4 – As Filhas da Guerra

31 de agosto de 2015

Lili e seu marido tiveram dificuldades em transmitir suas histórias para sua família, ao mesmo tempo que a comunidade judaica lidou de maneiras diversas com o ódio e sentimentos de vingança.

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Museu do Holocausto de Curitiba
Xadrez Verbal

Transcrição

Ivan (narração): Olá pessoal, aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Neste quarto episódio, acompanhamos os efeitos que a guerra trouxe para a vida de Lili, especialmente agora que ela casou-se com outro sobrevivente, Aaron Jaffe. E a pergunta chave aqui neste ponto pode ser, como reconstruir sua vida, sua família, sendo marcado por aqueles horrores do passado? Como que eles falariam sobre isso com as filhas que, um dia, viriam? Mas antes de entrarmos nessas questões, eu gostaria de voltar um pouco no tempo. Naquela noite em que ela e os outros prisioneiros ainda estavam nas mãos dos alemães, já não mais em Auschwitz, mas na fronteira com a Dinamarca, com a garantia de que, se a Cruz Vermelha não viesse, eles seriam mortos, pois já não aguentavam mais de fome.

Ivan: Mas os alemães, então…

Lili: Já sabiam que estavam cercados, com os americanos.

Ivan: Eram os americanos que foram lá?

Lili: É.

Ivan: Não foram os soviéticos?

Lili: Então, eles já sabiam que era, que acabou a guerra. Então já queriam nos ajudar.

Ivan: Por que você acha que eles quiseram ajudar, então?

Lili: Porque eles também sofreram. Aquela hora eles viram o sofrimento, como a gente sofreu.

Ivan: Porque tavam passando fome?

Lili: É.

Ivan: Mas é que eu realmente, eu acho que é a primeira vez que eu to ouvindo um relato assim de alguém que passou por uma experiência de campo e se compadeceu com o próprio soldado que tava te aprisionando. Você, como… nunca te chamaram a atenção assim, dizendo “como é que você pode ter compaixão por um cara desse”?

Lili: Não compaixão, eu não tenho compaixão. Eu falo que não conseguia a vingança ou matar alguém, eu não ia conseguir.

Ivan: Mas não dava um sentimento de satisfação de ver que ele tava passando pelo mesmo que você?

Lili: Naquela hora a gente se parecia igual. Porque não era ruim, ela falou que “não vamos matar vocês porque vai chegar ajuda”. Então, aquela hora, acho que era a gente.

Noemi: Mas você não sentiu alegria de ver que eles estavam sofrendo também?

Lili: O que é… A gente nem sabia que é alegria (risos ao fundo).

Ivan (narração): Da conversa que tive com a Lili, essa foi a coisa que mais me surpreendeu, e que mais serviu de exemplo para mim. A ausência de ódio. E para a minha surpresa, ao estudar sobre outros relatos, este parece ser um comportamento bastante comum entre os sobreviventes do Holocausto. Quem comenta sobre isso é Carlos Reiss, do Museu do Holocausto de Curitiba.

Carlos: Eu nunca conversei com qualquer sobrevivente, eu nunca assisti nenhum depoimento de sobrevivente, seja ele ao vivo, seja ele gravado, que tenha dito que existe algum tipo de ódio. Ódio a gente não combate com ódio. Ódio a gente combate com amor e com educação. E eles têm muito claro, passados muitos anos depois disso. Os anos, anos de vida somados ao trauma, somados à essa sabedoria que naturalmente se consegue com os anos… é muito clara essa ideia de que não há nenhum tipo de ódio.

Ivan: É, mas os filhos já se nota um pouco mais desse ódio, né?

