1 – O Mal Puxa o Mal

10 de agosto de 2015

Ivan Mizanzuk apresenta Lili Jaffe, iugoslava judia que foi prisioneira em Auschwitz, durante os anos de 1944 e 1945. Neste primeiro episódio, conhecemos um diário misterioso, aprendemos como era a vida de Lili na Iugoslávia e como começou a perseguição a judeus em sua cidade.

Links

Museu do Holocausto de Curitiba
Xadrez Verbal

Transcrição

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Esta é a nossa primeira temporada, chamada “As filhas da guerra”, que contará com 5 episódios. E eu prometo que esse nome vai fazer bastante sentido no futuro. Mas até lá, para este primeiro programa, eu vou convidar vocês para fazer um exercício. Então imagina o seguinte, você recebe um diário e ele foi escrito por uma iugoslava sobrevivente de um campo de concentração nazista. Lá, essa sobrevivente conta toda sua história, sobre como deixou sua cidade natal, como foi perseguida, como parou no campo e como saiu de lá. O diário acaba, ela tem uns 18, 19 anos, e algumas  páginas adiante a letra muda totalmente. Agora você já não lê mais o diário dela, você está lendo cartas de amor de um homem a esta sobrevivente. O que você imagina que aconteceu? Pra onde foram estas pessoas? Esta é a história de Lili Jaffe.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Estou no bairro de Higienópolis em São Paulo. Acabei de descer do avião há menos de uma hora. Não chove mas o céu insiste em dizer que quer. Ao descer do táxi, olho para a rua e noto um pai e seus dois filhos. Todos trajando as roupas que condizem com o código de vestimenta ortodoxa judaica. Deve ser aqui, penso. E estou certo. Ao passar pela portaria, noto outra mulher, também roupas típicas, cuidando de um bebê. Quando subo para o apartamento, sou recebido pela minha amiga, escritora Noemi Jaffe, com quem já conversei no Anticast, sua irmã Stela e sua mãe Lili. E é com ela que vim conversar.

Ivan: Então, poderia, por favor, dizer seu nome, idade e o que você fez…

Lili: A idade… (risos)

Ivan: Se quiser, é claro…

Lili: Não, pode falar… Posso falar… Tenho 88 anos. Eu vim da Iugoslávia. Meu nome de casada?

Ivan: Qual você quiser. Como você… hoje.

Lili: Livia Jaffe.

Ivan: Livia Jaffe.

Lili: Isso.

Ivan: Mas chamada de Lili…

Lili: Lili.

Ivan: Lili.

Lili: É… sou conhecida desde criança… Lili… Quando chegamos para pegar passaporte para vir aqui. Entramos por… poloneses… falaram: Lili não é nome. (risos). Então virou Lívia. Eu nunca sabia antes. Então fiquei Lívia.

Ivan: Ah, Lívia. Mas não era o seu nome antes?

Lili: Não, eu chamava Lili.

Ivan: Ah, Lili mesmo… Lili é seu nome iugoslavo…

Lili: É… Lili Stern

Ivan: Ah… daí fica difícil já… (risos). Lili Stern?

Lili: Stern Lili. Iugoslavo é antes. Antes se fala o sobrenome.

Ivan: Ah tá. Uhum…

Lili: Então fala Stern Lili.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Carlos: Tá… Meu nome é Carlos Reiss. Reiss com dois S. Tenho 33 anos e sou coordenador geral do Museu do Holocausto de Curitiba.

Ivan (narração): Há alguns anos, eu visitei o museu que o Carlos dirige, e foi uma experiência bastante impactante para mim. Sendo assim, eu entrei em contato com ele para que me ajudasse em algumas questões sobre a história de Lili. A conversa foi por telefone e por isso a sua voz está um pouquinho diferente.

Carlos: O Museu do Holocausto de Curitiba é único no Brasil. Ele não é a única instituição no Brasil que lida com o tema do Holocausto. Pelo contrário. Existem muitas que fazem isso de forma muito competente. Mas o museu, ele é o único que uniu no mesmo projeto questões relacionadas à educação, à pesquisa, à memória do Holocausto dentro de um projeto museológico. Aí sim ele é o único do Brasil e é o terceiro da América Latina.

