2 – O Trabalho Liberta

17 de agosto de 2015

Lili Jaffe conta sobre sua rotina em Auschwitz e como era seu contato com outros prisioneiros. Entendemos melhor a dimensão do que foi aquele campo, assim como o motivo pelo qual ele é tão citado.

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Museu do Holocausto de Curitiba
Xadrez Verbal

Transcrição

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“Bayern, 28 de maio de 1944. Ainda ontem, os húngaros ficaram à nossa volta. Hoje pela manhã, já vi um alemão. Depois eles eram mais e mais. Já não tínhamos medo. Estávamos prontos para o pior. Tivemos de formar uma fila, às 9h. Os alemães fizeram uma contagem de pessoas e nos levaram. Na mesma noite, deixamos nosso chiqueiro e fomos conduzidos à estação. 70 dentro de um vagão, com os pacotes que foram atirados para dentro depois de termos entrado. Papai e mais alguém procuravam criar alguma ordem ali. Arrumaram os pacotes, uma fileira em volta, espaço no meio. Cada um pôde se sentar sobre suas próprias coisas.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Viajamos durante 6 dias. Sem água, sem comida. Papai tem febre o tempo todo, mas se faz de forte. Mamãe nos consola, abraça-nos. Minha velha mãe chora. Doem as costas. Nem consegue ficar sentada mais.”

(FADE IN DE TRILHA SONORA, QUE CESSA ABRUPTAMENTE COM UM SOM DE IMPACTO)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Neste segundo episódio de “As Filhas da Guerra”, retomamos o ponto de onde paramos. Lili chegou em Auschwitz, e lá passou pelo processo de separação de prisioneiros.

Ivan: Eles estavam separando como? crianças, adultos…?

Lili: Crianças, velhos…

Naomi: Homens, mulheres.

Lili: É. Homens para um lado, jovens para o outro lado.

Ivan: Aí, você foi separada da sua mãe?

Lili: É.

Ivan: Você ficou sabendo do que aconteceu com ela, depois que separou?

Lili: Ah, depois a gente soube que tem crematório.

Ivan: Mas você não viu mais ela, foi a última vez que você viu a sua mãe, foi aquela vez?

Lili: Isso.

Ivan: E o seu pai, já tinha…?

Lili: No outro lado. Eles deixaram ele virar, mas, no fim, acho que ele ficou doente. Ele, também mataram.

Ivan: Como que eram separadas as pessoas nos campos de concentração? Então, por exemplo, a pessoa chegou lá. Qual que ia ser já a triagem para ver onde que ela ia, por exemplo, em Auschwitz?

Carlos: Bom, o caso de Auschwitz é um caso específico.

Ivan (narração): Novamente, Carlos Reiss, do Museu do Holocausto de Curitiba.

Carlos: Para cada campo, eles tinham um processo. A mecânica, por mais que existiam semelhanças, elas eram diferentes entre si. Eu vou dar um exemplo de um… Nem de um campo, de um gueto. Na verdade, é um híbrido entre um gueto e campo, que é o caso de Theresienstadt, na antiga Tchecoslováquia. O gueto de Theresien era um gueto, mas ali as crianças eram separadas dos pais. Isso não era uma praxe nos guetos. Nos guetos, as crianças ficavam com os pais, com a família. E no caso de Theresien, elas ficavam separadas. É só um exemplo de como tudo isso era variável de campo para campo. No caso dos campos de extermínio, em dois deles existia um processo mais rebuscado de seleção. Apenas Auschwitz e Majdanek tinham um processo de seleção mais apurado, por causa justamente da necessidade de mão-de-obra. Nos outros campos, a seleção era ínfima. Escolhiam pessoas que tinham algumas capacidades pra fazer algum tipo de trabalho específico pro funcionamento do próprio campo. No caso de Auschwitz, quando os prisioneiros chegavam até lá, eles eram separados, em primeiro momento, em dois grandes grupos. A lógica dessa divisão era a lógica do trabalho. A Alemanha estava em guerra, não só matéria-prima era necessário, mas também a mão-de-obra. Então, a questão do trabalho era o argumento principal. Então, de um lado iam bebês, crianças pequenas, mulheres doentes, grávidas, idosos, deficientes. Pessoal que não tinha a capacidade física de encarar um trabalho escorchante. Do outro lado iam pessoas jovens, que tinham ainda certa condição física para o trabalho. Porque muitos que chegam nos campos, chegam após anos dentro de um gueto. Outros não, outros já chegam com suas melhores roupas, vindos lá da parte ocidental da Europa. Então, é muito diferente um grupo de outro. Essa era a primeira seleção. Muitos contam de chegar em Auschwitz e se deparar com uma pessoa fazendo um sinal com o polegar pra esquerda ou pra direita. Uma dessas pessoas que fazia esse trabalho, algumas vezes, de separar essas pessoas, era o próprio médico Joseph Mengele, que já separava, ali na triagem, as vítimas dos experimentos médicos.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO)

“Segunda Guerra Mundial. O nazismo avançava pela Europa, deixando uma mancha negra de ódio e violência. O poder de Hitler crescia em todos os cantos do continente ocupado. Os campos de concentração recebiam cada vez mais prisioneiros do Terceiro Reich. Em Auschwitz, um nome ressoava entre as pessoas assustadas que chegavam, gelando o sangue dos mais fortes: Joseph Mengele, o anjo da morte, cujo trabalho era decidir o destino dos prisioneiros que chegavam ao campo e selecionar os melhores exemplares para suas experiências sobre-humanas

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Esse é um trecho do documentário “Mengele, O Anjo da Morte”, do History Channel. Ele foi, provavelmente, o mais conhecido dos médicos dos campos que conduziam experiências nos prisioneiros. E assim como muitos nazistas, no final da guerra, ele fugiu para a América do Sul e morou por muito tempo no Brasil, vindo a falecer em 1979, na cidade de Bertioga, no interior do estado de São Paulo. O campo onde trabalhou e ficou mais conhecido foi justamente Auschwitz, local onde Lili agora era prisioneira.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“Auschwitz, 4 de junho de 1944. Mandaram-nos sair dos vagões sem os pacotes. Separam homens e mulheres. Papai com meu irmão, nós cinco numa outra fileira. Mamãe, minha priminha de 4 anos, meu primo de 8, e eu. Fila longa. Ouvimos um alemão gritar de longe: ‘Direita! Esquerda!’ Quando chegamos mais perto, mamãe escondeu-me debaixo do casaco dela, que ainda possuía, tentando evitar que nos separassem. Chegamos até o primeiro alemão. Mandou-nos ir para a esquerda. Um outro nos examinou e nos deixou passar. Mas o terceiro ordenou que eu fosse para o lado direito.”