Carlos: É, eu já não sei se eu posso chamar isso de ódio, mas é uma espécie de… se pode dizer que a próxima geração, ela já tem uma inquietação muito mais forte. Aquela ideia de que… é normal também, normal tanto os filhos, quanto os netos… isso é uma coisa que nós… Quando falo nós, o Museu e as instituições que trabalham com o Holocausto. A gente precisa trabalhar isso muito bem, que aquela ideia de tirar essa dose sentimental de vitimização, que isso dificulta o processo educativo. Isso é problemático do ponto de vista educativo. Mas é mais comum ver, na segunda geração, nos filhos e até mesmo nos netos, uma inquietação, às vezes até um discurso mais radical em relação à tudo aquilo que aconteceu. Eu não vou chamar de ódio porque cada caso é um caso…

Ivan: Claro, claro.

Carlos: …mas isso é muito diferente em relação aos próprios sobreviventes.

Ivan (narração): Mas eu me perguntava como será que suas filhas encaravam isso. Especialmente a Noemi, que se esforçou tanto em publicar o diário da mãe.

Ivan: Você divide dos sentimentos dela ou você tem sua opinião diferente?

Noemi: Ah, acho que é muito diferente, tem uma coisa…

Lili: Você imaginou…?

Noemi: Ah, eu sei que é uma coisa muito forte para mim o fato dela ter passado pelo Holocausto, desde que eu sou muito pequena. Eu ia na escola, eu lembro que eu me sentia muito diferente das outras crianças. Porque, como eu sou bem mais nova que as minhas duas irmãs, eu sou de uma geração cujos pais não estiveram no Holocausto. Então, eu era a única na escola, que a minha irmã provavelmente tem amigas cujos pais também estiveram no Holocausto, mas eu não. Então, eu me sentia muito diferente dos meus amigos por causa disso. Porque os meus amigos tinham avós que estiveram no Holocausto e eu não. Para mim era a mãe. Então, eu me sentia ao mesmo tempo, inferior e superior. Era um sentimento muito misturado, eu achava que eu era melhor do que eles porque meus pais tinham sofrido mais. Não sei te explicar isso daí, mas era assim que eu me sentia. Isso era uma coisa… É verdade que eu me sentia assim. Como seu eu soubesse mais sobre a vida do que eles, porque eles tinham tido mais facilidades do que eu. Mas nem é verdade, porque minha infância foi muito boa. Minha irmã não, minha irmã sofreu muito porque ela… quando ela nasceu meus pais não tinham muito dinheiro, meu pai batia nela, eles… ela foi criada pela minha vó. Eu não, eu fui criada no maior conforto, eu fui criada por… eu tinha três mães, e meus pais já tavam bem de dinheiro, falavam português, minha vó já não morava mais lá. Mesmo assim eu me sentia especial.

Ivan (narração): A diferença de idade entre as irmãs representa algo crucial a entendermos os efeitos póstumos do holocausto. A Noemi, sendo a mais nova, passou por experiências diferentes daquelas que a irmã. E mesmo o pai delas, Aaron, encarava os traumas da guerra de forma totalmente diferente da própria Lili.

Stela: Sou Stela Jaffe de Lima Forte, tenho 64 anos e sou avó (risos). Hoje sou avó (risos). Não sou mais nada, sou avó.

Ivan: Ah, que é isso…

Stela: Verdade.

Ivan: E é filha da Lili.

Stela: Sou filha… isso.

Lili: E arquiteta (Stela nega). Arquiteta de interior, né?

Stela: Não, minha profissão é publicitária. A minha relação com… meu pai foi muito… meu pai era um cara que tinha… ele era muito sofrido, ele era uma pessoa depressiva, ele tinha momentos que, chegava a ser dias, que ele ficava quieto, sentado numa poltrona. Ele tinha muita enxaqueca. Então ele ficava assim, quieto, na dele. Ele nunca foi… ele sempre foi de contar. Ele foi muito carinhoso comigo depois que eu fui maior. Ou eu fui perceber isso depois que eu fui maior. Mas de pequena, ele foi muito enérgico comigo. Extremamente enérgico. Ele chegava a me por de castigo….

Noemi: Batia…

Stela: Batia, eu lembro a cena dele…

Lili: Batia? Não batia.

Stela: Batia.

Noemi: Batia com cinto, mãe. Com cinto.

Stela: Ele me ameaçava muito com… eu era muito…

Lili: Cabeça dura.

