5 – O que Aprendemos?

7 de setembro de 2015

Avaliamos os motivos pelos quais há tantas pessoas que negam o holocausto, assim como os perigos que tais tipos de pensamento trazem. E levantamos a pergunta: há riscos de um novo holocausto acontecer?

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Museu do Holocausto de Curitiba
Xadrez Verbal

Transcrição

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Este é o último episódio da nossa primeira temporada “As filhas da guerra”. Mas já adianto que no final do programa trarei algumas surpresas que podem interessar a vocês ouvintes. Mas enquanto não chegamos lá, temos que terminar nossa história com Lili. E para continuarmos de onde paramos, eu gostaria de falar algumas coisas sobre mim. Meu pai, depois de muitos anos, decidiu fazer faculdade. Era algo comum para pessoas da minha geração, que hoje tem em torno de 30 anos, os pais fazerem faculdade só depois de estarem estabilizados em suas carreiras. Como ele sempre gostou de história, foi o curso que acabou fazendo, já na casa dos 40. E o tema predileto dele sempre foi guerras, especialmente a Segunda Guerra Mundial. O resultado disso é que, durante toda a minha vida, eu assistia com ele filmes, documentários, conversávamos… E quando surgia o tema Holocausto, era sempre um assunto que vinha acompanhado de toda a carga emocional que exige. Sempre pensávamos como que é possível que as coisas tenham chegado a tal ponto. Não somos judeus e, como já expus no episódio passado, sempre fomos homens brancos, héteros, classe média, com formação cristã. Ou seja, com todos os privilégios que o mundo podia oferecer. Aceitar que um horror daquele tamanho possa ter acontecido era algo inconcebível e sentíamos por todas as vítimas. Em outras palavras, o Holocausto sempre foi um dado histórico cujos pesos da documentação existente ressoava até em nós que supostamente não tínhamos nada a ver com isso. Mas então veio a internet.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Eu acho que foi em 2005. Eu estava no Orkut, antiga rede social tão popular no Brasil na época. E em algum grupo de discussão que eu participava surgiu o tema nazismo. E no meio da conversa, um membro começou a dizer que o Holocausto nunca tinha acontecido e que aquilo era uma das maiores farsas da história da humanidade. Foi a primeira vez que eu ouvi aquilo e, infelizmente, não foi a única. A seguir, eu reproduzo trecho de um vídeo facilmente encontrado no Youtube que mostra um pouco do que estou falando. Ele usa uma voz eletrônica do Google Translator, então não estranhem. E se você nunca ouviu essa versão da história, se prepare.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: VOZ SINTETIZADA)

“A grande farsa do holocausto judaico. Por que não devemos investigar? Uma vez que os judeus, durante toda sua existência, estiveram mergulhados em mentiras. Podemos dizer ainda que os judeus estão envolvidos em todas as grandes mentiras da história desse planeta.”

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

“Capítulo 2: Fotos falsificadas. Algumas perguntas devem ser feitas. Por que haveria necessidade de se falsificarem fotografias, se nos é dado o Holocausto como algo incontestavelmente verdadeiro?”

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

“Mais uma falsificação grotesca. Notem o rosto extremamente mal desenhado e a desproporcionalidade. A imagem não parece ser tridimensional e não nos dá uma sensação de profundidade entre os corpos, fazendo parecer com que todos estejam empilhados, um em cima do outro, retilineamente.”

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

“Capítulo 3: Números fraudulentos para ofuscar o verdadeiro holocausto dos japoneses.”

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

“Os Estados Unidos jogaram duas bombas atômicas em cima de população civil de duas cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki. Um crime bárbaro contra a humanidade. E a partir daí, os Estados Unidos se viram na obrigação de maquiar esta tragédia, fabricando o holocausto dos judeus.”

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): No total, esse vídeo tem mais ou menos uma hora de duração. Mas há incontáveis vídeos com esse tema. Se vermos a quantidade de sites com esse objetivo, os números tornam-se incalculáveis. Como toda teoria da conspiração, essas narrativas de que o Holocausto não aconteceu são muito sedutoras. Na minha opinião, atraem por apenas um motivo. Nos dão a sensação de que descobrimos alguma verdade oculta, que somos mais especiais, inteligentes e, portanto, melhores, mais lúcidos e iluminados. Estamos acima da humanidade. Mas como geralmente brincamos em estudos históricos, as teorias da conspiração fazem tanto sentido que só podem estar erradas. Não é possível exigirmos bom senso ou lógica da humanidade. Eu não sei quanto a vocês, mas digamos que eu sofri algum tipo de violência. Tipo, eu fui assaltado, sequestrado ou algo assim. Digamos que eu conte isso para alguém. Se essa pessoa não acreditar em mim, no meu sofrimento, por menor ou maior que seja, eu me sinto muito irritado. Como se sentiria então alguém que passou por um horror tão grande como o Holocausto, ao ser confrontado com ideias desse tipo? Desde aquela minha experiência no Orkut, quando encontrei pela primeira vez a versão de que o Holocausto nunca teria acontecido, eu sempre tive vontade de perguntar para algum sobrevivente o que eles achavam sobre isso tudo. Com Lili eu pude fazer isso. Mas antes eu precisava conversar com alguém que entendesse melhor sobre o assunto…

Filipe: Meu nome é Filipe Figueiredo, eu tenho 29 anos, eu sou graduado em história, minha profissão é uma miscelânea. Eu sou professor, tradutor, youtuber, podcaster, produzo conteúdo…

Ivan: E é do “Xadrez Verbal”, né?

Filipe: Isso, isso. Meu blog se chama “Xadrez Verbal”. https://xadrezverbal.com o endereço. Também está no Youtube: youtube.com/xadrezverbal; e também tem o podcast, que fica hospedado no site do “Xadrez Verbal”.

Ivan: Quem que são essas pessoas? Você já conseguiu analisar quem que faz essas teorias e porque elas existem? Qual sua opinião sobre isso? O que você já levantou em relação a isso?

Filipe: Assim… O cara que teve mais relevância nisso, por assim dizer, é um britânico, que inclusive foi condenado criminalmente, chamado David Irving. Ele é o negacionista mais famoso. E ele é mais famoso justamente porque ele foi o primeiro que apelou para um discurso pseudocientífico. Então, é aquele cara que vai falar “olha, não existem vestígios do gás aqui onde eles dizem que era a câmara de gás. Então é tudo uma farsa”. Existem dois tipos de negacionistas. Existe o negacionista propriamente dito, que é o que fala que não existiu Holocausto. E aí, a gente vai falar deles. E existe o relativista, que é o que sempre fala “não, não, os nazistas fizeram crimes mas…”. Ou ele emenda com “os nazistas também fizeram coisas boas”, né, que é aquele… esqueci o nome da falácia, o nome técnico… ou então, ele aponta o crime dos outros. Que é aquele “olha, os nazistas cometeram crimes, mas os aliados também” …

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: VOZ SINTETIZADA)

“Assim, eles tentariam justificar essa barbárie no Japão, e ainda levariam o foco para a Europa e, mais precisamente, para os seus aliados de instigarem essa guerra, os judeus.”

