11 – Passaporte para o Inferno

30 de agosto de 2016

Quando a guerra civil da Síria estourou em 2011, a imprensa brasileira demorou a prestar atenção. Em 2012, quando ela já tinha pouco mais de um ano, o repórter Klester Cavalcanti foi para a cidade de Homs, um dos focos mais intensos da Guerra Civil no país. Até hoje, ele é o único brasileiro que foi para o coração daquele conflito. Nos meses que antecederam sua viagem, ele se preparou para morrer – mas não para o que de fato ocorreu com ele.

 

Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Klester Cavalcanti
Lettering por Luiz Amorim

Links

Livro “Dias de Inferno na Síria”, de Klester Cavalcanti
Amanhã Precisa Ser Melhor, podcast O Nome Disso É Mundo, sobre refugiados na Hungria

Extensão do Chrome sobre Refugiados/Seres Humanos:
Site do projeto
Link direto para instalar a extensão
Código aberto no Github para quem quiser ajudar a melhorar a ferramenta

Transcrição

Ivan (narração): Ei, pessoal, aqui é o Ivan. E antes da gente começar o programa de hoje, eu gostaria de agradecer a todos vocês que tem me enviado mensagens de elogio e apoio pelo Projeto Humanos. Tem sido uma experiência fantástica, e eu me sinto muito, muito grato por todo o carinho que tem me demonstrado. O efeito desse trabalho tem sido tão fantástico que várias coisas aconteceram. Eu não vou conseguir citar tudo, mas vou citar alguns exemplos. Por exemplo, a Juliana, nossa ouvinte, é professora e dentista, e após ouvir a história do Ahmed que a gente apresentou no último programa, ela entrou em contato com ele e o convidou para um congresso odontológico que aconteceu aqui em Curitiba, cidade onde eu e ele moramos. Além da Juliana, o Júlio César Almeida é um programador e ficou sensibilizado pela história dos refugiados sírios, então ele criou uma extensão para o Chrome no qual sempre que a palavra “refugiado” aparece, ela é automaticamente substituída pelo termo “ser humano”. Quem quiser fazer o download desta extensão, o link está na postagem. Por fim, o Felipe Teixeira, do excelente podcast “O nome disso é mundo”, está lançando uma série nova, com uma nova proposta, que tem tudo a ver com o Projeto Humanos. Essa série se chama “Amanhã precisa ser melhor”, e contará a história da jornalista Rafaela Carvalho, que mora em Budapeste, na Hungria, onde ela trabalhou diretamente com os refugiados que passaram a transitar intensamente pelo país, em 2015. Nós vamos tocar o trailer dessa série no final deste episódio, e eu posso dizer que, da minha parte, estou super ansioso de ouvir este trabalho. Então, além da Juliana, do Júlio, do Felipe, da Rafaela, foram incontáveis os emails e mensagens que eu recebi de pessoas interessadas em ajudar os refugiados, entrar em ONGs, pedindo dicas de livros pra entender melhor o mundo islâmico e o Oriente Médio. E a sensação de que este trabalho que estou fazendo parece estar ajudando tantas pessoas a querer entender melhor o que se passa naquela região do mundo faz tudo isso valer a pena. Estamos todos aprendendo juntos e essa é uma sensação maravilhosa. Sendo assim, obrigado a todos vocês. Estamos entrando nos últimos episódios da série “O Coração do Mundo”, e eu espero que o resultado lhes toque tanto quanto já tocou. Fiquem agora com o décimo primeiro episódio da série O Coração do Mundo.

Voz: … Então, o medo é uma coisa que me estimula. É… outro exemplo real, eu gosto muito de pular de bungee jump. Bungee jump é o negócio mais infernal do mundo, cara. Eu pulei do bungee jump mais alto do Brasil, que fica na Bahia, em Paulo Afonso. Fica numa ponte a 86 metros de altura. E aí, o cara coloca aquela borrachinha no seu pé e manda você pular. Sei lá, 86 metros, cara, é equivalente a um prédio de 30 andares (ao fundo, som de ventania). Aí, você olha lá embaixo, aquela coisa gigantesca, absurda, longe pra caramba… e se partir aquela borracha, né? Você vai morrer. E aí, sempre que eu pulo de bungee jump, antes de saltar, eu paro na beirinha, assim, do lugar do salto, olho pra baixo, e penso, “Cara, se esse lance der errado, eu vou morrer. Eu tô disposto a correr esse risco pelo prazer da brincadeira?” E eu sempre respondo que sim, e pulo, entendeu? Eu faço questão de me conscientizar que eu posso morrer. Eu não penso, “Ah, não! Vou pular, vai dar tudo certo”. Não, pelo contrário, eu penso que se isso daqui der errado, eu vou morrer. Eu tô disposto a correr esse risco? E eu sempre concluo, “Tô”. E pulo.

(OUVE-SE O SOM DE VENTANIA MUITO FORTE)

Voz: Foi a mesma coisa da Síria. Eu fui pra Síria sabendo que eu posso morrer porque tem milhares de pessoas que morrem todos os dias. Acabaram de matar dois jornalistas, uma americana e um francês. Por que não pode ser comigo? Claro que pode. E eu concluí, eu pensei, “Eu tô disposto a morrer por isso?”, e concluí, “Tô, eu quero morrer por isso” . E fui.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Como vimos nos episódios anteriores, o atual estado de guerra da Síria é complexo e difícil de ser entendido na sua totalidade. Hoje são diversas frentes que combatem entre si. As mais famosas são, sem dúvidas, as forças armadas do regime Assad, que buscam uma estabilidade do seu regime e grupos terroristas, sendo o mais famoso o rotulado Estado Islâmico. Contudo, este é um estado bastante avançado. Quando os primeiros movimentos da primavera árabe começaram, ainda em 2011, havia duas forças principais. Os opositores do regime Assad, formado principalmente por uma parcela mais pobre e camponesa da população; e as forças militares, que buscavam controlar as revoltas populares.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA)

Jornalista: E na Síria, milhares de pessoas saíram hoje às ruas em várias cidades do país, em protestos contra o governo. As forças…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Entre vários grupos contra o regime Assad, destacava-se o chamado Exército Livre da Síria, que lutava justamente pela derrubada de Bashar al-Assad. Após negociações que foram, em primeiro momento, mais diplomáticas contra manifestantes, Assad logo em seguida acabou por seguir o exemplo de seu pai e reprimiu com violência as manifestações contrárias ao seu governo. E foi neste momento que, em algumas cidades, se iniciava o quadro de guerra civil na Síria.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA)

