3 – A Profecia

24 de agosto de 2015

Lili Jaffe conta como foi o fim da guerra na Europa, o que ocorreu na fronteira com a Dinamarca e a origem de seu diário.

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Museu do Holocausto de Curitiba
Xadrez Verbal

Transcrição

Ivan (narração): Ei, pessoal. Aqui é o Ivan, e antes da gente começar este episódio, eu gostaria de agradecer às centenas de mensagens que eu tenho recebido, com elogios ao Projeto Humanos, isso me deixa muito feliz. Obrigado mesmo, de coração. Ah, e muitos de vocês têm me dito que gostariam de mandar um beijo ou dar um abraço na Lili. Então, eu vou fazer um pedido. Vão agora para o Twitter e mandem uma mensagem de carinho para sua filha, a Noemi, que foi responsável em publicar o diário da Lili. O Twitter da Noemi é @noemijaffe, com dois Fs, e utilizem também a #projetohumanos, tudo junto , pra que a gente possa acompanhar tudo que vocês tão falando. A gente tá curioso com isso. E a Noemi vai repassar tudo pra Lili, e tenho certeza que vocês vão fazer ela muito feliz. Vamos ao programa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(início de leitura de trecho)

“Primeiro de dezembro de 1944. Estávamos muito contentes nesse campo. Trabalhávamos, descansávamos. Ouvimos hoje uma notícia sobre política, que os russos já chegaram a Auschwitz, e os outros que ainda estavam com eles estão a caminho de DeuremBerg. É claro que não ficamos contentes, porque sabíamos que isso significava que éramos gente demais. E depois, tínhamos medo dos alemães que estiveram em Auschwitz. Diziam que havia crematórios aqui também, etc. Etc. Perdemos a vontade de ter diversão.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

“10 de maio. Atravessamos a fronteira alemã. Estamos na Dinamarca. O alemão saltou do trem e grita: ‘Hitler morreu, o trabalho está concluído!’”

(EFEITO SONORO DE ESTAMPIDO SEMELHANTE A TIRO)

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Neste terceiro episódio, a Guerra já está no fim, as Forças Aliadas já invadiram a Polônia e os prisioneiros de Auschwitz começaram a ser deslocados em massa. Eles e os soldados nazistas estão na fronteira com a Dinamarca, esperando ver o que vai acontecer. Com vocês, Lili Jaffe.

Lili: A gente tinha tanta fome, que nós saímos dos vagões e os alemães que estavam conosco também não tinha comida. Então, a gente pediu para nos matar, porque não aguentávamos mais de fome.

Ivan: Vocês pediram pra…?

Lili: Pra nos matar. E nós sentamos, todo mundo, assim, à volta, esperando pra nos matar. Então a alemã, sozinha, falou que nós pedimos ajuda do cruz Vermelha, e eles prometeram que vão ajudar nós, trazer comida, se não vai chegar a noite a gente mata vocês. Chegou.

(EFEITO SONORO DE PULSAÇÃO LENTA E GRAVE)

Ivan: Os alemães, então…

Lili: Já sabiam que estavam cercados, com os americanos.

Ivan: Eram os americanos que foram lá?

Lili: É.

Ivan: Não foram os soviéticos…

Lili: Então, eles já sabiam que acabou a guerra. Então, já queriam nos ajudar.

Ivan: Por que você acha que eles quiseram ajudar, então?

Lili: Porque eles também sofreram. Àquela hora eles viram o sofrimento como a gente sofreu.

Ivan: Porque tavam passando fome…

Lili: é.

Ivan (narração): Com a chegada da Cruz Vermelha, os prisioneiros, agora, estavam finalmente salvos.

Ivan: E como foi sair de lá? Quando que…

Lili: Ah, foi… (ela ri) O Cruz Vermelho nos deu comida, depois nos levou para trem de verdade, a gente sentou no assento de couro, sozinha, fomos para Dinamarca. Quando chegamos Dinamarca, a enfermeira esperava-nos com chocolate quente. E depois, falaram que pra fazer fila, tomar comida. E eles deram pouquinho, porque para acostumar o estômago, para comer. Então deram pouquinho, ela falou… Eles falaram “vamos dar pouquinho pra não fazer mal.” E tinha gente que repetia, entrou outra vez na fila. E morreram.

Ivan: Que comeram muito…

Lili: De repente, assim. Eles cuidaram de nós.