Stela: É, teimosa. E ele falava “faz isso” e eu falava “não faço”, “faz!” “não faço”. E ele adorava pegar o cinto, dobrar e esticar. (risos ao fundo). E isso era uma… eu me lembro que eu defendia virando a cadeira, tipo leão e domador. E eu virava a cadeira e ele vinha e a gente se peitava muito. Era uma coisa muito…

Noemi: Ele te punha de castigo naquele…

Stela: No banheirinho embaixo. Para mim eram horas, na verdade deveriam ser minutos que ele me deixava. Tinha um banheirinho, tipo um lavabo pequenininho na casa que eu morava, e tinha uma trinca por fora…

Lili: Ele, quando castigava ela, ele entra no outro quarto, chorava.

Ivan (narração): Ela disse que depois que o Aaron castigava a Stela, ele entrava no quarto e chorava.

(TODOS RIEM)

Stela: Isso eu não via (risos). Mas ele castigava, né. Ele… para ele, ele tava… ele ainda tinha mentalidade, acho que de campo, de que… de que você resolve a coisa com castigo, né? Meus pais não tem educação, eles pararam no ginásio. Então, é… e eles foram educados assim. Então, é o que eles trouxeram. Até eles se aculturarem, até eles… demorou o tempo do meu crescimento.

Ivan: Então, você acompanhou bem o processo de crescimento.

Stela: Eu cresci com eles, eles cresceram comigo, acho que é o contrário, eles cresceram comigo, se formaram, fizeram a vida, enquanto eu fui crescendo e eu era o símbolo para eles de um… eu era um sonho, né eu, acho que de repente eu ter nascido foi uma coisa inesperada, assim, milagrosa para eles, que nunca esperavam nem estar vivos, quanto mais ter uma filha. E ele exigia demais de mim, meu pai sempre exigiu muito de mim e quando eu não correspondia, ele… Não é maltratar, não posso chamar isso de maus tratos, ele era muito jovem, ele não tinha nem trinta anos. Então, sair de guerra, sem falar o idioma, a cultura dele era mínima

Lili (interrompendo): Ele era um homem muito bom.

Stela: Não, ninguém discute isso, ele era muito bom, mas ele era muito enérgico. E aí, ele com o tempo, ele foi relaxando e se encontrando também né, porque ele estava completamente desencontrado. Às vezes, eu penso como a nossa vida aqui é linear , redondinha, a gente mora aqui, fala o idioma, nasceu, cresceu, casou, teve filhos. De repente, eles passaram por uma guerra, saíram de um país que falava o idioma, chegaram aqui sem entender porra nenhuma do que estavam fazendo, não sabia o que fazer da vida. Meu pai era um mascate, pega roupa daqui, dali, para vender, não tinha ideia do que acontecia com a vida dele. E aí, ele pariu uma filha, é um negócio, assim, surreal. Como é que ela vai viver, como ele vai sustentar, como eu vou fazer, o que vai acontecer? Então, foi. Meu pai começou a conversar comigo mesmo, quando eu tinha meus oito, dez anos. Aí, eu me lembro que a gente passava, às vezes, a noite, ele adorava me dar… Tomar leite quente. E a gente ficava na copa, na cozinha, a gente ficava conversando e ele contando… Ele contava histórias que eu nem entendia na época. Nem posso me lembrar pra te falar. Mas eu me lembro que ele contava muita história. Não era branca de neve, a história dele, era a história do Tito, era a história da Iugoslávia. Era a história, não da guerra. Ele falava de como era a Iugoslávia antiga, da época que era  um país só, né. Como era, como era o Tito, como era a monarquia. E aí, ele falava assim da guerra, que ele tinha muita raiva da Alemanha. Nós nunca tivemos nada alemão em casa, nem carro, absolutamente nada, nada.

Ivan: Você como designer querendo…

Stela (interrompendo): Eu não consigo imaginar, eu nunca fui para a Alemanha. Isso é uma coisa atávica minha, eu não me imagino entrando na Alemanha.

Ivan: Você não consome produtos alemães?