Ivan (narração): A instituição possui uma missão didática, que é ensinar a história das pessoas que passaram pelo Holocausto numa perspectiva mais microscópica.

Carlos: Bom, é muito importante a gente compreender o Holocausto não como uma história de milhões de pessoas, mas como milhões de histórias diferentes. Isso é muito importante, na medida em que a gente compreende que cada história é uma história, né. Que cada pessoa tem ou tinha sua própria história, seu nome, seu sobrenome. Durante muitos anos, se transmitiu o Holocausto de uma forma massificada. É aquilo que a gente pode se lembrar nos anos 80, nos anos 90, aquelas pilhas de sapatos, pilhas de cabelos, pilhas de corpos. A necessidade de chocar, de mostrar o tamanho da barbárie. Essa perspectiva foi se alterando nos últimos 15, 20 anos, na medida em que se torna necessário a gente transmitir cada uma dessas histórias, resgatar essas histórias. Então, o mais importante não é chocar mostrando uma pilha de sapatos e sim, através de um sapato por exemplo, a gente questionar de quem era aquele sapato, o que aconteceu com a dona daquele sapato, o que nós, humanidade, perdemos sem a dona desse sapato aqui. Quando a gente fala em personificar, em contar histórias individuais, significa aprender as lições de cada uma delas.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Lili é uma sobrevivente do Holocausto. Quando tinha 17 anos, ela foi tirada da sua cidade natal e levada a Auschwitz, onde passou um ano de sua vida. Hoje é mãe de 3 filhas: Stela, Jane e Noemi. E foi esta última que foi a responsável por transformar seu diário, escrito logo após a experiência da guerra, no livro “O que os cegos estão sonhando?”. Em sua visita ao “Programa do Jô”, de julho de 2013, ela explicou o nome da obra.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: PROGRAMA DO JÔ)

Jô Soares: E aí, Noemi? Esse livro aqui é da Editora 34.

Noemi:  É.

Jô Soares: Como é que é essa história? Como é que surgiu essa indagação, “O que os cegos estão sonhando?”

Noemi: Ah, é uma história bem legal porque a minha mãe, que tá aqui… Ali… A dona Lili.

Jô Soares: Onde é que tá dona Lili? Tá ali dona Lili.

Noemi: Tá ali. Aquela que fez tchauzinho… Ela… Ela ainda tem uma assim, uma… Ela fala português fluentemente. Tá aqui há já 60 anos, mas ela faz ainda alguns erros de português. Então, ela confunde o presente…

Jô Soares: Os tempos verbais…

Noemi: Os tempos verbais. Ela confunde o presente do indicativo com o presente contínuo. Então assim, por exemplo, em vez de dizer “os gatos miam” ela fala “os gatos estão miando”.

Jô Soares: Ahm…

Noemi: E ela tem umas curiosidades, assim, sobre a natureza. Curiosidades cosmológicas. Então, uma vez ela me telefonou e perguntou… Ela me chama de , né… Ela falou, “Nô, o que os cegos estão sonhando?” Aí, eu falei, “Que cegos, mãe?” Aí ela falou, “Os cegos, o que os cegos estão sonhando?” Ela tava perguntando o que os cegos sonham…

Jô Soares: Sonham, claro…

Noemi: … que é uma curiosidade muito legal, né. Saber o que os cegos sonham. Aí, na hora que ela falou isso, eu tava no processo de escrever o livro. Na hora que ela disse, eu pensei, “Esse é o título do livro!”

Jô Soares: … “É o título do livro”… Ela já trabalhou em negócio de venda por telefone? (risos) Que usa aqueles gerúndios? Eu vou ficar perguntando…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Foi graças ao livro da Noemi que tive contato com o diário de Lili. E apesar de ele ter sido lançado apenas em 2012, ele já vinha sendo planejado há muito mais tempo.

Noemi: Noemi Jaffe, escritora, 52 anos. Esse livro, “O que os cegos estão sonhando?”, tem uma história muito longa. Eu… quando eu comecei a pesquisar pra escrever o livro, eu fui olhar os meus cadernos antigos. E desde que eu tinha 16, 17 anos, eu já pensava em escrever um livro sobre o diário…

Lili: É?

