1 – A Donzela da Torre

22 de novembro de 2016

Conheça a história da jornalista Rose Nogueira, militante política presa durante a Ditadura Civil-militar. Rose foi mais uma entre milhares de pessoas perseguidas e torturadas após o golpe de 64.
Produzido por Gustavo di Lorenzo.
Apresentado por Ivan Mizanzuk.

Transcrição

Ivan (narração): Ei, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Antes da gente começar essa nova temporada, eu preciso dar um recadinho sobre qual que é a proposta dos programas que estão por vir. Ah… em 2015, ano passado, eu fiz um chamado lá no Anticast, o meu outro podcast, pra que pessoas que estivessem interessadas em participar aqui do Projeto Humanos preenchessem um formulário dizendo, “quero… quero aprender a fazer podcast de storytelling, contar histórias”, ah, enfim, isso aqui que vocês ouvem. E a minha proposta era treinar alguns candidatos com as técnicas que eu uso, como fazer entrevistas, como gravar, como montar um roteiro, enfim, um podcast de storytelling. E eu tive mais de 120 inscrições, foi impressionante. E alguns dos candidatos vocês já puderam ouvir aqui nos episódios de crônicas que lançamos entre dezembro de 2015 e janeiro de 2016, se você quiser correr atrás, são os episódios 7 a 10. E daqueles 120 interessados iniciais, sobraram seis. E são as histórias que essas seis pessoas produziram que vão compor essa nova temporada do Projeto Humanos. Nós teremos histórias de amor, entrega, sacrifício, coragem… todos aqueles ingredientes necessários para formar o tema dessa nova série de programas, que é “O que faz um Herói”. Sendo assim, eu queria aproveitar pra dar as boas vindas aos novos integrantes do Projeto Humanos, que são o Gustavo di Lorenzo, o Pablo de Assis, a Joviana Marques, a Isabela Cabral, o Diogo Braga e o Pedro Ferrari. Foi uma honra treinar vocês por tantos meses, se é que de fato foi treinamento, foi mais um bate papo super divertido, e troca de ideias. E nesse tempo todo, vocês produziram histórias com o que tinham em mãos, que muitas vezes era um celular só pra gravar entrevistas, um headset, mas, principalmente, vocês tinham um bom roteiro e ótimos personagens. Uma boa história é aquela que, mesmo com um áudio que não seja as mil maravilhas, ainda se supera e nos prende pela força da narrativa. E nisso vocês foram fantásticos. Eu tenho certeza que produzirão histórias memoráveis daqui pra frente. Eu queria agradecer também todos que participaram de todo o processo, alguns infelizmente não conseguiram chegar até aqui, mas eu tenho certeza que ainda vamos fazer muitas coisas juntos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Uma das coisas que me motivaram a montar o Projeto Humanos é o fato de podermos sentir a história acontecendo através das vidas dos personagens. E na primeira temporada, falamos sobre o holocausto. Na segunda temporada, sobre conflitos do Oriente Médio. E agora, nessa terceira temporada, vamos passear por inúmeras situações, não vai ser uma apenas. Algumas dessas histórias estão nos livros de História, algumas estão guardadas em memórias de ilustres desconhecidos que nos emprestarão suas almas. E se às vezes nos perguntamos se de fato estamos vivendo tempos sombrios, essas narrativas talvez possam nos servir de lição ou inspiração. A história de hoje foi produzida por Gustavo di Lorenzo, e se passa num dos períodos mais terríveis da memória brasileira.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Voz: Eu vi notícia, depois, mais tarde, né, aí te chamando de terrorista, né. Então, cê leva até um susto, assim. Não tinha nada de terrorista, não tinha… nada. Terroristas eram eles, contra o povo brasileiro.