Jornalista 2: O principal confronto aconteceu na cidade de Sanamayn. Homens das forças de segurança do governo abriram fogo contra a multidão (sons de gritos ao fundo). Os confrontos na Síria começaram semana passada. Grupos de oposição ao governo saíram às ruas para pedir liberdade política e reclamar da corrupção no país. A Síria é um país que vive em estado de emergência há mais de quarenta anos, o que, na prática, aboliu direitos constitucionais e impediu a formação de partidos políticos. Só existe o partido governista. Com o aumento do desemprego e da pobreza, também cresceram os protestos contra o presidente Bashar al-Assad. A conselheira do governo admitiu que, depois da onda de protestos, reformas políticas e sociais poderão ser adotadas no país. Organizações de defesa dos direitos humanos estimam em mais de cem os mortos na repressão aos protestos.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Publicamente, o Assad não dizia que estava agindo com violência contra o seu próprio povo. Contudo, vários grupos de manifestantes passaram a usar redes sociais para mostrarem ao mundo o horror dos conflitos. E foi assim que o ocidente passou a conhecer o que de fato ocorria por lá. Mas o acesso à informação era sempre limitado. E para uma compreensão melhor do que estava acontecendo, era necessário que jornalistas entrassem no país, muitas vezes de forma clandestina, tendo em vista o controle de informação que o regime Assad queria impor acerca dos conflitos. E é aqui que a história deste jornalista brasileiro começa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Voz: Meu nome é Klester Cavalcanti, eu tenho 46 anos, sou jornalista e escritor.

Ivan (narração): O Klester é um jornalista bastante conhecido na imprensa brasileira. Mas, sem dúvida, é a sua carreira literária que acaba merecendo ainda maior destaque. Dos seus cinco livros lançados, três são vencedores do Jabuti, que é a maior premiação literária no país. E destes, três estão sendo adaptados para o cinema, sendo que um deles é a história que vocês ouvirão em parte aqui. O livro se chama “Dias de Inferno na Síria”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

 

Klester: Eu, desde a época de faculdade, eu tinha o sonho de… de cobrir uma guerra no Oriente Médio. Na minha cabeça, só valia se fosse no Oriente Médio. E aí, assim, a minha carreira foi tomando uns rumos muito interessantes, aconteceu de eu trabalhar em veículos muito importantes, grandes, né? Na Veja, no Estadão, na Isto É. E aí eu… é… senti que poderia realizar esse sonho, né? Que não era mais aquele sonho de faculdade, né? E aí, em 2003, quando começou a guerra no Iraque, eu tentei ir pra lá. Na época, eu era editor da revista Terra, não sei se você chegou a conhecer essa revista. Eu tentei ir, mas, por questões financeiras da redação, não rolou. Aí, eu cheguei a fazer contato com as pessoas lá, consegui articular o que eu ia fazer, montar até roteiro e tudo mais, né? Mas aí, não tinha grana na revista, eu não fui.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: E aí, quando começou a guerra da Síria, eu fiquei acompanhando, né, à distância. Acompanhando aqui do Brasil. Ahm… lendo matérias que saíam nos lugares, e tudo, e… e meu trabalho é… eu sempre tô muito preocupado com a questão humana, né? A questão política, econômica, tudo isso é muito importante. Mas tudo isso só é importante por causa do ser humano, né? Então, assim, eu sempre fico pensando nas pessoas. Nome, sobrenome, idade, sonhos, dramas, paixões, sabe? E… por durante um ano, provavelmente… a guerra começou em março, em 2011, até… abril, maio de 2012, foi quando eu fui pra Síria, todas as matérias sem exceção, que chegavam aqui no Brasil, de todos os veículos, eram matérias extremamente numéricas, frias, matérias enlatadas. Nenhum jornalista brasileiro tinha entrado lá. E eu ficava muito incomodado com isso. Eu sempre pensava nisso, onde ficam as pessoas nessa situação, como estão as famílias, sabe, os casais, as crianças, eu pensava muito nisso. E aí, eu, por conta própria, comecei a articular sozinho pra conseguir o visto de imprensa, porque minha primeira intenção era entrar na Síria legalmente, com visto de imprensa. Eu tinha um contato lá, que é um ativista de direitos humanos que mora em Londres, que tava disposto a me ajudar a entrar ilegalmente. Então, com os rebeldes, então eu tava com as duas possibilidades, eu tava pra entrar ilegalmente, é mais fácil. Eu iria pro Líbano e na fronteira do Líbano com a Síria o pessoal tava lá a minha espera pra me colocar pra dentro ilegalmente. Mas eu queria entrar legalmente. Não queria cometer um crime internacional pra entrar num país. Porque se você entra num país sem visto, não interessa se é pra fazer jornalismo ou se é pra falar com as criancinhas, você tá cometendo um crime.  E falei, não, quero entrar legalmente pra ao menos estar coberto das questões diplomáticas. E aí, eu tinha um grande amigo que trabalha no Itamaraty, esse cara me passou o contato de um amigo dele, que na época era o encarregado de negócios da embaixada em Damasco. Esse cargo de encarregado de negócios era como se fosse o número 2, se existisse o cargo de vice embaixador, seria esse cara. E aí, esse cara se dispôs a me ajudar junto ao governo sírio. E aí, ele fez a intermediação do meu visto. E aí, eu dei entrada no consulado em São Paulo, e aí, um dia, eles me comunicaram que o meu visto tava aprovado.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Na época, eu era editor executivo da Isto É, eu não fazia matéria, eu chefiava uma parte da revista, eu não fazia matéria. E aí, só então, eu cheguei, fui na direção da IstoÉ e falei, “Ó, eu por conta própria, isso aqui e não sei o quê, consegui o visto de imprensa agora e to a fim de ir pra Síria, vocês estão dispostos a me liberar?”. Porque assim, como eu não era repórter, não era trabalho meu fazer reportagem. Minhas atribuições na redação eram outras. Mas aí eles me autorizaram, disseram que tinha sim interesse, a direção da IstoÉ gostou muito da ideia, porque até hoje, Ivan, eu sou o único jornalista do Brasil que foi pra cidade de Homs, desde que começou a guerra. O que eu acho uma vergonha para a população brasileira, porque agora em março, daqui a 2 meses, vai fazer 5 anos que começou a guerra da Síria. E o Brasil é um país do tamanho que é o nosso, com a imprensa forte que a gente tem, veículos poderosos, no ponto de vista até mundial. Você imaginar que só 1 jornalista esteve na cidade onde a guerra é mais intensa. Enquanto isso, dezenas de países tem gente hoje na Síria e em Homs cobrindo a guerra, entendeu? É muito, é muito, eu acho até que humilhante, eu diria, pra nossa imprensa, que só um cara tenha estado lá em Homs.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Também existe essa falsa impressão de que, hoje em dia, graças a tecnologia, é possível cobrir guerra sem estar no país. Basta você ver o… vamos usar a Globo como exemplo, que é a maior emissora do país, as matérias que a Globo mostra sobre a guerra da Síria. Você vê quase todo dia no Jornal Nacional, no Jornal da Globo, vez ou outra sai coisa no Fantástico. Eles compram imagem de agência e fazem uma coisa que eu acho muito feia, que eles apresentam, se você não trabalha no meio ou não é muito atento, você acredita que aquele material foi feito na Globo. Porque eles colocam imagem de agência. E aí, no meio da matéria ou no fim, aparece um repórter da Globo fazendo uma passagem e muitas vezes aparece o cara. Que eles tem um correspondente no Oriente Médio que fica em Jerusalém. Que eu acho vergonhoso a Globo, do tamanho que é, com o dinheiro que tem, ter um correspondente em Jerusalém, que é uma cidade que fica a poucas horas de Damasco, e esse cara nunca entrou na Síria, desde que começou a guerra. O cara tá ali, vivinho, e nunca entrou na Síria. E a Globo já fez diversas matérias sobre a guerra da Síria com imagens de agência, e esse cara aparece fazendo a passagem. E quando ele aparece, ele aparece em Jerusalém, na frente de alguma construção histórica ou de um monte de pedra. E quem não tá muito atento ou quem não conhece, acha que aquele cara fez a matéria, porque a matéria inteira você ouve a voz do sujeito, e depois ele aparece. Então, a sua tia, a minha vó, a vizinha, o taxista que tá em casa vendo aquilo, ele não vai reparar embaixo, no crédito, o nome do cara e embaixo “de Jerusalém”. O cara não percebe isso, entendeu? Então, também tem essa falta de interesse do veículo e da pessoa física, do repórter.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Então, pra IstoÉ foi uma ideia muito interessante. Minha família primeiramente não gostou muito, mas eu meio que dei uma enganada. Porque eu falei pros meus pais e meus irmãos que eu iria ficar em Damasco. Em Damasco não tinha guerra, como até hoje não tem guerra. O conflito de Damasco é muito pequeno, hoje a tensão é um pouco maior, por causa do Estado Islâmico. Mas há 4 anos, quando eu estava lá, ficar em Damasco seria ridículo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Eu tenho um colega que eu respeito pra caramba, que é um cara muito bom, que é o Lourival Sant’Anna, do Estadão. Que ele foi pra Síria, ele foi inclusive um mês antes de eu ir, ele foi pra Síria. Mas ele ficou em Damasco, ele foi com o visto de imprensa também. A mesma recomendação que me deram, porque no meu visto tinha aquela recomendação deu ir no Ministério de Informação assim que chegasse em Damasco. E eu sabia que se eu fosse, eles iam colocar um oficial na minha cola pra me acompanhar, pra me impedir de ir pra guerra. Porque se eu ficasse em Damasco, eu não mostraria isso que você falou, que era o governo atacando o próprio povo. Então assim, o governo deu o visto, mas queria que eu ficasse em Damasco quietinho, fazendo o que eles queriam que eu fizesse. E o Lourival não, o Lourival cumpriu essa recomendação, o Lourival chegou em Damasco, foi ao Ministério e ficou lá, indo pros lugares, sendo levado pelo governo da Síria. Ele só ia pra onde o governo queria que ele fosse. Eu não queria passar por isso, mas eu não condeno o Lourival, porque o Lourival é um cara casado, tem 2 filhos. Eu não tenho filho, entendeu?  Eu não sou casado. Então, assim, se eu fosse casado, se tivesse filho, certamente pensaria de outra forma, ou não, não sei.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA EM INGLÊS)

