perto do meu olho, assim, e na hora H, ele desviou e apagou o cigarro no meu rosto. (Efeito sonoro: crepitar de queimadura) Aí, depois, esse cara acendeu outro cigarro e veio de novo com o cigarro na direção do meu olho. Quando eu senti que de fato ele ia apagar o cigarro no meu olho, eu falei, “Tá bom, eu assino”. Aí, eu coloquei lá… foi até uma estupidez minha, porque eu não assinei de fato o negócio, eu só escrevi o meu nome. E foi estupidez porque, naquele momento, eles já tinham confiscado o passaporte. Então se ele fosse comparar a minha assinatura real com o nome que eu coloquei no documento que ele me deu, ele ia ver que não era a assinatura e a coisa podia ficar pior, né?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Se eu assinar isso aqui… eu falei, não vou colocar minha assinatura em um documento em árabe que eu não sei o que tá dizendo. Um documento com papel timbrado da polícia da Síria, cara, no meio da guerra? Eu não sei… e se esses caras estiverem colocando aqui que eu tô confessando que eu matei um soldado, entendeu? Eu não sei o que é. Então, não assinei, eu só escrevi meu nome. E pensando que, assim, “Se um dia esse documento cair na mão de alguém, se o governo sírio disser que eu confessei que matei um soldado, alguém vai ver que essa assinatura não é minha, né?”. Então no mínimo é algo forjado. O que eu sei é que eu não queria colocar minha assinatura num documento policial, na Síria, no meio da guerra, que eu assinei sob tortura, né?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Então, eu passei a noite na delegacia algemado. No dia seguinte, disseram que eu ia ser solto. Eu fiquei todo feliz. Me colocaram em um caminhão cheio de presos… eu fui nesse caminhão algemado. O caminhão era um caminhão baú, né, era fechado. Tinha uma grade no alto do baú. A gente subiu, eles colocaram uma escadinha, assim, pra gente subir no ônibus, uns quarenta homens ali dentro… de trinta a quarenta homens ali dentro. E foi engraçado porque… pô, falei, né, eu… tenho ascendência italiana e eu fui pra Síria, deixei a barba crescer, eu sempre uso a barba assim meio rala, mas deixei a barba crescer bastante, já pra parecer um deles mesmo, de propósito. E deu muito certo. E dentro desse caminhão, alguns caras falavam comigo em árabe, e eu só respondia balançando a cabeça fingindo entender, entendeu? Porque eu queria que pensassem que eu era um deles também. E aí, vários presos entraram nesse caminhão, muitos deles acorrentados pelas mãos e pelos pés uns aos outros. E era muito óbvio que esses presos estavam numa situação pior do que a minha, né? Eu imaginei que eram presos mais perigosos, né? E aí, esse carro foi pra um presídio.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Não entendi mais nada porque tinham me dito que eu ia embora e agora eu tava no presídio. E meio que eu lutei muito. Aí, esses presos que estavam acorrentados uns aos outros foram levados para um lado do presídio, e eu e mais uns sete, oito caras fomos levados para uma outra ala, que era uma área subterrânea, (tosse) pequena, com apenas quatro celas. E o agente penitenciário que estava controlando esse processo não falava inglês, ficou mandando, ficou fazendo gestos para eu entrar na cela, em uma das celas. E eu não queria entrar. E os presos foram entrando aleatoriamente nas celas. E eu tentando falar inglês com o agente penitenciário. E aí, os presos que já estavam lá muito curiosos para ver quem estava chegando, né. E aí, na primeira cela tinha um preso, um cara assim, acho que quase assim da minha altura, um metro e oitenta e pouco, mais ou menos, de pele muito branca, cabelo preto… e esse cara me viu tentando falar com o agente penitenciário em inglês, né. E aí, ele falou comigo em inglês, falando assim, “Ó, você quer que eu ajude, que eu tente falar com ele?”. Eu falei, “Por favor, né?”, eu falei assim, “Me disseram que eu ia ser solto, eu não posso estar aqui, lá no lugar que eu estava me disseram que eu ia embora. Eu acho que tem alguma coisa aqui errada”. E aí, esse cara que falava inglês, né, traduziu para o agente penitenciário e falou, “Olha, ele disse que os documentos foram pra Damasco e vão esperar chegar a autorização para você ir embora”. E eu falei, “Cara, eu não posso ficar aqui hoje, eu vou embora hoje, eu não posso ficar aqui”. E aí, eu fiquei muito angustiado de imaginar que eu ia passar uma noite na prisão, né? E aí, ele falou pro cara,.e falou, “Não tem acordo, você vai ficar aqui mesmo”. Eu tenho uma vantagem minha, assim, de que é o seguinte, eu sou um cara muito impaciente é… eu gosto de resolver as coisas logo, assim, entendeu? Mas por outro lado, o meu trabalho, quando eu tô trabalhando, quando eu vejo que a situação não há o que fazer, eu aceito. Não tem o que fazer, nada que eu fizer vai mudar isso, entendeu? Então pra essa situação, eu pensei “Ah, vou ter que entrar aqui, não vou poder fazer nada”. Eu só pensei que, ao menos, naquela cela, tinha um cara que falava inglês e se mostrou um cara bacana, né, que teve a disposição em tentar ajudar, pelo menos. Aí, eu entrei naquela cela e foi a melhor coisa da minha vida, cara. Porque esse cara que falava inglês, o Ammar, virou um irmão pra mim lá dentro. Graças a ele, eu conseguia entrevistar os outros presos, porque eu podia usá-lo como intérprete. Graças a ele, o livro tem tantas histórias legais de outros presos porque eu podia conversar com os outros presos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Ele era empresário. Ele tinha uma loja de roupas, é… lá em Homs, num shopping de Homs. Com a guerra é óbvio que ninguém comprava roupa num shopping, né? E aí, a coisa ficou feia pro lado dele, o cara ficou sem dinheiro e tinha que conseguir de alguma forma. Então o Ammar… aí, aquele começo da conversa do lado humano da guerra, é… você começa a ver coisas que ninguém conta nessas matérias de agência, né? Com a guerra, as empresas obviamente param de enviar seus produtos pra Homs, né? Não vai chegar lá o caminhão da Coca-Cola, entendeu? O caminhão do cigarro. Porque a empresa não vai correr o risco de perder os funcionários, perder sua carga numa explosão. E aí, na Síria, os cara fumam muito o tempo todo só que com a guerra o cigarro não chega mais lá. Daí, o Ammar pegava o carro dele e ia pro Líbano. A fronteira da Síria com o Líbano fica a umas duas horas de Homs. Aí ele ia pro Líbano, enchia o carro de cigarro e voltava pra vender em Homs pelo triplo do preço. Numa dessas viagens, é… ele foi preso. Foi parado na fronteira e foi preso por contrabando. É… essa é a história dele. É… o Ammar, cara, sem poesia nenhuma, é uma das pessoas no mundo que se eu tiver de escolher entre esse cara viver ou eu, eu morro por ele fácil, cara. O Ammar, assim, se alguém me ligar hoje, “Ó, o Estado Islâmico pegou o Ammar, e é ele ou você”, eu digo, “Pode me pegar, que eu vou na boa”, sem medo de errar, cara. Porque é um cara que foi muito bom, sabe? Muito generoso.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Na prisão… éramos eu e mais uns vinte presos. Todos sírios ou da região, né? Eu era o único estrangeiro, o único não muçulmano. É… e cada um com uma história. Tinha gente mais velha, mais jovem, é… tinha o Ammar, que era empresário, tinha estudante, tinha taxista. Isso era muito interessante pro livro, né? Ouvia as histórias desses caras ali de… pessoas tão díspares.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: E eu não sou muçulmano, eu sou cristão. É… mas há muito tempo que eu tenho muito interesse pelo mundo árabe, né? Por causa das pirâmides, do Egito, tudo mais. E o mundo árabe inclui todo Oriente Médio, né? O Egito é na África, mas é um país muito mais próximo do Oriente Médio do que a África como a gente conhece a África negra, né? É… (tosse) então, assim, há um tempo que eu conheço, que eu leio um pouco sobre o Islã, sobre a cultura muçulmana, acho muito bacana o jeito deles lidarem com a fé, né? A cultura acho fantástica, a cultura do mundo árabe, a história deles. E aí, eu já conhecia muita coisa, né, desse universo. E aí, no dia que eu fui preso, é… mesmo, mesmo na prisão, os caras faziam as cinco orações do dia do Islã. Sendo que a primeira oração do dia é… tipo, entre quatro e cinco da manhã. Então várias vezes eu tava dormindo e eu ouvia, né, aquela cantoria, reza. Daí, eles ficavam orando no meio da madrugada. Não eram todos. Mas assim, dos vinte presos na minha cela, um pouco mais às vezes, porque era um público muito flutuante, às vezes tinha mais, menos. Mas dos vinte, pelo menos uns dez, doze, faziam as orações todas. E aí, no dia que eu entrei na cela, é… pouquíssimo tempo depois, tipo meia hora depois, eu já tava num, num… eu dormia numa estopa bem fininha assim, tipo… cinco centímetros de espessura. E aí, eu tava já lá no canto que me deram pra ficar no chão, quando o Ammar levantou, ficou de pé assim, virou pra um lugar da parede e começou a cantar uma música que eu já sabia  que era o cântico que precede a oração do Islã, que chama Adhan.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA: O ADHAN)