Ivan (narração): Eram muitos os prisioneiros que estavam com a saúde tão debilitada que, se comessem demais, o organismo não aguentaria e, literalmente, morreriam de tanto comer. Ou seja, não bastasse ter aguentado já o horror dos campos, os sobreviventes agora tinham que cuidar para não morrer por outras causas decorrentes deles, mesmo que fora deles. Mais uma vez, são fatores que dificultam o entendimento da dimensão do número de mortes que realmente ocorreu nos campos. Mais uma vez, Carlos Reiss, do Museu do Holocausto, de Curitiba.

Carlos: A estimativa é de, aproximadamente, 6 milhões. E esse número se tornou um número importante, é um número referência. Em todos os anos, nos dias de celebração , de lembrança à memória das vítimas, é já costume acender seis velas, cada uma representando o que seria 1 milhão de vítimas. Essa estimativa é muito próxima do que a gente acredita que tenha sido a realidade. Eu vou te dar um exemplo, o Museu do Holocausto de Jerusalém, Yad Vashem, desde os anos 50 tem um projeto de, através de fichas, resgatar o maior número de dados possíveis de vítimas que foram mortas durante o Holocausto. Então, parentes, irmãos, filhos, irmãos, pais, primos. Também amigos, qualquer pessoa que conheça alguma vítima que foi morta durante o Holocausto. Quando a gente fala durante o Holocausto, nós estamos falando qualquer pessoa que tenha sido morta pelo regime nazista ou por seus colaboradores, entre 1933 e 1945. Pode deixar o registro nessa ficha. Então, desde os anos 50 começou-se a fazer isso, e há alguns anos, o Museu em Jerusalém declarou que já tinham chegado numa marca significativa de 4,5 milhões de fichas. Isso já há alguns anos. Claro, retirando qualquer ficha que tenha sido repetida, ou ficha que não tenha nenhum tipo de comprovação, ou autenticidade. Hoje, já se passaram alguns anos disso, acredito que o número esteja próximo de 5 milhões. E eles correm contra o tempo, pra ter o maior número de fichas, porque a geração… Né, a geração das pessoas que podem deixar um testemunho que conhecia alguém está acabando. Então, eu posso dizer pra vocês que, da estimativa de 6 milhões de judeus, uma estimativa muito próxima, porque acredita ser o número mais perto do exato, quase 5 milhões já não são mais números, já têm nome, já têm sobrenome, já têm lugar de nascimento, já têm um maior número de informações. Isso, um trabalho sendo feito há mais de 50 anos. A gente não pode descartar também, em termos de números, apesar de que como eu disse, no Museu, números são o menos importante, o número de vítimas também de ciganos, homossexuais, Testemunhas de Jeová, deficientes, comunistas, poloneses, eslavos, a lista é grande. Todos esses grupos de vítimas, a gente deve acrescentar mais alguns milhares de nomes aí.

Ivan (narração): Após o resgate, os sobreviventes começaram a ser deslocados para países próximos de seus locais de origem, de forma que pudessem voltar para casa, quando estivessem em condições.

Lili: Depois fomos para Dinamarca, fomos pra Suécia. Lá também tava muito bom.

Ivan: E foi lá que você escreveu o seu diário…

Lili: Como?

Ivan: O seu diário foi escrito na Suécia?

Lili: Foi, né?

Noemi: Foi. Em Malmö.

Lili: Malmö, também. É. Estocolmo.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“03 de julho. Os homens muitas vezes vem nos buscar para passearmos. Vou, mas gosto de ir sozinha, ter ilusões, construir o futuro dentro de mim. Penso muito em papai, meu irmão, certamente eles já estão esperando em casa. Infelizmente, sei onde mamãe deve estar. Que ao menos encontre papai e meu irmão. Como seria bom voar até eles para ficar junto deles. Não há nada mais bonito que eu deseje.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Ivan (narração): Agora na Suécia, alimentada e aquecida, o horror das experiências do campo podiam até ter ficado para trás, mas suas consequências ainda tinham que ser descobertas.

Lili: Nós tínhamos lá um cônsul Iugoslavo, que veio nos visitar, e ela pediu para a gente ficar e nós não queríamos ficar, nós pensamos, ainda tínhamos a esperança que vamos encontrar alguém em casa. Encontrei meu irmão.

Ivan: Seu irmão estava em campo também.

Lili: Foi, mas ele também se salvou.

Ivan: E seu pai e sua mãe, como é que foi?

Lili: Não, minha mãe foi logo embora, meu pai depois, meu irmão contou.

Ivan (narração): Por um minuto visualize essa situação. Um dia você está em casa com sua família, amigos, sua rotina normal. De repente, do dia para a noite, tudo isso é retirado de você, com base puramente no ódio que o governo tem pelo seu grupo. E, ao finalmente retornar para casa, você descobre que seus pais, diferente de você, não voltaram.