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Filipe: né, então assim, uma coisa é você falar que não tem santo em uma guerra. Outra coisa é você colocar baixas civis, por exemplo, na mesma categoria de você criar um processo industrial de matar gente, de você fazer uma reunião pra chegar num método mais efetivo, usando todo seu aparato de Estado, para matar gente. Entendeu? Isso é completamente distinto.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: VOZ SINTETIZADA)

“Auschwitz foi, ao mesmo tempo e sucessivamente, um campo de prisioneiros de guerra, um vasto campo de trânsito, um campo hospital, um campo de concentração e um campo de trabalhos forçados e de trabalho livre. Não foi jamais um campo de extermínio, expressão inventada pelos aliados. A realidade na Alemanha teve que ser escondida para poder ofuscar as duas bombas atômicas que os Estados Unidos jogaram em cima de população civil nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão.”

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Filipe: Agora, indo para os negacionistas. Normalmente, ou é uma pessoa que é extremamente antissemita, né, que normalmente fala “ah não, isso foi uma invenção dos judeus para que eles tivessem uma justificativa para se fazer de coitadinhos para criarem o Estado de Israel”. E eu já tive um cara que falou exatamente isso no meu canal do Youtube, porque eu tenho um vídeo lá só sobre o Holocausto. Inclusive, eu pretendo fazer um vídeo sobre o negacionismo do Holocausto, em breve.

Ivan: Excelente.

Filipe: A segunda justificativa costuma ser a da diminuição do Holocausto. Que o Holocausto foi acidental, foi decorrente de uma epidemia de tifo…

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: VOZ SINTETIZADA)

“Apesar das rigorosas medidas de higiene, da abundância de galpões e edifícios hospitalares dotados, muitas vezes, dos últimos avanços da ciência médica alemã, O tifo, uma enfermidade endêmica entre a população judia-polonesa e entre os prisioneiros de guerra russos, ocasionou juntamente com as febres palustres e outras epidemias enormes devastações nos campos e na cidade de Auschwitz, assim como entre os próprios médicos alemães e a população civil. Donde que durante toda a existência do campo, essas epidemias aliadas, segundo alguns, às terríveis condições de trabalho naquelas zonas pantanosas, à fome, ao calor e ao frio, causaram a morte de aproximadamente 150.000 prisioneiros, desde 20 de maio   de 1940 até 18 de janeiro de 1945.”

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Filipe: …de que foi executado pelas próprias populações locais. E foi o que a gente falou, as populações locais, sim, colaboraram para o processo do Holocausto na Ucrânia, na Polônia, na Croácia. Isso é inegável. E esses países, embora tentem muitas vezes negar, eles tiveram sim uma participação no Holocausto, porém com uma coordenação, digamos assim, com… o maior executor era a Alemanha nazista.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE)

 

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: VOZ SINTETIZADA)

“Com essa produção cinematográfica dessa farsa do holocausto, os judeus deixariam de ser culpados e passariam a serem vítimas. E os Estados Unidos, na posição de salvador da humanidade.”

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Você já deve, com certeza, ter ouvido falar naquelas teorias da conspiração que tem por aí, principalmente na internet, de que o holocausto não aconteceu, de que esses números não batem, de que os alemães não tinha ódio pelos judeus, só queriam tirar eles do território, que só começaram a matar gente quando não tinha mais alimento e que até os alemães começaram a sofrer com isso. Pra essas pessoas que acham que o holocausto não aconteceu da maneira como é reportada, o que você geralmente (risos)… Digamos que você está com uma pessoa dessas na sua frente, não sei se já encontrou alguma assim, mas o que você diria pra uma pessoa que pensa assim?

Carlos: Olha… Eu vou te dizer…

Ivan (narração): Carlos Reiss, do Museu do holocausto de Curitiba

Carlos: … que a maior parte dessas teorias, elas se alimentam de algumas técnicas que vão existir já há muito tempo, e que tudo isso já tá documentado. O que eu estou querendo dizer com isso? Todos esses argumentos, que são utilizados em favor da negação do holocausto, muitas pessoas vão chamar isso de revisionismo. Isso não é revisionismo. Revisionismo é uma corrente legítima dentro da História. E isso não é revisionismo. Isso é negacionismo. Vão se utilizar dessas teorias. Mais importante nesse momento é entender que as pessoas que negam o holocausto, elas negam o holocausto por um objetivo ideológico. Elas não negam o holocausto pelo simples fato de negarem o holocausto. Esse não é o fim, esse é um meio. Então qual é o objetivo final? Nós estamos falando de um antissemitismo arraigado, por exemplo, a teoria da conspiração judaica, que dizem que os judeus dominam o mundo, que os judeus dominam os bancos, que os judeus dominam a mídia. Então, pra se utilizar, pra se chegar nesse fim que é o antissemitismo, que é o ataque a uma determinada pessoa, um determinado grupo se usam desse meio, que é a negação do holocausto. Pra finalizar, eu posso dizer, se o holocausto não aconteceu, cadê a minha família? O que aconteceu com ela? Onde que ela tá?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Teorias da conspiração são fáceis de serem identificadas. Geralmente, elas envolvem um número gigantesco de cúmplices em prol de uma ação de consequências globais de forma muito lógica. Ora, se você já pediu para alguém guardar um segredo e na semana seguinte viu que todos sabiam o que acontecia, você deve imaginar como é difícil acreditar nesse tipo de coisa. No caso do holocausto, negá-lo é algo perigoso e cruel. E é assim não apenas porque se torna uma atitude consciente de ignorar a vasta documentação sobre o assunto, mas principalmente porque diminui o sofrimento daqueles que passaram pelos campos. Sim, japoneses sofreram, comunistas sofreram, homossexuais sofreram, isso é inegável. Mas diminuir o sofrimento dos judeus, especialmente aqueles civis que foram perseguidos com base em preconceitos históricos, soa desumano, imoral. O sofrimento não é mensurável. Não há como dizer qual o menor ou o maior, especialmente nos casos em que ocorre o atentado à vida. Sofrer é sofrer.

