13 – Fugas e Lutas

13 de setembro de 2016

A crise de refugiados do Oriente Médio é maior do que se imagina. Enquanto a Síria está em guerra desde 2011, o Iraque também produz os seus fugitivos da guerra desde 2003 – e os países mais afetados pelas ondas de migrantes não são os europeus, mas sim os da própria região próxima. Homero Aziz, pastor que trabalha em um campo de refugiados na Jordânia, nos conta algumas histórias das pessoas que moram lá.
O jornalista André Fran conta como foi sua visita à linha de frente do Curdistão Iraquiano, onde o exército Peshmerga combate diariamente o autointulado Estado Islâmico.
E o soldado alemão Heiko Seibold, que atualmente luta ao lado dos Peshmerga, narra suas experiências frente a frente com o grupo terrorista.

0h02min00seg Ato 1: Vivendo no Campo
0h28min57seg Ato 2: O Curdistão Contra o Estado Islâmico
1h09min48seg Ato 3: Fugindo do Estado Islâmico

 

Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Lynsey Addario
Lettering por Luiz Amorim

Links

“Mais no Mundo”, organização na qual o Homero trabalha
Documentário “Os Nove que venceram o Estado Islâmico”
“Que Mundo É Esse?”, programa do André Fran
“Não Conta Lá em Casa”, programa do André Fran

Transcrição

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Este programa é patrocinado por Oktoplus. Hoje em dia, são tantos os programas de fidelidade que existem por aí que não é incomum a gente se sentir à deriva, no meio do oceano. Pelo menos é assim que eu me sinto toda vez que recebo um email me lembrando que estou cadastrado num programa de milhas de alguma companhia aérea, os pontos do meu cartão de crédito, do meu banco e tantas outras coisas por aí. O Oktoplus é um aplicativo feito para perdidos como eu. Nele, eu consigo concentrar em apenas um lugar todos os programas de fidelidade que eu participo e que eu nem lembrava. Inclusive, ele me lembra de ficar atento ao meu saldo e, principalmente, quando meus pontos expiram. Se quiser entender mais do que eu estou falando, puxe o aplicativo para o seu celular, cadastre suas contas e evite de perder a chance de fazer aquela viagem para o Nordeste que tanto deseja, ou ainda aquela panela antiaderente que você namora há meses. São mais de 40 programas disponíveis na Oktoplus, para que você possa manter o controle de tudo. Para mais informações, acesse oktoplus.com.br. Oktoplus é com K, ou seja, começa com “OK”, o que já é um bom começo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Este é o penúltimo episódio da nossa segunda temporada, “O Coração do Mundo”. E na semana que vem, no nosso décimo quarto episódio, encerraremos esta temporada e começaremos a planejar a próxima, que só deverá ir ao ar no ano que vem. Se tudo der certo, talvez apareçam algumas surpresas por aqui ainda esse ano, mas eu não vou fazer nenhuma promessa, por enquanto. E sabendo que o episódio da semana que vem será bem curto, esse episódio que vocês estão ouvindo é o nosso mais longo, para compensar um pouquinho. De tão longo, esse programa terá um formato diferente do que vocês estão acostumados. Ele possui três personagens, cujas histórias se misturam ao decorrer do episódio, e está dividido em três atos, igual o This American Life, o podcast dos Estados Unidos que serviu de inspiração direta para nós aqui. Chegamos, então, ao Ato 1 do nosso programa. Ato 1, “Vivendo no Campo”. Apesar deste episódio ser mais focado nas ações destrutivas do autointitulado Estado Islâmico, é necessário lembrarmos que o conflito na Síria  é mais complicado do que parece. Dependendo da situação em que você se encontra, você é contra o governo, contra as milícias e principalmente contra o Estado Islâmico e qualquer outro grupo terrorista. Você está sozinho no mundo, contra tudo e contra todos. Rezando todos os dias apenas para sobreviver e para que um dia a guerra acabe. Esta é uma história que ilustra um pouco do sentimento que muitos sírios, especialmente os mais pobres, que não tiveram condições financeiras de ir para outro país, têm com o seu próprio governo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA: UM ADHAN)

Homero: Bom, era uma manhã de uma sexta-feira, a gente tinha ouvido logo cedo de manhã os sons do minarete da mesquita tocar próximo da onde nós estávamos e aquilo tinha já impactado muito a nossa família, porque era a primeira vez em que a gente estava num lugar onde havia  praticamente uma mesquita a cada esquina. O som ressoava por todo o lugar.

 

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA: UM ADHAN)

Homero: Então, meu nome é Homero, eu tenho 29 anos de idade, sou paulistano, corinthiano, formado em Letras-Tradução, meu mestrado é na área de linguística. E eu, hoje, trabalho como diretor de uma ONG internacional no Oriente Médio, basicamente trabalhando com projetos de desenvolvimento comunitário, pra apoiar refugiados iraquianos e sírios na região.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA: UM ADHAN)

Homero: A gente tem ações, hoje, na Jordânia, onde a gente mora. A gente tem uma clínica médico-odontológica, onde a gente atende gratuitamente à comunidade. A gente tem um centro comunitário com jardim de infância I e II, com uma mini escola com cinco disciplinas, e um projeto de geração de renda pra mulheres. A gente tem microcréditos e pequenos negócios em toda a região. A gente tem ações, hoje, no Líbano, na Turquia, no Iraque, na Palestina, no Egito. E a gente tá envolvido num programa de acolhimento de refugiados sírios. Então, o tempo todo a gente tá lidando com gente dentro da síria. É, eu e a minha esposa, a gente sempre foi muito apaixonado pela cultura árabe. Ela é professora de educação física, Débora, ne. Eu tenho 29 anos, ela tem 32 anos. E ela trabalhava, há muitos anos, numa academia em São Paulo, a gente tava super bem, muito felizes, eu trabalhava numa outra ONG no Brasil. Mas a gente teve uma experiência com refugiados sírios na fronteira da Jordânia com a Síria, e decidimos largar tudo e vir como voluntários pra região, pra trabalhar, servindo os refugiados.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: A gente, então, foi pra casa do Mahmud, um refugiado sírio que saiu de uma cidade chamada Aleppo, e ele fugiu com toda a sua família pra Jordânia, e ele chegou com mais de 50 pessoas, atravessando a fronteira, num período muito difícil de frio, de inverno. E o Mahmud foi parar num dos cortiços de Mafraq, que é esse vilarejo próximo da fronteira com a Síria.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: Bom, as casas no Oriente Médio, elas são todas de pedra, as cores são uniformes, diferentemente do que a gente vê no Ocidente. Parece que é tudo uma coisa só, todas as cores lembram a cor de terra. E de fato, Mafraq fica no meio do deserto. Então, o pó e a terra estão por todos os cantos. A gente chegou naquele lugar, que é difícil de você encontrar esse lugar duas vezes, porque é tudo muito parecido, e a gente viu que era um prediozinho pequeno, muito simples, muito mal acabado, pobre. E a gente entrou naquelas escadas sujas. Não tem zelador que faz limpeza nesses lugares, então é tudo muito sujo, o cheiro é muito forte, porque as pessoas, elas deixam o lixo na frente do prédio ou na frente dos apartamentos. E o cheiro é fortíssimo em todo o prédio. Então, isso é muito marcante.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: Quando o Mahmud nos recebeu na porta, ele tava junto com o irmão. O irmão dele, o tempo todo, apoiava no braço, segurando ele pelo braço. Então, ele foi mancando até o colchonete. E aí, então, ele se deitou. E a partir daquele momento, ele não levantou mais.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: Tinha três cômodos naquele lugar. Eram dois cômodos que as mulheres usavam, e as crianças. E um cômodo grande, onde ficavam os homens e aonde ficava o frigobar. O espaço era pequeno, talvez uns 60 metros quadrados pra todo o ambiente. Mais ou menos 50 pessoas morando nos três andares do cortiço, desculpa, e mais ou menos 16 familiares morando nesse imóvel de três cômodos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: Quando a gente sentou, o irmão do Mahmud já veio nos servir o chá. Os homens todos sentados no chão, em cima dos colchonetes e dos cobertores. A gente sentou em roda, você não pode mostrar o seu pé, não pode deixar o seu pé aparecer, isso seria ofensivo pra pessoa. Então, você dobra as suas pernas de modo que não apareça a sola do sapato, né. E todos nós nos sentamos em roda, e o Mahmud, ele tava deitado num dos colchonetes, o tempo todo ele, do momento em que ele nos recebeu na porta até depois, o final, antes da gente ir embora, ele permaneceu lá deitado.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: O Mahmud, ele era, ele é um homem baixo, branco com o cabelo negro, com bigode, com dentes muito mal cuidados. E ele tava vestindo trajes árabes islâmicos. Ele tava vestindo o roupão. Era uma cor tipo um cinza bem escuro. O Mahmud deve ter algo em torno de 45 anos, me aparentava ser uma pessoa muito sofrida, com muitas rugas no rosto, com o semblante muito, muito acabado, de gente que não dorme, que tá passando por um momento de depressão, de muita preocupação. Era evidente no rosto do Mahmud de que ele não estava bem, de que ele estava depressivo, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: Ele e a família, eles eram comerciantes, eles tinham lojas de roupas, lojas de sapatos. A família do, do… eles eram muçulmanos sunitas moderados, não eram é… fundamentalistas ou… eram muçulmanos moderados na sua fé. E que quando a situação ficou insustentável em Aleppo, por causa do conflito, tomaram a decisão de fugir. Durante a fuga, foram pegos na emboscada do exército.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: A fuga do Mahmud aconteceu no início de 2013, em meados de fevereiro. Eu tive a oportunidade de me encontrar com ele em setembro de 2013, alguns meses depois, quando ele já havia chegado na Jordânia.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: É, a família tomou a decisão de fugir por causa dos bombardeios que se intensificaram na cidade. Ficou insustentável pras crianças e pras mulheres, é… permanecer em Aleppo por causa dos bombardeios que aconteciam, do próprio exército e dos rebeldes. Então, ficou perigoso demais pra família permanecer. Então, a família como… porque eles são tribos, né? Então a família, em conjunto, tomou a decisão de fugir.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: O Mahmud, juntamente com a família, quando eles estavam fugindo da Síria, eles foram pegos numa emboscada do Bashar al-Assad. O exército é… pegou eles durante a fuga, e os veículos militares atropelaram o Mahmud. E eles assassinaram quatro dos membros da família nessa fuga. Os familiares conseguiram, literalmente, arrastar o Mahmud para um lugar seguro, até que eles conseguissem atravessar a fronteira pra Jordânia. Na ocasião, a Jordânia mantinha as fronteiras, é… no norte do país, abertas para receber os refugiados sírios, o que já não acontece hoje. Então, na época em que Mahmud chegou, qualquer refugiado sírio, pra chegar à Jordânia, ele apenas atravessava a fronteira e a polícia permitia a entrada. Hoje, já não é possível isso acontecer.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: …teve as duas pernas dele quebradas, e a perna esquerda do Mahmud é, toda a… é, eu não sei o nome dos ossos. Essa osso da batata da perna, nesses dois ossos que tem, eles foram esmigalhados porque ah… ele, o veículo militar passou por cima da perna dele. Então, a perna esquerda dele, ele quebrou as duas pernas, mas a perna esquerda, a batata da perna, é… os ossos ficaram completamente esmigalhados. Durante alguns meses, ele usou pinos de metal nas duas pernas, pra que ele pudesse voltar a se locomover. Mas ele não consegue mais andar do jeito que ele… não consegue mais andar, né.