Lili: Gente acha, parece que perdemos o sentido, não sei, acho, quando a gente sofre já sabíamos que eles não estão mais, não sei.

Ivan: Você já sentia que eles já tinham morrido.

Lili: É.

Ivan (narração): Não havia papel, nem lápis, nem caneta em Auschwitz, para Lili escrever. Mas assim que pôde, ela se esforçou em registrar o que lembrava, o que implica que seu diário possui também um pouco de invenção, já que foi feita a partir das memórias cada vez mais distantes. E ao organizar o diário da mãe, Noemi tomou o cuidado de manter algumas dessas confusões de tempo que existem. às vezes, os dias retrocedem. Outras horas, avançam muito rápido. E são essas incoerências que nos revelam melhor as cicatrizes deixadas pelos nazistas. Em Noemi, seu próprio processo de construção do livro foi influenciado por essas questões.

Noemi: Lá em Auschwitz, em uma vitrine de malas, tem vitrine de cabelo, vitrine de roupas, vitrine de objetos que os alemães tiraram dos Judeus, e tem uma vitrine de malas. E eu fiquei anotando os nomes que eu lia nas malas. E aí, eu comecei a inventar a história da dona de um nome que eu anotei. Svelenka Fanto, o nome que eu anotei, que eu não sei quem é essa mulher. Eu comecei a inventar a história dela.

Lili (interrompendo): quem é?

Stella (ao fundo): Essa é uma menina, mãe, de agora.

Lili: Ah sei.

Ivan: Você quer ler um pouquinho?

Naomi: Dessa Svelenka? Deixa eu ver onde que tá. Histórias inventadas.

(Naomi folheia o livro, fade in de trilha sonora)

Naomi (lendo): Svelenka Fanto e Rafaela Satatansky não se conheciam pessoalmente, mas seus caminhos já tinham se cruzado algumas vezes, no percurso até o bonde que Rafaela fazia todas as terças e quintas, quando passava pela porta da casa da neta de Svelenka, que a visitava regularmente. Rafaela vinha de uma família moderna de Viena, totalmente aculturada e orgulhosa das práticas comuns a alta burguesia intelectual da cidade. O pai era médico psiquiatra e tinha, inclusive, estudado e endossado algumas teorias do Dr. Freud, com quem chegou a travar um contato distante. Sua mãe era uma professora de piano, razoavelmente conhecida na cidade. Embora tenha se frustrado na carreira de solista, aceitara com tranquilidade a ideia de estimular novos talentos em sua própria casa.

Naomi: E assim eu fui inventando a história toda delas duas. Depois eu mudo e digo que não foi nada disso, e começo a inventar outra coisa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Noemi: Aí, eu tava conversando com uma amiga minha, que mora no Rio, e falei, “Maisa, olha que loucura o nome dessa mulher Svelenka Fanto, como alguém pode ter um nome tão bonito desse?” Aí, ela falou, “olha que nome não sei o que”… e foi pesquisar. E a mulher tá viva e foi para a Suécia também. Provavelmente esteve junto com a minha mãe no mesmo lugar. E algumas coisas sobre essa mulher, essa Svelenka, eram parecidas com o que eu tinha inventado. Aí, a Maisa falou pra mim, “nós vamos procurar ela, vamos atrás dela, vamos conversar com ela.” Aí, eu falei, “não, chega”. Eu não aguentava mais, era muito peso, sabe. Eu tava sofrendo já. Daí, quando eu soube, eu falei, “não, mas eu não conheço essa mulher, não quero mais”, sabe… muito cansativo, muito desgastante, não foi um… uma escrita alegre, assim, dá para perceber.

Ivan: Foi o livro mais difícil que você escreveu?

Noemi: Foi… foi.

Ivan: Pela técnica ou pela carga?

Noemi: Não, pela carga… pela carga. Eu acho até que eu escrevi o outro que era para me aliviar desse, porque eu escrevi junto.

Ivan: Escreveu junto, os dois?

Noemi: É.

Ivan (narração): Curiosamente, esse outro livro que Noemi fala se chama “Verdadeira história do Alfabeto”, no qual inventou biografia, histórias de vidas das letras A até Z. E daí, percebemos que inventar cura. Ao inventar as histórias daquelas prisioneiras anônimas, ela continuou o legado da mãe. Criar histórias é um exercício milagroso, possui o poder de ressuscitar vidas, as vezes de outros, muitas vezes as nossas.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Voltemos a Lili. Ao retornar para casa, sabendo da morte dos pais, viu que sobrou o irmão, suas primas e um tio, com quem foi morar, mas já não havia mais casa, ao menos como conhecera. E seu irmão foi o primeiro a sair da Iugoslávia.