Filipe:  Então assim… O problema, a origem do negacionismo… Aí entra até um aspecto, um discurso um pouco mais emocional, saindo um pouco aqui da mera análise empírica, alguma coisa assim… Mas ele tem um quê de mau-caratismo, porque é algo extremamente documentado, inclusive pelos próprios nazistas. Era algo feito de forma extremamente organizada. Então, o que não faltam são provas, são depoimentos, provas fotográficas, provas documentais, testemunhos. O que não faltam é prova. Desculpa o erro de concordância (risos). E com a internet, as provas ficam com uma facilidade de acesso absurda. Então, você negar o que tá ali estampado na sua cara por um motivo cínico que seja, ou legitimar o regime nazista, que seja deslegitimar o Estado de Israel. E aqui, eu faço questão de frisar que eu não sou judeu. Não precisa ser judeu para achar razoável a existência de Israel e também não implica em defender a política de Israel perante o Estado da Palestina. Se vocês entrarem no blog do xadrezverbal.com, vocês verão muitas e muitas críticas minhas ao Benjamin Netanyahu, inclusive. Seja por esses motivos, é extremamente torpe você negar o que está esfregado na sua cara. Então, normalmente, tem ou um quê de conspiração dos judeus, ou uma questão de limpar a barra do regime nazista, ou então relativizar um pouco as coisas. Mas assim, o holocausto executado pela Alemanha nazista contra judeus, ciganos, eslavos, homossexuais, dissidentes políticos, Testemunhas de Jeová foram mortos no campo de concentração, porque eles não aceitavam servir no exército, toda essa perseguição é inegável e é sem precedentes, sem paralelo.

Ivan: Uhum, perfeito.

Filipe: Até peço desculpa  pelo discurso um pouquinho mais emotivo, mas é porque é algo que realmente me tira do sério. Porque, para mim, não é uma questão de debate intelectual.  Debate intelectual é você debater, por exemplo, os efeitos da Segunda Guerra Mundial na atual região da Iugoslávia, que são sentidos até hoje porque é uma geração que ainda está viva. Isso é um debate intelectual. Você negar o que tá escrito, o que está na frente da sua cara, é questão de caráter.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Você, eu não sei se sabe, mas tem pessoas, por exemplo, que dizem que o holocausto não aconteceu.

Lili: Ah…

Ivan: O que você teria para dizer para estas pessoas?

Lili: Num quer acreditar, num acredita.

Ivan: Mas você passou por isso. Você não tem vontade de dizer “olha o meu braço, olha minha mãe, meu pai…”

Lili: Adianta discutir? Hoje li na revista que tinha holocausto branco contra preto. Ele escreve como que ele sente quando vai no restaurante e não vê quase nenhum preto sentado no restaurante. Também chamam holocausto. De falar que não só contra os judeus. Todos que são uma raça contra outra é o tipo holocausto, né?

Noemi: O holocausto aconteceu, tá acontecendo…

Ivan: Por que você acha que as pessoas pensam isso?

Noemi: Porque elas querem, elas precisam, porque o antissemitismo não acabou. As pessoas são muito ignorantes, né, isso que minha mãe falou. A religião parece que só serve pro fanatismo…

Stela: Ou as pessoas não conseguem acreditar que uma maldade tão grande possa ter acontecido…

Noemi: Ah, não. Não acho, não é isso não. Acho que quem não acredita que houve tem algum interesse nisso. Não acho que existe ingenuidade, acho que é malícia. Cê vê o braço da mamãe, ela fa…

Stela (interrompendo): É que a maldade é tão grande que às vezes as pessoas acham que ninguém consegue alcançar esse nível de maldade.

Noemi: Não acho que é por isso. Eu acho que quem não acredita, não acredita maliciosamente, porque tem um preconceito. Porque fala “não, os judeus estão querendo se fazer de vítimas”. Já conheci muita gente que, sem saber, tem sentimentos antissemitas. Sim, já.

Ivan: Como o quê?

Noemi: Por exemplo, quem fala assim “Ah! Do quê que os judeus tanto reclamam? Eles são super ricos. Os judeus dominam a indústria cinematográfica”, É… “os judeus são sovinas”, sabe, “são pão-duros”, “não existe judeu pobre”, isso é antissemitismo (ela solta um riso).

Carlos: O antissemitismo, ele é um dos males do Século XX e do Século XXI também. Vou te dar um exemplo que está acontecendo hoje. Ontem, a gente teve uma perda muito significativa aqui no Brasil, que foi o falecimento de um sobrevivente que era um dos símbolos da necessidade de se transmitir essas histórias. O nome dele era Aleksander Laks, vivia no Rio de Janeiro. Ele dedicou praticamente toda a vida dele para contar a sua história. Ele ia em faculdades, escolas, viajava o Brasil inteiro, muitas vezes até Europa, Israel e tudo mais. E ele era um grande símbolo da sobrevivência do holocausto, a gente pode dizer assim. Era um dos poucos sobreviventes que praticamente abriu mão da sua vida pra contar a sua própria história. Ele faleceu ontem e hoje os jornais estão dando um destaque grande, o Globo.com, o G1, UOL, vários desses estão noticiando o falecimento dele.

Ivan: Só pra marcar aqui no tempo, hoje é dia 22 de julho de 2015. Então, ontem foi 21 de julho.

Carlos: É, ele faleceu no dia 21 de julho, ontem à tarde. Tudo bem que a gente não pode levar tanto em consideração esse… Não as notícias, mas os comentários. Basta passar, rolar ali a barra de comentários no globo.com, por exemplo, pra você ver alguns desses exemplos de como o antissemitismo é um fenômeno arraigado. Da mesma forma como qualquer tipo de racismo, de preconceito, de ódio, de discriminação. A gente vê isso o tempo inteiro, a gente vê isso na rua, a gente vê isso em casa, a gente vê isso na sala de aula, a gente vê isso em estádio de futebol. O que acontece em relação ao judeu acontece em relação a várias outras minorias. Então, dá mesma forma que existe o racismo, discriminação e preconceito, o antissemitismo é um exemplo deles. O que acontece de diferente em relação ao antissemitismo até o holocausto é a inclusão de um novo elemento aí, que não existia até o período, que é o elemento estado de Israel. E hoje, muito se fala sobre Israel. Não de um ponto de vista única e exclusivamente de uma crítica. Eu particularmente sou muito crítico em algumas determinadas políticas, em alguns determinados pontos. Mas, muitas vezes, se fala sobre Israel utilizando de estereótipos, dessas características, muitas delas medievais, que transformaram o antissemitismo num fenômeno também sem precedentes. O antissemitismo existe, ele toma novas formas e ele consegue novas características, isso já é marca do fenômeno. Isso vem desde o período antes da Era Comum e, assim como outras discriminações, preconceito, ódio, racismo, intolerâncias que a gente vê com toda e qualquer minoria, toda e qualquer pessoa que a gente considera diferente da gente, com os judeus isso acontece também.