Ivan: Mas com pinos de metal, você diz. Como assim? Alguém fez cirurgia nele?

Homero: Sim. Quando ele chegou, A família conseguiu levá-lo pra Jordânia, ele foi atendido num hospital em Mafraq. E aí, depois de… Colocaram pinos e ele ficou com pinos durante meses, depois eles retiraram os pinos, e aí… mas ele fraturou as duas pernas e eles chegaram a colocar pinos. Então, o Mahmud , ele não consegue andar mais… infelizmente, ele tem que andar o tempo inteiro apoiado com muletas. E o irmão dele, o tempo inteiro, o ajuda pra tudo. É, ah… os ferimentos causados por causa do atropelamento foram muito graves, então ele precisaria fazer várias cirurgias que, evidentemente, como refugiado, ele jamais conseguiria fazer na Jordânia.

Ivan: Por que as tropas do Assad tavam atacando ele e a família dele?

Homero: Ele, ah… o conflito na Síria é um conflito muito complexo. Mas, basicamente, todos aqueles que não estão a favor do governo do Bashar al-Assad, que são considerados pelo governo como terroristas. Sejam rebeldes é, do exército livre da Síria, ou sejam literalmente terroristas do Estado islâmico.

Ivan: Uhum…

Homero: Todos aqueles que não aceitam tal governo se tornam alvo. E a família do Mahmud se tornou um desses alvos. Eles decidiram fugir. E na fuga, por serem considerados como… terroristas, como rebeldes, como, enfim. Eles são contra  o governo… mesmo não lutando, mesmo sendo civis, mas não apoiando o governo, eles passaram a ser alvos do governo. E por isso eles foram pegos na emboscada, né.

Ivan: Eles não tavam com armas, nada assim…

Homero: Não, eles não estavam com arma! Eles estavam fugindo. E a história do Mahmud é uma história de milhares de pessoas. Milhares de outras que são pegas no meio do conflito, são civis, mas que porque estão fugindo ou estão em lugares dominados por rebeldes ou por grupos fundamentalistas islâmicos, acabam também se tornando alvos do governo Bashar al-Assad.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: Enquanto eu ouvia o Mahmud contar a sua história, de repente, começou a soar o minarete da mesquita. E o Mahmud , ele tem muita dificuldade pra se levantar por causa dos ferimentos na perna. Então, ele deitado, começou a fazer os sinais da purificação que todo muçulmano faz nas suas orações. E começou a fazer a lavagem apenas por sinais. De repente, ele termina de fazer esses sinais e começa a fazer suas orações deitado. E aí, ficou mais ou menos uns dez minutos fazendo as suas orações, enquanto eu continuei a conversa com o irmão do Mahmud.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: E eu perguntei primeiro pro irmão do Mahmud por que ele tinha feitos sinais e não se purificado com água. E pela primeira vez, eu tinha ouvido aquilo, o irmão do Mahmud disse que o herdeiro da mesquita tinha permitido que ele apenas fizesse os sinais da purificação e que ele não se lavasse, que não precisaria fazer isso e que Deus receberia a purificação dele sabendo que ele não podia se levantar pra se lavar. E aí, quando o Mahmud termina as suas orações, eu fiquei… Eu tava muito curioso.E eu, então, olhei pro Mahmud e ele olhou pra mim. E eu perguntei pra ele, “Oh, Mahmud, eu sei que você enfrentou muitas dificuldades na sua vida, e eu fico feliz de ver o seu compromisso com Deus e você fazendo as suas orações. Mas eu estou curioso de saber pelo que você tava orando. Você tava, nesse tempo, fazendo as suas orações, qual era o motivo da sua oração? O que você falou com Deus?”. E aí, o Mahmud olhou pra mim e ele disse assim, “Eu estava pedindo que Deus assassinasse o presidente da Síria”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: E aquilo me arrepiou. E eu me lembro assim… eu fiquei, assim, assustado inicialmente, mas me veio ao coração o ódio que o Mahmud e muitos refugiados sírios que a gente tem conhecido todos os dias, eles tem contra o presidente da Síria, contra o governo do Bashar al-Assad, contra ah… enfim, o ocidente, por saber de tudo que eles estão vivendo. E ficou no meu coração, depois daquele momento, o ódio que aquele homem, ele tem. Infelizmente, a gente tem visto isso todos os dias aqui, enquanto a gente acompanha a realidade dos refugiados, o sofrimento, a perda, tem gerado esse ódio. E eu sei que se mais do que acabar com a guerra na Síria, mais do que tirar esses ditadores que estão ainda dominando muitos países árabes hoje do poder, mais do que tentar mudar a realidade difícil da guerra no Iraque ou na guerra na Síria, se a gente não trabalhar o coração dessas pessoas, uma mudança que traga, que faça a diferença, a mensagem do ódio vai permanecer.

Ivan: Uhum… Você chegou a questioná-lo de dizer, “Você não acha que desejar o assassinato de alguém é alguma coisa que Deus permitiria?” Você chegou a questionar ele em alguma coisa assim?

Homero: Pra ser bem honesto pra você, não. É… é muito difícil de você… é, como eu posso dizer assim? Confrontar um coração, uma postura, uma atitude como a que ele tava… diante da realidade da família dele. Ele perdeu quatro parentes na fuga que morreram. Ele foi atropelado, mas sobreviveu. Mas outros morreram no caminho. E era o meu primeiro contato com o Mahmud. E pra cultura árabe, eu preciso desenvolver um relacionamento com essas famílias pra que então eu possa chegar, por exemplo, a discutir algumas coisas. Ali eu tava como um estrangeiro vindo trazer uma cesta básica, diante da realidade de uma família que passou por tanto sofrimento. Eu queria apenas ouvir e, de alguma maneira, encorajá-lo apenas pelo fato de tá ali. Levar alguma coisa pra necessidade daquela família.

Ivan: Uhum… Você, hoje, conhecendo e vivendo mais a realidade aí, o que você acha que ele responderia, se você fizesse esse questionamento?

Homero: (Suspiro) Ah, uau. Eu acredito que… infelizmente, a gente vive num contexto islâmico em que a mensagem do ódio e da vingança, ela é muito propagada. Então, na verdade, eu acredito que qualquer palavra que eu desse hoje pra o Mahmud seria rechaçada com esses desejos de vingança, por causa de tudo que ele enfrentou com a família. A não ser que a gente pudesse trazer uma mensagem diferente pra eles, que trouxesse essa esperança e transformação. Isso aconteceu com muitas outras famílias que a gente lidou. Eu tô contando a história do Mahmud, poderia contar a história de outras famílias em que eu pude ver a transformação. É… pensando aqui num caso, só pra eu te falar, a gente produziu um vídeo que chama “Os nove”. Eu não sei se você chegou a assistir…

Ivan: Não, não vi…

Homero: Eu vou te passar o link. Ele conta o testemunho de nove refugiados iraquianos que estão nos meus projetos. E dos nove, seis deles trabalham comigo todos os dias. E na vida desses caras, eu posso falar pra você que eu vi toda a transformação de gente que chegou aqui vindo do Iraque por causa da perseguição do Estado Islâmico, com ódio enorme do Estado Islâmico, dos muçulmanos, e que hoje conseguem perdoar os próprios caras que fizeram eles perderem tudo, carro, casas, bens, dinheiro, emprego, vida, tiveram que fugir, tiveram amigos mortos, sequestrados, enfim, se você assistir o testemunho desses nove, você vai ver essa transformação, essa mensagem de perdão que hoje eles têm, inclusive praqueles que antes os perseguiam. Mas eu trabalhei com esses nove refugiados que tão no vídeo, durante quatorze meses. Então, eu pude acompanhar a transformação na vida desses caras. Mas no caso do Mahmud, eu não tive essa oportunidade. Depois que eu me encontrei com ele nesse dia e a gente fez aquela entrega, eu nunca mais voltei pra vê-lo na casa dele. E eu sei… Que eu tenho amigos que continuam distribuindo cestas básicas pra família dele, e ele e a família ainda permanecem na Jordânia, no mesmo lugar. Mas eu tenho certeza que a mensagem do ódio, ela ainda permanece lá, infelizmente.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: Estava ainda todos sentados, quando nós fomos nos despedir. E aí, começamos a dar os beijos. E na cultura árabe, você costuma dar três ou quatro beijos no rosto, homens e as mulheres também. Homens não com as mulheres, evidentemente, mas os homens com os homens, as mulheres com as mulheres. Então, a gente sentado, estávamos ainda naquele círculo, e aí, me lembro de ter me prostrado, de beijar o rosto do Mahmud, e aí, então nós nos levantamos e saímos. E eu me recordo de ter descido as escadas do prédio muito triste, porque as palavras do Mahmud, elas ficaram durante muito tempo no meu coração. Então, aquelas palavras de ódio mesmo, né? De que eu consegui ver no olhar do Mahmud o desejo de vingança, o ódio que ele tinha por causa de tudo aquilo que ele enfrentou.

Ivan: Uhum… você consegue me descrever esse olhar com imagens?

Homero: (Suspiro) Ah, uau… ah… o Mahamud, ele quando falou aquelas palavras pra mim, ele olhou fixamente nos meus olhos e parecia que ele não piscava. Eu me recordo das rugas debaixo dos olhos, olheiras muito grandes e um semblante de muita tristeza. Ele olhava atentamente pra mim, acho que ele queria avaliar qual era a minha reação depois do que ele tinha acabado de me dizer.

Ivan: Que você acha que passou na cabeça dele, quando ele falou isso pra você?