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Carlos: Normalmente, as pessoas que eram separadas de um lado, que não tinham capacidade física para o trabalho, no caso de Auschwitz, eram enviadas muitas vezes nos próprios caminhões, que iam pro outro lado do campo. E ali deixavam seus pertences. E eram assassinadas ali mesmo, naquele mesmo dia. E os outros eram realocados dentro desse grande complexo pra aqueles que iriam trabalhar em alguma fábrica, alguma obra próxima. Fábrica de munições, fábricas de qualquer coisa. De panela, de cinto, de armas. A mão-de-obra escrava. E outros eram realocados para alguma outra parte do campo, para aguardar uma próxima ordem. E essa próxima ordem muitas vezes era deportação pra um outro campo, onde se precisava de mão-de-obra. Então, se desenvolveu um sistema muito bem executado de seleção, de separação de pessoas. Isso no caso de Auschwitz, no caso desse complexo tão grande, isso aconteceu durante muito tempo.

Ivan: No caso até da sobrevivente que eu entrevistei, ela disse que entraram numa fila, que os médicos tavam selecionando, e ela tava com a mãe dela. Ela tinha 17 anos, a mãe tinha 38. A mãe tentou esconder ela debaixo do casaco. e daí, os alemães já viram, já tiraram ela de lá e separaram ela lá. E disse que nunca mais viu a mãe de volta. E antes disso, já tinha sido separada também do pai e do irmão, né.

Carlos: Normalmente, separavam por gênero, e depois nesse sistema. NO caso, uma das minhas avós, aconteceu a mesma coisa. Ela tinha 17 anos, e ela foi separada da mãe, justamente ali. Nunca mais a viu novamente. Muitas pessoas chegavam doentes, já dos anos, ali, no gueto. E até eram aconselhadas, por algumas pessoas, ali naquele processo, de pegar terra no chão e passar nas mãos, no rosto, pra dar a impressão de tá um pouco mais sadio. Tinha gente que furava o dedo pra passar um pouquinho de sangue na maçã do rosto, pra dar a impressão, também, de tá um pouco mais sadio.

Ivan: É, porque se não, já era a morte direto, né.

Carlos: Eu conheço histórias de jovens que mentiram a própria idade. Um deles tinha 14 anos, e ele não aparentava ter 14 anos, aparentava ter mais. E aí, uma parte da família foi pra um lado, outra parte da família foi pro outro. Ele queria ficar com a mãe, e a mãe falou, “meu filho, vá ficar com seus irmãos, lá do outro lado, fala que você tem 17 anos, ou coisa assim, e eles vão poder cuidar melhor de você, porque de mim, agora, eu não sei o que vai acontecer.” E ele acaba indo. Eu não consigo nem imaginar, pra uma mãe, de ver isso pro filho, naquele momento. Ela também não sabia o que ia acontecer. E ele acaba fazendo isso. Ele consegue sobreviver, praticamente a família inteira é morta, inclusive a mãe, nesse episódio. E ele acaba sobrevivendo e vindo construir sua vida aqui no Brasil. E tá vivo aí, pra contar pra a gente essa história. Então, a parte da seleção é muito específica da necessidade da mão de obra, da necessidade do próprio campo, do funcionamento do próprio campo, pra que aquele campo criado. NO caso de Auschwitz, (incompreensível) um complexo com vários campos, várias fábricas, a seleção era mais criteriosa.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“Éramos muitas jovens, entre elas, minha amiga Katzar Laher, chorávamos juntas. Ela chegou depois de mim e disse que mamãe lhe gritava de longe que tomasse conta de mim. À meia-noite, entramos no campo de concentração. Caminhamos muito até chegar a um banheiro. Entramos. Dentro, estava cheio de alemães e alemãs que tirara de nós tudo o que tínhamos ainda. Em seguida, precisamos ficar nuas e entrar em outro lugar. Havia somente mulheres ali, que cortaram os nossos cabelos. Tentei escapar, entrando em um outro recinto, mas o mesmo destino me aguardava lá. Sentia muito pelo meu cabelo, mas quando pensava em meus pais, não sentia nenhuma outra dor. Depois de terem cortado os nossos cabelos, tomamos um banho com água quente. Levam-nos, molhados ainda, para um lugar seco, onde recebemos vestidos. Era algo terrível, mas, ainda assim, rimos. Uma mulher de uns 30 anos recebeu um vestido infantil curto. Tentou devolver, mas não trocaram. Algumas só recebiam uma saia, sem blusa. Outras, só blusa, sem saias. Sentia frio, nua e molhada, parada em pé, ali, até que chegasse a minha vez. Ganhei um vestido preto longo. Disseram-me que tenho sorte. Puseram-nos, novamente, em fila, diante do banheiro. Estava escuro, era 1h da manhã. Um pouco mais tarde, quando os olhos se acostumaram com a escuridão, percebi que havia homens ao nosso lado. Procurava por conhecidos, e então vi papai e meu irmão, que indagavam onde estava mamãe. No momento em que tentava lhes responder, vieram os alemães e me levaram dali. Não se enxergava nada em volta. Havia fogo, chamas, e dava a impressão de que, cada vez mais, nos aproximávamos do fogo. Tínhamos medo, mas não chorávamos. Havia, entre nós, quem chorasse e gritasse, eles eram levados para um outro lugar. Sei lá pra onde.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Ivan: Quantos campos que existiram, no total? A gente tem esse número?

Carlos: Esse número não é… Eu posso dizer que ele não existe, e eu vou te explicar o motivo. É a mesma pergunta que se faz sobre os guetos. Algumas pessoas falam, “ah, são 700 campos… foram mil e tantos campos…” Nem todos os campos… Primeiro que não existiam apenas campos de concentração, existiam vários tipos de campos. Tinham campos de prisioneiros de guerra, campos de trânsito, os campos de extermínio, e por aí vai. Outra dificuldade é a de que não existiam apenas campos fixos… Eu posso dizer, campos permanentes. Existiam muitos campos que eram temporários. Campos que existiram por um mês, ou campos que existiram por uma semana, campos que existiam por alguns dias. Então, a gente não tem… Não consegue estimar. O que a gente consegue é estimar, por alto, é que, pelo menos, sobreviventes… Pelo menos 700 mil pessoas que sobreviveram ao Holocausto, passaram por alguns campos, foram registradas em algum momento.