Gustavo (narração): Para entender porque os jornais chamaram Rose de terrorista, é necessário regressar alguns anos e fazer uma breve construção do cenário político no período.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Gustavo (narração): 25 de agosto de 1961. O presidente Jânio Quadros anuncia sua renúncia ao congresso nacional.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: Repórter Esso)

Locutor: Atenção! Atenção, ouvintes! O senhor Jânio Quadros acaba de renunciar à presidência da República. O presidente enviou carta ao Presidente do Congresso Nacional comunicando a sua decisão de deixar o governo.

(VINHETA DE RÁDIO)

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Gustavo (narração): No dia da renúncia, João Goulart, o vice de Jânio, participava de uma missão diplomática na China. No Brasil, líderes militares alegavam que João Goulart era comunista, e queriam impedi-lo de assumir a presidência. Vale lembrar que o contexto era de Guerra Fria, e a bipolaridade mundial entre as propostas capitalista e comunista gerava uma grande tensão política em todo o planeta. Resumindo, as pessoas tinham medo do comunismo.

(TRECHO DA MÚSICA Quem tem medo do comunismo?, dos portugueses Fernando Tordo e José Jorge Letria)

Quem tem medo do comunismo?

São os latifundistas, são os monopolistas, são os colonialistas,

enfim… os parasitas!

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Gustavo (narração): João Goulart conseguiu, fazendo diversas concessões, chegar à presidência…

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: Declaração de João Goulart)

João Goulart: Quando saí do estrangeiro, para chegar ao Brasil, a fim de cumprir com os deveres que me são impostos pela Constituição, trouxe no pensamento esse único propósito, de tranquilizar as famílias brasileiras…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Gustavo (narração): Porém, não conseguiu ficar no cargo por muito tempo. Uma grave crise econômica e o medo construído pelos opositores de que Jango transformasse o Brasil em um país comunista resultaram em uma forte instabilidade política, situação ideal para um golpe.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: Sessão do Congresso Nacional)

Senador Moura Andrade: Comunico ao Congresso Nacional que o senhor João Goulart deixou o governo da República.

(DIVERSAS VOZES SE MANIFESTAM, EM PROTESTO)

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Gustavo (narração): Em 31 de março de 1964, aconteceu um golpe de Estado articulado por lideranças militares e apoiado por vários grupos da sociedade, como proprietários rurais, governadores de alguns estados e amplos setores da classe média.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: Sessão do Congresso Nacional)

Senador Moura Andrade: O senhor presidente da República deixou a sede do governo, abandonou o governo! Assim sendo, declaro vaga a presidência da República!

(DIVERSAS VOZES SE MANIFESTAM, ALGUMAS COMEMORANDO, OUTRAS EM PROTESTO)

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Gustavo (narração): Alguns meses antes, a jornalista Rose Nogueira se apaixonou. E foi assim que ela se envolveu com a política.

Rose: Foi… foi por amor. Eu me apaixonei. Eu tinha 18 anos e conheci um homem maravilhoso na Editora Abril, eu já trabalhava lá, e… eu me apaixonei perdidamente. E ele era do Partidão, e… chamava Paulo Viana. Convivendo com a família dele, o irmão dele, já na clandestinidade, né, depois foi pro Chile… uma família que vivei isso já, imediatamente, perseguição logo de cara, no Golpe, eu tava junto. Então, imediatamente eu adotei. Ah, entende… agora não é que… eu não era do Partidão organicamente. Eu ia nas reuniões com ele… Eu ia junto com ele, foi inteiramente por amor, entende? Então, assim que eu conheci. Aí, namorando ele, ele era desquitado, que pra minha família era um horror. Minha mãe tinha pavor desse romance.

Gustavo (narração): O “Partidão” ao qual a Rose se refere é o Partido Comunista Brasileiro, PCB, que tornou-se clandestino após o Golpe.