Jornalista 3: Ok, two veteran journalists from the US and France, named Marie Colvin, who is working for the Sunday Times and Rémi Ochlik, working for Le Figaro have been killed. Is the house they was staying to direct it in the besieged city of Homs in Syria…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Klester: Dois meses antes de eu chegar em Homs, teve um ataque do governo da Síria, que matou, entre outras pessoas, dois jornalistas, uma mulher americana e um francês… em Homs, a cidade que eu fui, para onde estava indo. E eu pensei, cara, se eles morreram, não é impossível que eu morra também. Essa mulher que morreu, por exemplo, essa americana que morreu 2 meses antes de eu chegar lá em Homs, ela morreu em Homs também, numa base rebelde. Os rebeldes lá em Homs, não sei hoje, mas eles tinham várias casas que serviam como base pra imprensa, imprensa estrangeira. Como o governo não quer que a imprensa mostre os ataques do governo lá em Homs, então… O exército rebelde montou, na época, em 2012, eles tinham três casas com internet, telefone, computador pra jornalistas estrangeiros mandar conteúdo pras suas sedes, né? Pros seus países. E eu ia ficar numa dessas casas. Foi uma casa dessas que o governo da Síria bombardeou, matando a americana e o francês. Essa americana chama Marie Colvin. A Marie tinha, parece que tinha, eu não vou lembrar, acho que cinquenta e poucos anos. E essa mulher, Ivan, ela só cobria guerra. O trabalho dela era cobrir guerra. A mulher era correspondente de guerra. Pra você ter ideia, ela só tinha um olho. Ela usava um tampão de pirata em um dos olhos porque ela perdeu um olho cobrindo uma guerra. E continuou cobrindo guerra, e morreu em Homs. Então assim, se a Marie Colvin morreu, porque eu não posso morrer, entendeu? E eu pensei, cara, posso. Mas assim, eu quero correr esse risco, né? Uma mulher super experiente. É… só claro, totalmente consciente do risco que tava correndo. Ela entrou na Síria ilegalmente, ela entrou sem visto, sabia que era arriscado, tanto é que já tinha perdido um olho em uma guerra, foi… morreu. E é curioso porque eu lembro, eu vi uma entrevista da mãe dela, quando ela morreu, a mãe dela falando assim, “Estou muito triste, obviamente, mas o que me conforta é saber que a minha filha morreu fazendo o que ela amava”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Mas aí, eu pensei, vale correr esse risco pra fazer o trabalho que eu quero fazer? E eu concluí que valia o risco, que eu queria fazer esse trabalho, entendeu? É… depois de conseguir o visto, cara, eu pensei, “Não, agora eu só não chego em Homs se Deus não quiser, porque não vou desistir assim, sabe? Não posso, eu lutei tanto por isso”. Então, era mais essa coisa da obstinação, sabe? E todo mundo me dizia que era muito perigoso chegar em Homs, que Homs tava fechada, que nenhum jornalista tinha chegado em Homs até hoje, não sei o quê… O Bruno, que é esse cara da embaixada, falou, “Klester, se você chegar lá, cara, você vai ser o primeiro brasileiro jornalista a entrar em Homs desde o início da guerra. É muito perigoso”. E quanto mais obstáculos apareciam, mais eu ficava estimulado, entendeu? E aí, eu pensando nisso, assim, “Eu só não chego lá se realmente Deus não quiser, né? Mas eu acho que, obviamente, tem de ter uma… somatória de fatores, né? A vontade do jornalista, a pessoa física, em ir, em estar lá, né? A disposição, isso que eu falei, esse desprendimento e, obviamente, a vontade política da empresa, se não… assim não vai, né? Se bem que no meu caso, se ela dissesse que não queria que eu fosse, eu iria por minha conta. Eu ia pedir pra eles uma licença, até porque o visto era apenas de uma semana, né? Eu queria mais tempo, mas eles só me deram uma semana de visto. Então, se eles dissessem que não queriam que eu fosse, eu iria por conta própria. Eu não ia perder aquela chance de ir.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: E aí, em maio de 2012, eu saí de São Paulo pra Beirute, porque com a guerra, os aeroportos da Síria estavam fechados, né? Então, eu teria de entrar na Síria por terra, segundo o próprio governo sírio me orientou a fazer. E daí, eu fui pra Beirute, que… de Beirute, eu entrei na Síria por terra, fui pra Damasco.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): A recomendação do governo sírio era de que o Klester, assim que chegasse no Líbano, deveria se dirigir diretamente para a capital Damasco, para que então conversasse com oficiais que o encaminhariam durante toda a sua estadia no país. Contudo, estando em posse do visto de jornalista e sabendo que o governo sírio vai fazer de tudo para impedi-lo a ir até a cidade de Homs, ele buscou outra alternativa. Com a ajuda de um casal de irmãos que o acompanhava no Líbano, Shâdî e Shadia, ele descobriu que havia um ônibus que partia diretamente do Líbano para Homs.