Homero: Eu penso que o Mahmud, ele… primeiro queria… Talvez ele estivesse pensando…  ah, uau… eu, talvez… deixa eu pensar… na cabeça de um árabe, todos os estrangeiros são americanos. Todos os ocidentais são americanos. Então, mesmo que eles soubessem que eu era brasileiro, na cabeça dele, eu acho que, de alguma maneira, ele sentia de que eu fosse culpado por aquilo. Como se… eu tivesse representando a opressão ocidental americana que… tá muito ligada com o governo da Síria, porque eles associam a… o governo da síria com os Estados Unidos. Então… na cabeça dele, eu acho que talvez ele tivesse me colocando ali como um representante de tudo dessa visão ocidental. Talvez eu acho que ele tivesse pensando… depositando talvez alguma esperança de que eu pudesse mudar alguma coisa da realidade dele. Principalmente porque a maior necessidade dele era fazer as cirurgias, né? E o tempo todo ele e a família falavam pra gente de que eles precisavam de ajuda pra que Mahmud fizesse as cirurgias. E a gente, sendo bem honesto pra você, Ivan, eu tentei de todos os tipos, com todos os meus contatos, e a gente não conseguiu ajudá-lo. Porque o caso dele era muito complicado, de cirurgia que ele precisa fazer, não conseguiria fazer na Jordânia. É… então, não sei, talvez ele tivesse depositando esperança em mim. E tentasse, tivesse tentando avaliar no meu olhar se eu ia, se eu ia ficar tocado pelo que ele acabou de falar e tentar, e falar alguma coisa que, né, desse esperança pra ele. Não sei.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Essa entrevista com o Homero foi gravada em Janeiro de 2016. No final de Agosto, eu perguntei para ele como estava o Mahmud, e ele me respondeu que ele ainda não conseguiu a sua cirurgia, continua sem andar e permanece na Jordânia.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Ato 2, Lutando contra o Estado Islâmico. Nessa segunda parte do nosso programa, conhecemos a história de um país que mal existe, mas cujo povo é uma das principais forças contra os terroristas.

André Fran: Meu nome é André Fran, eu sou, difícil especificar exatamente o que eu sou, mas eu sou diretor de TV, é… eu escrevo livro também, trabalho muita coisa de mídia social, sou sócio de uma produtora de TV. Então, eu faço desde direção, roteiro, produção, e… Mas o mais legal, que é o grande cartão de visita dessa história toda, são os dois programas de TV que eu tenho hoje e que eu apresento também, além de dirigir, junto com mais dois amigos, que é o “Não conta lá em casa”, que já tá aí há quase dez anos no ar. A gente tá na nossa oitava temporada, e passa no Multishow, é um programa de viagem a destinos inusitados, polêmicos, e que me levou a até à Coreia do Norte, Afeganistão, Iraque, Chechênia, o Japão depois da Tsunami. Participei de uma missão da ONU no Haiti. E o outro programa mais recente é “ Que mundo é esse”, da Globo News, que a gente fez a nossa primeira temporada ano passado e vamos fazer as novas temporadas esse ano. E essa primeira temporada, a gente tratou do tema do Povo curdo. A gente foi até o Curdistão, tanto o Curdistão na parte da Turquia quanto na parte do Iraque, onde a gente teve na linha de frente do combate ao Estado islâmico.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

André: No “Não Conta Lá Em Casa”, a gente sempre teve um perfil de conhecer os países polêmicos, ou se recuperando de desastres naturais ou de conflitos armados. A gente sentia um pouco de falta de poder se aprofundar em algumas pautas, a gente costuma dizer que o “Não Conta Lá em Casa” é um Reality Show com uma pegada jornalística. Então, a gente traçava o perfil de alguns países que as pessoas não estão acostumadas a conhecer, como Afeganistão, o Iraque mesmo, o Haiti, a Somália. Já no “que mundo é esse”, a gente tava querendo criar um programa que fosse jornalístico com uma pegada de reality show. Ou seja, a gente tenta buscar e entrar em contato com as principais pautas do mundo moderno, e fazer isso com uma pegada diferente, com uma abordagem mais original, mais verdadeira, mais orgânica mesmo, do que as grandes redes de jornalismo tratam hoje em dia. E a gente tava buscando uma primeira pauta para fazer esse “Que mundo é esse”, qual seria a grande história hoje. E a gente se deparou com a história do povo curdo. É uma história que a gente tinha esbarrado ao longo desses anos de pesquisa, de viagens pelo Oriente Médio, e que a gente não tinha tratado e não tinha visto ninguém tratar de forma mais profunda. A gente viu, cara, a gente tem que chegar, lançar um programa novo já causando impacto. E naquele momento, os curdos tavam, pela primeira vez, conseguindo uma representatividade nas eleições na Turquia.Tavam num momento muito bom no Curdistão iraquiano, pela organização, pelo desenvolvimento, e principalmente, eles eram conhecidos como a grande força lutando contra o Estado Islâmico. E a gente mostrou bastante. Claro que a gente não pode dizer que mostrou tudo sobre o povo curdo, o Curdistão. Mas a gente passou por alguns desses lados bem interessantes e fechamos a temporada indo até a linha de frente do ISIS.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: TRAILER DE UM DOS PROGRAMAS DE ANDRÉ)

(SONS DE CARRO ARRANCANDO, ALGUÉM FALANDO EM ÁRABE, TRILHA SONORA É HEAVY METAL)

Voz com sotaque: Deixa a cabeça baixo, fica 10 segundos máximo, depois muda lugar.

André: Você acha que eles sabem que tem três brasileiros filmando a área agora?

Voz com sotaque: Com certeza, com certeza.

André: Só o que separa a gente do Estado islâmico é uma montanha a alguns quilômetros de distância.

(FADE IN E FADE OUT DA TRILHA DO CLIPE)

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

André: O Curdistão… assim, o povo curdo é o maior povo do mundo sem uma nação. O Curdistão, como ele é conhecido hoje, na verdade, aborda parte de alguns países, o Iraque, a Turquia e o Irã principalmente. O Curdistão, que eles buscam ser independente, na verdade, é na verdade o Curdistão iraquiano, é a parte do Curdistão que ocupa o Iraque, que é onde está a capital Erbil. Capital, hoje em dia, super bem estruturada, até moderna mesmo, que é muçulmana, mas um estilo de Islã bem tranquilo, assim. E basicamente é isso. Mas é, assim, um povo que, ao longo de vários anos, teve conflitos na Turquia, com os turcos, buscando também sua independência. E tem aquela história toda dos conflitos de guerra e atentados terroristas. E os curdos recentemente ficaram muito mais conhecidos por esse lado iraquiano, justamente por eles serem os mais perseguidos. Os muçulmanos, em geral, são os mais perseguidos pelo estado islâmico, por mais curioso que isso possa parecer para alguns. E os curdos são a principal frente de batalha contra o estado islâmico, que hoje é conhecido como um dos grandes inimigos da humanidade.

(INÍCIO DE MONTAGEM de CLIPES DE ÁUDIO: MATÉRIAS TELEJORNALÍSTICAS)

Sandra Annenberg: Os curdos estão enfrentando o estado islâmico na cidade de Sinjar, no Iraque.

(TRANSIÇÃO)

Jornalista Português: Os Peshmerga, ou combatentes curdos, assumiram a missão de enfrentar o grupo Estado Islâmico. O Confronto no terreno acontece dentro e fora do Iraque.

(TRANSIÇÃO)

Sandra Annenberg: Os curdos já avançaram e estão dentro da cidade (sons de bombas).

(FIM DA MONTAGEM)

Ivan (narração): A criação do Curdistão era uma promessa do ocidente, Após a Primeira Guerra Mundial, especialmente com a dissolução do império turco-otomano. Contudo, por conta do Tratado Sykes-Picot, que foi o acordo firmado entre França e Reino Unido, essa promessa nunca se cumpriu. Por isso, os curdos hoje são considerados como o maior povo do mundo que não possui um país próprio. Contudo, eles possuem fronteira, legislações, sinalização e até um exército próprio, os Peshmerga.

André: Os curdos e os palestinos foram os grandes povos sacaneados após as duas grandes guerras, a gente pode colocar assim. Mas na  prática mesmo, o que acontece é que você tem um Curdistão de fato, e claro que esse “de fato” é cheio de aspas, porque ainda não é reconhecido como um país independente. Mas se tem um Curdistão que você pode considerar um país mesmo, era o Curdistão da parte iraquiana. Quando você tá na parte da Turquia, que eu conheci e presumo que seja  mais ou menos assim no Irã e na Síria também, você tem mais ali um povo habitando uma região de um outro país. É claro que você entra na discussão de que aquele território é deles ou é do país em questão. Mas, oficialmente, são Bandeiras daquele, do país onde eles estão. E de repente, tem direito a ensinar a língua curda nas escolas, e tem mais o direito de ter as placas de trânsito com inscrições em curdo. Mas acaba sendo meio que uma luta por direitos do povo curdo. Já no Curdistão iraquiano, não. No Curdistão iraquiano, você praticamente tá entrando realmente em outro país, você tem que passar por uma fronteira que analisa o seu passaporte. E no caso, nós entramos, o Curdistão liberou brasileiros de visto de entrada. Então, a gente entrou no que seria oficialmente o Iraque sem visto para entrar no Iraque, porque o Curdistão que tá ali naquele lugar liberou visto brasileiro, e a gente não tinha visto de iraquiano. Então, só isto já mostra muito o quanto que o Curdistão tem de autonomia naquele lugar. Eles, tanto o curdo do Iraque quanto o curdo da Turquia e da Síria, entendem que a parte que tem mais chance de se declarar independente, ou um Curdistão independente, é o Curdistão que tá no Iraque. Os curdos, nos outros países, querem mais um reconhecimento tanto deles como povo de direitos iguais na sociedade onde eles vivem. E o próprio curdo do Iraque não busca ser independente de uma forma de libertar os outros curdos, ou de conseguir a independência de territórios nesses outros países, não. É mais uma coisa, eles têm essa unidade de com o todo, mas também tem essa parte diplomática, geográfica, assim bem consciente pra eles.

(fade in e fade out de trilha sonora)

André: Todo mundo sabe que os curdos e os Peshmerga, que é o exército do Curdistão, é a principal força lutando na linha de frente contra os territórios ocupados hoje pelo Estado islâmico. E a gente foi até uma linha de frente de combate deles, né, a gente conseguiu autorização especial. E tinha um soldado alemão que falava português, até porque tinha morado no Brasil, dando um treinamento pra policiais do BOPE e tudo mais, e tava dando ajuda ao Cônsul brasileiro. Que tem também uma coisa engraçada, um Cônsul brasileiro no Curdistão é um médico curdo que não fala português, mas foi assim indicado, e que conseguiu esse contato pra gente até a linha de frente. Então, a gente foi passando por frentes avançadas de quartéis-generais e outras linhas, até que a gente chegou ao ponto máximo, assim, dessa linha de frente, onde do outro lado dava pra gente ver as bandeirinhas do Estado islâmico assim de longe.