Lili: Meu irmão se apaixonou por uma menina e ele tinha um documento para procurar eu, os americanos deram para ele, mas ele deu para a namorada meu nome, então ele foi para os Estados Unidos, então eu só tinha vontade de ir atrás dele.

Ivan (narração): Após a guerra, os americanos haviam dado para seu irmão permissão para que os dois fossem para  os Estados Unidos, mas ele queria levar sua namorada e, para isso, deu os papéis de Lili para ela. Por conta disso, Lili ficou sem nenhum documento, o que lhe impedia de sair da Iugoslávia.

Lili: Eu não consegui. Então, eu pensei que se venho aqui no Brasil, vai poder ir mais fácil para o Estados Unidos.

Ivan (narração): O antigo namorado chegou a convidar Lili para morar com ele em Israel, mas ela recusou. Ela só queria ir para os Estados Unidos. E foi nesse tempo, nesse período, que ela conheceu alguém que mudaria sua vida.

Lili: Eu fui na casa do meu tio e ele estava lá e se apaixonou por mim.

Ivan (narração): O nome desse menino, que Lili conheceu na casa do Tio, era Aaron, Aaron Jaffe.

Ivan: E quantos anos vocês tinham?

Lili: Dezoito.

Ivan: Os dois tinham dezoito? Ele também tinha ido para campo?

Lili: Ele tava lá onde eu ia descer… devia descer e ele sobreviveu com a mãe dele.

Ivan: E o namoro foi rapidinho, se conheceu e já começou a namorar?

Lili: Não, demorou (rindo).

Ivan: Conta um pouquinho.

Lili: Do meu namoro?

Ivan: Isso.

Lili: Ele estava na Iugoslávia e eu não quis casar com ele, porque eu queria ir só… a minha cabeça estava para ir para Estados Unidos, atrás do meu irmão. Então eu fugi, fugi da Iugoslávia ilegalmente para a Hungria.

Ivan (narração): Lili morava na Hungria já a um ano, quando recebeu uma carta de Aaron, dizendo que ele estava a caminho, pois havia conseguido um passaporte, para ir de lá para a Polônia, onde sua mãe morava, e de lá iria para a Itália.

Lili: Então ele me escreveu que eles vinham para a Hungria em Budapeste, para eu achar um lugar onde ele vai morar, porque eles vão ficar uma semana em Budapeste. E eles… esse… durante essa semana eles não conseguiram passaporte, ficaram um ano (risos), durante esse um ano a gente se encontrou.

Ivan: ah, ta certo…

Lili: Então, fomos  juntos para a Itália. Na Itália ficamos 3 meses e depois de 3 meses fomos para… não recebemos entrada para o Brasil e fomos para o Uruguai.

Ivan: Uruguai?

Lili: É…no Uruguai ficamos 2 meses, depois fomos como turistas para o Brasil. Minha sogra tinha a família toda aqui.

Ivan: E daí, gostaram daqui…e ficaram…

Lili: E ficaram…

Ivan: Mas vocês se conheceram, e ele já pediu em casamento?

Lili (risos): Ah, demorou 2 anos.

Ivan: Dois. Mas quando se conheceram, ele pediu?

Lili: Ah, ele queria, mas eu não quis, porque  não quis ficar (eles riem).

Ivan narração: Mas há mais coisas dessa história que Lili não revelou. Por sorte, suas filhas estavam lá e contaram

Stela: Como o irmão dela roubou a identidade dela para dar a namorada dele…

Ivan (narração): Quem está falando é Stela, uma das irmãs de Noemi.

Stela: a minha mãe não tinha documento nenhum, então existia um certo acordo entre ela e o meu pai. Independente dela gostar dele ou não, pra ela poder sair, ela tinha que ter um documento. Então meu pai combinou de casar com ela … Se ela tivesse um documento e um nome, porque ela não…

Lili (interrompendo): É, na Hungria ainda… A gente se casou, mas só nós dois, sem ficar casado. Eu fui um lado, ele foi no outro, mas recebemos o passaporte como casados.

Stela: Porque ela precisava de um nome para poder continuar a viajar. Com ele ou sem ele, não importa. Eles precisavam estar…ela precisava se chamar… ela precisava existir!Então, ela passou a ser Livia Jaffe. O meu pai ofereceu casamento para ela por conta de ter um documento. Foi assim que ele conseguiu casar com ela, se não, ela não teria casado.

Ivan: entendi

IVAN (narração): Mas como sabemos, o Aron já era apaixonado por Lili desde quando  moravam na Iugoslávia. E quem nos contou mais detalhes sobre isso foi a Noemi.