Klester: Porque tem… tem várias fronteiras da Síria com o Líbano. Uma fronteira, passou Damasco, né? As outras três ou quatro não passam por Damasco. E tem uma fronteira que é justamente a fronteira que fica mais perto de Homs. Então, se eu fosse (pigarro) direto pra Homs, o correto seria pegar esse roteiro, né? Essa rota, que é um ônibus que vai exatamente de Beirute pra Homs. Tem essa linha lá, entendeu? Aí, eu peguei esse ônibus, né? O Shâdi e a Shadia disseram que tinha esse ônibus direto pra Homs. Eu pensei, “Aí, eu vou pegar ele, que eu já dou um drible no ministério lá em Damasco, né?”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: E aí, nesse ônibus, indo de Beirute pra Homs, a gente, quando o ônibus fazia umas paradas em algumas cidades. E aí, ele parou numa cidade, subiram umas pessoas e subiu um… dois rapazes. Aí, já sentaram assim… perto de mim. Eu tava na janela, um pouco atrás, assim, do ônibus, né? Lado direito do ônibus. E esse rapaz sentou na fileira à minha esquerda, do outro lado do ônibus, né?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: E aí, o ônibus saiu. E já muito perto da fronteira, o ônibus parou num, num… na beira da estrada tinha tipo um acampamento, né? Algumas barracas, assim, armadas. Mas não era barracas de camping, eram tipo lonas, né? É… estacas de madeira e lonas, uma coisa muito improvisada. Tem essa foto no meu livro. E aí, esse rapaz que tava perto de mim, assim, na outra fileira, na minha esquerda, desceu do ônibus. E eu vi uma agonia muito grande, assim, nessa vila, nesse assentamento, digamos assim. Algumas mulheres ao redor dele chorando, numa agonia danada. Tinha uma senhora um pouco mais velha que agia como se fosse a mãe dele, pegando ele pelo braço, chorando, e eu vi quando ele deu pra essa mulher um punhado de dinheiro. E aí, ele voltou pro ônibus e veio andando no corredor do ônibus. Quando ele veio andando na minha direção, eu vi que… a face esquerda do rosto dele… ah, tinha uma grande cicatriz e… não tinha metade da orelha esquerda. Aí, esse cara sentou no lugar que ele tava lá, começou a conversar em árabe com esse outro amigo dele, e chorou. Ficou chorando um pouco, né? Deu um tempo, esperei um tempo, ele se acalmar, depois cheguei perto lá e perguntei o que tava acontecendo, tudo. E aí, esse cara não falava inglês, mas o amigo dele falava. E aí, o cara me contou que a história dele era que… ele era de Homs, o pai dele tinha uma mercearia lá. E aí, quando começou a guerra, é… ele falou, né, pros pais, que era melhor sair de Homs e ir pro Líbano, né? Fugir da guerra. Mas os pais dele não queriam sair porque disseram que tinham nascido lá, crescido lá, que tava toda a vida deles tava lá em Homs, que não queriam sair. E aí, até que certo dia, esse lance de Homs sofrer tanto com a guerra, com os ataques do governo, é porque a população de Homs é muito politizada. E lá, 90% da população é contra, pelo menos era, contra o governo. E como eu falei, tem várias bases rebeldes lá, né? Então, o governo da Síria, de uma forma meio tosca, assim, digamos, sitiou a cidade. E aí, todas as entradas e saídas da cidade é… eram bloqueadas pelo exército. Só entrava e saia de Homs quem o governo sírio permitia. Por isso que é aquela coisa, cerca a cidade e… bombardeio, ataque, dia e noite. E o povo totalmente contra isso, claro. E por outro lado, o povo dando apoio aos rebeldes. E aí, um dia, é… o Johab tava na mercearia com o pai dele trabalhando e entraram três soldados rebeldes, um deles com um ferimento à bala na perna. E aí, o pai dele pegou uma tesoura lá, cortou a calça do cara pra fazer um curativo, e pediu pro Johab pegar algodão. E o algodão tava atrás do balcão. É, do caixa, né? E aí, quando ele foi pra trás do balcão, logo depois ele viu por entre as frestas de uma madeira do balcão, ele viu entrando cinco soldados do exército da Síria. E os caras já entraram na mercearia gritando, não falaram nada e já foram metralhando os três militares rebeldes e o pai de Johab. Ele viu essa cena. Então, agachado atrás do balcão, os militares sírios não viram que ele tava ali. E aí, mataram o pai dele, os três rebeldes, e saíram da mercearia. E aí, nesse momento, um desses militares jogou uma granada (efeitos sonoros de pinos de granadas caindo ao fundo), quando ele saiu da mercearia, um dos caras jogou uma granada dentro da mercearia. E aí, o Johab conseguiu se encolher assim, né, e se encostar na parede.