(fade in e fade out de trilha sonora)

Heiko: A minha nome é Heiko Seibold e eu tenho 44 anos. E a profissão hoje é consultor internacional.

Ivan: Você é de qual país, originalmente?

Heiko: Eu sou alemão.

Ivan: Alemão? E qual, mas você se vê como alemão? Como é que você se vê?

Heiko: Eu sou alemão mesmo.

Ivan: Você alemão mesmo.

Heiko: Eu me veja, isso.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: Eu fui do exército alemão, depois passou uma temporada na Legião Estrangeira, saiu de lá, fui para Israel, fiz o curso lá de segurança pessoal e de operações especiais. Depois formado na Alemanha em vários escolas de segurança pessoal e também do, vamos falar, comandos, né,  da polícia da Alemanha. E no esse tempo, eu já chegou aqui no Brasil 2000, começo para treinar polícia brasileira aqui, principalmente aqui em Goiânia, da polícia civil e polícia militar. Depois fiz curso para o (incompreensível) da Polícia Federal, do Exército, da Aeronáutica, da segurança pessoal do Fernando Henrique Cardoso e outros ministros aqui.

(FADE IN FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: Eu tenho um filho maravilhoso, hoje ele tá com treze anos. Ele se chama João Pedro. Eu tenho uma mulher, nos casamos em 2002 e tá casado até hoje.

Ivan: Uhum… e você mora em Goiânia?

Heiko: Eu moro em Goiânia. Não, hoje mora no Curdistão, né.

Ivan: Ah, sim, sim…

Heiko: Por causa do meu trabalho.

(FADE IN FADE OUT TRILHA SONORA)

Heiko: Não, eu fui lá com umas empresários brasileiros e no início de 2015, janeiro ou fevereiro. Eles queriam abrir um caminho para vender açúcar e outras alimentos, né. Arroz brasileiro, tudo. Só foi muito difícil para eles para fazer essa negociação. Aí, nessa tempo eu conheci o cônsul brasileiro que de origem é curdo, estudou nos Estados Unidos e hoje ele é o cônsul honorário do Brasil no Curdistão. Aí, ele perguntou, “Você não tem contato pra treinar Peshmerga, né? Pra ajudar no nosso país”. Aí, eu falei, “Uai, eu tem”. Aí, eles perguntaram a minha formação, aí, eu passei meu currículo para um general de alto cargo lá no governo. Aí, eles adorando. Aí, eu no esse tempo (barulhos de pessoas falando ao fundo), no esse tempo, eu comecei a treinar Peshmerga, né, e ajudar na consultoria e outras coisas.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: A convite foi feito porque a Peshmerga pela história, né, de luta deles, de guerrilha. Só que eles lutam contra Saddam no área das montanhas. Uma luta totalmente diferente que eles enfrenta hoje. Aí, a Peshmerga teve muito baixas no combate com o Estado Islâmico. O que hoje você ia entender o luta nossa tem um trincheira de mil e quinhentos quilômetros da nossa área. Aí, eu frequentou. Aí, vão falar, Makmur, na linha de guerra que eu tô, ataques do Estado Islâmico frequente. Mínimo uma vez por dia ou mais por dia. Quando André Fran foi lá com os meninos, eles filmam lá também, eles viam o armamento deles são tudo que eles pegam exército iraquiano que fugiam e deixou tudo para trás.

André: Os caras davam tiro na direção deles pra gente ver. Aí, tinha um armamento lá. E contavam das histórias de ataque durante a noite, que eles tinham que rechaçar tiros e bombardeio e tal. E o que me impressionava mais era que esses caras que tavam ali fazendo essa, essa… uma das principais batalhas hoje conhecidas no mundo de uma organização terrorista que talvez seja a mais famosa e mais temida no Brasil, na França, nos Estados Unidos e no mundo árabe, que é o Estado Islâmico, esses caras que tavam combatendo, eles tavam de arma improvisada, recauchutada, algumas com esparadrapo em volta pra manter inteira.

Heiko: O nossa Peshmerga hoje, quando eu treinei eles, esse o treinamento tático militar diferente, porque você pesquisou já muito dessa matéria, você sabe. Os Al-Qaeda foi treinado por quem? Estados Unidos. Aí, a mesma coisa acontecia no Saddam, na época do Saddam, os Peshmerga antigas foi treinado pelos americanos. A Isis hoje, os altos funcionários do cargo oficiais do ex exército do Saddam que ajuda para treinar o Estado Islâmico. So,os dois lados foi treinado pelos americanos, ingleses e franceses. So, aí que significa isso? Nós tem que mudar nossa estratégia do treinamento tático, que eu entrei no meio e pra pegando as técnicas do Israel, da Alemanha, para mudar a situação na guerra urbana lá. So, a minha parte hoje é treinamento essa parte, porque agora nós tá preparando a liberação do Mossul que nosso exército vai participar. Fora do (incompreensível) americanos, que eles está treinando, né. Porque, me desculpe eu falar isso, só esse treinamento dos americanos não vai ajudar muito. Porque você tem que entender, hoje nós já sabe, tem mais de vinte e cinco mil Estados Islâmicos soldados no Mossul. Aí, Iraque tá treinando seis mil soldados pra liberar essa cidade com mais de dois milhões e meio de habitantes. Não vai funcionar. Não vai.

Ivan: Só pelo tamanho de gente já perde, né?

Heiko: Isso. Não vai, isso.

Ivan: Sim. Você… isso já é uma pergunta até que eu já ia te fazer então, porque você… a melhor forma de perguntar isso é quem que tá te pagando exatamente, quem que te contratou pra ir lá?

Heiko: Ninguém.

Ivan: Ninguém…

Heiko: Depois eles mandam as fotos é das crianças e mulheres decapitadas, né? De cabeça por causa dos cristãos. Aí, passou dos limites, né? Aí… sou voluntário.

Ivan: Você é voluntário, então? Você não tá fazendo parte de grupos da Europa, por exemplo, que tão querendo treinar?

Heiko: Não. Nenhuma.

Ivan: Uhum… Mas como é que você se sustenta assim, tendo em vista que não…?

Heiko: É… ou alimentos que o André e os meninos mandam é a comida do exército lá. Arroz, extrato tomate e umas verduras, todo dia. Uma vez por semana, tem carne.

André: Os caras sem nenhum uniforme padrão, uns tavam de sandália de dedo, outro com uma camisa camuflada de um jeito, outra camuflada de outro. Porque eles mesmos, na maioria das vezes, têm que comprar essa roupa camuflada. E… o que o tempo todo eles falavam pra gente, vendo a gente filmando, é “Ó, fala pro mundo todo que a gente precisa de doação, a gente precisa de dinheiro, a gente precisa de apoio, a gente tá aqui lutando simplesmente em nome do nosso povo, em nome da, da… da humanidade, contra esses caras, mas de forma totalmente improvisada. A gente não vai arredar o pé daqui, daqui eles não passam. Mas é uma luta muito encarnecida, porque a gente não tem condição. A gente tá lutando aqui com o pouco que a gente tem”. E era realmente impressionante ver, assim, eles dando tiro e depois tendo que desmontar a arma pra consertar, porque a arma engasgava a cada cinco tiros, sabe? Então, esse foi um dos momentos que eu vi, assim, grupos guerrilheiros fazendo uma das lutas mais, assim, louváveis que tem hoje em dia. Que acho que em toda guerra a gente sempre tem dois lados da questão. São sempre situações lamentáveis, mas pelo que a gente viu ali, pelo que a gente soube e, e… testemunhou de ações do Estado Islâmico, é a luta contra esses psicopatas, assassinos que falam em nome de uma religião, mas que não têm nada a ver com os preceitos daquela religião. A luta contra esses caras é uma das mais que deveria estar sendo mais apoiada hoje em dia, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

André: Tinha esse soldado alemão que é super respeitado lá e que era praticamente um líder, porque foi quem treinou muitos desses soldados. Era quem acompanhava a gente o tempo todo, o Heiko Seibold, que acabou se tornando amigo nosso, tá até no Brasil passando as férias. Mas acompanhava dele sempre um soldado ajudante, que era o Hauand, que era um curdo que… que tava lá todo uniformizado, com a arma dele a tira colo. E a história dele foi muito interessante porque, na verdade, ele não era um soldado, ele era um jornalista. Ele andava com uma câmera, cobrindo as ações dos generais de algumas tropas curdas na luta contra o Estado Islâmico. Até que, um dia, ele tava num… E aí, você pensa, um jornalista curdo, você pensa um, sei lá, um cara diferente, árabe, um… um muçulmano que ficava rezando pra Meca o dia todo. Não, o cara era um jovem como eu, você, assim. Ele tem um Instagram dele, que ele tira os selfies dele lá, cheio de pose. É, enfim, um cara normal, jornalista, com a câmera dele, gostava de filmar, editar e tal. E um dia desses, ele tava encontrando um general dentro do carro, e ele tem isso tudo filmado no celular dele, o que é mais impressionante, a gente mostrou isso no nosso último episódio do “Que mundo é esse”. Ele tava nesse carro, quando foi atacado pelo Estado Islâmico. O carro foi metralhado, os soldados que tavam ao lado dele dentro do carro foram baleados, um recebeu estilhaço no rosto, outro recebeu tiro no ombro, é… ele conseguiu arrastar esses amigos pra fora do carro numa posição mais escondida. E mesmo assim eles continuaram recebendo tiro de soldados do Estado Islâmico que fizeram essa emboscada neles, e tavam escondidos dentro de uma casa. Ele conseguiu correr de volta pra dentro do carro, pegar uma arma e conter esses tiros do Estado Islâmico. Ele trocou tiro com esses caras, enquanto não vinha um apoio de outra… da tropa dele. E ele fala, “Cara, foi graças a Deus eu consegui sobreviver sem nenhum arranhão, consegui salvar os meus amigos que depois foram pro hospital, foram tratados e sobreviveram. E eu digo que foi nesse dia que eu me tornei um Peshmerga, eu me tornei um soldado do Curdistão, porque até então eu era apenas um jornalista, um jovem jornalista”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: No, é o seguinte, nós fica num turno de quatro dias. Significa quando você tá… responsável, né, pela segurança, você vai para linha. Você acorda lá mais ou menos 5h30, 6h. Tem um turno, né. Sempre somos trinta soldados na nossa base. E cada um deles tem uma responsabilidade da segurança. Um fica na patrulha, né? Num carro blindado. Aí, esse fica duas horas até patrulha, depois você volta e fica no mínimo uma hora de descanso. Depois eles fala, “Você faz patrulha agora na cidade”, porque nós também tem espiões na cidade, né? E é isso. Todo mundo é flexível, você não tem mesmo um plano ainda certo pra fazer. Todo mundo ajuda todo mundo. Agora, depois de quatro dias, você folga quatro.