Klester: E aí, quando o Ammar levantou e começou a cantar eu sabia o que ia acontecer. Eu falei, “Cara, esses caras vão orar aqui dentro? Os caras tão presos, tão aqui nessa situação e vão orar?”. E aí, foi isso mesmo. Quando eu vi os caras tavam já se alinhando. Porque a oração também tem todo um ritual de posicionamento e tudo mais. E aí, naquela angústia minha toda, né? Eu tinha acabado de entrar na prisão, eu pensei, “Ah, cara, pode ser bom eu sentir essa energia boa da fé, né?”. Só que os caras já tinham me perguntado se eu era muçulmano e eu falei que não, né? Aí, eu pensei, “Pô, se eu for orar com esses caras e eles surtarem aqui vai ter uma confusão. Eles vão me bater, né? Um não muçulmano querendo orar com eles, né?”. Mas, aí, eu pensei, “Mas também, cara, já tô aqui na confusão mesmo, na guerra, uma confusão a mais uma a menos”. Aí, levantei e fui lá, né? Mas fui lá pro fim da fila, ficar quietinho, meio escondido, pra ninguém ver. E aí um dos caras que tavam lá na frente perto do Ammar me viu entrando no grupo de oração. Aí, esse cara esticou a mão assim, né, o braço até tocar em mim. Eu achei que ele ia me tirar do grupo da oração. Mas aí, ele me segurou, me puxou lá pra frente, pra perto dele e, com os dedos, fez um gesto pra eu olhar pra ele, né? Pra eu imitar o que ele fizesse, os movimentos que ele fizesse. E aí, eu fiz essa oração com eles. O começo da oração, você repete o que o líder fala e depois… Aí, assim, aí, começa a falar em árabe. E aí, eu essa parte parei. Mas eu fiquei com eles, fiz todo o movimento de agachar, de me prostrar com eles, aquela coisa de você abaixa, levanta. “Allahu Akbar, Allahu Akbar”. Fiz isso lá com eles. E no fim dessa oração, eu tava muito comovido, cara, porque é muita coisa ao mesmo tempo, né? Eu tinha acabado de ser preso, tava lá naquele inferno, né? Ao mesmo tempo é… os caras tinham me deixado orar com eles mesmo sabendo que eu não era muçulmano. Aí, eu sentei e senti muita vontade de chorar. Mas eu pensei, “Eu não vou chorar aqui”, sabe? E aí, trinquei os dentes e segurei o choro, mas senti o olho enchendo d´água. E aí, o Ammar e esse cara que tinha me puxado lá pra frente, os dois sentaram ao meu lado e me abraçaram, né? Meio que me confortando, né? E aquilo foi muito bonito pra mim, cara. Porque, como eu falei, né, eu tinha acabado de entrar na prisão, não tinha feito nenhuma amigo ali ainda, ninguém ali me conhecia. E os caras fizeram a generosidade de me deixar orar com eles, de me confortar quando viram que eu tava triste ou emocionado. E esse momento foi muito bacana, assim, da… dessa minha temporada na prisão.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA: O ADHAN)