(EFEITO SONORO: GRANDE EXPLOSÃO, TILINTAR DE METAIS SE ESPALHANDO)

Klester: E aí, a explosão destruiu o balcão de madeira, né. Grande parte da mercearia também, e os estilhaços cortaram, né, a face esquerda do rosto dele, e arrancaram metade da orelha esquerda dele. E naquele dia que eu tava com ele no ônibus… Aí, depois desse episódio, né, a família dele (incompreensível) concordou em sair da Síria, né. Então, foram pra o Líbano. E eles tavam vigiando nesse assentamento de refugiados. É uma coisa muito improvisada. E aí, ele passou a trabalhar na construção civil, lá no Líbano. E aí, a família dele enviou uma carta convocando a se apresentar no quartel lá em Homs. E se ele não fosse até tal dia, ele teria a prisão decretada. Então, naquele dia que eu o conheci no ônibus, ele tava voltando pra Homs, pra se apresentar no quartel, né. E a grande dor dele é que com aquilo ele iria passar a lutar ao lado dos homens que mataram o pai dele. Essa era a ironia, entendeu?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Quando finalmente chegou na fronteira com a Síria, oficiais pegaram seu passaporte e, apesar do visto de jornalista, não permitiram entrar em Homs. A ordem era voltar para Beirute, no Líbano, e de lá ir para Damasco. E foi o que ele fez.

Klester: Eu passei a noite em damasco. Eu saí de Beirute, cheguei em Damasco no fim da tarde. Tomei um banho, descansei um pouco no hotel, e saí sozinho  pra andar pela cidade. E tinha loja aberta, cinema aberto, restaurante. Eu jantei numa lanchonete lá, nessa noite. Só tinha alguma tensão nas ruas onde tinha prédios públicos. Porque como prédios públicos são alvos preferenciais dos rebeldes… Então, nas ruas que tinham prédios públicos, aí, tinha vários militares, barricadas, né, as partes todas bloqueadas, com a energia cortada pra ficar mais difícil de alguém entrar pra combater. E eu, quando passei nessas ruas, eu não sabia o que era, né. Eu vi tudo escuro, não sabia o que era. E eu sempre muito curioso, né, entrei e liguei a minha câmera fotográfica no modo vídeo, pra eu já sair filmando, né. E tinha uns policiais, assim, uns militares, quando me viram, vieram falar comigo em árabe, né. Eu tenho ascendência italiana, então… Que também parece árabe, né, o rosto magro, comprido, nariz grande. E eu sei que tenho essa aparência italiana árabe. Então, de propósito, deixei a barba crescer, fui parecido muito com cara de árabe, né. Então, os caras me viram, vieram falar comigo em árabe, eu falei que não falava árabe, que era brasileiro e tudo. Aí, mandaram eu sair daquela rua. Eu saí andando e, aí, mais à frente eu até fiz um vídeo, né, que mostra esses militares, né, armados e me orientando a sair. Um cara falando em inglês muito tosco, assim, mandando eu sair daquela rua, e tudo. Porque só depois que eu vim saber, no dia seguinte, que era a rua que tinha, se eu não me engano, eu acho que era o Ministério das Relações Exteriores… Eu não lembro qual era o Ministério.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Apesar de ter sido forçado a entrar na Síria via Damasco, Klester ainda tentava evitar o governo sírio, temendo que eles interferissem no seu trabalho. Sendo assim, ele passou a buscar formas de ir para Homs diretamente de Damasco, sem ter que passar por nenhum oficial do governo.

Klester: Eu fui de Beirute pra Damasco de van. E aí, o motorista da van, eu falei pra ele que eu queria ir pra Homs, e ele ficou de ajudar a conseguir um taxista, né. Eu cheguei até a falar com um taxista, que disse que ia me levar. Quando eu acordei, o cara falou que… Eu não lembro se eu liguei pra ele ou se ele ligou pro hotel. Mas ele disse que tinha desistido, que era muito perigoso. Aí, falou assim, “Se você andar pela cidade, você encontra alguém que pode levar você, mas eu não vou”. Aí, eu desci, lá atrás do hotel tinha um ponto de táxi, comecei a falar com os taxistas que queria ir pra Homs, não sei o quê… E aí, apareceu um cara que falou que levava, né. E aí, eu ofereci grana, e o cara, “Não, eu só vou por mais”, eu cheguei a oferecer US$ 100. E aí, eu acho que quando ele viu que eu tava realmente disposto, que eu ia pagar quanto ele pedisse, ele falou essa frase, que nunca viu ninguém disposto a pagar tanto pra morrer.

Ivan: Você acha que eles tavam tirando sarro de você, assim, colocando valores absurdos?