Ivan (narração): Os números astronômicos e a complexidade de documentos existentes sobre o funcionamento dos campos de concentração, às vezes, mais dificultam entendê-los do que, necessariamente, ajudam. Para se ter uma ideia, há sempre uma certa confusão de estimativa sobre quantos judeus teriam realmente morrido nos campos. O número mais aceito é em torno de 6 milhões, mas esse cálculo depende da própria noção que se monta acerca do que é, efetivamente, um campo de concentração.

Carlos: Isso é um outro problema, pra se chegar naquele número de 6 milhões de nomes, é que muitos não passaram por campos ou por guetos. Então, eles não foram registrados. Muitos foram simplesmente chacinados, mortos, principalmente na invasão da Alemanha à União Soviética. Entravam nas casas das pessoas, tiravam, levavam pra ravinas, pra bosques, simplesmente assassinavam essas pessoas ali, sem nenhum tipo de registro. Já no caso do campo de concentração, do gueto, tem ali algum tipo de documento, algum registro, seja ele o próprio aparato nazista ou dos seus colaboradores. Então, é muito difícil estimar. É muito difícil chegar a um número exato. Existiam campos que duravam um dia…

Ivan (narração): Não havia apenas essa instabilidade sobre o número exato de campos de concentração, havia também os constantes deslocamentos de prisioneiros entre campos, que foi o caso de Lili, que havia sido, antes, alocada na Hungria, mas, em seguida, foi para Auschwitz.

Ivan: Auschwitz é tão citado por causa do tamanho que tem? É essa a importância que tem, do campo?

Carlos: É, pela complexidade do próprio campo em si. Mas eu acredito que tenha se tornado uma referência, falar de Holocausto significa falar de Auschwitz, pela dimensão dele. Isso também é perigoso, do ponto de vista educativo, porque a gente restringe o Holocausto a um campo, por maior que ele seja, por mais representativo que ele seja. Mas ele se tornou um símbolo disso tudo, pela dimensão dele, pelo tamanho, pelo número de pessoas e pela complexidade que era todos aqueles trabalhos em vários campos, em várias fábricas. Tudo isso se tornou símbolo.

Ivan (narração): Separada de seus pais, Lili ficou sem sua família, e dela, enquanto esteve no campo, chegou apenas a ver seu irmão, uma única vez, através das cercas que separavam homens de mulheres.

Lili: Depois nos levaram para um… lager, como se fala?

Noemi: Um lageré tipo um… uma parte do campo

Lili: É… tinha um, tipo, cabia mil pessoas dentro…

Noemi: É tipo um barracão.

Ivan: Você tinha quantos anos?

Lili: Eu tinha dezessete.

Ivan: Dezessete. E você… eram só meninas, daí, que ficavam?

Lili: Tinha separado, meninas… meninos… O lager, como se falava?

Noemi: É alojamento, barracão.

Lili: Mas inteirinho era só de mulheres, outro só de homens.

Ivan: E separado por idade?

Lili: Não!

Ivan: Não?

Lili: Não… quem eles deixaram já tinha a idade que eles queriam para trabalho.

Ivan: Como que… Depois que foi feita a seleção, como é que era dividido o campo, ah… digamos, trabalhadores ficavam num galpão, ou o pessoal ficava em outro, como é que ficava isso?

Carlos: Depende muito, no caso de Auschwitz, como era muito grande, era dividido em vários subcampos, tudo isso era muito relativo. Existiam partes do campo que não existia estrutura nenhuma, existiam barracas. Eram barracas que só se cobria o teto e as pessoas dormiam no chão.

Lili: E tinha… tinha, se chama cama, três andares de…

Noemi: De madeira, né?

Lili: É, de madeira. Era largo, cada parte dormiam dez pessoas. E alguém queria virar, então virava todo mundo.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“Chegamos à uma construção de madeira que chamavam de Bloco. Mil de nós foram enfiados neste Bloco. Dentro, também estava escuro e ouvia-se apenas uma voz rude que, gritando, ordenava: ‘Sente-se onde estiver!’ Senti um cimento úmido, não me sentei, ajoelhei apenas. De madrugada, acho que por volta das três da manhã, mandaram-nos sair. Mostraram como devíamos ficar paradas e nos leram as regras de como devíamos nos comportar. Levantar, geralmente às três da madrugada, ir em fila até o banheiro, voltar em fila. Ficar em fila de cinco, que era chamada de Zeltapow, Às 5h, viria um alemão que faria contagem de quantos éramos. Às 6h, seria distribuído um café, e quando ouvíssemos um sino, o Zeltapow estaria encerrado. Feita a revista, de volta ao pavilhão, em filas. Ao anoitecer, às 6h da tarde, seria distribuído o jantar: duzentos gramas de pão, sopa e uma colher de margarina. Ficar em pé das 3h às 6h era horrível. Quando percebíamos que não havia um alemão por perto, abraçava-nos para não sentir tanto frio. O pior mesmo era antes do amanhecer, quando fazia mais frio. Mal podíamos esperar aquela água negra e quente.Café, aquilo não era. Uma tarde, eu nem consegui morder o pão que nos haviam distribuído, parecia um simples pedaço de tijolo. De fato, era feito de pó de madeira. No primeiro dia eu não comi nada, nem no segundo… Mas depois precisava… eu tinha fome e aquilo que eu recebia também era pouco. Num campo, éramos trinta mil. Trinta blocos com mil pessoas cada. Campos iguais, um do lado do outro, havia uns vinte. E mais longe, onde nem a vista chegava, havia mais. O campo tinha um quilômetro de comprimento. No final, havia uma guarita. O campo era cercado por arame eletrificado. Haviam oito crematórios sempre acesos.Podiam se ver as chamas.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Ivan (narração): Neste momento, eu noto a sua tatuagem, já apagada com o tempo, mas ainda legível. Letras e números, A16334. Uma prática comum para controle de prisioneiros.

Lili: As crianças, quando eram pequenas, perguntaram “o que é isso?” E eu falei que era número de telefone…(os demais riem). Eu nunca quis contar. Mas isso era… era… quem entrou para trabalho foi tatuada…

Ivan: Mas como que tatuaram?

Lili: Assim… Não doía…

Ivan: Não doía?

Lili: Não.

Ivan: Porque essa doeu!

Ivan (narração): Eu aponto para as tatuagens no meu braço esquerdo, que ocupam ele inteiro.

Ivan: Essas doeram! (risos)

Lili: Dói? Ah, você tem…

Ivan: É eu tenho…

Lili: Dói?

Ivan: Doeu, para mim doeu! (risos)

Lili: Ah, mas também não é… não é esse pouquinho! Tem muito!