Ivan: Você já entrou em combate?

Heiko: É… já, várias vezes. Só para defender o general, né? Porque eu tenho que falar isso claramente, eu sou alemão, a legislação alemã proíbe o uso, né, do cidadão alemão no conflito armado em outros países. Eu já comuniquei isso também para meu governo. Eu hoje sou oficialmente segurança pessoal do general. Aí, quando eu vou na linha, significa, Estado Islâmico ataca, eu tá defendendo meu general e o pessoal que tá com ele. Eu tenho que formular isso bem claro para não ter problemas na minha entrada na Alemanha no futuro.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: E foi uma cidade dez quilômetros na frente o Makmuha, se chama Samur. Essa cidade é perto do um posto muito grande do Estado Islâmico. Quando nos começamos a nossa patrulha, nós estávamos em quatro Hummers, com cinco pessoas em cada Hummer, são vinte pessoas. Quando nós avançamos, aí, pela fone rádio nós ouvimos, né, o socorro do outras unidades que estavam mais na frente nossa. Quando chegamos na cidade, que a população deles  (incompreensível) pediram ajuda, porque eles não dão conta mais de defender. Eles vem em muito com… é volume muito grande pra tomar a cidade. Aí, nós fomos lá, só infelizmente chegamos tarde demais, tá? Porque eles tem muitos minas lá no caminho. Então, nós tem que estar muito cuidadosos, né? Quando nós chegamos lá, teve essa foto que o André receberam também, que vocês viam os corpos dos crianças e mulheres no chão. É uma imagem, é eu falar pra você, você não quer ouvir. Você mesmo humano não quer ver isso. Eu não sei o que uma pessoa tem como pra matar uma criança de ah… três mês, seis mês, cortar a cabeça, colocar em cima é… e escrever “Allahu Akbar”, “Allah é grande”, e tudo que eles escreve lá. Porque eu acho que essa foi o pior dia da minha vida, ver esses corpos das mulheres e crianças. Os homens foi levado, tá, para depois fazer vários vídeos no YouTube, a maioria deles ex líderes, né? Que eles cortam a cabeça ao vivo, ou explode, pra esses vídeos de propaganda, são todos a maioria cristãos.

Ivan: O que passou na sua cabeça quando… como é que foi a cena de você chegando na cidade e vendo os corpos.

Heiko: Raiva. Raiva. Ivan, eu… vou ter que falar pra você que escrever isso. É você pensa, eu tenho um filho, né? O João Pedro. Pensa, alguém toca nele ou faz uma coisa dessa. O que raiva uma pessoa pode sentir. Qualquer pai ou mãe, não sei as mulheres, né, Peshmerga que vir uma coisa dessa vira um lobo. Só quer para frente é matar.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: Pra mim, quando eu vejo uma deles chegando, é, tem que usar a força letal com prazer, muito prazer. Eu fica feliz porque eles, nesse momento, eu penso o seguinte, que cada uma dessa que é Peshmerga, né, os meus parceiros mata, significa uma vida melhor para uma criança ou mulher (incompreensível) cristão, né? Isso que significa pra mim… tá.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: A maioria das ataques deles começa às 4h, às 6h da manhã. Horário que, né, todo mundo tá cansado da patrulha tudo, né? E muita vezes, quando chuva e tem neblina, eles vêm. Estou usando porque nós não tem visão noturna, raramente nós tem, ou a visão de… térmica, né? Nós não tem. Eles têm, né? Não pode esquecer. Porque eles pegam muito, em Hamar e Mossul, equipamento e principalmente é visão noturna, térmica. Os snipers, eles têm a sniper, né, armamento com visão noturna e térmica, que nós não tem.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: Quando você faz as quatro dias, quando você tá lá, você descansa, só que você nunca descansa de verdade. Aí, pela rádio, aí, ele chama nós. Aí, quando eles chega, nós pega eles. A maioria dos ataques hoje é o terreno. Terreno lá é muito planos, né? Aí, tem muitos quilômetros, né?

André: Então, uma linha de frente, né, acaba que uma linha de frente, imagina uma coisa cumprida, assim, e homogênea entre um território e outro. Na verdade, existe essa linha, né? Como a gente poderia ver num mapa assim, o território limite entre uma cidade ou outra, entre um estado ou outro, entre um território ocupado pelo Estado Islâmico e o Curdistão. É… que estão ambos dentro do Iraque. É claro que isso não é uma trincheira imensa que segue contínua de um lado até outro, né? Ao longo dessa linha divisória imaginária tem várias basezinhas. É quanto mais próximo do território que tá em batalha ou mais próximo do território do inimigo, essas bases avançadas são menores. Então, por exemplo, nessa que a gente visitou, que era uma ao longo de várias e centenas que tem ao longo dessa linha divisória, era uma, vamos imaginar assim, uma… um fortezinho cercado por trincheiras, né? Aqueles sacos de areia fazendo uma proteção mais alta, assim, no limite dela pra fora, né. E algumas casamatas, assim, protegidas do sol, com armamento ali apontando pro lado inimigo, pro lado do Estado Islâmico. E mais pra baixo, uma casa um pouquinho maior, onde tinha uma sombra, onde guardavam água e equipamento e onde eles podiam descansar um pouco melhor. Mas é uma coisa bem, bem rústica, assim, improvisada mesmo.

Heiko: Aí, eles entra quando tem neblina ou chuva. Eles entra nas fronteiras e chega perto de nós. Aí, começa atirar com (incompreensível) ou outras armas pesadas. Aí, o combate começa, né. Nós já tentamos para fechar elas quando nossos carros eles já começam a atirar em nós, né. Aí, nós tem que recuar.

Ivan: Qual a distância deles?

Heiko: Hoje é oitocentos metros.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(SONS DE VOZES, CARROS, CHUVA E TIROS,  QUE CONTINUAM AO FUNDO DA FALA DELE)

Heiko: Carro, é. São carros, a maioria Krumer, né, Americano, que eles pegaram em Mossul. Eles pegaram quando é eles tomaram na cidade no Mossul. Eles pegam mil duzentos Hummers, tá. Todos equipados com Ponto 50 ou pior, armas 20mm, pontadas em cima. Ou os carros que eles usam muito é Highlux, tem lá, né. Eles vêm, faz uma blindagem nas laterais, na frente vem com os carros. Homem bomba, né. Usam muito também os carros porque são muito forte e potente. Porque as Hummers só andam a 40km/h, né. A Highlux já pode andar a 80 ou mais, depende da carga.

(SONS DE VOZES, CARROS, CHUVA E TIROS TERMINAM)

André: A gente passou por duas cidades, Dohuk e Erbil principalmente, e são cidades que têm hotel excelente. Inclusive, um dos hotéis que a gente ficou, infelizmente a gente ficou uma noite só, mas era um hotel cinco estrelas que tinha instalado ali. E a gente ficou até pra contar as histórias curiosas de como é que tem, numa cidade Dohuk, que tá a 40 quilômetros de territórios ocupados pelo Estado Islâmico, a cidade de Mossul, que tá tomada pelo Estado Islâmico, tem um hotel 5 estrelas, e a gente ficou hospedado lá pra mostrar isso. E a gente ficava em condições super tranquilas, eram um hotel… bons, assim, modernos. E a gente precisava de base, fazia incursões pra contar as histórias que tinham ali em volta, mostrando campos de refugiados, pessoas que fugiram do Estado Islâmico, da perseguição do Estado Islâmico, foi assim… Cristãos, outros muçulmanos, ou yazidis também, que são muito perseguidos. E também fizemos isso nesse dia que a gente foi até a linha de frente, porque era uma cidade próxima, a gente saiu bem de manhã, foi até lá, passou o dia ali nessa linha de frente e voltamos, à noite, pro nosso hotel. O que é mais curioso, que a gente acaba incorporando, também, ao programa, você pode ter um cotidiano de vida normal, numa cidade super estruturada, mas passar o seu dia numa linha de frente, numa guerra contra o ISIS. É super… É surreal, e acaba sendo bem ilustrativo, assim, da história que a gente tá contando.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

André: Assim, por mais perto que pareça, dá pra você ver, a olho nu, assim, o outro lado da linha de frente, né. O lado islâmico. Mas a gente não conseguia ver exatamente as pessoas, ou movimentação. Ouvia, raramente, uma movimentação de veículo, alguma coisa assim. Eles não tavam num momento de troca de tiros, de batalha, graças a deus. Acho que, se tivesse, eles nem deixariam a gente chegar até ali.  Mas é um lugar que, volta e meia, tem troca de tiros, principalmente à noite. Mais raro de dia. Só que, como a gente tava ali, e eles nessa improvisação, e até nesse certo amadorismo que eles têm, assim, eles quiseram meio que se mostrar pra gente, assim. E a gente também tem esse lado… Como eu falei, a gente acaba ficando muito amigo. A gente já tava amigo do Hauand, que era esse soldado que tava levando a gente, apresentava pros amigos dele, uma coisa bem formal, né. Nosso… A gente não tem muito aquele aspecto e postura de equipe de TV, sabe. São quatro caras com uma câmera na mão. Então, a gente ficava ali no meio deles, e filmando. Eles meio que se mostrando pra gente. Aí, dava um tiro pra lá, e mostravam… Davam um tiro de AK-47, e de fuzil, e de ‘.50’ . E davam mais tiro. E perguntavam se a gente queria dar tiro também. E até que, quando a gente viu, a gente começou a ouvir uns barulhos, assim, passando… O Uvo que ouviu da primeira vez, falou, “Olha, eu acho que isso aqui é tiro em nossa direção”. Aí, ele perguntou pro… Olhou pra um soldado, assim, e falei, “Vem cá…” Aquela língua, claro, no gestual, né. Fez aquele sinal, assim, “Isso aqui em cima, passando, é tiro que tá vindo de lá?” Aí, o cara fez só aquele sinal de positivo com a cabeça. Na mesma hora, a gente se abaixou ali numa trincheira e falou, “Oh, gente, acho que nosso trabalho por aqui já tá feito, tá na hora da gente ir embora”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