Noemi: Mesmo na posição que as pessoas têm contra Israel, né, as pessoas confundem muito Israel e Judaísmo, né. Então, se a pessoa tem uma… se a pessoa é contrária à política de Israel, como eu sou, também é contra os judeus. E não pensa que Israel não é… Israel não são os judeus, né. Tem mais judeus fora de Israel do que dentro de Israel. Então, confundem demais as coisas, sabe. Do mesmo jeito que a gente também confunde com relação aos árabes, e fala “os árabes, ah, esse ISIS, esse…”

Ivan: Estado Islâmico.

Noemi: “Estado Islâmico são os árabes”. Não são, né. São… é uma facção dentro do mundo árabe, que é gigantesco, né. Ou fala “os palestinos”, também não existe isso, também é preconceito, né, “ah, os palestinos são todos terroristas”. Imagina, tem grupo de terroristas dentro do povo palestino. Então, tem muito preconceito, né. Então, já discute, sim, com pessoas, já rompi amizades por causa dessa história de Israel. Gente que fala “ah, Israel, nossa, os judeus sofreram o holocausto e agora tão fazendo igual com os palestinos”, eu não posso ouvir isso. Isso me deixa num estado… Aí, eu já rompi amizade por causa disso.

Ivan: Por quê? O que te incomoda?

Noemi: Não, primeiro é que não são os judeus, né. Quem tá atacando os palestinos e o governo israelense não são os judeus. Então, não suporto que as pessoas não saibam. Pessoas que tem a mesma formação que eu, que mora em São Paulo, que fizeram universidade, que têm o dever de se informar sobre o que dizem, sobre o que falam. “Os judeus tão praticando o nazismo contra os palestinos.” Isso eu não admito. Segundo, o que o governo de Israel tá fazendo com os palestinos não é a mesma coisa que os alemães fizeram com os judeus. Não é… não são nem os alemães. Os nazistas fizeram com os judeus… Não é a mesma coisa. E eu acho que quando alguém diz isso, tem um certo prazer, sabe? como se isso diminuísse o sofrimento dos judeus…

Lili: É igual com o racista…

Noemi: É, Sabe. É a mesma coisa que dizer “ah, a Dilma foi torturada, né, e agora ela tá aceitando que a polícia agrida os…” Sei lá, os manifestantes. Quando a pessoa fala isso, eu acho que tem um certo prazer de diminuir o sofrimento da Dilma, sabe. Fala “ah, no fundo ela não sofreu tanto, ela tá fazendo igual.”

Ivan (narração): A história do holocausto não é apenas os judeus. É da humanidade. E nós, como seres humanos, deveríamos aprender com isso os perigos de discursos de ódio e preconceito para qualquer grupo que seja. Reduzir o sofrimento de alguém do presente ou do passado, do tamanho que seja, não deveria ser uma prática comum, mas é. Afinal, quantas vezes já não ouvimos coisas como “negros são assim” e “pobres são assado”, “mulheres são X”, “evangélicos são Y”, “gays são os Z”, e por aí vai. Na história do mundo, não há qualquer exemplo de um ódio socialmente organizado, a qualquer grupo que seja, que tenha trazido bons resultados. Nessas horas, é muito difícil escaparmos da sensação de que não aprendemos nada com o passado. O próprio caso da Iugoslávia, país natal de Lili, é um exemplo disso. Sendo uma região de conflitos étnicos que duram séculos, sua região de origem, a Sérvia, figura até hoje em notícias sobre tensões perigosas, especialmente aquelas que estouraram na década de 90, durante a guerra civil iugoslava.

Filipe: A Segunda Guerra Mundial, ela deixa cicatrizes muito grandes na Iugoslávia, na sociedade iugoslava. Essas cicatrizes serão curadas superficialmente, durante o governo Tito, que vai conseguir unificar essas regiões, tanto pela autonomia quanto pela simbologia de ser um povo unido, um povo que resistiu, né. De ser uma nova era, né. Vai colocar a Iugoslávia como o líder do movimento dos não alinhados. Ou seja, nós não somos nem o bloco oriental nem bloco ocidental. Nós temos nossa identidade própria. Porém, após a morte do Tito, vão voltar as disputas entre especialmente croatas e sérvios. As disputas pela hegemonia na Iugoslávia. E vai voltar todo o rancor que foi suprimido, foi sublimado durante o governo Tito. Então, todos os crimes, todas as barbaridades da segunda guerra mundial vão voltar à tona na década de 1980. E esse cenário de disputa interna, misturado com o acirramento dos nacionalismos e marcado pelo fim da guerra fria. Ou seja, nós não temos mais a ordem mundial que existia pra nos ancorar. Vão desembocar na guerra da Iugoslávia que, além de ser uma série de conflitos separatistas, também nós teremos casos de política de genocídio, massacre de civis, estupro como arma de guerra. Então, todas essas cicatrizes, esses rancores étnicos e um pouco menos políticos, enfim, todos esses rancores étnicos que vão ser aflorados, que vão ser exacerbados na década de 90 vêm da Segunda Guerra Mundial. Isso é inegável.

Ivan (narração): Não apenas este rancor histórico serviu de pretexto para a Guerra Civil Iugoslava, como auxiliou também num nível estrutural, para que novos horrores acontecessem no final do século XX, naquela região. E aqui é importante ressaltar que, daquelas classificações de campos nazistas que dispomos, sendo campos de trabalho, campos de trânsito, de concentração, etc. Os de extermínio ficavam todos no leste europeu, com a exceção de apenas um país do ocidente, justamente a Croácia.

Felipe: Durante as guerras da Iugoslávia, foram reativados, Foram reutilizados antigos campos de concentração, e o campo de extermínio da Croácia, foram reutilizados durante a guerra da Iugoslávia. Então assim, nós tivemos a política do genocídio, inclusive usando a, entre aspas, a estrutura do maior genocídio, né, do genocídio mais conhecido, pelo menos. então, durante as guerras Iugoslavas. É por isso que eu friso que na Croácia nós tivemos dois campos de extermínio. Que por exemplo, campos de concentração nós tivemos no Brasil, também, para imigrantes japoneses, mas campos de extermínio são uma… aspas gigantescas, né, frutos do nazismo.

Ivan (narração): Em minha conversa com Carlos Reiss, eu cheguei a perguntar se ele acreditava se ainda ocorriam holocaustos hoje em dia. Sua resposta foi que, no sentido de genocídios, sim, eles ocorrem e possuem características similares. Contudo, o uso do termo holocausto pode ser problemático. Em um primeiro momento, porque mais que o exercício de história comparativa seja sempre válido, existe o risco de se buscar, medir e comparar horrores que guardam características particulares. Em segundo lugar, porque esse exercício comparativo pode levar justamente a ignorarmos o que há de específico em cada caso, diminuindo a dimensão de cada um.