Rose: Aí, vaio 64, eu tinha 18 anos em 64. No dia do Golpe, ele me mandou levar umas caixas, uns documentos, na rua Líbero Badaró, pra um cara, lá, que tem uma sapataria, e eu fui. E no meio do caminho, tava todo mundo, naquele tempo, existia o rádio Spica, todo mundo tinha, ficava assim, com… no ouvido. E… ali na Líbero Badaró, ali tava um rolo de gente, todo mundo falando e todo mundo ouvindo o rádio muito alto, e muita gente chegando perto de quem tinha rádio. E aí, tinha o discurso do Carlos Lacerda, era governador do Rio, golpista, e depois… bem feito, vítima do Golpe, para o Almirante Aragão, da Marinha, que resistiu ao Golpe, falando assim, “Almirante Aragão, cachorro!”, eu me lembro dele falar isso, “Cachorro! Vem aqui que eu lhe mato!”, assim.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: Programa de rádio)

Carlos Lacerda: Almirante Aragão! Almirante Aragão, assassino monstruoso! Incestuoso miserável! Almirante Aragão, não te aproximes, porque eu te mato com o meu revólver!

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Rose: Todo mundo escutando o Golpe pelo rádio. E aí, eu voltei para a Editora Abril, tava aquela polvorosa, aquela coisa, e o Paulo me…  falou, “Vamo pra casa!”, saímos correndo. E aí, depois, tempos depois, ele me falou que ele me mandou levar uns documentos prum outro companheiro do Partidão, dele. Entendeu? Então, foi, 64 foi isso, e entrou na minha vida assim, entende, já foi um golpe. E… aí, eu passei a ler muito mais, passei a… o Paulo me ajudou muito, me introduziu muito na literatura marxista, conheci muitos companheiros do Partidão. Adotei, assumi a minha ideologia, e… sou socialista, tenho uma alma socialista, tenho uma alma democrática também. Então… E… também não aceito nada, seja de esquerda ou direita, que não seja profundamente humano. Se não, não me interessa. E tudo que é humano me interessa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Gustavo (narração): Sobre o Partidão, ou PCB, é importante fazer um destaque histórico. Em 1967, três anos após o início da ditadura, ocorreu o sexto congresso do partido. Nessa ocasião, definiu-se uma linha de ação antiditatorial que recusou qualquer forma de luta armada. Vários militantes discordaram dessa orientação e deixaram o partido, para adotar formas de resistências nas quais acreditavam mais. O nome mais conhecido foi o de Carlos Marighella, ao redor do qual se formou a Ação Libertadora Nacional, a ALN.

Rose: A… fundação da ALN é 67, no discurso do Marighella na Organização Latino Americana da Solidariedade em Cuba, OLAS.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Gustavo(narração): Nesses primeiros anos de repressão, o relacionamento de Rose com Paulo Viana teve fim, mas a sua aproximação com a política só se intensificava.

Rose: Eu fui trabalhar na Folha, na Folha da Tarde. Lá eu conheci o Luiz Roberto Clauset, com quem eu me casei. Tava grávida e também, na minha casa, nós permitimos que se fizessem reuniões em casa, eu não participava, nem eu nem o meu marido, né, Luiz Roberto.

 

Gustavo: Vocês só cediam a casa?

 

Rose: A gente ficava no quarto. É, eles usavam a sala… Foi aí que eu conheci o Carlos Marighella.

Gustavo (narração): Carlos Marighella foi considerado pelos militares o inimigo número 1 do regime. Sua militância na política, no entanto, começou décadas antes. Filho de operário e neto de escravos africanos, participou ativamente da reorganização do PCB, foi preso e torturado em três momentos durante a era Vargas, pela qual era considerado um subversivo. Na última captura, chegou a ficar seis anos na prisão, até a redemocratização de 1945. Foi eleito deputado constituinte, visitou a China e Cuba para conhecer os governos comunistas, escreveu livros e poemas sobre militância e resistência à tirania. Logo no primeiro mês, após o golpe de 1964, foi baleado e preso, em um cinema do Rio de Janeiro. Conseguiu ser libertado em 1965. Poderia ter optado pelo exílio, mas organizou a luta armada contra o regime militar. Em 1967, fundou a Ação Libertadora Nacional, a ALN, com algumas reuniões ocorrendo na casa da Rose.