André: E eles tratam isso com uma certa naturalidade, que acaba sendo meio perigosa pra gente. Por que a gente vê aqueles caras naquela naturalidade, e pensa que é o mesma naturalidade nossa. Ou seja, não tem risco, não tem perigo, não… Só que, pra eles, tiro passando acima da cabeça deles é natural. É normal, é coisa do cotidiano deles. Eles não se assustam tanto assim. Então, a gente acaba perdendo essa referência do quão perto do perigo a gente tá. E quando a gente foi trazido de volta pra nossa… Pra nossa realidade, né, “Olha, tem tiro passando acima da nossa cabeça. Não… Não vamos ficar aqui”, a gente decidiu sair fora na mesma hora. E é engraçado que a gente via eles ali em pé, do lado, eles pulavam pro outro lado da trincheira pra tirar foto nossa, e ficavam em pé, fazendo pose com a arma virado pra gente. E davam tiro, de pé, ali. A gente falou, cara, não deve ser tão arriscado assim, né, esses caras tão se expondo dessa maneira. E a gente acaba também ficando em pé, não ficava tão abaixado. Porque, a princípio, tinham falado pra gente, “Olha, chegando lá, coloca… Só levanta a cabeça acima da trincheira durante 5 segundos, depois abaixa, e se for levantar de novo, levanta em outro lugar”. Então, a gente foi com esse… Cara, cuidado máximo. Quando a gente viu eles em circulando, dando volta na trincheira, tirando foto, a gente falou, “Ah, não é tão perigoso assim”. E ficamos mais relaxados também. Foi algumas semanas depois que eu voltei dessa viagem, que eu vi um vídeo, que me mandaram pelo Whatsapp, de um soldado curdo, exatamente numa situação igual a essa que a gente tava. Ele em pé, dando tiro, rindo, de demonstração. Quando, de repente, vem um tiro de sniper do outro lado, né, de um franco atirador do outro lado, acerta na cabeça dele, e ele cai na hora. Eu falei, cara, isso poderia ter acontecido com a gente, sabe. Poderia ter sido exatamente… É, a gente tava numa situação exatamente igual. A gente, simplesmente, deu a sorte de não ter acontecido isso naquele momento. A gente achava que eles ficam tranquilos, que não tem perigo. Não, eles ficam tranquilos porque eles tão ali de forma super improvisada, super amadorística, não tem treinamento adequado, por mais que eles tentem treinar o máximo pelas pessoas. Mas não é aquele profissionalismo que a gente gostaria de ver, né. Quem tiver disposto, pega na arma e vai. A gente vê, exatamente é essa sensação que a gente tinha. E aí, até conversando, eu falei, cara, eu imagino você visitar uma linha de frente do Exército americano. Com certeza você tem que ter milhões de autorizações, ia chegar só até um lugar super demarcado, ali, que era onde você poderia filmar, e protegido por uma certa estrutura, e depois de receber as instruções de um Sargento que ia dizer exatamente como você devia se portar e em que lugares você podia passar. Cara, a gente chegou nessa linha de frente do sol… Do exército curdo e a gente podia fazer o que a gente quisesse, sabe. Se a gente quisesse pegar uma arma, ali, e dar tiro, a gente pegava. A gente quisesse sair correndo, ali, em cima da trincheira, ninguém ia impedir a gente. Então, era mais ou menos por aí. E acaba sendo coisas que parecem ser simplesmente curiosidades, mas que acabam contando essa história… É… como a gente gosta de contar no nosso programa, de uma maneira bem mais interessante, né. De repente, mais do que a gente colocar uma narração, “E os soldados do Curdistão lutam de maneira muito improvisada”. A gente mostrar que a gente tava ali, em pé, correndo, tirando selfie, no meio da linha de frente, sabe. Eu acho que passa a mesma informação de uma maneira que é muito mais atraente e efetiva pras pessoas.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Você já capturou alguém do Estado Islâmico, você mesmo?

Heiko: Não posso responder sua pergunta (Ivan ri).

Ivan: É… Poderia me dar algum relato de você…

Heiko: Já fui capturado várias com minha pessoal do Makmuh. Muitos.

Ivan: Você foi capturado já?

Heiko: No, no. Eles. O Estado Islâmico. Soldados foi capturado pela Peshmerga.

Ivan: Aham. E você…

Heiko: Muitos.

Ivan: Saberia me contar algum relato? Dentro da sua possibil…

Heiko: A maioria deles, hoje, é… (ele suspira) Que você fala, né, eles são consciente, né, fazem coisa errado e maioria não tá desistindo para passar informaciones. Porque hoje, ah… Para eles, foi capturado, né. E mandar de volta para lá significa pena de morte para eles. Né. So, eles coopera com a polícia lá, com a (incompreensível), passa-se informaciones que não no se pode confiar, né. Depois, nós analisamos tudo muito vezes. Aí, quando eles ajudando até eles pode voltar por países de origem, né, deles.

Ivan: Uhum. Vocês têm ajuda de alguma central de inteligência internacional, dos Estados unidos?

Heiko: Não posso responder… (ele ri)

Ivan: Não pode… (ele ri alto) Não, eu entendo. Pod… Fique, fique à vontade pra falar isso, tá bom. Fique sempre à vontade pra dizer “não pode responder”, não tem problema. Eu entendo perfeitamente.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Mas já conversou com alguém do Estado Islâmico alguma vez?

Heiko: Bem curto. Bem curto.

Ivan: Mas o que você conversou rapidamente com…?

Heiko: Não, é só… Parece pequena, ou quem deu ordem, de que país, e quantas pessoas eles tava. Ele falou na hora. Demorou não muito tempo, no.

Ivan: O que passou na tua cabeça quando você via um cara desse? Qual que era a tua vontade?

Heiko: Matar. Da mesma forma que ele faz com os outro. É mandar uma recado igual eles faz, né. Pelo Youtube. So, nós somos diferente deles. Nós somos ser humanos. Nós respeita ainda a humanidade. Eles, não. A diferença nossa é essa. Nós pega eles preso, eles tá pareado, nós cuida deles, leva pra o hospital. Eles, não. Eles pega corpo, corta cabeça, faz vídeos, coloca no Youtube. A diferença nossa é essa. A Peshmerga  é um exército ainda que tem… É… Palavras não minhas… Que tem um coração. Essas monstros, para me, os porcos, né, eu chama eles de porcos. Que ofende eles muito, né. Por causa da religião, né, muçulmano. Eles perdiam todo direito de viver. Todos.

Ivan: Isso te deixa frustrado? Você acha que isso é uma fraqueza de vocês?

Heiko: É, no momento, eu acha um fraqueza. Só também a nossa força, que nós precisa pra fazer a… Um… vou falar, os outros países ajuda mais nós. Pra mostrar nós somos diferente. Isso muito importante.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Ato 3, Fugindo do Estado Islâmico. Para aqueles que não se encontram em condição de lutar, seja na Síria, no Curdistão, ou em qualquer outro lugar em que o Estado Islâmico atua, a única solução é de fugir, para onde der e como der. E enquanto muito se fala sobre os refugiados que vão para a Europa, ou até mesmo como nós fizemos aqui no Projeto Humanos, contando histórias de alguns que vieram pro Brasil, é sempre bom lembrar que essas viagens custam muito caro, quando são feitas legalmente. E também são muito caras, quando feitas na clandestinidade. Por isso, a maioria dos que fogem vão para campos de refugiados no próprio Oriente Médio, aos arredores do seu país, onde as condições de vida são extremamente complicadas, conforme relatou Homero, que foi quem contou a primeira história deste programa. Por exemplo, no campo onde ele trabalha, não há passatempos, não há biblioteca. O Governo da Jordânia impede de todos trabalharem, pois querem deixar bem claro que eles não são moradores lá. Eles estão em estágio de transição. Quando trabalham, é ilegalmente, e de forma instável. E talvez você pense que, numa situação dessas, você se dedicaria a algo que sempre quis fazer, mas nunca teve tempo livre, como escrever um livro, ler mais livros, enfim. O problema é que o psicológico não ajuda. Não há força, não há vontade de viver. É um constante, depressivo e monótono estado de espera, sem qualquer perspectiva de melhora.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No caso do campo em que o Homero trabalha, há iraquianos que estão lá há 10 anos, já que a Jordânia recebe refugiados do Iraque desde 2003, quando a guerra lá começou. Com a guerra na Síria, o fluxo de refugiados aumentou. Há crianças que não conhecem outra vida além do campo. Por isso, são necessárias escolas nesses locais. Jardim de Infância I e II, onde há umas 20 crianças estudando, mais outras 20 que são mais velhas. O Homero trabalha com uma equipe de 15 pessoas, atendendo em torno de 600 famílias. Estima-se, por cima, umas 3600 pessoas, diariamente. E isso porque é um campo mais indicado a cristãos. O André Fran também visitou um campo desses, com a maioria muçulmana, e as descrições são praticamente as mesmas. E em todos esses lugares, há histórias de como alguns que estão lá conseguiram sobreviver ao Estado Islâmico. Afinal, com uma ameaça tão iminente, como é que a população fica sabendo que os terroristas estão chegando? O que fazem em seguida, e como é a fuga? A seguir, vamos ter uma breve ideia desses relatos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

André: A gente foi num… Num campo, né, em… bem próximo de onde a gente tava…

Ivan (narração): Novamente, André Fran, jornalista e apresentador dos programas “Que Mundo É esse” e “Não Conta Lá Em Casa”.