Stela: Não, eu consumo. Já tive, adoro Nivea. Eu tenho (risos), não é isso, não é isso. Mas, assim, o país, uma vez eu estava na França e a gente estava num pequeno restaurante na Provans, e eu entrei com o meu marido e tinha um grupo alemão que levantou e começou a cantar. Eu não me lembro o que eles cantaram, devia ser uma música qualquer, mas eles levantaram e começaram a levantar as taças e cantar. Eu fiquei tão incomodada que eu saí do restaurante, eu não consegui ficar. E eu não passei por isso né, então.

Ivan (narração): Os traumas da guerra se manifestam de forma diferentes entre os sobreviventes do holocausto. E o ritual de saber contar suas histórias para seus descendentes, a primeira geração após o trauma, foi um processo longo e doloroso, especialmente para aqueles filhos que, como Estela, acabaram crescendo junto com seus pais.

Ivan: Você é a filha mais velha?

Stela: Sou.

Ivan: Nascida em?

Stela: 50.

Ivan: 50, então você ainda pegou boa parte da história da sua mãe.

Stela: Eu não peguei, porque… É assim, minha mãe e meu pai foram falar da história deles…

Lili: Nós chegamos em 49.

Stela: É, muito mais tarde. Primeiro porque eles não tinham como se comunicar, eles falavam… Eu nasci aprendendo alemão e iugoslavo, eu não ouvia português, só na escola. E eu fui para a escola com cinco anos, seis. Então, eu escutei muito pouco português. Eles não sabiam falar o idioma e eles não falavam da história deles. E eu não sabia o que cutucar, porque eu também não sabia nem direito da onde eles vinham. De pequena, você não sabe nada. Quem começou a cutucar foi a Noemi.

Carlos: Eu posso dizer por experiência própria também, porque isso aconteceu na minha família. Meus quatro avós foram sobreviventes e eles passaram décadas sem falar. É, tem a questão do trauma, tem a questão da reconstrução da vida deles em outro lugar. Os filhos desses sobreviventes, também, mesmo nascidos no Brasil ou em qualquer outro lugar, também carregam esse trauma, carregam essa ideia de que a família começou com o pai, com a mãe, nunca se falou em outros familiares. O processo de que nós chamamos de formação de uma memória coletiva do holocausto, uma memória coletiva universal do holocausto foi longo. Ele foi lento, ele foi doloroso. Eu posso dizer para você que a necessidade de se contar essas histórias,de se externar essas coisas, que hoje em dia para a gente é tão, do ponto de vista educativo, tão natural, necessário, ele é uma formação dentro de um contexto dos anos 70. Fim dos anos 70 e início dos anos 80. Até esse período, os primeiros trinta anos pós holocausto, ele foi de um processo lento, doloroso, difícil, de formação dessa memória coletiva.

Ivan: Você nunca…?

Stela: Eles falavam que vinham da Iugoslávia, que passaram pela guerra. Mas eu fui saber o que é guerra com dez, doze anos de idade. Antes, você não sabia. A criança era muito poupada e a escola que eu fui era o Renascença, lá no Boa, eu morava num gueto realmente… Eu morava no Bom Retiro, onde só tinha judeu, numa escola judaica, com amigos judeus, frequentava o clube judeu. Então, assim, era aquela redomazinha, era um gueto. E eu não tinha a noção, para mim meus pais chegaram da Europa e eu fui saber que tinha havido a guerra, isso quando eu já estava no ginásio, porque primário, você…

Ivan: Mas os próprios judeus da comunidade judaica não falavam disso?

Stela: Não, meus parentes, nada, nunca se discutiu.

Ivan: Na escola?

Stela: No ginásio, sim, começou a se falar de uma segunda guerra, de alguma coisa, mas não era uma matéria, e fazia muito pouco tempo da guerra ainda, né. 50, fazia cinco anos .

Noemi: O holocausto começou a ser usado em sessenta e cinco, vinte anos depois.