Klester: Isso aí foi uma coisa que… que eu… fiz questão de deixar claro no livro, sabe por quê? Eu sou evangélico e eu conheço, cara, muitos e muitos evangélicos que não teriam essa generosidade, entendeu? Por ignorância, por uma coisa que eu acho um paradoxo absurdo que é justamente assim, não seguir o ensinamento do líder da sua fé, né? Eu não consigo imaginar Jesus sendo preconceituoso com ninguém de outra religião, entendeu, cara? Eu não consigo. Não consigo imaginar Jesus querer convencer alguém na marra a acreditar no que ele quer, entendeu? Eu tenho certeza que se você pegar um muçulmano com aquela veste muçulmana, aquele vestidão, chama galabiya, se não me engano. Pegar um cara barbudão com a galabiya, com aquele vestidão muçulmano, e colocar, e mandar esse cara entrar numa igreja evangélica ou católica no Brasil. Ivan um dia, cara, eu faço esse experimento. Eu tenho certeza que se esse cara não for açoitado, não for enxotado da igreja, no mínimo, no mínimo, as pessoas vão olhar pra ele de cara feia, não é isso? Tenho certeza. Enquanto isso, eu fiquei numa penitenciária, numa cela, com mais de vinte presos, no meio da guerra, cara. Ouvindo tiros e explosões dia e noite. Aquelas pessoas, Ivan, tinham muitos mais motivos do que eu para estarem tristes e sofrendo, por que a minha dor era só minha. Eu tava ali preso, mas era só eu. Meu irmão, minha irmã, meus pais, a minha namorada da época, as pessoas que eu amo todas, meus amigos, todos estavam bem, seguros, saudáveis. Aquelas pessoas lá na minha cela, além da dor própria delas, tinha a dor de não saber o que estava acontecendo com suas mulheres, filhos, irmãos, amigos, pais, no meio da guerra. O Ammar é casado, cara, apaixonadíssimo pela mulher dele. O Ammar escreveu poemas de amor pra mulher dele no meu caderno, tenho isso até hoje. E o Ammar, teve dia, teve um dia que a gente conseguiu ver a lua pela gradezinha que tem no teto da cela, assim no alto da parede, não no teto da cela, mas no alto da parede, tinha uma grade. Teve um dia que a gente conseguiu ver a lua. O Ammar chorou de saudade da mulher dele. Então, assim, esses caras, mesmo com todo esse sofrimento, foram generosos comigo, foram bacanas, me confortavam quando eu ficava muito triste, sabe, assim? Coisa que, se a gente pegar um muçulmano e colocar dentro de uma igreja cristã no Brasil, infelizmente, eu tenho quase certeza que esse cara vai ser… vai sofrer muito preconceito, entendeu? Enquanto que muçulmanos foram bacanas com um cristão na terra deles, no meio da guerra, entendeu? É muito triste, cara, ver o mundo olhando para os muçulmanos com esse olhar de preconceito, de ódio, sabe? De achar que todo muçulmano é do Estado Islâmico, entendeu?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Se fosse… De todas as histórias que você relata no livro, que ouviu lá, tem alguma que te impactou mais?