Carlos: Os números, eles eram restritos ao complexo de Auschwitz. Então, quando a gente vê que um sobrevivente tem tatuado esse número no braço, significa que ele passou em algum momento por Auschwitz. Mas o contrário também não corresponde, isso não quer dizer que todos aqueles que passaram por Auschwitz tenham a marca no braço.

Noemi: É com agulha mesmo que eles faziam?

Lili: Acho que sim, tipo caneta.

Ivan: Tinta de caneta e agulha…

Lili: É… Você também?

Ivan: É… para mim era uma maquininha, foi mais fácil.

Lili: À máquina…

Ivan: É.

Carlos: Esse número, ele era marcado num sistema bem primitivo de tatuagem mesmo, existiam nove números, né. 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8; o 6 e o 9 eram o mesmo, e números individuais, cada um deles com dezenas de pequenas agulhas, como é feita a tatuagem. E esse número também não existia nenhuma determinação de que todos seriam feitos no mesmo lugar, no mesmo braço. Então, alguns são feitos na parte próxima do pulso, outros na parte frontal do braço. Então, não existia nenhum rigor do local.

Noemi: Essa letra “A”,  mãe, o que tem no teu braço…

Lili: Auschwitz.

Ivan: Auschwitz.

Lili: Eu acho… ou Arbeitslager.

Noemi: É, uma vez você me falou que era Arbeitslager, que era Campo de Trabalho.

Lili: Campo de Trabalho…

Ivan: É isso que eu queria saber. Funciona… Tem uma… é um código que significa alguma coisa.

Carlos: Esses números, alguns com letras, outros sem letras, eles se referiam exatamente ao registro daquele prisioneiro em Auschwitz. Se é um prisioneiro que foi realocado para um campo, um sub, como existiam vários sub campos, um subcampo de trabalho específico, para uma fábrica de um trabalho específico, eles eram marcados ali. A partir do momento que saíam desse campo, eram deportados para outro campo, aquele número, aquele símbolo, ele já não era mais representativo para o próximo que ele passaria. E aí, normalmente, o que acontecia na maioria dos campos era um número no próprio uniforme, na própria blusa, ou camiseta, ou casaco que se usava. Por isso, de novo, as tatuagens são muito específicas de Auschwitz e a gente acaba imaginando que em todos os campos, em todas as situações tatuavam o número na pessoa. Na verdade, não.

Ivan: É, porque até a Lili, quando ela vai explicar também o significado da tatuagem, ela se confunde. Ou não, eu não sei se ela tem certeza de que o “A” poderia significar tanto Auschwitz quanto Arbeit, que é trabalho em alemão, não é?

Carlos: É… o que eu posso te dizer é que pelos registros que a gente conhece, esse “A” seria de Arbeit, seria de “trabalho”. Era realocada para um subcampo de trabalho ali. Mas existem outros casos que (incompreensível), que começam com a letra B. E aí, a gente pode estipular que B pode ser alguma coisa relacionada à Auschwitz, ou se existia uma conotação simples de A, B, C, D; uma sequência alfabética simples.

Ivan: É, eu tava vendo que pode se referir também ao grupo de judeus que chegaram. Então, grupo A, grupo B, grupo C.

Carlos: Exatamente, uma separação alfabética simples. Alguns dizem que pode estar direcionado a questões regionais, de grupos de deportados, de onde aquelas pessoas vêm, de que lugar elas vêm. Mas a gente nunca teve uma determinação exata, e é muito comum também essa confusão.

Ivan: É que parece que é um sistema de registro que foi evoluindo com o tempo também. Uma época significa uma coisa, e depois outra.

Carlos: Exatamente. Por isso mesmo que a gente vê alguns que nem têm letra. Que é comum também não ter a letra, não ter o A, nem o B, nem o C. Tem números que são maiores, tem números que são menores, e aí você… provavelmente os que tem números menores chegaram antes, ou não, também não tem lógica que os números mais baixos sejam aqueles que chegaram primeiro, também não é essa a lógica. Então, acredito que provavelmente seja isso mesmo, um sistema de gerenciamento que foi evoluindo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO: NOEMI JAFFE NARRA)

“O número no braço dela é A16.334. Os judeus da série A foram presos a partir de maio de 1944. Foram contabilizados 20.000 homens e 29.354 mulheres. Dentre essas mulheres, portanto, ela era de número 16.334. Quando a filha visitou o museu do holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, em 2010, buscando encontrar o diário dela que está lá guardado, a diretora do museu encontrou casualmente um registro de funcionárias da cozinha de Auschwitz de 1944. Era um registro elaborado por um oficial nazista. Lá estavam o nome e o número dela, além do de várias outras companheiras. O efeito de ver o número no braço dela já como parte de seu corpo e da composição de sua figura, tanto que ninguém o percebe mais, e o efeito de ver seu nome e o número escritos numa folha de registro do campo, grafados por um oficial nazista, é radicalmente diferente. Era como se a filha o estivesse vendo pela primeira vez, como se nunca soubesse que a mãe tinha um número tatuado no braço, nem mesmo que ela tivesse sido prisioneira. Então, aquela história que foi contada em casa, na sala, na cozinha, na infância, também está guardada em registros oficiais, aconteceu de verdade? Tudo aquilo que foi contado, que tem dimensão de realidade somente dentro da imaginação de quem escuta e na lembrança de quem viveu, teve corpo, tamanho, volume, também nas mãos de um soldado? Ele escreveu o nome e o número dela? Não era exatamente a infração que os nazistas tatuavam no corpo dos prisioneiros, mas a identificação inapagável de que se tratava de um prisioneiro. Servia para facilitar o trabalho dos nazistas e para inscrever na carne do condenado sua maior e única infração: existir. Aquilo que fica inscrito na carne como as rugas, a flacidez, mas, acima de tudo, as tatuagens, adquire, dá à pessoa o sentido da existência. Ela existe porque tem essa marca, e tem essa marca porque existe.

– Mãe, você sabe o que significa este A na sua tatuagem?

– sei, é Auschwitz.

– Não, não é! Eu sei, é arbeit, trabalho.”

(FADE IN e fade out DE TRILHA SONORA)

(FIM DA LEITURA DO TRECHO)

Ivan (narração): Noemi Jaffe, lendo o capítulo chamado “Tatuagem”, de seu livro “O que os cegos estão sonhando?”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O “A” no seu braço pode, então, significar tanto Auschwitz quanto Arbeit, trabalho em alemão. E foi essa rigorosidade em registrar seus prisioneiros que permitiu aos pesquisadores entender quantas e quais pessoas foram aos campos alemães e o que exatamente teria acontecido com elas.