Stela: Não se falava, era uma coisa meio… Não era um tabu. Mas hoje, olhando para trás, na época eu não sabia. Existia, assim, uma certa neblina sobre isso, para que não… Ainda machucava muito. Então, meus pais não falavam. Não se fala na família. Meus pais sempre fizeram… Sexta-feira existe o sabá. Minha mãe sempre fez jantar de sexta-feira a noite, vinha algumas pessoas da família em casa, tinha o irmão da minha avó, que a gente chamava ele de tio-avô, vinha na minha casa. Depois, jogavam buraco. Isso existia todo um ritual. Mas era tudo muito bem, tudo muito bom, não existia… Ninguém se lembrava mais. Então, eu não cresci com isso. Eu fui saber da guerra, que existiu e que meus pais viveram a guerra, tudo isso com dez, quinze anos. E a Noemi já cresceu ouvindo um pouco mais, porque eu tinha doze anos quando ela nasceu. E aí, eu já tinha treze, quatorze, quinze anos. E assim, começamos a falar sobre guerra. E aí, sim, meus pais tinham já… Conseguiam verbalizar, pelo sentimento e pela língua, pelos dois. Era muito recente pra eles tudo aquilo, né. Acho que tinha que decantar um pouco a coisa, para você poder conseguir até falar a respeito.

Ivan (narração): O que percebemos com esses relatos, então, é que nem mesmo os próprios sobreviventes tinham noção do que havia sido o holocausto como um todo. Havia tanta dor, sofrimento e até dificuldades de comunicação, que apenas anos mais tarde, que o assunto passou a ser debatido, mais inclusive pelos seus filhos e especialmente netos, refletir sobre o tema tornou-se tarefa deles, gerando grandes diferenças de percepção emocional.

Ivan: Mas, por exemplo, sua mãe não guarda mágoa.

Noemi: Eu guardo

Ivan: Você guarda?

Noemi: Eu guardo.

Ivan: Isso que eu quero saber.

Noemi: Eu tenho até mágoa porque ela não tem mágoa.

Ivan: Eu imagino.

 

(LILI RI AO FUNDO)

Noemi: Eu tenho raiva por ela. Eu guardo… Eu tenho…

Lili (interrompendo): Mas o que, o que você ia fazer?

Ivan (narração): A Lili está fazendo essa pergunta para mim.

Ivan: Eu não sei… De verdade, qualquer coisa que eu falar vai ser injusto. Porque eu não tenho… a minha família, por exemplo, lá em Curitiba, a maioria é Polonês e Ucraniano. Família é polonesa. Então, eu não tenho nenhum pouco disso, sabe. Então, eu não tenho noção do que vocês passaram. Do que você passou. Ou do que um judeu passa. Até porque eu fui criado como católico. Então, eu não sou minoria, né. Eu nunca fui minoria. Eu sempre fui branco, heterossexual, classe média, homem (Lili e Noemi riem)… E católico, sabe. Então, em Curitiba, então, eu nunca tive problema disso. Eu nunca me senti por fora. Então, eu nunca senti o peso de alguma coisa na minha vida. Então é por isso que eu pergunto, porque de certo modo também quem passou isso foi sua mãe. Vocês aqui no Brasil, querendo ou… por mais que tivessem dificuldades, também já estavam assim sem problemas de perseguição…

Noemi: Claro.

Ivan: Do governo…

Noemi: É.

Ivan: Mas ainda assim você sente. Parece que sente mais do que ela.

Noemi (hesitante): É… eu… é muito ambíguo o que eu sinto, sabe? As vezes, eu sonho que eu tô lá. Eu sonho muito com trem. Direto… eu sonho com trem. E eu tenho uma relação com trens muito louca. Assim, eu sempre que eu embarco num trem eu penso nela.

Ivan: Como é que é aquela frase? Acho que é um verso bíblico, é “os filhos pagarão pelos pecados dos pais”.

Noemi: É.

Ivan: Você acha que é um pecado sua mãe não sentir ódio?