Klester: Na prisão, eu acho que a do Adnan, viu. O Adnan era o único preso da nossa cela que foi preso em combate.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Adnan, ele era rebelde, ele foi preso na fronteira da Síria com o Líbano, ele estava trocando tiros contra o exército da Síria. E aí, ele foi preso… Isso foi no começo da guerra, isso foi… eu o conheci… eu fiquei preso em maio, se não me engano, ele me disse que estava na prisão fazia nove meses. Então, ele foi preso o quê? Em agosto, mais ou menos, né? De 2011. A guerra começou em março, ou seja, vamos supor que ele foi preso quatro, cinco meses após começar a guerra. Muito​ cedo, né? Como ainda estava no início, quando os caras conseguiam prender alguém dos rebeldes, eles não matavam, eles queriam era torturar o cara pro cara contar onde estavam os outros, os outros rebeldes, os grupos, entendeu, e tudo mais. E aí, quando levaram o Adnan para um quartel lá em Homs, ele com medo de ser torturado ou executado, ele falou que o pai dele era capitão do Exército da Síria, o que de fato era verdade. E aí, quando ele falou isso, os militares lá desse quartel foram lá checar, né? E viram que era verdade. Aí, avisaram o pai dele, o pai dele foi lá no quartel, tirou o filho do xadrez do quartel, mas levou pra penitenciária. O próprio pai levou o filho na penitenciária, deixou ele lá e falou pra ele assim, “Aqui você vai me dar menos dor de cabeça que lá fora”. Imagina um pai do Exército da Síria e o filho rebelde, né? E aí, ele deixou o garoto lá. Quando eu conheci o Adnan, ele tinha, se não me engano, 24 anos. Deixou o garoto lá e, nove meses depois, o pai ainda não tinha voltado pra ver como tava o filho. E o Adnan, era o cara que ele era o palhaço da prisão, fazia graça, brincava, sempre tirando onda, né? E aí, só depois que ele me contou a história dele direito, tudo, foi que eu percebi o óbvio. Que ele usava essa coisa da brincadeira, do humor, da comédia, meio que pra encobrir a própria tristeza, né? Porque pra ele era muito triste o pai, o próprio pai ter deixado ele lá na penitenciária e, nove meses depois, não ter sequer aparecido para ver como estava o garoto, né?

Ivan: Será que… ele… tô te fazendo… eu tô pensando aqui… Estou pensando aqui alto. Será que o pai prendeu ele lá por que o pai tinha medo, de repente, do governo do Assad, ou por que ele realmente achava que o filho estava errado? Você sabe?