Noemi: É.

Lili: Eu não sabia.

Noemi: … sobre o diário da minha mãe. Porque eu sempre soube, desde pequena, que ela tinha um diário da guerra. Mas o diário tava escrito em iugoslavo. Eu não entendo iugoslavo…

Ivan (narração): Na década de 90, Lili, com a ajuda de duas filhas, traduziu o diário. E Noemi tentou publicá-lo numa edição que contaria com textos de pessoas comentando os escritos da mãe. E uma dessas pessoas seria, inclusive, Moacyr Scliar, o grande escritor brasileiro, já falecido. Infelizmente o projeto não foi pra frente e anos depois, ainda com interesse em publicá-lo, Noemi passou a pensar em outras propostas.

Noemi: Aí, os anos foram passando. Eu acabei me tornando uma escritora. Em 2005, eu publiquei um livro de poesia. Aí, eu continuava com essa ideia de publicar esse livro sobre a minha mãe. Aí, surgiu um edital da Petrobras oferecendo bolsas para escritores. Eu fui aprovada nesse edital e… com o projeto de escrever um livro sobre o diário. E eu já sabia que seriam 3 partes. Uma que seria o diário dela, outra minha e outra da minha filha. Que minha filha nessa época já era grande e também ela tava fazendo letras, e também se interessava muito em escrever. E a ideia era fazer um livro de 3 gerações de mulheres, né. Minha mãe, eu e minha filha.

Ivan (narração): Agora, com a ideia de sua filha, Leda, participando, bastava saber como seria a estrutura do livro. E a ideia final veio após uma viagem que Noemi e Leda fizeram à Europa.

Noemi: A gente foi pra Berlim. Lá, a gente conheceu vários monumentos. Os museus, Museu Judaico. Depois fomos pra Polônia. Aí, fomos até Auschwitz. Aí, em Auschwitz, eu conheci as instalações, né, os lugares parecidos com… onde a minha mãe ficou, e vi vários documentos lá, sobre a organização deles, sobre como eles eram organizados e anotavam tudo. Depois eu fui pra Israel também, fui para o Museu do Holocausto. E aí, quando a gente voltou para o Brasil, a minha filha ficou bem traumatizada com essa visita a Auschwitz e ela decidiu que ela não iria mais participar do livro. Depois ela mudou de ideia e resolveu que ela ia escrever só uma parte bem curta. E aí, eu fiquei pensando em como eu iria escrever e decidi que eu ia dividir por temas. Achei as coisas mais importantes que eu tinha vivenciado nessa visita a Auschwitz. Então, a ideia do frio, da fome, da humilhação…

Ivan (narração): Agora a ideia estava montada. A primeira parte do livro seria o diário da sua mãe, contando suas experiências nas mãos dos nazistas. A segunda parte seriam as reflexões de Noemi sobre variados temas evocados no relato da mãe, fornecendo mais detalhes e profundidade à narrativa. E a terceira parte seria uma breve reflexão de Leda, neta de Lili, sobre a experiência da avó e suas próprias impressões pessoais. E é este o livro que tenho em mãos e que me levou a fazer este programa e conversar com a Lili.

Ivan: Que você lembra da sua vida na Iugoslávia? Como que era?

Lili: Ah, era boa. Era muito boa, antes eu estava ainda criança quando tínhamos reinado… e o rei, mataram o rei Alexander, e o filho ficou no lugar dele, Peter… Tinha uma vida muito boa.

Ivan (narração): Em nossa conversa, Lili não falou muito sobre esse evento, mas acontece que, como sabemos, a Iugoslávia deixou de existir em 2003, justamente por conta dos inúmeros conflitos de regiões que a compunham. Essa parte da história europeia é bastante complexa e não é de nosso interesse aqui explorar em profundidade. Mas vale mencionar que o rei Alexandre I, ou Alexander que Lili menciona, era da região Sérvia, assim como ela, e foi assassinado em 1934 durante uma visita à França. Seu assassinato, que ocorreu em praça pública, foi filmado e tornou-se notícia no mundo todo.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: LOCUÇÕES ANTIGAS)

“You are about to see the most amazing pictures ever made. The assassination of King Alexander, of Iogoslavia.”