Ivan: Por quê eles registravam todas essas atrocidades? Em algum momento, será que não passava pela cabeça deles que um dia toda aquela eficácia em registrar coisas horríveis poderia ser ruim pra eles? Ou eles tinham tanta certeza de que iam ganhar a guerra que não se importavam em fazer isso?

Carlos: Não é nem uma questão de se importar ou não se importar. A questão do registro é, desde o início, era importante pra se mostrar para as próximas gerações o bem que foi feito. Vou te mostrar um exemplo. Já existem comprovadamente, não são teorias, que já desde o fim dos anos 30 e já no início dos anos 40, ainda no início da guerra, já se tinha um plano para se criar, em Praga, um museu judaico. Mas como assim um museu judaico? Era um museu da vida judaica que tinha acontecido ali até aquele momento. Qual que é essa ideia? A ideia era mostrar para as gerações futuras como se havia exterminado uma praga, como se havia resolvido um problema da Europa. Por que o que tem, o que o holocausto possui de diferente, de inédito, de sem precedentes em relação a outros genocídios? Se a gente for parar pra pensar, não é a brutalidade física incomparável um com o outro, não é o número de pessoa, isso também não faz nenhuma lógica, não é o grau de sofisticação do sistema de extermínio, que isso também é incomparável. O que pode ser? E o que a gente determina que como aquilo que é o sem precedentes, o inédito, é justamente essa ideia de totalidade, de globalidade, como se o extermínio dos judeus fosse a solução dos problemas da Alemanha, da Europa e do mundo. Isso devia ser mostrado para as próximas gerações. Então, se registrava. Boa parte dos registros que a gente tem são registros vindo de material bruto que seriam usados em propagandas. E a gente sabe o tamanho de investimento que se foi feito pelo ministério da propaganda nazista. Então, o uso desses materiais como propaganda, futuramente com um material para se mostrar às próximas gerações o bem que foi feito, era o principal estímulo.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO: NOEMI JAFFE NARRA)

“O guia de um grupo de turistas. Vamos agora para as câmaras de gás. Os antigos barracões de prisioneiros agora são blocos divididos por nacionalidades. Há o bloco húngaro, o bloco romeno, o bloco iugoslavo, o bloco grego. As portas do bloco húngaro lembram as portas do banco de ‘O Processo’. Quando K. estava próximo de uma dessas portas, ele ouve um barulho de espancamento. Abre a porta e vê um homem sendo espancado. Pergunto o que estava acontecendo. O espancador responde: ‘eu sou um espancador, eu espanco.’

Na exposição geral, ‘The one who does not remember history is bound to live through it again’, Mauricio Santaiana.

Correspondência entre alemães mostrando os valores retirados de  judeus: 124.940 zlotys; 20.415,00 rublos; 15.537,00 ‘carbunes’; 500…”

(FADE OUT E FADE IN DA NARRAÇÃO)

“Mensagens secretas do movimento de resistência do campo à organização secreta clandestina: 9 314 7 4 3 24 3 2 8, 7, 0…”

(FADE OUT E FADE IN DA NARRAÇÃO)

“Cálculo do custo de construção de um crematório: 19 mil marcos…”

(FADE OUT E FADE IN DA NARRAÇÃO)

“Zyklon B: Marca registrada de um pesticida a base de ácido, cloro, nitrogênio; que foi utilizado pelos nazistas como veneno no assassinato em massa por sufocamento nas câmaras de gás, era ativado em contato com o ar.”

(FADE OUT E FADE IN DA NARRAÇÃO)

“Roman Nadolski, Roman Yopala, Kal Kassler, Lao Rajner, Pola Fogilman, Sima Szfranska, Raquel…”

(FADE OUT E FADE IN DA NARRAÇÃO)

“Roupas de bebê, bonecas sem cabeça…”

(FADE OUT E FADE IN DA NARRAÇÃO)

“Triangulo vermelho: prisioneiros políticos. Triangulo verde: criminosos. Triangulo vazado dentro de quadrado: ciganos. Triangulo preenchido dentro de quadrado: antissociais. SU: Prisioneiros de guerra soviéticos. Triângulo rosa: homossexuais. Triangulo roxo: testemunhas de Jeová. Uniformes listrados. Em cada bloco, haviam de 700 a 1000 prisioneiros.”

(FADE IN DE TRILHA SONORA, QUE CESSA ABRUPTAMENTE)

“No banheiro, há uma pintura de dois gatinhos se lambendo, para lembrar a importância da higiene. Uma criança lavando a outra com uma tina de água.”

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Ivan (narração): Noemi Jaffe, lendo o capítulo “Em Auschwitz”, de seu livro “O que os cegos estão sonhando?”

Lili: Lá estava com minhas primas, tinha três primas, que ficavam sempre juntas.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“Primeiro de Agosto de 1944. À tarde, depois da revista do Pavilhão, apareceu um homem com uma faixa vermelha no braço, ele era chamado de Capo, era inspetor da cozinha e Alemão. Escolheram mulheres fortes para cozinha. Minhas três primas foram escolhidas com outras 40. Eu estava fora dali naquela tarde, pois fui ver a Kátia. Quando cheguei, contaram-me, fiquei desesperada, eu não queria me separar delas. As quarenta escolhidas tinham de ficar fora da fila. Chovia forte. Eu tinha uma blusa fina de véu com saia preta. Devíamos ficar em pé, não podíamos se quer erguer as mãos. Quando terminou a revista, queria me enxugar um pouco as mãos e, assustada, vi que não havia mais blusa em mim, desfez-se com a chuva. Como não podia ficar em pé ali nua, apanhei o minúsculo cobertor que já tínhamos e fiquei parada assim. Lamentei muito me separar de minhas primas. Chorei, e pensei, o que poderia fazer?”

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Lili: Quando cheguei, as minhas primas falara, “E agora, o que vamos fazer? Foi escolhido quarenta meninas para ir na cozinha e você não tava.”

(EFEITO SONORO DE PULSAÇÃO LENTA E GRAVE)

Lili: Ficamos na fila, quarenta meninas, e o Alemão veio contar e falar que “o que aconteceu, invés de quarenta tem quarenta um?” Todo mundo ficou quieto. Então, ela falou que “Se não vão falar quem entrou, eu vou selecionar de novo”. Então, selecionou de novo e chegou para minha vez e falou, “Eu te escolhi?” eu falei “Esqueci”. Ela deixou e tirou outra. Quem entrou na cozinha foi salva por que tinha comida.