Klester: Não, não. Acho que o pai prendeu como castigo, entendeu? Exatamente o pai que falou pra ele, “Aqui você vai me dar menos dor de cabeça do que lá fora”. Ou seja, você vai me dar menos dor de cabeça. O pai queria se livrar do problema. É filho, não vou deixar ninguém torturar nem matar, colocou no presídio que, lógico, é do governo. Então, o governo tem comando no presídio, né? Por que você rebelde, o normal é ser torturado ou executado, né? Então, o pai colocou ele ali, onde ele não seria torturado ou assassinado, nada, né? Numa ala com presos não perigosos e deixou o garoto lá, meio que pra fazer como ele sempre fez, de… que como Adnan falou, que o pai dele só pensava no exército. A questão do Adnan entrar pro exército rebelde, pra mim era muito óbvio, era meio que literalmente ele tava combatendo tudo o que o pai era pra ele, né? Porque o exército, na cabeça dele, foi o grande responsável pelo afastamento do pai da família, né. Que o pai era do exército, do exército, do exército, foi um pai muito rigoroso, severo. E, pra ele, a culpa disso era sempre do exército, né. Então, quando ele entrou pros rebeldes, era muito… literalmente pra isso, pra combater tudo que o pai representava pra ele, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Quando eu fui preso, eles confiscaram meu passaporte, meu celular, a máquina fotográfica e a filmadora que eu levei da redação da IstoÉ. Só que eu entrei na prisão com a minha mochila. Minha mochila, minhas roupas, meu dinheiro, minha carteira. E a coisa mais importante, meu caderninho com a caneta. Então, e ficava o dia inteiro escrevendo, né. Minhas angústias, minhas loucuras, meus pensamentos. Tudo que acontecia na cela, na rua, os horários que tinha mais explosão, o que a gente ouvia. O dia a dia, tudo que acontecia (tosse). E também, obviamente, as minhas entrevistas com os outros presos, né. Porque eu sempre fazia isso, né. Tinha, durante o dia todo… Eu fazia muito isso, ia falar com os outros presos, usando o Ammar como intérprete. Então, assim, eu passava muito tempo trabalhando e pensando besteira, né. Pensando na vida, não sei o quê… Mas, na prisão, eles tinham um baralho, né… Como eu falei, éramos mais de 20 presos na minha cela. Naturalmente, os caras se dividiam por grupos de afinidade. Então, meu grupo éramos eu e mais três caras. O Ammar, o Adnan e o Said. Esses caras viraram meus  irmãos lá dentro. Depois, chegou outro cara, que também ficou com a gente. E aí, esse grupo, eles tinham um baralho que eles fizeram com embalagem de cigarro, de café, de chá… Eles recortavam as embalagens e desenhavam cartas de baralho. E esse era o único passatempo que eles tinha na prisão, né. Jogar baralho. Esse meu grupo.

Ivan: você sabe que jogo que eles jogavam?

Klester: Eu acho que era Pôquer. Eu não entendo muito de baralho. Mas, pelo que eu via, assim, das cartas, eu acho que era Pôquer. E o curioso é que eu roubei três cartas dessas pra mim, né (Ivan ri). Porque eu falei, “Cara, eu tenho de ter isso de lembrança”. Aí, peguei três cartas, porque eles brincavam que eu era… Quando eu vi o baralho, eu achei muito engraçado. Quando eu peguei as cartas pra ver, aí, não sei se foi o Adnan ou o Allyd que falou que eu era o Rei, porque o desenho que eles tinham feito do Rei, no baralho, era um cara de rosto magro, nariz grande e barba. Parecia comigo, entendeu? (Ivan ri) E tinha a letra K, de King, né. E meu nome é Klester, com K, né. Aí, eles brincavam dizendo que o K era de Klester, que eu era o Rei, ali, do desenho, sabe. Aí, eu falei, “Cara, essa carta tem que ser minha”. Peguei essa carta e mais duas. E aí, no dia seguinte, quando eles foram jogar, eu fiquei com muita pena deles, porque eles pegaram as cartas, jogaram e, de repente, pararam, né. Aí, eu perguntei ao Ammar, “Mas por que não vão jogar?” Aí, falou, “Não, porque falta três cartas”. Aí, eu fui com maior culpa nas costas. Aí, eu peguei o baralho deles, né, como se eu não soubesse as cartas que faltavam, eu peguei o baralho deles, aí, falei, “Não, deixa, deixa que eu faço”. Aí, eu peguei o baralho, vi as três que faltavam, e eu mesmo desenhei outras três cartas pra eles, entendeu. Ou seja, nesse momento, pode ser que tenha alguém jogando baralho com cartas que eu desenhei lá em Homs (Ivan ri, Klester continua, mas é incompreensível).

Ivan: Você nunca falou pra eles que pegou as cartas?