Klester: Não, eu sei que tava muito caro porque o valor normal desse trajeto de Damasco a Homs é, em 2012, os caras me disseram que seria US$ 30. O cara tava pedindo 100, né. Eu cheguei a oferecer 100, o triplo, né. Então, não é pouca coisa. Pra você ter uma ideia, a diária do hotel que eu fiquei, que era um hotel muito bom, tava a US$ 60, se não me engano. Um hotel que… Não, não, minto. Eu acho que eu paguei US$ 30 e era tipo metade do que seria numa época normal, entendeu? Tudo por causa da guerra, né. Eu não acho que eles tavam tirando onda. Eu acho  (incompreensível). Primeiro, usando a guerra pra aumentar o preço do que poderiam cobrar mais, né, no caso dos taxistas. Mas todos também tavam com receio de encarar esse trampo, né. O problema. E aí, um deles falou, “Oh, por que você não vai pra rodoviária?” Eu, em momento algum, tinha pensado nisso, né. Aí, eu falei, ótimo. Aí, fui pra rodoviária, paguei muito pouco, não lembro quanto foi. Acho que… Não sei, US$ 5, não sei, US$ 7, não lembro. Tudo com moeda lá, né, com Pounds sírios. Aí, peguei o ônibus normal e fui até Homs de ônibus.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Quando eu cheguei lá na rodoviária, a primeira coisa que… Até já um pouco antes da rodoviária, né, a gente… O ônibus chegando na cidade, eu já vi um povo, assim, não sei, há uns mil metros, um pouco mais, não sei, já deu pra ver alguns focos de fumaça, né. Saindo da cidade, né. E eu sabia que não era padaria, eu sabia que era fogos de explosão, né. E quando chegamos na rodoviária, primeira coisa que eu percebi foi… Não tinha nada, totalmente deserta a rodoviária. Era um sábado. O normal seria que a rodoviária estivesse lotada, porque lá na Síria… É assim, na sexta-feira é o feriado deles, e no sábado os caras trabalham meio expediente. Então, muita gente que mora em Homs e trabalha em Damasco, ou vice-versa, uma coisa que é muito comum lá, o cara volta ao trabalho no sábado. Então, é comum no sábado ter muita gente viajando de volta à sua cidade, né. Então, seria natural que a rodoviária estivesse lotada no sábado. Não tinha ninguém.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Da rodoviária deserta, Klester pegou um táxi em direção a um ponto da cidade onde iria encontrar seu contato, um ativista de Direitos humanos que o ajudaria a se assentar nos próximos dias. As ruas estavam todas vazias. Muita pouca gente andando. Comércio quase todo fechado. Nas fachadas de casas e prédios, marcas de tiros e explosões. Homs não é uma cidade pequena. Em 2004, estimava-se que mais de 650 mil pessoas habitavam lá. Sendo um foco do início da guerra da Síria desde 2011, atualmente, calcula-se que a população esteja em torno de 200 mil. Menos de 1/3 da estimativa de dez anos atrás.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: E a gente começou a encontrar, logo assim, acho que uns 10 minutos depois de sair da rodoviária, e começamos a encontrar as barreiras militares, né. E aí, em cada barreira que parava, os caras me pediam o passaporte, eu mostrava, aí, eles viam o passaporte, rolava um estresse, eles diziam, “brasili”, eles diziam, “sahafi, sahafi”, e eu não sabia o que era sahafi, só sabia que era uma coisa que não era boa, porque eles diziam sahafi e ficavam todos muito nervosos, eles viam o passaporte e me liberavam (ele tosse). Aí, assim, passei por três barreiras militares. Sempre que… que a gente… quando estava nas ruas antes, né, antes de chegar nesse ponto, eu tava no táxi, mas o tempo todo de olho na rua, pra ver se tinha alguma barreira militar, porque quando a gente chega perto de uma barreira militar, eu tirava o cartão de memória da máquina, escondia dentro da carteira. E aí, as fotos que eu tinha na memória da própria máquina eram só fotos de turismo, né. Fotos da cidade, fotos de mesquita, fotos dos amigos lá em Beirute, tudo. Não tinha nenhuma imagem de guerra na memória da máquina. Porque, quando chegava nesses postos militares, os caras sempre pediam pra ver a máquina. E eu mostrava, né. E eles viam que não tinha nenhuma foto de guerra, de nada, e deixavam passar. Até que, depois da terceira barreira, eh, eu tava num táxi, e aí a gente ouviu uma… E tudo isso eu fazendo fotos, vídeos, né. E aí depois, na terceira barreira, eu ouvi uma explosão.

(OUVE-SE UMA GRANDE EXPLOSÃO, SEGUIDA DE DESTROÇOS CAINDO)