Rose: E muitas vezes o Marighella chegava mais cedo, o Clauset, o Luiz Roberto, chegava mais tarde do jornal, eu chegava mais cedo, tava fazendo comida e ele conversando comigo. E ele era o cara mais procurado do Brasil, mas… teve a gentileza, ele era um encanto, a gentileza, a… a lembrança de me trazer o livro “Parto sem dor”, né, eu grávida, para fazer os exercícios lá, para melhorar o parto, né. O interesse humano dele era muito grande, muito. Então, não podia falar o nome, ele me chamava de Filhinha, como todos os baianos chamam as moças. Aí, eu fazendo comida, ele falando… Um visionário. Por exemplo, quando apareceu o MST, eu lembrei muito dele, ele falou assim, “Um dia, se continuar desse jeito, um dia, o povo vai invadir a terra pra comer, pra plantar pra comer, pra matar o boi pra comer”, entende. Nunca me esqueci disso. Aí, quando apareceu o MST, eu falei, “Meu Deus!”, o Marighella, em várias coisas assim, que eu vejo, assim, “Olha o Marighella aí no Brasil. Olha o Marighella aí no Brasil.”

(FADE IN DE TRILHA SONORA. TRECHO DA MÚSICA “Mil Faces de Um Homem Leal”, dos Racionais Mc’s)

“Cada patriota deve saber manejar sua arma de fogo”.

Carlos Marighella

“Aumentar sua resistência física”.

Carlos Marighella

“O principal meio para destruir seus inimigos é aprender a atirar”.

Carlos Marighella

Carlos Marighella

Atenção, atenção, atenção

(FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rose: E combater a ditadura, porque ele amava o Brasil, entende. Era uma coisa muito bonita.  Tinha a famosa frase dele, “Não tive tempo, não temos tempo de ter medo”. Ele fechava todas as janelas, ficava olhando, a gente ficava vendo tudo. Máximo que eu fazia era abrir a porta, ele entrava, entende, até ali, e… e conversava muito com ele. Ele contava histórias da Bahia, ele contava… era uma pessoa profundamente humana, só podia ser um poeta, entende, só podia ser um poeta.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

 

Gustavo (narração): Trecho do poema “Liberdade”. “Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma, que não exista força humana alguma. Que esta paixão embriagadora dome. E que eu por ti, se torturado for, possa feliz, indiferente à dor, morrer sorrindo a murmurar teu nome.” Carlos Marighella.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rose: Eh, então, eu não participava de reunião nenhuma. Que é claro, eu tava grávida, então, também, era uma… razão de fragilidade, né. Eu ficava lá no quarto com o Clauset, e ele ficavam na reunião na madrugada toda. E saía um, depois, saía outro. Na verdade, tava sendo montado o apoio logístico. Eu me lembro duma das coisas que ele falou: “Não se pode entrar em ação nenhuma, sem saber primeiro como sair”, entende. Cê não pode entrar em nada, sem ter uma porta de saída, tem que ter uma retaguarda.

(FADE IN DE TRILHA SONORA. TRECHO DA MÚSICA “Mil Faces de Um Homem Leal”, dos Racionais Mc’s)

Mil faces de um homem leal

Vamo, hã, a postos para o seu general

Mil faces de um homem leal

Marighella

Nessa noite, são Paulo, um anjo vai morrer

Por mim e por você

Por ter coragem de ser

“Todos nós devemos nos preparar para combater. É o momento de trabalhar pela base, mais e mais pela base.”

(FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rose: O nosso chefe de reportagem na Folha da Tarde era o Frei Betto. E aí, de repente, o Betto passou a ser procurado. Foi quando nasceu meu filho. O meu filho nasceu em trinta de setembro, se não me engano, pelo que a Hilda fala, o Virgílio foi morto um dia antes.

Gustavo (narração): O Virgílio a quem Rose se refere foi Virgílio Gomes da Silva, sindicalista que participou do sequestro do embaixador americano. Foi o primeiro preso político a desaparecer e provavelmente a primeira pessoa executada pelo regime militar brasileiro. Seu sumiço se deu após a emissão do Ato Institucional número 5, que marcou o início do momento de maior repressão e violência da ditadura.