Klester: Nunca, cara (ele ri), Eu achei muito feio. Depois eu falei, bicho, os caras foram legais comigo, me acolheram aqui (Ivan ri), eu roubando o baralho dos caras (Ivan ri mais). Mas eu tinha que ter aquilo de lembrança, bicho. Eu tinha de ter aquilo de lembrança. Tem tudo lá em casa, sabe.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: O dia todo, a gente ouvia tiro e explosão. Mas à noite é que a coisa ficava muito pior, entendeu. Por quê? Porque, à noite, não tem como registrar. Não tem imprensa na rua. Porque até a imprensa, né, os caras que vão pra lá cobrir a guerra, de noite, os caras se recolhem, porque de noite o bicho pega, entendeu? Então, cara, de noite, é assustador, cara. A quantidade de tiro e explosão, à noite, é muito maior do que durante o dia. Tem até um capítulo do livro que chama “Noite de Tormenta”, né. Que eu falo sobre isso. E, assim, teve uma noite que eu não vou lembrar agora, de cabeça, mas foi, tipo, de 10 e pouca da noite até quase 2h da manhã, tiro e bomba, tiro e bomba, entendeu. O tempo todo. A gente… eu até contei que foi, tipo, acho que, não sei, é… alguns segundos, o máximo de tempo que a gente ficou sem ouvir uma explosão ou um tiro, sabe. Coisa foi… de noite era muito punk o negócio, cara, nossa, era muito pesado.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Teve… teve uma bomba que caiu, que a cela, a cela tremeu e o pessoal, assim, maior gritaria. “الله أكبر”, “الله أكبر” Que o “Deus é grande” deles também serve como se fosse o nosso “Meu deus!”, sabe? “Meu deus do céu!”, sabe, uma coisa assim, entendeu? E aí, rolou meio que uma tensão forte, assim, na cela, nessa hora.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Então, quando eu fui pra Síria, né, ainda em São Paulo, eu combinei com a redação da IstoÉ, com a direção, que… porque eu tinha o visto de uma semana. E aí, quando eu entrei em Homs… e aí, eu falei, né, ainda em São Paulo, eu deixei com a direção da revista os contatos do Bruno Carrilho, que era esse cara da embaixada em Damasco, do Brasil. E falei, “Ó, se qualquer coisa acontecer comigo, liga pro Bruno”. Beleza. Cheguei em Homs, liguei pra redação, falei, “Oh, eu tô em Homs…”. Eu liguei não, eu acho que mandei um SMS, quando eu cheguei em Homs, “Vou lá pro, pra guerra, agora… não sei quando eu vou ter telefone e internet de novo. Se eu não fizer contato até quarta-feira, não entrem em pânico, porque eu posso apenas estar incomunicável, né. Mas se, na quarta-feira, eu não ligar nem mandar email, entrem em pânico, por favor!” (Ivan ri) “Porque a confusão ficou feia por aqui”. (breve silêncio na conversa). Porque quarta-feira era o dia que eu ia voltar pra São Paulo, né. Era o dia do meu voo de Beirute pra São Paulo. Porque só me deram uma semana de visto, né. Aquele primeiro dia que eu tentei entrar na Síria, que não deixaram, que eu voltei, era quarta-feira. Não, era quinta-feira. Aí, na sexta eu cheguei em Damasco, e no sábado fui pra Homs, né. Então, eu teria sábado, domingo, segunda, terça e quarta em Homs. E quando cheguei lá, falei isso, né. Se na quarta-feira eu não voltar é porque deu merda, então liga pro Bruno e vê o que aconteceu. E aí, o grande problema é que poucas horas depois de mandar esse SMS pra redação, eu fui preso, né. E aí, pronto. E aí, eu falei, cara, que besteira eu fiz, agora vou ficar, no mínimo, né… com muito otimismo, eu vou ficar, no mínimo, cinco dias sem ninguém dar a menor importância, né. Achando que eu apenas tô incomunicável, como eu falei, né. Beleza. Aí, (tosse) fiquei lá na prisão, os dias passando, nada acontecendo, nada acontecendo, e eu muito angustiado. Quando chegou no dia que deveria ser… voltar pra São Paulo, e eu não voltei, que era a quarta-feira, aí a direção da IstoÉ ligou pro Bruno, né, pra a embaixada e avisou, “Ó, o Klester chegou em Homs e sumiu”. Isso era quarta-feira. Só que isso era às 18h da quarta-feira, em São Paulo, meia noite em Damasco. Ligaram pro bruno meia noite. Acordaram o cara em casa. Ele falou, “Tá bom, vou ver o que eu faço, mas agora é meia noite aqui, amanhã eu vejo isso”. E meu visto vencia na quarta, né. Não, vencia na quinta, meu visto vencia na quinta. Aí, quinta-feira, eu preso, eu falei, cara, é lógico que o sírio sabia que meu visto vencia na quinta, e as libertações eram sempre de manhã. As pessoas só saíam da prisão de manhã. Toda manhã, chegava lá, o agente penitenciário dizia “fulano”, “beltrano”, “sicrano”. E aí, eram os caras que iam embora. Essa hora da manhã, sempre ficava muito ansioso.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Quinta-feira eu pensei, “Bem, hoje é o dia que vence meu visto, é a única chance agora deles me mandarem embora, os caras sabem que o visto vai expirar”. E aí, quinta-feira de manhã, chegou, o agente penitenciário foi lá (espirra) anunciou o nome de quem ia ser libertado e o meu não tava incluído. Eu falei, “Cara, me ferrei, agora sim, não tem outra chance, vou ficar aqui pra sempre, porque eles sabem que o visto termina, expira hoje e não me libertaram”. Então, aí fiquei muito angustiado.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Enquanto isso, o Bruno, na quinta-feira, tentando marcar uma reunião com o Vice Ministro das Relações Exteriores da Síria. E aí, o Vice Ministro marcou com o Bruno na quinta a tarde. O detalhe é que obviamente eu não sabia de nada disso. Eu não sabia o que estava sendo feito. E aí, quando o Bruno falou com o Vice Ministro, esse Vice Ministro, Ivan, era o cara que negociava com o Kofi Annan o plano de paz. E aí, esse Vice Ministro disse pro Bruno que não sabia nada do meu paradeiro mas que ia colocar o pessoal dele pra procurar. E aí, o Vice Ministro foi informado de que eu estava preso na penitenciária central de Homs e mandou me soltar. Mas nem avisou isso ao Bruno, nem mandou avisar isso na embaixada. E aí, na sexta de manhã, quando o agente penitenciário falou que eu ia ser solto, eu saí da prisão muito angustiado, né. Eu saí da prisão achando que ia ser morto. Porque ninguém me disse, em hipótese nenhuma eles me disseram, “Você está sendo solto porque o Itamaraty ou porque o seu governo entrou em contato com o nosso e não sei o quê”, não, ninguém me explicou nada.  Aí, eu saí ainda achando que ia ser executado. E aí, um cara também sem nenhum uniforme me pegou de manhã, lá fora do presídio, me colocou… uma coisa muito louca, da mesma forma que a gente vê em filme, quando eu saí da prisão, fazia muito tempo que eu não via o sol aberto, um céu na minha cabeça, sentir essa coisa do olho queimar assim com o sol, sabe? E aí, esse cara me colocou num carro, sem me dizer nada pra onde tava indo. Aí, parou numa casa e dessa casa saiu um cara com uma 12, entrou no carro e eu falei, “Ai, não sei por quê, né, passou tanto tempo pra me matar, matava logo no começo”. Eu achando que ia ser morto de novo. E aí, eu fiquei um pouco aliviado quando o carro foi até a rodoviária do Homs. O cara que tava com a 12 pegou o carro e foi embora. E o outro cara que me pegou no presídio entrou num ônibus comigo e fomos pra Damasco. E aí, em Damasco, fui levado, finalmente, praquele lugar que eles queriam que eu fosse no começo. Me levaram, esse cara que me pegou lá no presídio, me levou no Ministério da Informação. Lá eu conheci a diretora de comunicação do Ministério, chamada Abby Al-Hamed. E conheci um cara que, se você olhar no Facebook, ele tá lá, que eu falo dele no livro, o Fadir Maruf. Fadir é funcionário do governo Sírio, do Ministério da Informação, um cara muito bacana, é amigo meu no Facebook até hoje, a gente se fala de vez em quando. E aí, eu fiquei mais três dias em Damasco, esperando o governo Sírio renovar meu visto, pra eu poder sair do país em segurança. Quando renovaram meu visto, o Pedro Alcântara, que é outro cara que também tá no meu Facebook, ele é o Vice Cônsul do Brasil. Na época, ele tava em Damasco, hoje ele tá em Bagdá. E aí, o… não, Pedro não, é João Alcântara, o João Alcântara. Aí, o João me pegou no hotel, me colocou dentro de um carro da embaixada brasileira, e me levou de Damasco até Beirute, pra eu poder sair da Síria em segurança.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: É muito louco isso, cara. O tempo todo eu me sentia dentro de um filme, porque é muito roteiro de Hollywood isso, né. Jornalista estrangeiro vai cobrir a guerra no Oriente Médio e é preso pelo exército do país, é torturado, ameaçado de morte e tudo mais. Essa coisa de sair da Síria dentro de um carro da embaixada brasileira, é muito cinema isso, né, cara.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Você tem… você já parou pra pensar por que eles te prenderam? E qual que é a resposta que você tem pra isso?