Lili: Não, mas interessante que, como que o sentimento, se você ouve uma coisa triste, sente, sente como ele balança. Não, não é como ele. Mas sente raiva e sente. E eu que estava dentro? É diferente mesmo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Stela: Tem uma corrente, em Israel, que diz que quem sofreu mais com a guerra são os filhos da guerra, né. Isso… tem uma terapia, inclusive, que minha irmã, lá, uma época trabalhou essa terapia. Que os filhos da guerra é que sabem o que foi a guerra, né. Até porque, acho que quando a pessoa tá dentro da coisa, você não percebe a dimensão. Não tem a realidade do que foi. Você não tem a história.

Ivan: Me explica o que é “os filhos da guerra”, só pra…?

Stela: Filhos da guerra, acho que somos nós, né. É aquilo que percebe o que o seu antepassado, aquele que esteve na guerra passou. O que isso transformou a pessoa.

Lili: Acho que eles sentem mais do que eu.

Stela: O que isso quis dizer, né. Porque quando você tá na situação é muito difícil de você ver, né. Sempre o que tá de fora enxerga. A gente sempre fala brincando, “ai, me dá uma luz aqui, né, porque eu não tô enxergando”. Então, aquele que tá de fora, que olha pra cima… Às vezes, tá lá e você não vê, né. Aí, um olho estranho vem e “pá”. Então, eu acho que os filhos dessa geração, que viveu a guerra, não só judeus, mas que viveu a guerra. Inclusive, eu tenho um pensamento muito… eu acho que quem sofre muito hoje são os filhos dos nazistas. É um sofrimento que deve ser muito maior que o nosso. Muito maior. Então, eu sempre imagino o que eles não… porque eles devem ser perseguidos. Nós somos acolhidos. Eles são os perseguidos. É uma coisa… é um dever que a gente tem. É um legado que, às vezes, incomoda. Eu casei com um não judeu. Isso foi uma coisa dificílima. Pra mim não. Porque eu acho o contrário. Eu acho que o judeu tem que se abrir. Isso é na minha cabeça. Porque eu acho que o antissemitismo, muito dessa culpa é do próprio judeu. Porque ele se fecha e cria essa, essa… esse… sei lá como é que chama esse amálgama que não permite que nada penetre. Então, quando não permite isso, a coisa fica… cada um julga como quer. Se você abre. Se você mostra quem você é. Se você divide. Se você reparte. Aí, a coisa… você não deixa de ser judeu porque se casou com um não judeu. Você continua sendo judia. Só que você se abre. Aí, o próprio não judeu aprende a conhecer o judeu. Então você agrega. Não é que você tá diminuindo. Você tá agregando, né. Você agrega não só ele, como a família, como os amigos, como ao que é. Então acho que é um lega… o filho da guerra é bem isso, acho que é o legado que a gente tem de manter isso.

Ivan: Uma coisa que me chamou bastante atenção no relato dela, é que ela, por exemplo, ela não guarda ódio dos alemães, né.

Carlos: Isso é comum.

Ivan: É, isso que eu ia perguntar, até que eu acredito que ela não seja a única e também não é regra geral. É… mas que as filhas levam isso muito a sério. E até veio o termo, que daí elas me explicaram, que é o “filhos da guerra”.

Carlos: É, exatamente.

Ivan: Como é que é esse fenômeno?

Carlos: É pouco se… já se estudou, já se escreveu… sobre, sobre essa segunda geração. Mas a questão do ódio, isso é muito, muito forte. As perguntas que foram gravadas pela Fundação Shoah, do Spielberg, fazia parte muitas vezes do roteiro, lá no final, perguntar se existia algum ódio, alguma coisa. E é muito comum nessas entrevistas a gente ouvir que não. Uma coisa é a questão da justiça. Tem um sobrevivente do holocausto, que já faleceu há uns 10 anos. O nome dele era Simon Wiesenthal. Escreveu vários livros, dava muitas palestras. E um dos livros que ele escreveu chamava-se “Justiça, não vingança”. Então, o próprio nome do livro dá esse caráter de justiça. Mas muitos sobreviventes, isso no pós guerra, começaram a exercer a sua vingança de uma forma muito interessante. Que era reconstruindo rapidamente a sua família e tendo filhos. É impressionante o número de crianças que nascem ainda nos campos de refugiados, os casamentos… Porque isso, pra alguns, inconscientemente, pra outros até conscientemente, ter filhos significava mostrar que o plano de extermínio daquelas pessoas, daquele povo, ele não foi consumado.