Carlos: O que acontece é que, muitas vezes, violações de direitos humanos, ou alguns outros eventos que são relacionados a direitos humanos, se utiliza a expressão holocausto. Mais por uma questão mercadológica, mais por uma questão dar voz a alguma coisa, do que realmente se utilizando de um critério conceitual. Pode parecer uma picuinha, mas não é. Por quê? Porque a gente tá se utilizando de uma expressão que ela diz respeito a um evento específico.

Ivan: Sim, sim, é que nem quando o Bush, por exemplo, declarou a guerra ao terror e disse que ia fazer uma cruzada pela democracia.

Carlos: Exatamente, exatamente…

Ivan: É que eu tenho a cruzada, eu… é completamente diferente. (risos)

Carlos: É, exatamente. O holocausto também… O fato do holocausto ser um episódio histórico, ele automaticamente se torna comparativo, e deve ser comparativo, porque se ele não for comparativo, como é que a gente vai transmitir, não é?

Ivan: Claro.

Carlos: Como é que a gente vai compreender, como é que a gente vai explicar algo que não pode se comparar com nada? Como é que a gente pode estudar alguma coisa? Como é que a gente pode transmitir? Então, ele tem que ser comparativo, pelo fato de ele ser histórico, de ele ser humano.

Filipe: De certo modo, nós temos genocídios ocorrendo cotidianamente. Lembrando que o genocídio, por exemplo, ele implica também em apagamento cultural, que é uma coisa que acontece, por exemplo, em boa parte da América Latina. Falando por exemplo, na África, né, nós tivemos a questão de Darfur, nem três anos atrás. Nós temos agora a questão do auto intitulado Estado Islâmico e seus desdobramentos regionais, como Boko Haram, na Nigéria, que podem ser de uma maneira mais bárbara, por assim dizer, né, que o diferencial do holocausto executado pelo nazismo foi o seu cinismo. A verdade é essa, né, é você usar todo um aparato de estado, é você fazer uma planilha de horários de trem extremamente pontuais para massacrar gente. Mas massacres, os massacres, eles continuam a existir, eles continuam ocorrendo. Hoje, literalmente. Então, é uma pergunta complicada de se responder porque eu acho que não é uma previsão que cabe, porque é algo que já acontece.

Ivan (narração): O Felipe bem apontou essa diferença essencial do nazismo em relação a outros massacres, seu rigor técnico, sua mecânica e planejamento. É isso que mais assusta. Talvez seja possível termos algum conforto em pensar que esse tipo de refinamento seja mais difícil de ser atingido nos dias de hoje, mas ainda assim eu me questiono sobre essa possibilidade, mesmo no ocidente, na Europa. E eu perguntei isso pra ele.

Ivan: Mas eu me refiro justamente a essa questão de uma apatia grande, institucionalizada, num estado que tenha… que use de aparatos estatais justamente contra um determinado grupo. Eu vou dar um… vou te contextualizar melhor essa pergunta, até baseado nas conversas que eu tive por aqui durante o programa. Em relação aos árabes na Europa, né, que nós temos uma islamofobia ali que tá, ao meu ver, está começando a ficar perigosa, e a ascensão do Estado Islâmico acaba piorando. Então, eu até tive uma conversa com o meu pai, esses dias, assim, que ele disse que não, isso jamais vai acontecer. Daí, eu disse não, mas aí você tá pensando em história em termos lineares. Vamos falar, por um acaso horroroso, que um Estado Islâmico da vida pega aí uma bomba atômica qualquer dia, explode em alguma cidade e, com isso, aquela islamofobia que já tem na França bastante disseminada, a ponto de por exemplo, eu tenho familiares que moram na França e uma coisa comum, aqueles pequenos atos do dia a dia, né, que mostram os horrores mais arraigados, eles já têm um termo bastante comum que quer dizer assim, “ah, o meu vizinho faz muito barulho”. Daí, descobre na verdade que ele é descendente de argelino, ou argelino, que é uma migração muito forte na França, e eles usam o termo “ah, mas ele não é francês de verdade”, entende. Ou seja, o que me preocupa quando eu vejo a relação principalmente da França e na Alemanha, por incrível que pareça, também, em relação daí já aos turcos, e russos também, tem bastante isso, de eles dizerem assim, “ah, esses caras aí, eles não são alemães ou franceses de verdade”. Coisa que, pra mim, eu já começo a sentir um cheiro daquele início de pré Segunda Guerra Mundial, assim, entende. Então, de repente, se acontece uma crise econômica mundial muito grande, pior que a de 2008, ou acontece uma coisa horrorosa como o Estado Islâmico faz alguma merda enorme aí, você vê possibilidade de isso acontecer de novo?

Filipe: Olha, a resposta que eu quero dar é não.

Ivan: Aham (risos).

Felipe: A resposta que eu acho que eu devo dar é “é possível”…é que eu acho que genocídio, pensar em genocídio na Europa ocidental, hoje, é um pouco forte. O que eu consigo pensar, cogitar, são questões como por exemplo, expulsões em massa ou dificuldades de imigrações, ou muros, literalmente falando, Até porque os exemplos que você citou é, por exemplo, os turcos estão na Alemanha a convite, né, a origem da imigração turca pra Alemanha é porque a Alemanha, na década de 60 e 70, estava crescendo muito economicamente, mas não tinha gente pra trabalhar, porque teve uma grande queda demográfica por causa da guerra. Então, eles convidaram imigrantes turcos. E depois da década de 90, teve muitos imigrantes da ex-Iugoslávia pra Alemanha. Então, são políticas a convite. E no caso da França, é por conta do antigo império colonial, né, principalmente no caso dos pied noir que você citou agora…

Ivan: Veja, na França, por exemplo, a Le Pen tá ficando cada vez mais forte, né? O Houellebecq já falou que acredita que ela vai ser presidente.

Filipe: Então, mas a política dela acho que dificilmente vai ser uma política genocida, seria mais uma política talvez de dificuldade de imigração. Mas, óbvio, as coisas podem escalar de tal forma que é difícil prever.

Ivan (narração): Eu fiz uma pergunta similar ao Carlos, no Museu do Holocausto.

Ivan: Se a gente ver a situação dos judeus antes da Segunda Guerra Mundial, e analisar hoje a situação dos muçulmanos e árabes em geral, na Europa, principalmente França, Alemanha, dá pra encontrar alguma similaridade, existe algum medo que aconteça uma tragédia das mesmas proporções, qual a sua opinião sobre isso?