Klester: Uns já me disseram, pra mim só tem uma resposta. Pra mim, primeiro, porque eu ousei desobedecê-los, né, em não ter ido ao Ministério. Pra mim, foi meio que um castigo que eles quiseram me dar, meio uma sacanagem. “Ah, ele achou que ia enganar a gente, vamos ferrar ele um pouquinho”, sabe? Porque até o tal documento que eu coloquei meu nome lá na delegacia, até hoje eu não sei o conteúdo. Eu pedi à embaixada do Brasil, eu pedi ao Itamaraty pra tentar conseguir esse documento com o governo da Síria. Eu queria muito saber o que foi que eu assinei, entendeu? Mas não conseguiram, o governo não liberou e fim de papo. Mas até hoje eu não sei a razão de ter sido preso, não sei, nunca me disseram. O que eu penso é o seguinte, se eu não tivesse orientado a redação da IstoÉ a fazer contato com o Bruno, se eu sumisse. O queé que seria, cara? Ficaria lá pra sempre? Isso que eu penso. Porque, assim, o governo sírio me prendeu, mesmo eu tendo entrado no país legalmente, com passaporte, com visto de imprensa. E, pô, se eu tava com visto de imprensa, se eles viram isso, eles poderiam pelo menos, assim, avisar à Embaixada, dizer, “Oh, prendemos um brasileiro que entrou no país legalmente”, né. Mas não, não avisou ninguém. Isso que eu achei mais sacanagem, sabe?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Você voltaria pra Síria?