Rose: Porque tinha tido, no fim de 68, o Ato 5, né, 13 de dezembro de 68. Aí, no ano de 69 é que eles prepararam uma repressão muito mais forte do que a que tinha até então. Todo mundo sabia, a população de São Paulo sabia. Era difícil achar até uma família que não tivesse alguém preso, ou parente ou conhecido. Que eles prendiam muita gente também, ficava alguns dias, batia, batia, ficava uma semana, um mês e soltavam, né. Aí, os que  iam para o DOPS, depois, que era a segunda etapa da prisão, do DOI-CODI, aí o DOPS, que era a polícia civil, que era dirigido por quem, pelo Romeu Tuma. Mas quem mandava lá? O esquadrão da morte, o delegado Fleury.

(FADE IN DE TRILHA SONORA.  TRECHO DA MÚSICA “Acorda Amor”, de Chico Buarque)

Não é mais pesadelo nada

Tem gente já no vão de escada

Fazendo confusão, que aflição

São os homens

E eu aqui parado de pijama

(FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Gustavo (narração): O DOI-CODI foi o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, que funcionava como ferramenta de inteligência e repressão do Exército Brasileiro. Sua função era basicamente procurar e repreender quem representava uma ameaça à segurança do regime militar. Já o DOPS, por sua vez, foi o Departamento de Ordem Política e Social. Apesar de parecer que esse nome saiu de um filme distópico, o DOPS já não era novidade no país. Ele surgiu em 1924, no Estado Novo de Vargas, e foi fortalecido após o golpe de 1964. Diferentemente do DOI-CODI, o DOPS era controlado por civis e sua função era investigar ações do movimento estudantil, dos movimentos sociais e de organizações supostamente perigosas. Alguns historiadores alegam que os dois órgãos disputavam entre si nos processos de investigação e repressão. Na prática, grande parte dos presos políticos passava pelos dois. Em ambos, a tortura era prática comum. Sergio Fleury, ao qual a Rose se refere, foi o mais famoso delegado do DOPS. Atualmente, é reconhecido como o grande carrasco do regime militar em São Paulo, após inúmeras denúncias de tortura e homicídio.