Carlos: Olha, existem algumas diferenças, algumas semelhanças. As principais diferenças, elas estão hoje em dia, nas ondas migratórias, né. Mas as principais semelhanças que a gente pode identificar é justamente um sentimento de olhar pra aquela pessoa que tá ali como diferente de você, como um estrangeiro, como alguém que não faz parte daquele lugar. Isso acontece na Europa desde os anos 60. A gente via isso em Londres muito, com outras comunidades que se estabeleceram ali. Na Europa, você tem grandes regiões com comunidades de imigrantes. É muito perigoso o discurso da xenofobia e temos que ficar em alerta com esse tipo de ação, porque ela é muito perigosa.  Essa é uma semelhança que a gente pode identificar, o fato que existem ainda pessoas que olham para aquele que é considerado diferente e não importam se aquela pessoa tem a mesma carteira de identidade que você, que tem os mesmos direitos, os mesmos deveres, porém é visto como um diferente, como um ser estranho.

Filipe: Você ter políticas de genocídio, você ter climas de extermínio contra curdos, contra yazidis no Oriente Médio, contra a população de Darfur na República Centro-Africana por questões religiosas. Você ter essa série de conflitos étnicos, de massacres étnicos na África central, no Oriente Médio, faz com que esses países, que vivem em um clima de instabilidade, que sempre vai esparramar para região, pois o conflito nunca fica centrado na fronteira. E isso vai fazer o quê? Deslocamento de refugiados, que vai gerar uma corrente migratória e que vai chegar no país mais estabilizado, porque a pessoa quer primeiro ficar viva, ela não quer atrapalhar a vida do francês, ela quer ficar viva. Só que o francês que vai ter a sua vida, entre aspas, atrapalhada, aí ele vai querer expulsar esse cara. Então, as situações de extermínio na África e no Oriente Médio serem, falando de forma otimista, resolvidas traria um alívio também para a Europa. Agora, na Europa, eu acho inegável que estamos em um momento de maiores restrições de imigração, um momento muito sensível por atentados terroristas. Aí, nós temos uma islamofobia, nós temos o ódio ao outro, seja ele quem for. Mas uma política de genocídio institucionalizada, como na Alemanha Nazista, hoje na Europa ocidental, eu acho muito improvável.  Como eu disse, é um pouco a resposta que eu quero dar. Porque se eu virar para você e disser, “Não, a França, em até vinte anos, vai começar a criar campo de extermínio para muçulmano, para árabe, para berbere…” Aí, sei lá! Aí, eu vou desligar o Skype e entrar em depressão.

Ivan (rindo): Eu acho que todos vamos.

Filipe: Mas eu acho que, assim, foi uma pergunta muito interessante que você fez. Como você pôde perceber, me fez pensar. Eu gaguejei algumas vezes. Porém, eu acho que é importante lembrar que são problemas correlacionados. Olha só! Para ficar no exemplo mais próximo da nossa realidade: cinco anos atrás, quando você estava lá vendo TV e aparece lá um dos piores terremotos da história no Haiti. Naquele momento, você pensou que aquilo estaria conectado com a sua vida diretamente?

Ivan: Não.

Filipe: Não necessariamente. Hoje, especialmente em São Paulo, você tem uma grande discussão sobre a presença de imigrantes haitianos, que são decorrências diretamente da total crise humanitária que vive o Haiti, agravada pelo terremoto de 2010. Então, é importante notar que esses eventos globais, sejam naturais ou de ódio ou políticos, estão ligados. O tsunami no Bangladesh faz o imigrante ir para Indonésia, para Austrália. O terremoto no Haiti faz o imigrante vir para cá. O massacre do autointitulado Estado Islâmico no oriente médio, como o próprio Obama disse, não é nem Estado e nem Islâmico, na região da Síria e do Iraque faz com que esse imigrante ir para a Turquia ou tentar ir para a União Europeia. É importante ter essa noção que as coisas estão ligadas. E vida de imigrante nunca é fácil, principalmente se você é de uma etnia diferente. Imagina a vida de um africano negro islâmico na Europa hoje? Não é uma vida fácil. Mas se a situação no país dele estivesse mais confortável, ele, talvez, nem estivesse lá.

Ivan: Você deve estar vendo o que está acontecendo com a questão dos muçulmanos na França, na Alemanha. Você, como judia e com uma mãe que passou por um campo de concentração, sente? Como você se posiciona? Você tem medo de uma coisa parecida com muçulmanos?

Noemi: Tenho, tenho. Eu tenho muito medo sim. Eu acho que na Europa tem muita xenofobia. A Europa é o berço desse chauvinismo, desse fanatismo, como minha mãe falou. Eles têm um peso histórico de tradição, que é de muita segregação, muito isolamento. Eles têm dificuldade de acolher pessoas, pois também é um continente muito pequeno, é tudo muito difícil, muito frio. Enfim, cada um tem sua história. Mas aconteceu muita perseguição, por muito tempo, então lá é tudo bem complicado. Eu acho que se surgir outra coisa parecida, será lá mesmo na Europa. Mas, sim, eu tenho muito medo. Na França já está ocorrendo muito antissemitismo, tem vários judeus saindo da França e indo para Israel. Mas a islamofobia lá na França é gigantesca! Eu acho que na Alemanha também, mas na França eu tenho certeza que é. Eu tenho amigos que moram na França que me contam. Ano passado, eu passei um mês morando lá e vi como os árabes e os africanos vivem lá, eles são muito isolados.

Carlos: Qualquer caso, por menor que seja, de xenofobia na Europa tem que ser visto com muito cuidado. E nós podemos transportar essa ideia aqui para o Brasil. É muito importante a gente ter consciência do perigo desse tipo de ação. Isso ficou muito claro para gente aqui no período eleitoral do ano passado. Nós percebemos nas redes sociais, a gente percebeu no discurso do dia a dia como esse ódio, como essa diferença se aflorou. Também não é uma coisa nova, mas, aqui no Brasil, isso ficou muito latente nas eleições do ano passado, com a questão dos nordestinos, com a questão do sul do país. Isso também é um eco! Um eco que pode ser identificado e que pode ser trabalhado com as lições que nós deveríamos aprender do Holocausto. Também não é só na Europa que isso pode acontecer. Aqui, no nosso quintal, acontece! E isso é perigosíssimo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): A história de Lili e de tantos outros sobreviventes possui uma lição importante. Mesmo com tanto ódio no mundo, a vida, de alguma maneira, insiste em continuar. E mesmo para aqueles que passaram por traumas tão grandes, gerando às vezes comportamentos tão duros com seus filhos, como foi o caso de Aron, ainda sim existe a potência de se gerar carinho.

Ivan: Qual a melhor lembrança que você tem dele?