Klester: Cara, eu não voltaria, não. Eu vou voltar.

Ivan: Vai voltar…

Klester: Eu não sei quando, vou voltar, eu não sei quando, mas é uma coisa que na minha cabeça tá decidida, é que eu vou voltar pra Síria, pra Homs. Eu quero ir lá no presídio onde eu fiquei preso, preciso rever aquelas pessoas. Eu preciso rever o Ammar, sabe? Estar com ele num momento de paz, de poder almoçar com o cara, caminhar dentro da cidade, conhecer a mulher dele, a Fatim, sabe? Outro dia, eu liguei pro Ammar, porque o Ammar, ele foi solto uns 3 ou 4 meses (tosse), no livro até conta. Quando saí da prisão, eu dei pra ele uns cartões com meu telefone, peguei também o telefone dele. Só que eu não tinha como ligar pra ele, o cara tava preso. E aí, um dia, eu estava na IstoÉ ainda, na minha mesa, trabalhando, o telefone tocou, eu atendi, era ele, o Ammar. E eu fiquei muito feliz. Até hoje, de vez em quando, a gente se liga. Eu liguei pra ele, acho que tem, não sei, 1 mês, 2 meses mais ou menos, acho que tem uns 2 meses, liguei pra ele, pra casa dele. Foi muito engraçado, porque a mãe dele atendeu o telefone, e ela não fala inglês. Aí, quando eu ouvi a voz de mulher, né, eu nem tentei falar, porque eu sei que ela não fala mesmo. Eu só falei o nome dele, eu falei “Ammar”. Aí, ela falou alguma coisa em árabe que eu não entendi. Aí, repeti, “Ammar”. Aí, ela falou de novo. Aí, eu falei, “Klester from Brasil”. Aí, foi muito engraçado, quando eu falei Klester, ela ficou numa animação. Ela, “Ammar! Habib!” Não sei o que lá… aí, eu vi que ela falou “habib”, que é “querido” em árabe, habib eu sei o que é. Ela falou, “Ammar, habib, Klester, Klester”. Ou seja, assim como eu falo dele aqui pros meus amigos, ele também fala de mim lá, entendeu? Muito legal ver, né, ela tão animada de saber que eu tava ligando pra ele, sabe? Aí, falei um pouco com ele, não sei o quê… Então, cara, eu tenho que voltar praquela cidade, sabe? Eu tenho uma dívida emocional humana muito grande com ele. Já decidi que, quando a guerra acabar, eu vou falar com o Fadir Maruf, que é esse cara que trabalha no governo da Síria, vou me colocar como voluntário, cara. Quero ir lá pra ajudar, nem que seja levando carrinho de mão com tijolo pra ajudar a reconstruir aquela cidade. Esses caras foram muito bons comigo.

Ivan: O Ammar ainda tá contrabandeando cigarros?

Klester: Não, eu até perguntei pra ele como que tava ele, se tava trabalhando. Ele falou que tava fazendo uns trabalhos no Líbano, não sei o que é. (Ivan ri)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No próximo episódio…

Voz 1: Tinha já impactado muito nossa família, porque era a primeira vez que a gente estava num lugar onde havia praticamente uma mesquita a cada esquina. O som ressoava por todo o lugar.

Voz 2: Ele chegou ao ponto máximo, assim, dessa linha de frente. É onde, do outro lado, dava pra gente ver as bandeirinhas do Estado Islâmico, assim, de longe.

Voz 3: Quando nós chegamos lá, que você via os corpos dos crianças e mulheres no chão. É um imagem, que vou falar pra você, você não quer ouvir.

Ivan (narração): Entre conflitos com as tropas de Assad, forças rebeldes e grupos terroristas como o Estado Islâmico, muito sírios, curdos e iraquianos buscam apenas sobreviver e resistir. São essas histórias que ouviremos aqui no Projeto Humanos, O Coração do Mundo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir através do link na postagem. Agradecimentos especiais a Klester Cavalcanti, que me concedeu essa entrevista numa madrugada de janeiro, falando pelo celular, no meio do trabalho da escrita do seu novo livro. E enquanto este novo trabalho não sai, você pode conferir com mais detalhes a história que ele está nos contando aqui, no livro “Dias de Inferno na Síria”, lançado em 2012, pela editora Benvirá, que foi vencedor do prêmio Jabuti de 2013. Uma adaptação para o cinema está em andamento agora, sob a direção do ator Caco Ciocler. Nos vemos no próximo programa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Jean Carlos Oliveira Santos, Marcela Brasil, Dyane Guedes Cunha, Sidney Andrade, Débora Veiga Ruiz. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Marcela Brasil