(EFEITO SONORO DE EXPLOSÃO)

“Marselha, 1934. No dia 9 de outubro, o rei da Iugoslávia, Alexandre I, chega no contratorpedeiro Dubrovnik para uma visita oficial à França. O Ministro de Relações Exteriores da França, Barthou, deposita grandes esperanças nesta viagem. A França deseja fazer acordos militares com países do leste e sudeste europeu, com o objetivo de se defender da Alemanha que, com Hitler, se tornou novamente ameaçadora.”

 

“It’s a great Day in Marceille. Viva, Alexander! Viva (incompreensível)!”

“O rei Alexandre, no carro com o ministro Barthou, sabe que pode haver um atentado contra sua vida aqui em Marselha. A derrota da Áustria na Primeira Guerra teve como consequência o estabelecimento do reino da Iugoslávia, em 1918. Mas o país está dividido por causa das lutas internas entre os diversos grupos étnicos.”

(OUVE-SE UMA MULTIDÃO)

“Um terrorista no estribo da limusine do rei.”

(OUVEM-SE SONS DE TIROS)

“Uh, they’ve been shot!”

 

(OUVE-SE GRITARIA)

“Outras pessoas também são alvejadas. Nacionalistas croatas e macedônios assassinam o rei sérvio da Iugoslávia. Os sérvios são odiados pelos outros grupos do país, por formarem a maioria do povo. O ministro francês que estava ao lado do rei Alexandre foi ferido. A multidão continua a festejar sem desconfiar de nada. Aqui morre uma esperança…”

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Com a morte do rei Alexandre I, assumiu seu filho Peter, Pedro II, como príncipe regente. Mas ele era muito jovem, então o predomínio do poder concentrou-se em Paulo, o primo de Peter. Em seus esforços, buscou uma neutralidade política da Iugoslávia no cenário da Segunda Guerra, especialmente em relação às forças alemãs. Contudo, em 1941, um golpe militar aconteceu que buscou uma aproximação com os aliados, e ao notar isso, as forças alemãs invadiram o país em 1941, dividindo a região. Foi o começo do fim da vida que Lili conhecia.

Lili: Eu estava no ginásio, segundo ano. Porque lá não tinha oito anos primários, tinha 4 anos, depois tinha que fazer…

Noemi (voz distante): Exame.

Ivan (narração): Essa falando ao fundo é a Noemi que, assim como sua irmã, Stela, ajudou Lili na entrevista, quando ela não lembrava as palavras certas em português.

Noemi (voz distante): Admissão?

Lili: Admissão, como entra no outro… para entrar no ginásio. Entrei e meus pais eram religiosos, então, sábado não podia carregar mala. Então, nós tínhamos um homem que me esperava na escola, na saída, para me levar a mala. E todo mundo ria de mim. Isso já era em 1942. Então eu me senti muito… muito mal. Saí da escola.

Ivan (narração): É interessante notarmos que esses pequenos atos de crianças na escola, tirando sarro das práticas e crenças da família de Lili, eram apenas a ponta de um problema histórico muito mais sério que já vinha sendo construído há séculos.