Stela: Do meu pai? O leite quente.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Stela: Eu saía… Quando eu saía à noite, assim, meu pai me esperava. Ele sempre me esperava. Às vezes, pra brigar, em baixo, né, em um prédio, ou até esquina. Mas o meu pai sempre me esperava. Tinha meus horários pra voltar, 10, 11h, sei lá… E sempre me esperava. E quando eu chegava, era um (ela solta um suspiro de espanto), né. E a gente ia pra cozinha, tomar leite quente. Aí, ele fazia leite quente. A gente tomava leite quente, tinha pão, era pão preto que tinha lá no Bom Retiro. A gente comia pão preto com leite quente. Até hoje, quando eu quero me acalmar, eu faço um leite quente, é… Assim, falar no meu pai… O sinônimo do meu pai, de bom é leite quente, de ruim era enxaqueca. Essas duas coisas…

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: E se você pudesse, hoje… vamos dizer, você pudesse, hoje, voltar no tempo e falar com a Lili que tá no campo, o que você diria pra ela?

Lili (entre risos): Não sei…

Naomi: (Incompreensível), mãe…

Lili: O quê?

Naomi: Se você pudesse voltar no tempo e encontrar a Lili lá no campo, o que você diria pra ela?

Lili: Ia dizer que fazer assim como eu fiz… (Naomi e Ivan riem) O que eu podia fazer? (ela pergunta entre risos)

Ivan: Imagina o que ela tá sentindo, você no passado, o que você tava sentindo naquela hora, como você tava…

Lili: Eu não imagino. Não imagino…

Ivan: Uhum. Mas você não consegue, daí, pensar em alguma coisa pra dizer pra ela?

Lili (interrompendo): Não, por isso falou que, eu sozinha, às vezes, penso que ia fazer. Por isso falei que não sou vingativa. Não conseguia fazer nada.

Naomi: Mas se você pudesse ter feito alguma coisa diferente, o que você faria de diferente?

Lili: Não sei…

Naomi: Você não ia… Você ia fazer tudo igual?

Lili: Acho que também era criança. 17, 18 anos é uma…

Stella: Não, por isso a pergunta, mãe. Com a cabeça de hoje…

Lili: Tô falando…

Stela: … tudo que você viveu até hoje, se você…

Lili: Não imagino, não.

Stela: Se você pudesse… Se o tempo fizesse assim, e as duas Lilis se encontram, você com a Lili de 17 anos, você ia falar alguma coisa pra ela?

Lili: Não.

Stela: Nem um conselho? Nada?

Lili: Não sei. Não sei, não.

Ivan: Que significa que foi… que conseguiu aguentar bem o campo, então. Não foi…

Lili: É, ou aguenta ou mata. Sei lá…

Ivan: Não tinha escolha, né.

Lili: Não.

Naomi: Mas se você pudesse voltar no tempo, você, de novo, iria entrar naquela fila pra ser a escolhida pra ir pra cozinha?

Lili: Esse foi um… foi uma sorte, né.

Naomi: Foi…

Ivan (narração): Após a conversa naquela tarde, havia uma parte da história de Lili que não me saía da cabeça. Quando ela arriscou ser selecionada para a cozinha, como forma de sobrevivência, ela tentou uma vaga entre as 40 meninas. Mas, ao fazer isso, alguém perdeu seu lugar. Eu não consigo imaginar o que faria se fosse ela. Não sei sequer se essa pergunta é justa. Mas ficava a dúvida, o que teria acontecido com aquela menina? E o que Lili pensava sobre isso?

Ivan: Você chegou a parar pra pensar, já, o que aconteceu, de repente, com a menina que foi tirada, daí?

Lili: Como?

Ivan: você se sentiu culpada, por causa da menina que saiu?

Lili: Ah, isso tô pensando. Que… Por minha causa…

Ivan: Ela pode ter sobrevivido…

Lili: Sei lá…

Ivan: Ela pode ter sobrevivido.

Lili: É, pode ser que foi, sobreviveu. Eu acredito no destino. Você acredita? (as suas filhas riem ao fundo)

Ivan: Acredito. Depois de conhecer você, eu não tenho dúvida. (todos riem)

Naomi: Essa é a grande discussão entre nós duas. Ela acredita no destino, e eu, não (Ivan ri).

Lili: Mas acho que tem sim. Ah, foi muita milagre, né. Muita coisa. Como… isso… isso, penso muitas vezes. Como que aguentei o frio? Agora, só agasalhada e sinto frio. E como que a gente sobreviveu? Isso, penso muitas vezes. Não dá pra acreditar, verdade, não dá. Sem… sem alimentar… Alimentação, um pedaço de pão duro que tínhamos dividir para nós três. E a gente sobreviveu.

Ivan: Que lição você tirou de tudo isso?

Lili: Como?

Ivan: Qual lição você tirou?

Lili: É isso, que o destino.

Ivan: Que o destino… Você… Não tem outra explicação…

Lili: É… Não tem outro jeito.

Naomi: Eu acho que tem uma coisa que você sempre fala pra a gente. Que você fala que a gente consegue aguentar tudo, tudo depende da força de vontade. Não é essa tua lição?

Lili: É isso agora. Mas esse é diferente. Esse parece um milagre (segue-se um breve silêncio). ME LARGUE! (Ivan ri)

Ivan: Vamos te largar, então. Eu acho que só tenho a agradecer, então. Obrigado. Você quer passar uma mensagem final? Um último comentário?

Lili: Para nunca acontecer, para ninguém.

Ivan: Você tem medo que aconteça de novo? Não com os judeus, mas de repente, com…

Lili: Ah, não acontece em Iraque a mesma coisa? Imagina, por causa que… que foi na escola, para matar alguém por causa que ela quer ir na escola. É, o chauvinismo é a pior coisa que tem.

Ivan: Você acha que a humanidade aprendeu alguma coisa?

Lili (hesitante): Tem… Tem lugares que sim. Tem lugares que não. Mas esse… Esse religião muito forte é… Não é bom, não.

Ivan: você, hoje, não é religiosa forte, então?