Ivan (narração): Agora na cozinha, ela tinha uma função, já estando menos suscetível a ser morta pelos nazistas. Mas estando lá, ela se viu capaz de fazer mais do que apenas cozinhar, e essa é uma parte da vida no campo de concentração que nós geralmente não ouvimos muito.

Lili: a Minha prima trabalhava no lugar onde distribuíam margarina. Margarina era grande coisa por que nós roubamos comida e colocamos a mão entre a grade eletrificado.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“Passou-se quase um mês desde que estou na cozinha. Acostumei-me ao fato de que tínhamos tanta comida quando precisamos, mas isso não bastava. Tínhamos muitos conhecidos que passavam fome, não podíamos ficar inertes vendo isso. Esgoto-nos de trabalho, mas vamos adiante. É muito perigoso roubar, ainda que de modo organizado. Coitado daquele que for apanhado por um alemão. Ainda assim, começamos. Uma vez que os nossos conhecidos não estão em nosso campo, eu tinha que entregar tudo pela cerca eletrificada. Isso era muito perigoso e apenas eu tinha coragem de fazê-lo. O primeiro alemão que visse atiraria imediatamente. E mais, minha mão não podia tocar no arame eletrificado, porque isso também era a morte. Mas eu não temia, não tinha medo da morte, por isso encarava tudo com frieza.”

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Carlos: Nos campos de concentração nazistas que a gente tá acostumado a falar, normalmente eram feitos muitos desses contrabandos, que partiam dos carregamentos, partiam da cozinha e eram utilizados para se trocar com outros setores do campo. Por exemplo, no caso de Auschwitz, que você tinha uma parte homens, uma parte para mulheres, uma parte para prisioneiros que não eram os judeus que vieram de outras partes. Muitos traziam com eles algumas coisas que era possível ser trocadas. Então a troca, o contrabando de comida, este caso, no caso que ela contou do desvio de comida de dentro da cozinha, e isso era muito arriscado, perigoso, mas muito comum também.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“Primeiro de setembro de 1944. Tive muitas dores na perna, o mais terrível era o fato de que já era o segundo dia assim, sem conseguir trabalhar. No primeiro, pensei que nunca mais seria capaz, mas eu não podia fazer nada, aqueles para os quais levava coisas já então estavam famintos, e eu tinha coisa à mão. Não podia suportar a incapacidade de lhes levar algo.

Um dia eu atravessava o campo, olhei para o campo masculino que ficava ao lado do nosso. Procurava conhecidos, como sempre. Quase no último pavilhão, ouvi dizer que havia alguns recém-chegados. Gritei, indaguei a respeito de Papai e do meu Irmão.

Saiu um rapaz do bloco, que me disse que esteve na fábrica junto com meu Pai. Pedi-lhe que me falasse sobre Papai e ele me disse que trabalhavam juntos, parecia estar bem, tinha o que comer e, além disso, recebiam cigarros também. ‘E como não fumava, dei-lhe os meus cigarros’. Perguntei por que ele estava ali agora.

– Porque estou doente, tenho malária. E além disso, estou magro. Tenho 32 anos e receio que me levem ao crematório.

No mesmo dia, levei-lhe um pacote de quinino que conseguira arrumar, pão e açúcar. Por sorte, consegui passar tudo. Levava-lhe, assim, alguma coisa todos os dias. Certo dia, faz 5 dias, arrumei quinino de novo e um pacote de comida, atirei sobre o arame. Agradeceu-me e disse-lhe: ‘Vá, corra para que ninguém perceba’. Abaixou-se para apanhar o pacote e, no mesmo instante, surgiu um alemão no seu campo, e no nosso, a alemã. Percebi tudo e me escondi entre as outras garotas, o coração pulava na minha garganta e eu olhava para minha perna dolorida, ao mesmo tempo. Observava-o e me doía ver como o alemão surrava brutalmente. Tirou-lhe o pacote, atirou no chão e não deixou de espancá-lo até que não desmaiasse.”

 

(EFEITO SONORO DE IMPACTO)

 

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

 

Ivan (narração): Elas roubavam comida da cozinha, especialmente margarina, segundo ela, para poder passar para os prisioneiros do outro lado, especialmente os homens que estavam separados por uma grade eletrificada. Até o dia em que uma soldada alemã descobriu.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“- O que você está fazendo aqui?

Alice, assustada, respondeu:

– Peguei um pouco de margarina.

– Como assim?

– Bem, somos quatro irmãs. E como não estamos nos sentindo bem, juntamos as nossas porções.

– É isso que você me responde?

Esbofeteou Alice.

– Mostre-me suas irmãs.

Eu não estava lá. Em meu lugar, apresentou-se uma de nossas amigas.

– Ahh, então são vocês. Vocês ficarão de joelhos diante da cozinha, até a revista, que será a 1h30. Se, até lá, vocês não confessarem quem de vocês roubou a margarina, atirarei as quatro no crematório.

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Lili: Perguntou quem foi… E as três irmãs não queriam falar quem foi a irmã. Então, falaram para eu aceitar, eu aceitei.

Ivan: E o que aconteceu?

Lili: Então… alemão falou que “você sabe o que vai acontecer com você?” E comecei a chorar e pedi desculpas, mas… alemão não queria deixar que eu me salvasse.

Ivan (narração): Um oficial alemão entra em cena, e era ele quem iria decidir o destino de Lili.

Lili: Me colocou no joelho, no…nas pedras bicudas. Tinha que segurar uma pedra em cima da cabeça, duas horas.

Ivan: E você ficou duas horas?

Lili: Fiquei lá.

Ivan: E depois?

Lili: E depois ele falou “levanta-se e vai embora!”

(EFEITO SONORO DE UM PULSO GRAVE)

Lili: O alemão tinha dó de mim. E eu pra levantar?… Foi difícil de levantar, tava todo machucado o meu joelho.

Ivan (narração): Essa atividade de roubar comida da cozinha era extremamente perigosa, mas havia outros motivos para elas fazerem isso, além de ajudar os mais famintos.

Ivan: Você continuou roubando comida depois disso ou…

Lili: Não, a gente ajudava ainda, porque do outro lado tinha gente que tinha malária, e se a gente deu margarina ou uma coisa que vale, eles venderam e receberam remédio. Porque nós tínhamos bastante comida, trabalhávamos na cozinha… então… tínhamos bastante comida, então a gente ajudava quem podia.

Ivan: E eles ajudavam também?

Lili: Não.

Ivan: Não tinham nada pra ajudar?

Lili: Eles não tinham. Por isso a gente ajudou. Porque eles não tinham.

Ivan: Como é que conseguia o remédio que você citou?