Carlos: É importante a gente entender a complexidade que é a história do antissemitismo. O antissemitismo é uma bola de neve, né. Quando a gente vai falar do ódio em relação aos judeus, a gente tem que entender por partes. Uma delas é o que a gente acredita, a gente enxerga como um ódio relacionado ao diferente, né. É como a gente encara o racismo, o preconceito, a discriminação, a intolerância. Por um lado é isso, pelo outro é a série de componentes históricos. O judeu vai ser acusado de ter matado Jesus, o judeu vai ser acusado de sequestrar criancinhas pra tirar o sangue delas, o judeu vai ser acusado de emprestar dinheiro cobrando juros lá na Idade Média que a Igreja não permitia, depois o judeu vai ser acusado de ser um traidor do seu país, de ser de raças inferiores, de ser dono do banco, dono de Hollywood, dono de sei lá o quê… da Globo, de tudo. Isso é a história do antissemitismo, que é muito contextual, ela não é única e exclusivamente explicada por uma simples teoria do bode expiatório, sabe? “Ah, vamos colocar a culpa nos judeus”. Não é simplesmente isso, tem muito a ver com o contexto, misturado com essa ideia do preconceito… por que o ser humano discrimina aquele que acredita ser diferente? Será que isso é uma coisa natural nossa? Será que isso é fruto do meio? Todas essas discussões, elas estão inseridas nesse conceito. E ali no início do século 20, ele é fundamental pra gente entender como algumas ideias que vinham sendo desenvolvidas já a muito tempo, algumas delas no próprio século 19 – o darwinismo social, a ideia de raça superior, da eugenia, melhoramento genético -, aquilo vai cair como uma luva no discurso demagógico de uma Alemanha que tinha perdido a Primeira Guerra Mundial, que estava destruída, que estava humilhada, e aquilo vai encaixar muito bem no discurso.

Ivan: Teve uma onda migratória grande de judeus também entre as guerras, né? Pra que isso acontecesse.

Carlos: Também, há uma grande onda migratória judaica, ela acontece a partir do fim do século 19 já…

Ivan: Ah, tá…

Carlos: No fim do século 19, a maior parte dos judeus do mundo viviam no que hoje a gente conhece como a Rússia e os países da antiga União Soviética. Boa parte vai para os Estados Unidos, alguma parte começa a ir para o local onde futuramente seria o estado de Israel… No Entre-guerras, especificamente, até a ascensão do nazismo, essa imigração era muito maior dos países do leste europeu do que na Alemanha, na França, na Inglaterra… Nesses lugares os judeus já estavam emancipados, assimilados, eram cidadãos como os outros. A partir da ascensão do Hitler é que essa imigração se intensifica. Mas ao mesmo tempo, ela se dificulta, porque boa parte dos países começa a fechar as portas, né. Inclusive o Brasil, Getúlio Vargas fecha as portas, a imigração fica bastante comprometida nos primeiros anos do nazismo, especificamente na Alemanha.

Ivan: Sim, e eu tava vendo que teve até judeus que lutaram pela Alemanha na Primeira Guerra e que, daí, de repente…

 

Carlos: Isso…

 

Ivan: Ahã, e na Segunda já…

Carlos: Porque era uma tensão racial, né. Teve muitas histórias de judeus que lutaram. A gente, inclusive, tem muito material no museu, medalhas, por exemplo, cruzes de ferro de judeus que lutaram pela Alemanha e que lá na frente vão perguntar “mas eu sou alemão como você, que você tá fazendo?” Porque não era uma questão de ser ou não ser, ter lutado ou não ter lutado, ser rico ou ser pobre, ser religioso ou não ser religioso, era uma questão de caráter racial, né. De caráter de sangue, de seres humanos superiores racialmente e seres humanos inferiores racialmente. No caso da Alemanha, eu posso dizer que 100% da população judaica na Alemanha se considerava alemã, e não só se considerava, era considerado, até a República de Weimar, como alemães como outros quaisquer.

Ivan (narração): Imagine, então, o cenário: uma família judia que não escondia suas práticas religiosas, na Iugoslávia, país que já tinha enormes tensões culturais e que agora ainda tinha que enfrentar um novo inimigo que vinha com força por influência do norte.

Ivan: Como que foi sair da escola? Porque você saiu de lá?

Lili: É, por causa disso. Já começou antissemitismo. Então não foi na outra escola. Foi, um guarda (…) já começou contra judeus.

Ivan: Ou seja, você era judia, família judia, não… nem entravam na escola? Não deixavam entrar na escola?

Lili: Deixaram, mas as crianças mesmo… interessante, as crianças às vezes são piores do que adultos.

Ivan: Sim. E a escola era a única que aceitava os judeus, ou…?

Lili: Não, tinha mais, mas tudo saíram.

Ivan: Todas saíram… Porque não dava mais para ficar?