André: E a gente conseguia andar naquele… Sabe aquelas tendas improvisadas, né. E a gente levou um drone, né, aquele ‘helicopterozinho’ portátil com uma câmera que faz umas imagens aéreas, e tal. E a gente tava vendo, mais ou menos, uma dimensão de como era grande aquele lugar, aquele campo de refugiados, de gente que fugiu do (incompreensível), de vários outros lugares. E aí, a gente colocou o drone no alto, pra fazer uma imagem aérea, quando a gente teve… Quando a gente viu essas imagens que o drone tinha filmado, a gente viu que a gente tava, na verdade, num pedaço que era um décimo do campo. O campo era dez vezes maior do que aquilo. Esses refugiados que chegam agora à Europa, e a gente teve lá na Europa recentemente, desde a Grécia, onde chegam aqueles barcos, até a Alemanha, Áustria, que é o destino final. Na verdade, esses refugiados que as pessoas acham que são a grande crise de refugiados chegando à Europa, os que chegam à Europa são 5% dos refugiados, né. A maior parte dos refugiados, na verdade, foge pra Turquia, pra Jordânia, pro próprio Curdistão iraquiano ali, que absorve milhões e milhões de refugiados. Então, e cada uma dessas pessoas tem uma história dramática. A gente conversou com eles e teve gente contando que, quando o Estado Islâmico chegou na cidade, só deu tempo de juntar tudo no carro, pegar a família que tava mais próxima e fugir, né, deixando tudo, tudo, tudo pra trás. E teve gente que contou casos que teve que deixar membro da família pra trás, teve que deixar filho, filha, pra trás, fugindo do Estado Islâmico. Porque a filha tava na escola no momento que o Estado Islâmico tava chegando, e eles tiveram que fugir, bater em retirada. Se fossem ir buscar a filha na escola, todo mundo ia ser pego. Então, eu não consigo nem imaginar o drama de uma pessoa que tem que decidir pegar uma filha e botar no carro, e deixar outra pra trás porque, senão, ia ser todo mundo pego pelo Estado Islâmico. É… É um terror muito… É uma… Sei lá, não dá nem pra explicar mesmo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

André: A gente tava num campo de refugiados, a gente entrou numa dessas barracas, e essas barracas acabam abrigando umas famílias, assim, que tão… Que fugiram do Estado Islâmico. Nessa barraca, era um senhor, uma senhora, esposa dele, e deviam ter mais ou menos uns 4, 5 crianças, assim, variando entre uns 5 anos de idade até 12 anos, devia ter a menina mais velha. E foi ele que contou essa história. E a gente queria saber como é que é… como é que é quando exatamente chega o Estado Islâmico na cidade, e vocês têm a notícia na rádio, no jornal? Ele falou, “Não”, chegam de repente, chegam em carros armados, e você acaba ouvindo pelo boca a boca. Você vê o vizinho saindo correndo. E aí, o vizinho fala que tá chegando o Estado Islâmico. O Estado Islâmico tá invadindo. E você vê movimentação de carro, gente pegando estradas e fugindo de qualquer maneira, gente pegando tudo que tá na casa, jogando dentro do carro. Outro indo buscar a família, outro indo buscar um parente que tá em outro lugar. Todo mundo entrando em carro e indo pra estrada. Muitas vezes, os carros, com esses soldados armados, o Estado Islâmico ainda perseguem esses carros em fuga. Metralham esses carros. Conseguem matar gente que tá batendo em retirada. E, no caso dele, ele conseguiu colocar a família no carro, conseguiu buscar a esposa, as crianças estavam em casa.  E ele disse… Foi ele que contou pra gente, “Teve vizinho meu que saiu correndo, colocou tudo no carro, pegou a filha, mas tinha uma outra filha que tava na escola. Então, ele não tinha como ir na direção contrária, na direção onde tava chegando o Estado Islâmico, pra buscar essa outra filha, porque aí, a garantia de que ele e a mulher e as crianças que tavam com ele iam morrer também. Então, só restava ele fugir com os parentes que tavam ali na casa dele naquele momento. E eles falam… Mas não tem como negociar? Não tem como argumentar? Explicar que vocês também são muçulmanos? Ele falou, “Olha, quem ficar tem que… Tem que aceitar as regras deles”. E as regras deles vão desde fazer criança de escravo sexual, até estuprar mulher, botar… Decapitar homem, porque não tá concordando com alguma coisa, enfim. São regras… Que eles falavam, são regras muito duras. Então, dá pra perceber, né. Então, é óbvio que as pessoas vão acabar fugindo. E aí, você vê engenheiro, artista, gente de alto nível intelectual tendo que deixar tudo pra trás pra morar numa tenda improvisado, num campo de refugiados, porque era a única maneira de garantir a vida dele e da família.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

André: Ou ele aceita e diz que o Estado Islâmico é maravilhoso, que eles são super legais e que tão adorando ali (incompreensível) ele. Porque qualquer coisa diferente disso, as consequências vão ser terríveis. Até por isso, acaba não tendo muito valor um registro de um lugar ocupado pelo Estado Islâmico, na visão de um porta-voz do Estado Islâmico. Porque acaba sendo o discurso que é o discurso único, né. O discurso único pra pessoa sobreviver mesmo. Num desses documentários, eu vi, era até, você via que era uma pessoa árabe que tava fazendo. Então, já tinha uma certa condição de entrar ali melhor, e de dialogar melhor, poder registrar alguma coisa. E… Mas era isso, ele mostrando essa realidade ali dentro, eu lembro que tem uma cena que tem uma mulher passando de burka na rua, ao lado do marido, toda coberta da cabeça até os pés, e um cara desse, do Estado Islâmico, chama o marido, “Olha só, o tecido da roupa da sua mulher tá muito fino, manda ela andar com um tecido mais grosso”. Como assim… Se aquilo ali ainda fosse, assim, algo muito indecente, né. E o marido fala, “Ah, tá. Me desculpe, pode deixar. Eu vou falar, sim”. O que não tem como ser diferente, né. Você nunca poderia pegar ali uma declaração de alguém falando que a gente ouviu nesses campos de refugiados, de quem tá ali dentro tem que acatar as leis insanas do Estado Islâmico.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: O nosso vilarejo, aqui na Jordânia, é um vilarejo… Onde eu e a minha esposa moramos, é um vilarejo predominantemente cristão.

Ivan (narração): Este é o Homero, que trabalha num campo de refugiados na Jordânia.

Homero: Então, quando o Estado Islâmico começou a perseguir os cristãos, no norte do Iraque, em junho, julho, agosto de 2014, os refugiados iraquianos cristãos que vieram parar na Jordânia começaram a se mudar pro nosso vilarejo. E eu e a minha esposa começamos a atender todas essas famílias, quando elas começaram a chegar. Uma das primeiras famílias que nós visitamos foi a família do Abu Yussef. O Abu Yussef, ele é um pai de família, ele é advogado, a esposa dele era professora numa escola primária no Iraque. Eles têm três crianças pequenas. E a gente recebeu eles no vilarejo, praticamente. No dia que eles chegaram no nosso vilarejo, a gente distribuiu pra eles cesta básica, roupas. A gente distribuiu colchão… colchões pra casa. Na época que eles chegaram, estava frio, era novembro… era novembro, a gente distri… deu um aquecedor pra eles, a gás. E eu me recordo que a gente sentou no comodozinho vazio, da casa, eu, ele, a minha esposa, com a esposa do Abu Yussef. As crianças, elas tavam brincando, correndo pelo apartamento e nós começamos a conversar sobre a história do Abu Yussef.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: O Abu Yussef, a… a família dele era uma família rica no Iraque. Comerciantes, o pai dele tinha muitos negócios, ele tinha lojas, ele… a família era uma família de comerciantes. Apesar dele ser advogado, o pai tinha esses negócios, e, quando as milícias sunitas começaram a ganhar força em Mosul, a cidade de onde o Abu Yussef vem, o pai do Abu Yussef se tornou um alvo e ele começou a receber ameaças de sequestro. O Abu Yussef sabia de que, de fato, as milícias vinham sequestrando principalmente cristãos, pra forçá-los a se converterem para o islamismo e pra extorqui-los. E, então, a família começou a temer pela segurança do pai. Mas, infelizmente, algumas semanas depois do pai do Abu Yussef receber ameaças, ele foi sequestrado.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Essas milícias que sequestraram o pai do Yussef, elas já eram Estado Islâmico ou eram outras milícias?

Homero: A milícia que sequestrou o pai do Yussef é uma milícia que, quando Mosul foi tomada pelo Estado Islâmico, passou a ser parte do Estado Islâmico. Era uma milícia sunita com… simpatizante do Estado Islâmico. Mas que hoje é Estado Islâmico.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Homero: E aí, então, o irmão do Abu Yussef recebeu um contato de uma milícia que sequestrou o pai da família, esse senhor… empresário. E essa milícia exigiu 100 mil dólares de resgate pelo pai do Abu Yussef. O… a família se reuniu, eles venderam todas as coisas que eles tinham e… eles tinham prazo de… 24 horas pra tomar uma decisão se eles iam pagar, iam conseguir o dinheiro todo, iam pagar o resgate, ou se eles tornariam muçulmanos, porque o… a exigência do grupo era de que se eles não tivessem condições de pagar o resgate, que eles se tornassem muçulmanos pra que eles pudessem liberar o pai.  Então, eles tinham que tomar aquela decisão nas 24 horas ou então o pai ia ser morto. Eles conseguem vender os carros, eles conseguem vender a casa do Abu Yussef, eles vendem as… eles passam o negócio e eles conseguem juntar 100 mil dólares e eles resgatam, então, o pai do Abu Yussef. Aquele senhor, ele voltou pra casa, mas ele voltou… muito deprimido por causa de… da experiência que ele viveu. E aí, as semanas foram se passando e, aí, então, ele ficou mal de saúde, e o pai do Abu Yussef veio a falecer. Acontece que, daqueles 100 mil dólares, algo em torno de 30 mil dólares tinham vindo de um empréstimo que eles fizeram com um empresário iraquiano. Um pouco depois, a família teve que fugir por causa da perseguição do Estado Islâmico, e até hoje eles ainda tão pagando aquele empréstimo da… pra o resgate do pai do Abu Yussef. E a gente ficou… assim… a gente não… a gente ficou muito tocado, porque o Abu Yussef, ele perdeu tudo que ele tinha, o pai e… a família perdeu tudo pro resgate do pai, pra um… pagando o empréstimo ainda, até hoje, os irmãos, e o pai veio a falecer e ele ainda teve que fugir pra Jordânia, por causa, depois, do Estado Islâmico.

Ivan: Eles não podem deixar de pagar, simplesmente, já que tão em outro país já?

Homero: Ele… eles… ainda pagam, vou ser bem honesto, porque eu fui lá no Iraque, eu visitei a mãe, a viúva, e eles ainda pagam, até hoje, a… o empréstimo. Então…

Ivan: Ah! Ainda tem família lá, a viúva ainda tá lá.