Klester: Olhei pro lado e vi uma, uma enorme coluna de fumaça saindo de cima de um prédio, né. Muito fogo também (ao fundo, sons de fogo e uma voz fala: “Allahu akbar”). E eu fui lá, né. Foi engraçado porque, eu indo na direção dessa rua, né, esse prédio em chamas, e todo mundo, obviamente, indo na direção contrária, né. As pessoas correndo pra longe da explosão, e eu indo pra cima da explosão, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Eu convenci o taxista a ir lá, porque não era muito perto, acho que era uns 300, 400 metros. Eh… e o taxista não queria ir, não sei o quê, eu tinha dado dinheiro da corrida a ele já, aí, quando ele falou que… que não ia me levar lá, na explosão, eu tirei o dinheiro que ele tinha colocado no console. Eu dei pra ele dinheiro e colocou no console, né. Eu tava pra trás, no banco traseiro do carro, quando ele falou que não ia lá, eu tirei o dinheiro pra ele… tirei o dinheiro dele e falei, “Ó, só pago se você for lá”. Aí, ele foi, muito contrariado. E aí, na rua da explosão, ele parou o carro, eu queria descer e ele… ele não fala inglês, fala muito pouco inglês, e aí, quando eu ameaçava descer do carro, ele ameaçava sair. Ele colocava o carro em marcha e acelerava, como quem dissesse, “Olha, se você sair, eu vou embora”. Aí, eu não saí do carro, eu só abaixei o vidro, coloquei a câmera pra fora do carro e fiz a foto. E tem a foto também no livro. E aí, voltamos pra estrada, né, e… eu lembro que eu ficava o tempo todo pensando na possibilidade de que era uma bomba que tinha sido jogado por um avião da força aérea síria. E eu queria, né… Fiquei pensando, poxa, se esse avião jogar outra bomba ou passar por aqui, eu quero fazer essa foto, né. Então, eu fiquei… eu tava no banco traseiro do carro, eu fiquei com metade do corpo, assim, do lado de fora do carro, né, do táxi, com a máquina na mão e olhando pro céu, né, procurando um avião, né. E aí, só que depois de fazer foto dessa explosão, eu fiquei, né, muito ligado no céu, pra tentar, se fosse o caso, fazer outra foto…  uma foto do avião, ou se caísse outra bomba, tudo, e esqueci de ficar olhando pra frente (ele tosse). E aí, eu tava, eh, desse jeito, né, com metade do corpo pra fora do carro, com a máquina fotográfica na mão, olhando pro céu, quando eu senti, de repente, o táxi quase parando, né. Não é que tava reduzindo a velocidade, tava quase parando, assim. E aí, cara, quando eu olhei pra frente, eu vi uma barreira militar gigantesca, com muitos tanques de guerra, lança míssil, um monte de soldado, uma tenda militar armada, metralhadora giratória. Uma cena de filme, assim. E aí… e eu ali, né, com metade do corpo fora do carro, máquina na mão, e os caras tavam me vendo, né, os militares já tinham me visto. Então, não tinha muito o que fazer. Daí, eu coloquei o corpo dentro do carro, minha mochila tava do meu lado, no banco traseiro do carro. Eu só coloquei a máquina fotográfica embaixo da mochila, né, tentar esconder, não ia dar tempo de tirar o cartão. E pronto. Aí, parou, chegou um soldado perto de mim, falou comigo em árabe, falei que… Aí, o motorista respondeu pra ele em árabe, acho que foi vendo que eu era estrangeiro, não sei o que. Aí, o cara pediu o passaporte, eu dei pra ele. Depois de ver o passaporte, aí, ele deu… deu um grito, “Sahafi! sahafi!”. Aí, de dentro da tenda militar, saiu um oficial mais velho e um cara muito educado, assim, calmo, chegou perto do carro assim, pegou o passaporte, olhou e falou assim, “Sahafi brasili”. Aí, apontou pra minha mochila e pediu, assim, com a mão, né. Aí, eu dei pra ele a mochila e, quando eu dei pra ele a mochila, ele viu a máquina fotográfica embaixo, né. Aí, apontou pra máquina e falou assim, “Photo”. E pediu, né, com um gesto, com a mão. E aí, cara, naquele momento eu pensei, “Bem, a máquina tá com o cartão de memória dentro ainda, com as fotos da explosão, carros destruídos, tudo mais”. Pensei, “Se eu der pra esse cara a máquina com esse cartão dentro, ele vai ver as fotos e aí a coisa vai ficar pior ainda. Além de ficar ruim pro meu lado, eu ainda vou perder o que eu fiz, né”. E aí, eu pensei só em salvar o material que eu tinha feito, né. E aí, eu virei assim as costas pra porta do carro, né, eu tava dentro do carro ainda, eu virei as costas, assim, pra janela, né, pra bloquear a visão dele, peguei mala e tentei abrir o compartimento pra tirar o cartão, né. E daí, cara, naquele nervosismo, né, assim… demorei uns 2 segundos a mais do que seria normal pra tirar o cartão. Daí, eu senti o cano de uma arma na minha cabeça, na minha nuca, né. Comecei a ouvir o som das pessoas gritando, né, muitos vídeos em árabe, né, uma agonia danada. E aí, eu pensei, “Cara, eu não vou virar aqui enquanto não tiver o cartão, né”. Aí, consegui tirar o cartão, aí eu me voltei pra… pra porta do táxi, né, entreguei a máquina pro oficial e fiquei com o cartão na mão, escondido, né, assim, atrás do polegar. E aí, eles mandaram eu sair do carro, eh…esse oficial  pegou minhas coisas, voltou lá pra tenda militar e, nessa hora, peguei meu celular que tava no bolso da calça e telefonei pro Bruno, que era meu contato na embaixada em Damasco, né. Aí, eu falei, “Bruno eu tô aqui em Homs, cheguei. Eh… passei por várias barreiras militares aqui,  tava tudo indo muito bem, até que agora, aqui em (incompreensível) eu acho que rolou aqui um estresse pesado, cara. Arruma alguém que fale árabe aí pra falar com esse oficial e ajudar, tudo”. Aí, eu tava falando com o Bruno, quando o oficial voltou da tenda e… eu falei pra ele, né, eu falei inglês, falei bem devagar, pra ver se ele entendia, né, usando palavras bem básicas. Falei pra ele assim, “Ó, aqui é um amigo meu da embaixada do Brasil em Damasco. Fala com ele”. E aí, o oficial fez um gesto, fez assim, ok, e pediu o celular, né. Quando eu dei pra ele o celular, ele desligou e colocou no bolso. Aí, eu fiquei mais preocupado, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Eles me levaram lá… no… numa parte da cidade, né, uma área residencial, me colocaram no chão e começou a tortura psicológica, né. Iam apontando arma na minha cabeça, gritando comigo em árabe. Uma coisa que me marcou muito foi o silêncio, né. Porque é uma cidade gigante, uma cidade grande como Homs. Eh, essa área onde eles me colocaram no chão, no meio da rua, antes de me levarem preso, era uma área residencial, e foi muito estranho, assim, pra mim, ver que ali era uma área residencial e que… com vários prédios e tudo mais, e você não ouvia nenhum sinal de vida, você não ouvia nenhuma música saindo de nenhuma casa, nenhum cachorro latindo, nenhuma criança chorando. Não tinha nada, né. Por causa da guerra, eles deixaram e saíram, né. Daí, o silêncio só é interrompido por tiros e explosões.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Ah… O lugar que me colocaram na… assim, a rua era… uma avenida grande da cidade, e aí, tinha uma esquina onde tinha um conjunto residencial, né, com vários prédios assim, de três, quatro andares padronizados. E me colocaram no chão de uma calçada e aí, sete ou oito soldados ficavam assim, em torno de mim, apontando armas, metralhadoras, fuzis na minha cabeça (ele tosse), gritando comigo em árabe. É muito humilhante isso, cara, porque é lógico que eles sabiam que eu não falava árabe, mas os caras falam meio assim, só pra, tipo, deixar claro, não tão dando a mínima pra você, entendeu? E aí… apontavam a arma na minha cabeça, gritando comigo. Aí, faziam isso e, obviamente, eu achei que ia ser morto ali. Eu falei, “Vou morrer agora”, né. Aí, faziam isso e paravam. Aí, saíam alguns, ficavam só uns três lá de olho em mim, né, armados. Aí, daqui a uns dez minutos, quinze, voltavam todos os outros e faziam de novo tudo aquilo. Vinha e colocava arma na minha cabeça, gritar comigo em árabe, colocar dedo no gatilho. Aí, o coração veio na boca, né. Aí, eles paravam, saíam, depois voltavam… Cara, fizeram isso umas quatro vezes. É tão angustiante que… chega uma hora que você quase pede pro cara atirar logo, pra acabar, entendeu?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: Né. Depois disso, chegou… arrumaram um sargento que falava inglês, foi um cara muito bacana comigo. Eh… me ajudou bastante e eu tava já acreditando que iam deixar eu ir embora, que ia dar tudo certo. Daí, quando parecia que tudo ia ficar bem, chegou um carro civil com quatro caras, dois deles muito jovens, deviam ter acho que uns 25 anos, no máximo. E… esses caras me pegaram, eu vi que rolou um clima meio chato entre esses caras e os militares, né. Esses caras não eram militares, esses caras tavam com roupas civis. Ficou muito óbvio pra mim que os militares não queriam me entregar a eles, mas tiveram de obedecer, né, mesmo sem gostar muito da ideia. E teve um desses militares que, quando me entregou para esses quatro caras, falou assim, “I’m sorry, my friend”. Aí, eu falei, “Ah, ferrou, né, acabou, né”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Klester: E aí, esses caras me colocaram no carro. Eu já sabia que existia um grupo de milícias que serve ao Bashar al-Assad, que eu não vou lembrar agora o nome em árabe, mas que o nome é uma palavra que em português significa “fantasma”. E eu sabia, (incompreensível) que esses caras têm, eh, poder sobre os militares, mesmo sendo muito jovens e não usam uniforme, esses caras só podem ser milícia, né. Aí, me colocaram dentro de um carro civil, dois caras foram na frente, um deles com minha mochila no colo, eu fui atrás, entre os outros dois caras, esses dois com armas apontadas pra minha cabeça. E aí, esse carro saiu e passou no meio do centro de Homs. E isso eu vendo tudo, né, a cidade destruída. Tem uma cena que eu nunca esqueço, eh… vendo várias lojas de… de grife, de concessionária com carrões, tudo destruído. E tinha uma, uma cena que eu não esqueço, não, eram duas cenas que eu não esqueço. Uma delas era uma tubulação de água estourada, jorrando água na rua, e essa água se misturava com as cinzas e a poeira das explosões, nos entulhos, né, das explosões. E eles ficavam naquela… gosma assim, no chão, sabe, uma lama cinzenta, viscosa, estranha. E a outra cena que eu vi que não me esqueço foram garotos, muito jovens, meninos de 12, 13, 14 anos correndo pelas ruas de Homs, com camisas de clubes europeus, Real Madrid, Barcelona, e eles armados, com metralhadoras e fuzis, dando tiros pro alto e gritando “Allahu akbar”, que é “Deus é grande”, em árabe. E eu vendo tudo isso, né, a cidade destruída, esses meninos nas ruas, tudo, e pensando o seguinte, “eh… obviamente, eu fui preso, porque eles não querem que eu conte o que tá acontecendo na cidade. Eles não querem que eu conte e sabem que eu sou jornalista, deveriam pelo menos colocar um… uma venda nos meus olhos, colocar um saco na minha cabeça, né, pra eu não ver nada”. Então, naquele momento, eu concluí que, se eles não estavam preocupados que eu visse tudo aquilo, é porque já tava decidido que eu ia morrer, né. Então, eu comecei a trabalhar na minha cabeça e no meu coração a ideia de que eu tava sendo levado pra ser executado, entendeu. E aí, comecei a me convencer disso pra aceitar a morte. E aí, o prédio foi pra… o carro foi pra um prédio público, eu sei que era um prédio público porque tinha… um monte de fotos do Bashar al-Assad. E aí, o… o cara mais novo que tava na frente do carro, com a minha mochila no colo, esse cara saiu do carro, mandou eu sair, ele não falava inglês, aí, colocou a arma na minha nuca e saiu me conduzindo, né, com a arma, que caminho eu deveria fazer. E aí, assim, esse cara me levou até… uma escada que só descia, num corredor bem estreito, um corredor que era um pouco mais largo que meus ombros. E aí, eu fui descendo, esse cara atrás de mim, com a arma na minha nuca. E quanto mais eu descia, mais escuro ia ficando, tudo. E aí, eu falei, “Ah… acabou, não tem mais o que fazer”. Aí, nessa hora eu fechei os olhos, entreguei a alma a Deus e esperei o tiro. Aí, assim… desci, fui descendo com os olhos fechados, né, a cabeça baixa, a espera do tiro. E eu fui tateando cada degrau com os pés, lentamente, com a certeza que ia ser morto, né. E aí, desse jeito, né, descendo os degraus bem devagar, com a cabeça baixa e os olhos fechados, eu senti uma pancada na minha cabeça e ouvi um barulho.