Lili: Não, não dava para aguentar. Interessante que os iugoslavos não eram antissemitas, mas… eu não sei, o mal puxa o mal. Ficaram também. Então depois, onde eu nasci… morava, pertencia antigamente aos húngaros. Era Hungria. E os iugoslavos depois pegaram esse pedaço, então ficou da Iugoslávia. E, durante a guerra, os húngaros pegaram de volta esses pedaços. Então, já era antissemitismo húngaro.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: E como… quando que você percebeu que tava começando a ficar muito perigoso?

Lili: Ah, já em 43, já estava… já começou a ficar ruim.

Ivan: Cê lembra de algum fato que te marcou nesse período? Que daí você já tava sentindo que tava ficando perigoso, tava ficando ruim, mas que aconteceu e você teve medo mesmo, assim?

Lili: Não sei, eu fui criada para não ter medo e nunca tinha medo. Mas era perigoso, muito ruim. Já começaram xingamento e proibição, não ir aqui não ir lá. O comércio era ruim, era tudo ruim. Começaram a se… pegaram o meu pai para trabalho forçado. Tinha… limpar rua.

Ivan: O que seu pai fazia antes?

Lili: Comércio.

Ivan: Comércio? Vendedor, comerciante?

Lili: É.

Ivan (narração): Já na sua cidade, então, os judeus começaram a sentir os efeitos da política nazista. Num primeiro momento, famílias judias inteiras foram obrigadas a deixar de exercer seus trabalhos, sendo deslocadas para outros tipos de função. E, após serem marginalizadas o suficiente, começaram a vir os avisos de que os judeus seriam retirados de lá.

Lili: Foi… chega… um anúncio que esses – não sei que dia mais – vamos buscar vocês para preparar alimentos e roupas, e às oito horas vamos todo mundo para se encontrar na escola. Então, foi assim.

Ivan: Todos os judeus?

Lili: Só judeus, é.

Ivan: O que vocês conversavam entre vocês?

Lili: Ah, todo mundo tava triste, né? Todo mundo tava assustado como vai ser. A minha mãe  tinha ainda paciência de fazer bolo para levar para a viagem, vai saber para onde a gente ia.

Ivan: Cês não tinham ideia da onde iam?

Lili: Não.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“Senta, 25 de abril de 1944.

Todos à minha volta, assim como eu, estamos tristes. Sabemos o que está acontecendo e também o que acontecerá. Meu pai está sentado no sofá durante a manhã toda, calado, fitando o nada. Por vezes, olha-nos e fecha os olhos tristes. Minha mãe nos consola, não acredita no mal, porém está arrumando as malas, faz doces e suspira fundo, sem que ninguém possa ver. Meu irmão e eu observávamos e, sendo duas crianças, saíamos para chorar. Ninguém nos conta nada, mas sabemos o que está acontecendo. Sabíamos que no dia seguinte, às 8h, os alemães viriam nos buscar e nos arrancar de nosso lar.”

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Ivan: O que vocês sabiam sobre esses deslocamentos de judeus?

Lili: Nós ouvimos que tinha na Polônia, já que entraram os alemães e maltrataram os judeus, ouvimos mas não… pensamos que nunca vai chegar na Iugoslávia.

Ivan: E… mas o que vocês sabiam que tavam fazendo com os judeus. Vocês sabiam alguma coisa, na Polônia mesmo?

Lili: Certo, certo, não sabíamos. Mas sabíamos que tavam matando e maltratando.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“Senta, 26 de abril de 1944.

Levantamos bem cedo. Tudo estava arrumado. Chegaram na hora certa. Eram sete. Um deles se sentou junto à mesa e começou a escrever. O segundo olhou em nossas coisas e deu uma ordem: ‘Estejam com suas tralhas prontas em cinco minutos, são coisas para duas semanas. Levem comida e saiam da casa.’ Está chovendo. Estamos juntos. Nossa família junto com as outras famílias judias. Vão nos levar para a escola judaica. Duas mulheres alemãs nos revistam, um por um, à procura de jóias. Estamos dormindo no chão.”