Lili: Não… Meu religião é a bondade. Eu gosto de dar. Isso… Isso eu acho religião. Mas para ser tão religioso para matar alguém, por causa que não é igual a ele, isso eu acho contra. Muito contra.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Já era  noite, quando eu saí do prédio, em Higienópolis. A rua estava tranquila e, apesar de já não ver mais famílias judias circulando, eu me sentia rodeado delas. Como se os fantasmas daqueles que morreram, agora, me acompanhassem no caminho para o metrô. E até hoje eles me acompanham. Lembrando-me, diariamente, do privilégio que foi conversar com Lili e suas filhas. E também do dever que temos em transmitir essa mensagem. Nunca nos esqueçamos. Nunca.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Chegamos ao fim da jornada da história de Lili Jaffe. E eu espero que a experiência dessa primeira temporada do Projeto Humanos tenha causado algum efeito positivo em você. E qual o futuro do Projeto Humanos, agora? A minha intenção inicial era de que a primeira temporada fosse um conjunto de várias histórias isoladas, cada programa sendo uma narrativa diferente. Mas enquanto eu trabalhava na história de Lili, e ao ver a quantidade de caminhos que ela aponta, eu me vi na obrigação de dedicar essa primeira temporada inteira para ela. Contudo, há uma outra história que eu havia montado, que fazia parte da ideia original deste podcast. Ela já está pronta e será lançada na semana que vem. Então, vocês terão uma faixa bônus do Projeto Humanos. O nome deste episódio é “A verdade nua e crua”. E vocês verão um teaser dela no final deste episódio. Além disso, daqui há algumas semanas, no Anticast, eu lançarei as entrevistas completas que fiz com o Carlos Reiss e Filipe Figueiredo, aqui para o projeto humanos. Eu recomendo fortemente que ouçam, pois há muitas outras histórias e detalhes sobre o Holocausto, especialmente sobre a história da Iugoslávia, que são interessantíssimas e não couberam aqui nos programas. E o que acontecerá no futuro? Bem, isso depende de várias coisas, especialmente de vocês. Sim, eu quero fazer uma segunda temporada. Pode ser uma parecida com essa, pode ser algo totalmente diferente. Pode ser daqui há um mês… Não, daqui há um mês é muito rápido. Mas, com certeza, ano que vem sai alguma coisa. Eu não sei. Eu não sei o que vai acontecer, na verdade. O que eu sei é que eu preciso de duas coisas. A primeira é uma coisa chata, mas eu tenho que dizer, que é dinheiro. Eu quero comprar equipamentos melhores, de repente, ter uma equipe de gente sendo paga para me ajudar, produzir novos programas, treinar pessoas, tudo isso. E como que você pode ajudar? Tem várias formas. Se você tem alguma empresa que gostaria de ter seu nome anunciado aqui no Projeto Humanos, ou em qualquer podcast do Anticast, como ele mesmo, ou o 3 Páginas, o Não Obstante, entre em contato conosco. O seu apoio pode ser significativo nos rumos que vamos tomar. E mesmo se você não tiver uma empresa, pode continuar contribuindo mensalmente no nosso Patreon. O Patreon é a plataforma na qual arrecadamos doações mensais para o Anticast. Você pode doar quantias desde US$ 1 até US$ 50, o que for melhor pra você. Eu recomendo que faça pagamento por PayPal, porque cartão de crédito, às vezes, dá um probleminha. Mas se você tiver o teu cartão de crédito relacionado com teu PayPal, já dá ótimo. E US$ 1 por mês, se todos os nossos ouvintes derem US$ 1 por mês, a gente consegue fazer muita coisa legal. Bom, esta é a primeira coisa que eu preciso, que é chata, que custa dinheiro, enfim. A segunda já é mais leve. A segunda é de graça, na verdade. Ou melhor, você vai gastar apenas tempo. Eu preciso de histórias. Sim, eu quero ouvir boas histórias de você ou de pessoas que você conhece. Se você conhece algum causo legal, seja trágico, cômico, bobo, edificante, enfim, se você acha que tem algo que vale a pena ser contado, eu quero saber. Há duas formas de você me enviar sua história. Um, você pode me enviar ela por email, para contato@projetohumanos.com.br; ou, dois, no nosso site projetohumanos.com.br; no formulário que tem lá, dizendo “envie a sua história”. Eu lerei todas. E se eu me interessar, eu vou atrás de você ou das pessoas que você me indicou pra gravar. E para encerrar de vez essa temporada, eu só tenho, agora, que agradecer a todos que acompanharam o Projeto Humanos, nestes episódios, e reafirmar que foi um prazer contar com seus ouvidos, mentes e corações. Foi um grande aprendizado para mim. E eu espero que tenha sido pra vocês também. E mesmo se você achou minha voz chata, ruim, fanha, qualquer coisa assim, se você acha que ela não se encaixa nesse tipo de podcast mais narrado, eu digo  que eu concordo com você. Mas eu espero que essa estrutura e essa proposta inspire novos podcasts. As possibilidades dessa mídia são infinitas. E eu confio que coisa muito bacana ainda está por vir. Espero sinceramente que venha de você. Então, vamos àquelas frases finais que vocês já estão acostumados. Este episódio do Projeto Humanos foi possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Obrigado também a Gabriela Giannini, que me ajudou em algumas transcrições; Carlos Reiss, do Museu do Holocausto de Curitiba, que me auxiliou em vários pontos da pesquisa sobre o Holocausto; Filipe Figueiredo, do site Xadrez Verbal, que me ajudou com questões políticas sobre a história da Iugoslávia. Obrigado também a Domenica Mendes, do site Leitor Cabuloso, que leu algumas passagens do diário de Lili. E é claro, eu não posso deixar de agradecer Lili, Stela e Noemi, que me receberam de braços abertos, e cederam seu tempo e memória para que este programa ocorresse. A trilha sonora utilizada é de Kevin Macleod, do site incompetech.com; e do site Audio Network. Eu sou Ivan Mizanzuk e vou ficando por aqui. Nos vemos até o próximo encontro. Tenham uma boa vida, se possível, com muitas histórias pra contar.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Semana que vem, na faixa bônus do Projeto Humanos…

Voz: Numa sexta-feira de manhã, eu vim pra aula, normal. Era frio, eu lembro que eu tava com blusa de lã e calça, Eu tava na aula de Projeto, eu desci pra comer e todo mundo tava me olhando. Apontando, me olhando. O pessoal da faculdade inteira, Era Engenharia… Tanto que eu… Tinha uma mesa cheia de pessoas que eu sei que estudam Engenharia, que conheço de vista. Todos levantaram, começaram a bater palma. As meninas apontando, e eu não entendi. Pensei, meu deus, eu tô linda hoje, que eu não percebi. Eu tô com uma roupa normal. E eu vi meninas… Grupo de meninas, assim, de duas, três meninas mexendo no celular e apontando. Peguei, voltei pra sala. Entrei na sala. Algumas pessoas da sala também tavam me olhando. Eu vi meninas passando o celular de mão em mão. Mas não achei nada de mais, e fui embora. Quando… Nesse dia, eu tinha combinado de almoçar com meu namorado, e ele me encontrou. Ele tava bem tenso. Ele falou, “olha, eu preciso conversar com você.” E daí, o que foi? Daí, ele… “Tal menina…” Que era uma antiga ficante dele, é… “ela tá com as suas fotos.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Giancarllo Palmeira, Henrique Pinheiro, Aline Koroglouyan, Sharisy Pezzi, Mariana Diello, Sidney Andrade. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Jean Carlos Oliveira Santos