Rose: Eu tive um parto um pouco difícil e eu fiquei no hospital, acho que uns 15, 20 dias. E… e eu não soube, claro, não soube de nada, nem sabia de nada, nem sabia dessas prisões, nem nada. Quando eu saí do hospital é que eu fiquei sabendo. Aí, naquele tempo, ninguém tinha telefone em casa, não tinha comunicação como a gente tem hoje. Cê tinha que ir a casa de alguém pra falar. Nós não sabíamos de nada e eu tava o bebê em casa, muito pequeno. Só eu, meu marido e o bebê. E aí, chegaram à noite, de madrugada lá em casa, tocaram a campainha e eu fui abrir. Já entraram com tudo. Aí, fui presa pelo delegado Fleury mesmo. Pelo esquadrão da morte inteiro, aqueles… uns dez. E aí, ele falou, “Você está preso e o moleque vai pra juizado de menores”. Até hoje eu não sei, quando eu me lembro disso, o que me deu. A coisa que eu fiquei mais brava foi de chamar o meu nenê de moleque. Vai pro juizado de menores, eu falei, “Não, não vai”, pro delegado Fleury. Ele encostou num móvel assim, bufou, tipo, “O que que eu faço?” Ele falou, “Eu posso usar violência”. Sabe que eu discuti, briguei com ele, gritei com ele, falei, “Pode, mas não vai levar meu filho daqui”. Tem a coisa mais forte do mundo, sabe o que é? Maternidade. Entende? Não tem nada mais brava do que mãe. Aliás, quando eu falei que eu não ia presa por causa do meu filho, que eu enfrentei ele por causa do nenê, ele falou, “Sabe quem eu sou?”. Eu falei, “Sei, sei”. Só faltou ele me perguntar, “E não tem medo?”. E… até hoje eu fico pensando, só as mães tem isso. Aí, a gente vive isso na natureza, nas cachorras, nas cadelas, na tigresa, na onça, na macaca, no pintinho com a galinha. Vai mexer com a cria. Ela pode perder a briga, mas ela resiste, ela não deixa, entende. Então, o que eu tive foi essa reação instintiva da maternidade. E ele levou um susto, ficou assim, “Como alguém me enfrentando?”, acho que foi isso, falou, “Sabe quem eu sou? Sabe que eu posso usar violência?”, “Sei, sei, mas ele não vai com você, não vai, pro juizado ele não vai, ele tem um mês”. Aí, eu falei, “Só vou se ele ficar com a minha família, alguém da minha família. Aí, eu vou presa, se não, não vou”. E ficou aquele impasse. “Tá bom”, e ele decidiu que então eu ia ficar aquela noite… lá, com dois tiras lá, dois deles lá. Ficaram em casa. Falou, “Quem chegar aqui, tá preso”. Eu lembro que de manhã, chegou o fotógrafo que trabalhava pro Luiz Roberto, pra buscar ele pra fazer uma matéria, foi preso. O… a gente tinha um fusquinha, meu sogro mandou o documento do fusquinha, o rapaz que veio entregar foi preso. E eu fiquei lá e o sofá tinha… era de madeira. Aí, eles me amarraram com um cinto, e só se o nenê chorasse no quarto, eu podia levantar pra dar de mamar. Eh… eu disse, “Deixa eu ir lá no quarto, deixa eu ir lá”. No fim, estavam deixando eu dar de mamar pra ele. E no dia seguinte, vieram me buscar. E aí, eles concordaram em deixar meu filho na casa da minha sogra, que era na rua Rei do Freitas, porque era caminho, falou porque lá é caminho. Levei, tinha duas mamadeiras em casa, assim, pra… como as mães tem, mas ele mamava no peito ainda, claro, que ele ainda tinha um mês. Aí, deixei lá sem saber o que fazer. E não tem dor maior, não tem, do que você se separar do seu filho, nessa hora. E foi embora. (breve silêncio)

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rose: E chegamos no DOPS. Eu fiquei sentada, me deixaram sentada numa cadeira. Não falaram nem nada, tinha um monte de gente presa aquele dia. Não sei quantos presos, naquele dia, eles prenderam, quantas pessoas, muitas, tinha vários, não conhecia ninguém. Tinha um assim, mais velho, mais alto, moreno, que tava escondido na casa de alguém, de um dos presos, estava lá. Mas ele já era procurado lá no Rio, que se não me engano ele era da marinha. Chamavam ele de marinheiro. O Fleury, o delegado uma hora lá virou pra ele e falou assim, “Cadê o Marighella?”. Ele virou e disse assim, “Você não é macho? Vai buscar!”, falou para o Fleury. E o Fleury falou, “Pois eu vou mesmo!” e chutou ele, e espancou ele, e aí, falou “Eu vou mesmo!”. E aí, tocou o telefone, eu lembro isso muito bem, tocou o telefone, um cara atendeu e começou a gritar, “Ele entrou, ele entrou, ele entrou”. Aí, nós fomos lá pra castidade e mandaram pras celas. Todas aquelas celas estavam cheias, todas. E lá no fundão também, chamavam de fundão, e tinha mais celas, era mais comprido o corredor. E aí, mais tarde, eles desceram gritando assim, “Matamos o chefe, pode rezar pro chefe!”. Assim. Mas aos berros, e batiam na parede e batiam nas grades. Todo mundo começou a gritar. E eles dizendo que tinha matado o Marighella. A gente ficou sabendo que era verdade porque chegou presa a Makiko Kishi, que era fotógrafa do jornal da Folha da Tarde com a gente. E a Makiko foi presa porque fotografou o Marighella morto e ela confirmou que ele tinha morrido.