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Ivan (narração): É difícil, hoje, falarmos sobre o Holocausto sem lembrarmos que a existência dos campos de concentração era até conhecida, dado o expurgo que eles estavam sofrendo em todos os territórios nazistas. Mas o que realmente acontecia por lá era ainda um mistério para muita gente, especialmente para os judeus.

Carlos: A maior parte dos campos de concentração… eles estavam, se localizavam no Leste Europeu, né. Alguns na Alemanha… os campos de extermínio, aí esses sim, sua totalidade, era no Leste Europeu. Quanto mais próximo dessa grande região, que pega hoje parte da Polônia, parte de antigas repúblicas soviéticas – a gente inclui aí a Lituânia, Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia, a própria Rússia; quanto mais próxima dessas regiões, maior era a percepção do que tava acontecendo. Quanto mais distante da região onde foram inseridos… foram colocados esses campos, menor era a percepção do que poderia estar acontecendo lá. E isso é verdade, muitas histórias se passavam, existiam alguns grupos de resistência que chegaram a mandar pessoas escondidas até o final da linha do trem para saber realmente para onde estavam indo, porque estavam dizendo que estavam indo para a Sibéria, que estavam sendo realocados. Mas realmente o que estava acontecendo? E aí, começaram a surgir esses boatos de que já… A partir de 1943… Fim de 43, início de 44… Já era… já era sabido. Acontece que em muitas partes da… da Europa, continuavam a ser invadidas pelo… pelo exército alemão, como é o caso dos Balcãs, como é o caso da própria Grécia, em que, a partir do momento em que existia essa invasão, os judeus eram confinados e eram deportados para estes campos. Então, uma coisa é perguntar para um judeu, na região de Varsóvia, se ele sabia o que tava acontecendo nos campos. Outra coisa é perguntar pra alguém que vivia na França, ou que vivia na Sérvia, ou que vivia na Grécia. Então, como eu disse, é muito… é impossível a gente generalizar essa ideia.

Ivan: Perfeito.

Carlos: No caso da Iugoslávia, das antigas repúblicas da Iugoslávia, é muito provável que existisse uma confusão muito grande, uma falta de informação exata do que poderia tá acontecendo. Até porque foi só em 1944 que houve uma invasão física do exército alemão, diferente, por exemplo, do que acontecia em outras regiões da Europa.

Ivan (narração): No fim, era ainda pior do que imaginavam.

Lili: Levaram primeiro nós para a Hungria, Seguedina (Szeged). Lá, limparam… limpamos os lugar onde estavam os porcos. E… sim, como chama esse… esse fios de…

Noemi: Feno.

Lili: Femo.

Noemi: Feno.

Lili: Feno… tinha um pouco feno… meu pai adoeceu, pegou friagem por baixo. E ficamos lá no silo, não me lembro mais quantas semanas.

(INÍCIO DE LEITURA DE TRECHO)

“28 de abril de 1944.

Chegamos às 11h, com nossas bagagens nas costas, cansados. Andamos cinco quilômetros dentro da cidade. Horrível. Velhos e crianças choram, pedem ajuda, em vão. Quem não andava, apanhava. Jogamos fora muitas coisas para o peso ficar mais leve. Chegamos com muita dificuldade. Colocaram-nos, sessenta, num só quarto, e ordenaram: ‘Vocês devem deixar o local limpo, levantar às 5 e meia da manhã e deitar às 10 da noite. Escolham alguém do grupo para ser responsável pela ordem.’ Queriam escolher mamãe, ela não aceitou. Ficamos ali durante um mês, comendo pó. Tínhamos ainda comida que havíamos trazido de casa.”

(FIM DA LEITURA DE TRECHO)

Ivan (narração): Caso quisessem, podiam ter ficado naquele celeiro na Hungria. Mas lá, sua mãe encontrou duas crianças da família que estavam sendo deslocadas para outro lugar. Como estavam sem ninguém, a mãe de Lili quis ir com elas, e levou sua família junto.

Lili: Nós paramos num lugar que, se gente ficasse, lá poderíamos ficar, mas nós achamos… a minha mãe achou o cunhada, que tinha duas criancinhas, uma de 4 anos, outro de 6, e a mãe enlouqueceu de tristeza. Então, minha mãe pegou as crianças, então nós não podíamos ficar lá. Quem ficou lá, se salvou, mas minha mãe levou no… no trem, de volta, as crianças. Por causa das crianças que minha mãe saiu, também.