Ivan (narração): Sendo filhas da guerra, Noemi, Stela e Jane, que hoje mora em Israel, se veem na obrigação de passar essa mensagem para gerações futuras. E é curioso como este legado se mostra bastante evidente em diálogos como este, que presenciei naquela tarde entre Lili e Noemi.

Noemi: Aí, eu resolvi dividir por temas, o livro, né. Aí, são esses temas que estão aqui. Dinheiro, amor, raiva, memória, tatuagem, esquecimento. E falando não só sobre a história da minha mãe ou sobre o diário, mas sobre aquele tema de uma forma geral também, né. Então, tem um capitulo aqui só sobre crueldade. Então, qual a diferença entre ser perverso, sádico, mau e cruel. Eu fui atrás…

Lili (interrompendo): Mas é tudo a mesma coisa…

Noemi: Não, não é tudo a mesma coisa. São todas coisas diferentes. Então…

Lili: Eu acho que se é mau, é mau, não tem diferença.

Noemi: Mas tem. Tem diferença. É ser sádico e ser perverso, cruel.

Lili: Aí sim. Esse que eu contei que foi no… que eu disse que eu ia saber no hospital que vai acontecer, esse é sádico?

Noemi: Sim… É, gostar de ver o outro sofrer.

Ivan (narração): A filha que se esforça em explicar as diferenças sobre a maldade para a própria mãe, que presenciou o mal em pessoa. Como se pegassem sua mão e a acompanhassem pelos sentidos da vida que passou. Uma maneira de lidar com a própria herança que lhe foi dada. E assim como Lili até hoje busca entender as diferenças entre os tipos de maldade, nós mesmos, como raça humana, parece que estamos constantemente aprendendo. E muitas vezes, parece que não fomos capazes de tirar nenhuma lição que o tempo nos deu. Afinal, seria muito cômodo falarmos que o antissemitismo acabou. Ou que nunca mais o holocausto irá acontecer, seja com judeus ou com qualquer outro grupo. Mas, infelizmente, essa não parece ser a realidade. E um pequeno exemplo disso, Se pesquisarmos no Google, por exemplo, sobre o holocausto, não é incomum encontrarmos pessoas que argumentam que ele nunca existiu. Mas ao ouvir um relato como o de Lili e de tantos outros sobreviventes, que tiveram suas vidas destruídas por puro preconceito, essas ideias incomodam. Naquela tarde que conversamos, eu as indaguei sobre isso. É uma coisa que eu sempre quis conversar com um sobrevivente. O que você pensa sobre pessoas que defendem que o holocausto nunca aconteceu? E é sobre isso que falaremos no próximo programa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gostou da nossa proposta e gostaria de ajudar, clique no link do post no Patreon e contribua também. Agradecimentos especiais a Gabriela Giannini, que me ajudou em algumas transcrições; Carlos Reiss, do Museu do Holocausto de Curitiba, que me auxiliou com vários pontos da pesquisa sobre o holocausto;  Filipe Figueiredo, do site Xadrez Verbal, que me ajudou com questões políticas sobre a história da Iugoslávia. Obrigado também a Domenica Mendes, do site Leitor Cabuloso, que leu algumas passagens do Diário de Lili. E é claro, não posso deixar de agradecer Lili, Stela e Noemi, que me receberam de braços abertos e cederam seu tempo e memória para que este programa ocorresse. A trilha sonora utilizada é de Kevin Macleud, do site incompetech.com e do site Audio Network. Eu sou Ivan Mizanzuk, vou ficando por aqui. Nos vemos no próximo encontro.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Hana Augusta De Andrade, Alexandre Bertoletti, Débora Veiga Ruiz. Editado por Sidney Andrade. Revisado por Jean Carlos Oliveira Santos