Gustavo (narração): Carlos Marighella morreu em 4 de novembro de 1969, o dia em que Rose foi presa. Um dos freis dominicanos que resistiu à ditadura e foi capturado pelo DOPS foi obrigado a marcar um encontro com ele. A emboscada ocorreu às 20h, na Alameda Casa Branca. Percebendo do que se tratava, o guerrilheiro tentou resistir à prisão e foi executado, na missão comandada por Sergio Fleury. Junto ao corpo foi encontrado um revólver e duas  cápsulas de cianureto. Exatamente como orientava o minimanual do guerrilheiro urbano, publicado alguns meses antes, por Marighella.

(FADE IN DE TRILHA SONORA. TRECHO DA MÚSICA “Cálice”, de Chico Buarque e  Milton Nascimento)

Cálice!

Quero perder de vez tua cabeça

Cálice!

Minha cabeça perder teu juízo

Cálice!

Quero cheirar fumaça de óleo diesel

Cálice!

Me embriagar até que alguém me esqueça

Cálice!

(FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rose: O DOPS foi um horror, um horror, eu fiquei uns 40, 60 dias lá, até ser decretada minha prisão preventiva. Então, o DOPS fazia o inquérito, né. No começo, esqueceram a gente. Aí, depois começaram a chamar, pra saber de mim, do Clauset, do povo ali do jornal. O que eles queriam era saber do Frei Betto, e eu não sabia mesmo, que ele se despediu de mim dizendo que ia pra Alemanha, pra um convento, lá, ficar na Alemanha, que ia pro exílio, né, embora. E era o que eu repetia, entende. O que eu não sabia, é que ele já tava preso no Rio Grande do Sul. E mesmo ele dizendo lá que nós não sabíamos que ele tinha falado que ia pro convento na Alemanha, eles insistiam aqui, entende. Eles achavam que tinha mais coisa no meio, acho que era isso. Então, era assim, foi assim. E… e aí, foi complicado, porque comigo foi muito beliscão, tapa. Não tomei choque, nem caldeirada, mas eles resolveram que eu era bonitinha. Então, começaram a me chamar de Miss Brasil. E aí, levaram um jornal, onde tinha uma vaca que ganhou um concurso deles de gado aí, que chamava Miss Brasil. Aí começaram a me chamar de Miss Brasil da vaca leiteira, porque eu tinha leite. E… e toda a vez que eles iam te interrogar, eles tiravam a roupa e eu tinha leite e isso incomodava o torturador, o filho da puta do tarado. Então, mandaram me dar uma injeção pra cortar o leite… à força. Eu ainda briguei, virei assim, ele me deu a injeção na coxa, aqui na frente. Foi uma injeção só, pra cortar o leite. Depois, o meu médico veio depois e me perguntou, “Foi uma injeção ou três?”, falei, “Foi uma”. Ele falou, “Então, foi uma descarga de estrógeno”. Como eu tive um problema do parto complicado um pouco, ah, e com toda aquela imundície, sem tomar banho tanto tempo, e aqueles bandidos lá, eh, eu tive uma infecção puerperal, né, no pós parto… no puerpério. E essa infecção foi muito, muito grande. Eu, até hoje, depois, nunca mais pude ter filhos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rose: E aí, eles trouxeram o Betto do Rio Grande do Sul pra cá. Eu… Eles trouxeram pra cela ao lado da minha, lá no fundão. Eu levei um susto. E nesse mesmo dia que o Betto chegou, eles me transferiram, eu e o Luiz Roberto, pro Presídio Tiradentes. E saiu a nossa prisão preventiva. Em 72, fim de 72 ou 73, bom, eu fiquei no pre… porque no Presídio Tiradentes, você chegar lá era um alívio, porque cê tava na mão da justiça, que não ti… o juiz não mandava torturar. Embora liberasse você pra voltar pro DOI-CODI ou pro DOPS. E de lá eu conheci as meninas que já estavam presas e já tinham passado pelo que eu passei, ou coisa pior, né. Por exemplo, a