Ivan: Sua mãe podia ter ficado lá, então?

Lili: Podíamos ficar.

Ivan: Uhum… e ela foi por causa das crianças?

Lili: É.

Ivan: E por que elas tinham que ir?

Lili: Quê?

Ivan: Por que elas, as crianças, tinham que ir?

Lili: Não tinha onde ficar mais, enlouqueceu, coitada. E o marido… tava no outro lugar, então, nós… nós levamos, pegamos as crianças.

Stela: Mas por que ela não podia ficar naquele lugar com as crianças? Tinha que ir no trem?

Ivan (narração): Essa é a Stela, a outra filha de Lili.

Lili: Nós podíamos ficar…

Stela: Por que não puderam ficar lá com as crianças?

Lili: Não sei, minha mãe não quis, podíamos ficar…

Stela: Com as crianças também?

Lili: Eu acho que sim, não sei. Não tenho certeza. Depois, levaram-nos para… para… no, no trem… não se chama trem. Chama… ai, como se chama? Esse onde o gado vai, vai… onde colocam o gado. Tem muitas, não sei quantas, acho que 50, quantas delas vão, vão caber…

Noemi: É, um trem… um trem de carga.

Ivan: Um trem de carga.

Lili: É. Gente ficou sentado lá, onde gente tinha pacote, sentamos em cima.

Ivan: E daí, foram pro campo?

Lili: É.

Ivan (narração): Esse campo era Auschwitz.

Lili: Nós chegamos no campo, e tinha um médico que selecionava: “esse vai a cá. À direita, à esquerda, direita, esquerda”. E minha mãe, para nós… não dividir eu dela, me escondeu em baixo do casaco, e o alemão me tirou.

Ivan: Eles estavam separando como? Crianças? Adultos?

Lili: Crianças, velhos…

Stela: Homens, mulheres.

Lili: É. Homens para um lado, jovens pro outro lado.

Ivan: E você foi separada da sua mãe?

Lili: É.

Ivan: Você ficou sabendo o que aconteceu quando ela foi separada?

 

Lili: Ah, depois a gente soube que tem crematório.

Ivan: Mas você não viu mais ela? Foi a última vez que você viu sua mãe…

Lili: Isso.

Ivan: Foi aquela vez… e o seu pai já tinha…

Lili: No outro lado. Eles… eles deixaram virar, mas no fim, acho que ele ficou doente, ele… talvez mataram.

(FADE IN DE TRILHA SONORA, QUE CESSA SUBITAMENTE)

Ivan (narração): No próximo episódio: como era a vida em Auschwitz? Por que ele é um campo tão citado, e o que era necessário para sobreviver nele? Tudo isso, na próxima parte de “As filhas da guerra”, aqui, no Projeto Humanos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gostou da nossa proposta e gostaria de ajudar, clique no link do post do Patreon e contribua também. Agradecimentos especiais a Gabriela Giannini, que me ajudou em algumas transcrições; Carlos Reiss, do Museu do Holocausto de Curitiba, que me auxiliou com vários pontos da pesquisa sobre o Holocausto; Filipe Figueiredo, do site Xadrez Verbal, que me ajudou com questões políticas sobre a história da Iugoslávia. Obrigado também a Domenica Mendes, do site Leitor Cabuloso, que leu algumas passagens do diário de Lili. E, é claro, não posso deixar de agradecer Lili, Stela e Noemi, que me receberam de braços abertos e cederam seu tempo e memória para que este programa ocorresse. A trilha sonora utilizada é de Kevin Macleod, do site incompetech.com, e do site Audio Network. Eu sou Ivan Mizanzuk, vou ficando por aqui. Nos vemos no próximo encontro.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por: Giancarllo Palmeira, Jean Carlos Oliveira Santos, Hana Augusta Andrade, Cadu Carvalho. Editado por Sidney Andrade. Revisado por: José Roberto A. Frutuoso