(EFEITO SONORO: SOM DE IMPACTO FORTE ECOANDO)

Ivan (narração): No próximo episódio, o que aconteceu com Klester? Para onde ele foi levado e como começou, de fato, o seu inferno na Síria? Aqui, no Projeto Humanos, O Coração do Mundo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir através do link na postagem. Agradecimentos especiais a Klester Cavalcanti, que me concedeu essa entrevista numa madrugada de janeiro, falando pelo celular, no meio do trabalho da escrita do seu novo livro. E enquanto este novo trabalho não sai, você pode conferir com mais detalhes a história que ele está nos contando aqui, no livro “Dias de inferno na Síria”, lançado em 2012, pela Editora Benvirá, que foi vencedor do Prêmio Jabuti de 2013. Uma adaptação para o cinema está em andamento agora, sob a direção do ator Caco Ciocler. Nos vemos no próximo programa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Você agora vai ouvir o trailer da série “Amanhã Precisa Ser Melhor”, produzida pelo podcast O Nome Disso É Mundo, e que tem tudo a ver com o Projeto Humanos. O link para ela está na postagem.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rafaela Carvalho: Oi, eu sou a Rafaela. No dia 6 de agosto de 2015, eu fiz o que eu considero, até hoje, a coisa mais louca da minha vida. Eu fui embora do Brasil, com a passagem só de ida pra Budapeste, na Hungria, e tinha só uma condição pra que aquela viagem fizesse sentido. Eu teria que fazer algo que fosse tão relevante pra mim quanto pra outras pessoas que talvez nunca tivessem a chance de viajar. As minhas primeiras semanas como viajante também foram as semanas em que a Europa enfrentava a pior crise humanitária da sua história, desde a Segunda Guerra Mundial. Eram dois, três, dez mil refugiados chegando todos os dias no continente. Quem eram aquelas pessoas? Que esperança elas tinham ao atravessar o Mediterrâneo? E por que raios ninguém tava contando as suas histórias? Eu descobriria, poucos dias depois, que ir pra Hungria foi a melhor escolha que eu poderia ter feito. Você vai acompanhar toda essa história a partir de agosto, na série “Amanhã Precisa Ser Melhor”, aqui n’O Nome Disso É Mundo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Marcela Brasil, Débora Veiga Ruiz, Sidney Andrade, Zé Roberto. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Jean Carlos Oliveira Santos