Homero: A viúva, a mãe ficou, junto com um dos irmãos, no Iraque. Eles tão como refugiados em Erbil. E, pra você ter uma ideia de quão triste é a situação, a… a mãe recebe tipo uma pensão do governo, porque ela já tem idade avançada e o marido… o marido faleceu. Basicamente, o Abu Yussef, aqui na Jordânia, ele é sustentado com um pequeno valor que a mãe paga, que vem da pensão dela, além das coisas que a gente doa. E… e a gente… então, assim, a gente tá nessa campanha do vídeo “Os Nove”, a gente abriu em inglês e em português, né, na versão em inglês já tá com quase um milhão de visualizações e a versão em português já tá com mais de 100 mil. E a gente tá divulgando o vídeo e a gente abriu uma página de doações pelo PayPal e pelo PagSeguro e a…  e eu tô tentando levantar algum recurso pra ver se eu quito essa dívida, pra ver se eu volto lá e eu pago esse valor. Eu tô indo no Iraque na primeira semana de março, então… a gente lançou o vídeo na primeira semana de dezembro e a gente tá tentando levantar o dinheiro que, além de… porque são nove pessoas no vídeo, né. Então, o valor que a gente tá levantando vai ser dividido de acordo com a necessidade de cada um deles, todos eles vão receber algo, mas, a minha intenção com o Abu Yussef é pagar essa dívida que a família ainda tem por causa do resgate, até hoje. E, a gente acredita que nos próximos dois, três meses, se Deus quiser, ele consiga emigrar pra Austrália. Processo dele tá bem encaminhado e a gente acredita que nos próximos dois, três meses, ele vá pra lá.

Ivan: Como que ele se sente, ah… ele não se sente mal de deixar a mãe dele lá?

Homero: Ele não teve outra opção. Ele sente muita falta dela, porque ele não vê ela desde novembro de 2014. Mas eles se falam sempre por telefone e, assim, de toda família dele, eu diria que ele é o cara mais maduro, assim. Ele… ele é um cara muito culto, ele era advogado, ele é um cara bem cabeça, assim. Mas, é… mas é muito deprimente, assim, né, a situação, porque ele não trabalha, né. A gente, dos nove do vídeo, seis deles tão com a gente no dia a dia. Um, a gente abriu um pequeno negócio e ele cozinha e faz marmi… a esposa faz marmita e vende. O Abu Yussef e o Abu Marian, que são os outros dois que aparecem no vídeo, que são os dois que aparecem… que não aparecem, né, que o rosto tá cortado, esses dois, eles não trabalham. Então, a gente… apoia eles com cesta básica, eles são atendidos pelos nossos projetos, as crianças também, mas, assim, é aquela vida deprimente de ficar o dia inteiro em casa e não ter o que fazer. Só esperar, que é essa realidade dos refugiados, né.

Ivan: Ou seja, ele tá aí há mais de um ano, só esperando?

Homero: Exatamente, desde novembro de 2014, no… apenas no ócio da espera.

Ivan: Uhum. Tem alguma atividade que tem pra passar tempo?

Homero: Então, não. Ah, vou ser bem sincero, a… a maior parte, assim, dos… Quase todos os dias a gente tem atividades na… que a gente tem… A gente tem uma igreja, então, assim, além de tudo o que eu faço, eu sou pastor de uma igreja árabe. Então, na igreja, a gente tem atividade de terça a domingo, com exceção de segunda-feira. Então, todos dias os iraquianos tão lá na igreja. Em todas as atividades que a gente faz eles vão, porque ele não tem o que fazer, eles ficam o dia inteiro em ócio. Assistindo televisão quando tem televisão no apartamento, mexendo no celular e lá, andando. Tem famílias que as vezes você ve o cara andando, vagueando no… andando pelo vilarejo, mas porque não tem o que fazer, é vida de ócio mesmo. O governo… o governo local proíbe eles de trabalharem, então, alguns, às vezes, trabalham ilegalmente, mas a maioria deles, não. Então, eles ficam nessa vida de ócio mesmo.

Ivan: Livros, cinema, nada?

Homero: Não.

Ivan: Não tem nada?

Homero: Não, nada, nada, nada, nada.

Ivan: Não dá nem pra montar uma biblioteca pra galera, assim?

Homero: Eu… eu quero fazer isso. A gente recebeu uma doação de um contêiner dos Estados Unidos, eles doaram… a organização nos doou inclusive o contêiner, eu tô ainda liberando o contêiner, a gente vai… tô esvaziando, porque a gente recebeu, são 30 toneladas de doações de roupa, então, a gente tá fazendo as distribuições. Até meados de fevereiro a gente ainda vai ter distribuição. E aí, a minha intenção é usar esse contêiner pra, talvez, uma biblioteca. É uma possibilidade, porque a gente ganhou o contêiner, a gente pôs ele num… num terreno baldio perto de nossos projetos, com permissão do proprietário do terreno. E aí, a… só que eu vou preparar o contêiner, eu vou botar janela, porta, eu vou mexer no contêiner e eu penso… eu pensei numa biblioteca, uma das coisas que a gente tá discutindo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Como falei antes, essa entrevista com o Homero foi gravada em janeiro de 2016 e, no final de agosto, em uma nova conversa que tive com ele, fui informado que a dívida do Abu Yussef ainda não foi paga, e que ele ainda não conseguiu emigrar para a Austrália. Se você quiser ajudar o trabalho do Homero, oferecendo qualquer coisa que puder, você pode entrar no site da sua organização, maisnomundo.org. Lá você também encontra o vídeo, “Os nove que venceram o Estado Islâmico”, citado aqui pelo Homero. São depoimentos de refugiados que contam como foram as suas fugas de casa. O vídeo é parte em inglês, parte em árabe, mas com legendas em português, e o link está na postagem.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: No minha batalhão tem várias pessoas que moram na cidade Makmur.

Ivan (narração): Esse é Heiko Seibold, o soldado alemão que está lutando no Curdistão Iraquiano.

Heiko: Você tem que entender, eles viviam muitos anos ao lado, amigos, uma come na casa da outra. Então, hoje para amanhã, eles viraram inimigos mortais. Isso por causa uma briga religiosa do, da Sharia, né, que o Estado Islâmico chamou, né, pra todos muçulmanos matar yazidisitas e as curdos. Aí, um dia, ele estava sentado lá, eu achou que até você via as fotos no Youtube, tá no… na internet, que eles entraram na casa de todo mundo da cidade, né, os árabes, e mataram todo mundo, criança, mulher, pai, filho, todo mundo.

Ivan: O Estado Islâmico entrou na casa das pessoas?

Heiko: É.

Ivan: Uhum.

Heiko: Só que todo mundo foi vizinho, tá. Eu não vou falar Estado Islâmico. Eu fala vizinhos que mudam para ser Estado Islâmico, que queriam os curdos vai embora. Matam um atrás do outro, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Heiko: Ah, eu fui no meio da madrugada, começaram a ouvir os tiros, aí, pegaram as famílias, corriam, aí, quando eles voltaram outro dia, né, viam as tropas lá, matando todo mundo. Todo mundo. Ninguém, ninguém, ninguém.  Uma cidade de mais ou menos dois mil, pode calcular, conseguiam fugir, igual a ele, falou, foi menos de 200, dez por cento. Na época saiu na internet as imagens fuzilando as famílias lá dentro do casa, tudo. Saiu tudo. Ah, é muito raiva, né. Porque ele não entende que uma pessoa pode mudar de hoje pra amanhã, né. Só ele falou também, problema das pessoas, ele é… é medo. Porque eles têm medo, porque só sabem quem vai ganhar, né. Vai ganhar Estado Islâmico ou vai ganhar os curdos. Aí, o problema, eles não decidiram o lado certo. Hoje eles sabem, eles pegaram o lado errado. Né, porque os curdos hoje têm muito apoio, né, um pouco ainda só tá crescendo, mês por mês tá crescendo. Só a pena é muito grande para ele, né, ele falou, até mostrou fotos do amigo, que ele dava criança, tudo. Falou, “Aí, ó, minha amigo, só hoje minha inimigo” , só por causa disso, da religião. Eu acho que, (incompreensível), hoje quando ele vai ir uma dessa família vai matar. (breve pausa) Com certeza.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

André: E… a gente passou, né, um dia com esse cara, durão, aí, que treinava soldados e que pegava em armas, andava com aquela roupa camuflada e botina, e falava das histórias das batalhas e tudo mais, e, no final do dia, ele tava falando, a gente tava voltando de carro, né, a gente tava no banco de trás, ele no banco da frente e tocou o telefone dele, era o filho dele, ele tem um filho que mora no Brasil, e aí, ele tava falando em português com o filho. E aí, ele começou a, “Não, filho, o papai tá saindo da linha de frente, papai já tá voltando pra casa, meu filho. Papai te ama, tá, te amo, um beijo, meu filho”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: GRAVAÇÃO DENTRO DE CARRO EM MOVIMENTO)

Heiko: (ruído de veículo no fundo) Papai tá na linha ainda, João Pedro, dá para falar não, filho… Te amo muito, tá… O papai tá voltando e eu te liga… Eu te liga, tá, meu bebê… Te amo muito, filho… Um beijo… Tchau.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

André: E nessa hora que cê, que a gente viu aquela cena, me lembro que eu e Michel, a gente olhou um pro outro, e eu falei, “Cara, essa é a cena final da temporada”, porque acaba… mostrando… aquilo tudo que a gente tenta fazer, né, mostrando o lado humano das histórias. Ou mostrando a história de uma, de um ponto de vista de uma perspectiva humana, que acho que acaba… deixando muito mais próxima da… das pessoas que tão assistindo.

Ivan: Cê não tem medo de morrer e deixar seu filho?

Heiko: Ele já é muito grande, já entendeu que tá acontecendo.

Ivan: Uhum. Que ele pensa sobre isso?

Heiko: (Ele ri) Ele quer pai é aqui, né, só ele me conhece. Quem tem um coração, um pouco humanidade, ainda, vai entender o que nós tá fazendo lá. Porque nós não luta para o Curdistão, nós luta para o mundo. Isso a povo tem que entender.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No próximo episódio, a história de um bebê que cruzou meio mundo para se salvar da guerra. Será o episódio mais curto de toda a nossa temporada, mas deverá trazer um pouco de esperança para todo esse caos. Aqui, no último episódio do Projeto Humanos, O Coração do Mundo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir acessando o site do Anticast, anticast.com.br, e clicando na seção “Seja Patrão!”, que tá ali no topo. Agradecimentos especiais à Talita Ribeiro, que me colocou em contato com o Homero, e ao próprio Homero. Obrigado também a André Fran, que me concedeu a entrevista e me colocou em contato com o Heiko. Por sinal, em outubro, irá ao ar a nova temporada do “Que mundo é esse”, na Globo News, o programa do André. E eu recomendo fortemente que assistam não apenas esse programa, mas também todas as temporadas do seu outro programa, o “Não conta lá em casa”, que passa no Multishow. Se você gosta do Projeto Humanos, você vai adorar o trabalho do André, pode confiar. Até a semana que vem.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Henrique Pinheiro, Marcela Brasil, Aline Koroglouyan, Sidney Andrade, Zé Roberto. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Geraldo Miranda