Lili: Eles vendiam a margarina, não sei para quem, eles recebiam o remédio.

Ivan: Então eles davam a comida que vocês deram e ganhavam remédio?

Lili: Isso.

Ivan (narração): Existia, então, uma economia em Auschwitz, baseada especialmente no sistema do escambo de produtos roubados ou contrabandeados. Era uma forma de sobrevivência importante, que sem dúvida salvou muitas vidas. E nesses casos, sem dúvida, o crime compensa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: O que mais você lembra da sua vida lá?

Lili: Não tem nada pra lembrar… foi sorte que eu entrei na cozinha, porque o resto morria de fome. Tinha uma amiga que… eles procuravam gente que são gêmeas. E ela era gêmea de… de uma… não estava junto com ela. Levaram ela no hospital e fizeram… fizeram…

Noemi: (incompreensível).

Lili: Hã?

Noemi: Experiências.

Lili: Experiências. Coitada, eles judiaram tanto até matar. Até morrer. Eles são capazes de dar… dar… não cimento… esse pó, como…

Noemi: Cal?

Lili: Cal. Cal para engolir, para ver o que vai acontecer.

Ivan: Só pra saber…

Lili: Só pra, é… experiência.

Ivan: Eu ouço essas diferentes terminologias, né. Campos de trabalho, campos de concentração, campos de morte. Quais são as classificações e quais as diferenças, assim?

Carlos: Bom, é… o mais conhecido, o que acaba se tornando uma metonímia dos campos é o campo de concentração. O campo de concentração é… a diferença entre o campo de concentração e o campo de trabalho era muito sutil. Normalmente, nos campos de concentração, se separava a mão de obra pra se trabalhar. A diferença principal entre um campo de concentração e um campo de trabalho é que, normalmente, no campo de trabalho, se trabalhava não no campo, não apenas pro funcionamento do próprio campo.

Porque no… vou dar um exemplo. Nos campos de extermínio, existia trabalho, ele era também um campo de trabalho, eram separadas pessoas para fazer o trabalho de funcionamento do próprio campo. No campo que a gente chama de campo de trabalho, eles tinham trabalho que são feitos dentro do campo, mas não apenas para o funcionamento dele. As quatro principais formas de campos nazistas que existiram são os campos de concentração, a maior parte deles, os campos de trabalho, os campos de trânsito, que eram apenas usados pra relocar, pra organizar as deportações e enviar para outros lugares, e os campos de extermínio que… é, nós crescemos ouvindo que eram seis, né. Que eram os campos onde eles tinham as câmaras de gás. Chełmno, Treblinka, Sobibór, Majdanek, Bełżec e Auschwitz. Mas hoje outros campos já fazem parte dessas terminologias. Campos de extermínio, por exemplo, que foram usados não câmaras de gás, mas fuzilamento, por exemplo. Normalmente a gente usa essas quatro terminologias, mas elas se misturam muito, elas acabam se tornando líquidas. Por exemplo, no caso de Auschwitz. Auschwitz, o que era Auschwitz? Auschwitz era um campo de extermínio, de trabalho, de trânsito, ou um campo de concentração? Eu respondo para você. Era os quatro. Então a gente inclusive costuma tratar Auschwitz, especificamente, que era o maior deles, não como um campo, como um complexo. Porque dentro de Auschwitz você tinha alguns campos de concentração. Auschwitz 1, Auschwitz 2, que era Birkenau, Auschwitz 3, todos os campos satélite que eram campos de trabalho, você tinha  um grande complexo. E nesse complexo, essas quatro denominações se inseriam. Então, Auschwitz acaba sendo um complexo de campos, dentre eles campos de extermínio, campo de concentração, campo de trânsito e campo de trabalho. Então essa denominação, ela também é contemporânea. Não se tinha muito claro no período, bom, esse é um campo disso, esse é um campo de outra coisa. Nós, a historiografia, ao tentar resgatar essas experiências, tratou de diferenciar, de alguma forma, que hoje existem mapas e registros de que seria um campo disso, que seria um campo de outra coisa. Mas no período, até pela… pela forma como que muitos campos tinham características não próprias, como campo de trânsito não era só um campo de trânsito, muitas vezes, isso fica mais difícil a gente estabelecer duramente que existiam apenas essas quatro formas de campos.

Ivan: É, você citou aí vários campos e eu lembro que eu já… alguém já me falou, ou eu li, não me lembro, que um dos piores, se é que a gente pode colocar aqui que é um dos piores sofrimentos, né, mas que Dachau era um dos piores, assim, né…

Carlos: É. É. Dachau é um exemplo de um campo de concentração que também era um campo de trabalho. Não existiam campos específicos de extermínio na Alemanha. Mas Dachau, uma das minhas avós foi libertada de Dachau pesando 27, 28 quilos. Ela perdeu a família inteira, e ela acabou chegando a Dachau no final. E é muito interessante a gente entender como a maior parte, a maior parte, boa parte das vítimas, elas não se restringiram a um campo apenas. Elas foram indo de campo a campo, seja transportados em vagões de gado, seja naquelas caminhadas, naquelas marchas da morte de um campo até outro. Então, é muito comum ouvirmos dos sobreviventes que eles passaram por vários campos de concentração. Dentre eles, muitas vezes, o próprio complexo de Auschwitz. E chegou a Auschwitz, e se estabeleceu, durante algumas semanas, num campo satélite que era um campo de trabalho ou um campo satélite que era um campo de transfer, e foram realocados para outro campo, por exemplo Dachau. Isso é muito, muito comum.

Ivan: Sim, mas eu já ouvi falar que em Dachau ocorriam, por exemplo, experiências…

Carlos: Existem registros de experiências médicas extremamente contestadas no campo da bioética, hoje em dia. Entre eles, Dachau, Auschwitz, Bergen-Belsen, Buchenwald, todos eles na Alemanha. Existiam outros campos. Existe uma discussão se eles são considerados campos de concentração ou não, ou se são considerados campos de extermínio ou não, que são centros que ficaram conhecidos como centros de eutanásia, que de eutanásia não tinha nada, eram centros de extermínio, em que vítimas que eram escolhidas e que se determinava que existia algum tipo de deformidade ou problemas físicos que iam contra a ideia, a teoria da pureza racial, eram mandados a estes centros e ali eram feitas experiências até o descarte dessas pessoas. Em Dachau, existia. Mas em outros lugares existia. E Auschwitz talvez tenha sido um polo de experiências médicas, experiências com mulheres grávidas, com gêmeos, experiências relacionadas à cor dos olhos, câmaras de oxigênio. Tem vários relatos como estes. E como eu disse, são extremamente questionáveis, não apenas os métodos, mas também os resultados, do ponto de vista da ciência contemporânea.