Noemi:  O diário da minha mãe acabou sendo depositado lá no Museu do Holocausto, em Jerusalém, onde está até hoje. As moças que trabalham no museu do holocausto ficaram muito curiosas com a história do diário, e por que meu pai…quando minha mãe conheceu meu pai, na Iugoslávia… Quando ela voltou da guerra e conheceu meu pai, ela deixou o diário dela com ele. Ela foi para Hungria, como ela contou, e deixou como lembrança pro meu pai o diário que ela tinha escrito. Então, ela achava  que nunca mais veria esse diário. Então, o próprio diário tem uma história. E meu pai preencheu as páginas do diário que faltavam com cartas de amor para a minha mãe, porque ele era completamente apaixonado por ela. E isso não tá aqui nessa transcrição, NÉ. Eram cartas de amor. E ele achava que não encontraria mais ela. Então, ele foi pra Hungria e levou o diário. E depois, eles trouxeram o diário para o Brasil. E aí, esse diário foi parar nesse museu, em Jerusalém. E as funcionárias que sabem ler iugoslavo… Porque lá tem funcionários que sabem ler todas as línguas. Elas leram o diário da minha mãe e as cartas do meu pai. E ficaram muito curiosas em saber o que tinha acontecido com aquele casal. E daí, quando elas souberam que eles tinha se casado, elas ficaram super felizes, e tal. E no fim, elas acabaram avisando a equipe do Spielberg que… (vozes ao fundo a interrompem) É, ele tem uma fundação nos EUA, não sei em que cidade. E o objetivo dele é recolher depoimentos de todos os sobreviventes , uma coisa meio impossível né? Mas ele tenta fazer isso. Então, elas avisaram essa equipe dele. Aí, eles mandaram lá para Israel. Minha mãe tava lá com a minha irmã, lá, essa época. Uma equipe de pessoas que falam iugoslavo. E eles entrevistaram minha mãe em iugoslavo.

Ivan (narração): Aquela história que eu contei  no início do programa, sobre o diário de uma sobrevivente que continha cartas de amor a ela no final, acabou tendo um final de filme. Eles ficaram juntos. Mas você pode estar se perguntando, se ela casou-se, primeiramente, somente pelos documentos para poder sair da Iugoslávia, teria ela se apaixonado mais tarde?

Stela: Ela se casou  mais para poder …

Ivan: pra poder…

Stela (para Lili): Quando vocês começaram a namorar mesmo, você e o papai? Quando foi o primeiro beijo?

Lili: Na Itália, ficamos 3 meses juntos num lugar só…então eu já resolvi que vou  ficar com ele.

Stela: mas na Hungria, vocês não eram mesmo namorados, eram só amigos?

Lili: é.

Ivan: e daí, virou a paixão…

Lili (entre risos): É…

Ivan: Ficaram quanto tempo juntos?

Lili: Ele morreu 18 anos atrás.

Ivan:  A vida inteira, então.

Ivan (narração):  Um amor construído a partir das ruínas de suas vidas. Uma nova vida no Brasil, muito longe de Auschwitz, com  3 filhas que vieram em seguida. A cigana que leu sua mão no campo, no fim, estava certa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No próximo episódio, casados e vivendo no Brasil, Aron e Lili tem 3 filhas e se veem com um dilema em mãos. Como deveriam falar com as crianças sobre o quão mal tratados e humilhados foram durante a guerra? Tudo isso na próxima parte de “As Filhas da Guerra”, aqui no Projeto Humanos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias intimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças a ajuda dos patrões do AntiCast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gostou da nossa proposta e gostaria de ajudar, clique no link do post do Patreon e contribua também. Agradecimentos especiais a Gabriel Gianinni, que me ajudou em algumas transcrições; Carlos Reiss, do Museu do Holocausto de Curitiba, que me ajudou com vários pontos da pesquisa sobre o holocausto; Filipe Figueiredo, do site Xadrez Verbal, que me ajudou com questões políticas sobre a história da Iugoslávia. Obrigado, também, a Domenica Mendes, do site Leitor Cabuloso, que leu algumas passagens do diário de Lili. E é claro que não posso deixar de agradecer a Lilli, Stela e Noemi, que receberam de braços abertos e cederam seu tempo e memória para que esse programa ocorresse. A trilha sonora utilizada é de Kevin MacLeod, do site incompetech.com e do site Audio Network. Eu sou Ivan Mizanzuk e vou ficando por aqui. Nos vemos no próximo encontro.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por: Sidney Andrade, Alexandre Bertoletti, Aline Koroglouyan. Editado por Sidney Andrade. Revisado por Jean Carlos Oliveira Santos