Ivan: Aham… É que até a Lili também mencionou que ela conhecia duas irmãs gêmeas no campo e que foram levadas para experiências.

Carlos: Exatamente, era muito, muito comum.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Como se não bastassem todos os maus tratos sofridos, havia ainda outro fator que tornava a vida mais difícil. O frio.

Lili: Gente… é… não dá pra acreditar. Tinha dez grau embaixo do zero, gente tinha que limpar a estrada, a calçada do neve, com chinelo e uma camisa, a gente pegava o cobertor e fizemos um buraco para pôr a cabeça e íamos para não ficarmos congelados. E com a… cena… cena?

Noemi: Feno.

Lili: Feno? Com o feno a gente costurava do lado para poder usar como se fosse casaco.

Ivan: Fechava, do lado?

Lili: É. O alemão veio, falou “vocês viram? Elas estão limpos”. Porque a gente tirava a noite pra não suja, pra poder por de manhã. Então, é. Ela nos mostrou para outros o que a gente fazia.

Ivan (narração): Talvez você se pergunte como que é possível alguém chegar nesse nível de apatia com outro ser humano. Para entendermos isso, é necessário lembrarmos que boa parte dos esforços de propaganda nazista visavam desumanizar o judeu, assim como outros grupos sociais, como ciganos, homossexuais, comunistas. O campo de concentração era o fim desta trajetória de discriminação. Lá o oficial nazista não entendia aquele indivíduo como uma pessoa, assim como o próprio judeu já se via muito enfraquecido.

Lili: Às vezes, sozinha, pensando o que eu ia fazer com essa gente, que maltratava nós. Eu não sou vingativa, não conseguia. Eu não ia conseguir fazer. Não consigo ser vingativa.

Ivan: Nunca guardou ódio?

Lili: Nunca. Especialmente ódio, não. Tristeza, sim. Ódio? Odiar para matar, ir lá, não ia conseguir.

Ivan: Mas outras prisioneiras tentaram? Num momento…

Lili: Mas que tentaram? Não tem. Ninguém tentou nada.

Ivan: Nunca tentaram se organizar e…

Lili: Não.

Ivan: Por que cê acha que não?

Lili: E por que você acha essas… essas pessoas que vão agora na Iraque cortar cabeça, eles se deixam? Por quê? Também a gente não sabe. Por quê? Se sabe que vai morrer, por que não se levanta e vai em cima dele? Também é para perguntar, né?

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Lili: Eu não sei porque a gente se deixa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Tinha momentos no campo em que tinha alegria?

Lili: A gente fazia… um pouquinho… lembranças. A gente falava do comida, como a gente fazia, como foi. A gente falava isso.

Ivan: Você pode me contar um caso?

Lili: É… a gente ficou sentada em cima da cama (risos), e contava, minha mãe fazia… esse… de batata, assim…

Noemi: Bolinho.

Lili: Bolinho de batata. A gente fazia assim, a gente falava como que se faz.

Ivan: Você e suas primas?

Lili: É. E com outros também. Tinha lá uma mulher que olhava na mão o quê vai acontecer.

Ivan: Era uma cigana?

Lili: É. Ela começou ler minha mão e falar que você vai viajar longe e você vai ter três filhas (Risos. E aí, eu escrevi no livro isso.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No final de 44, corriam notícias de que as forças aliadas se aproximavam. Lili e outros tantos prisioneiros foram retirados de Auschwitz e começaram a ser deslocados pelas tropas alemãs.

Carlos: Já no finalzinho da guerra, com a derrota iminente, e com a aproximação do exército soviético, por exemplo, os campos começaram a ser evacuados, e aí, destruídos. Auschwitz, boa parte dele, foi destruído na retirada. E aí, sim, começa a destruição de material, de documentos. Corpos que não dava mais tempo para ser incinerados começam a ser enterrados pra fuga. Mas até determinado momento, o registro era importante pra propaganda, pra o que estava sendo feito para as próximas gerações, o bem que estava sendo feito.

Ivan (narração): Novas viagens em trens de carga, acompanhados por oficiais da SS, e a total incerteza do que aconteceria. Sobreviveriam? Seriam Assassinados? Na fronteira com a Dinamarca, tinham que tomar algumas decisões.

Lili: Já foi fim da guerra, quase fim. A gente tinha tanta fome que nós saímos dos vagões e os alemães que estava conosco também não tinha comida. Então a gente pediu para nos matar porque não aguentávamos mais de fome.

Ivan: Vocês pediram para…

Lili: Para nos matar. E nós sentamos todo mundo assim, a volta, esperando para nos matar. Então o alemão sozinha falou que “nós pedimos ajuda do Cruz Vermelha e eles prometeram que vão ajudar nós, trazer comida. Se não vai chegar, a noite, a gente mata vocês”.

(EFEITO SONORO GUTURAL DE PULSAÇÃO GRAVE)

Ivan (narração): No próximo episódio, o que aconteceu na fronteira com a Dinamarca? Como Lili sobreviveu? Quais os efeitos da guerra em sua cidade natal? E o que teve que fazer para reconstruir a sua vida? Tudo isso, na próxima parte de “As Filhas da Guerra”, aqui no Projeto Humanos.

(FADE IN E FADE OUT DA TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gostou da nossa proposta e gostaria de ajudar, clique no link do post do Patreon e contribua também. Agradecimentos especiais à Gabriela Gianinni, que me ajudou em algumas transcrições; Carlos Reiss, do Museu do Holocausto de Curitiba, que me auxiliou com vários pontos da pesquisa sobre o holocausto; Filipe Figueiredo, do site Xadrez Verbal, que me ajudou com questões políticas sobre a história da Iugoslávia. Obrigado também à Domenica Mendes, do site Leitor Cabuloso, que leu algumas passagens do diário de Lili. E é claro, não posso deixar de agradecer Lili, Stella e Noemi, que me receberam de braços abertos e cederam seu tempo e memória para que este programa ocorresse. A trilha sonora utilizada é de Kevin Macleod, do site incompetech.com e do site Audio Network. Eu sou Ivan Mizanzuk e vou ficando por aqui. Nos vemos no próximo encontro.

(FADE IN E FADE OUT DA TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por: Eduarda Severo, Murilo Maciel, Pedro Luiz Amorim Pereira,Karina ConstancioSanitá, Junior Lazaro, SharisyPezzi, Henrique Pinheiro. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Jean Carlos Oliveira Santos