Hilda, mulher do Virgilio, ela passou pelo DOI-CODI, depois o DOPS, depois o Presídio Tiradentes. Que a maioria foi assim, né. Todo mundo saiu machucado, ninguém saiu inteiro, dum jeito ou de outro. Ah, cheguei lá, já tinha muitas meninas, umas 20, mais ou menos. Nós chegamos a ser 60. E lá no presídio e na prisão, eu conheci as pessoas mais extraordinárias da minha vida. Todas, até hoje, são as pessoas mais extraordinárias que eu pude conhecer. E eu tenho certeza que são as pessoas mais extraordinárias daquela geração, no Brasil. Que, gente! Meu Deus, que coisa mais linda aquelas companheiras. Entende? Aí, cheguei lá, a gente que era mulher, a gente ficava numa… numa ala feminina, porque tinha a feminina e a masculina, a feminina era muito menor, né. E ficava numa torre. Tanto que fala “as donzelas da torre”, alguém falou, “Olha, as donzelas da…” Era uma torre que subia e tinha cinco celas, acho que três em baixo… três em cima e duas em baixo. A gente ficava lá. Tinha uma celona grande e o único lugar que dava pra olhar a rua, assim, era de cantinho, assim, de cantinho, que dava pra ver um poste… Assim, a gente vê um poste duma esquina, na Rua Três Rios. Uma cela grande, mas tinha mais duas em cima, assim, subindo a escada, e duas em baixo. De vez em quando, alguma carcereira passava lá pra gente o jornal, a família de alguém ajeitava lá, né, pra passar… Ajeitava, eu acho que era dar uma graninha. Não sei. Então, a gente lia avidamente, discutia, né. Todo dia, tinha discussão política. A gente tinha radinho também, portátil, que entrou, escondi em baixo do travesseiro, e tudo. O radinho. Ficava escutando o noticiário, mesmo censurado. Aí, ficava sabendo, às vezes, de prisões, de tudo. E aí, teve a Copa do Mundo. A Copa do Mundo de 70. E a Ditadura aproveitou, “O Tri! Vai ser o máximo!”, e tal, aquela coisa toda. Bom, mas aí, o juiz, que era um civil, autorizou entrar uma televisão portátil. Foi quando começou a vender TV portátil, 14 polegadas, pequenininha. Eu não sei a família de quem levou, e a gente tinha uma televisão pra ver o jogo da Copa do Mundo. Punha no meio da sala, fica todo mundo empoleirado, assim, nas beliches, vendo o jogo, entendeu. Eles mandaram (ela ri) pra gente ver o triunfo deles, né. Então, gostamos muito dos jogos, né. O Brasil ganhou mesmo. E se eles pensavam que a gente ia torcer contra, tava muito enganado. Nós torcemos pelo Brasil, claro, entende. Eles é que eram maus brasileiros, entendeu. Que não entendiam nada de brasileiro. Torcemos a favor, gostamos muito do Brasil ganhar, né. Então, aí, a gente fazia trabalho manual, fazia crochê, tricô. O pessoal levava barbante. Pra poder fazer alguma coisa, produzir alguma coisa. Então, quem sabia… E eu sabia fazer crochê, e a maioria sabia fazer crochê. Tricô, ah… bordado… A Dilma sabia fazer bordado.

(FADE IN DE TRILHA SONORA. TRECHO DA MÚSICA “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso)

Caminhando contra o vento

Sem lenço e sem documento

No sol de quase dezembro

Eu vou

(FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rose:  Eu me lembro dela bordando um… Uma coisa de flores, assim, um desses panos de por na parede, todo colorido, as flores coloridas.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: DECLARAÇÃO DE DILMA ROUSSEFF)

Dilma Rousseff: Eu tinha 19 anos, eu fiquei três anos na cadeia e eu fui barbaramente torturada, Senador. E qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogadores compromete a vida dos seus iguais. Entrega pessoas para serem mortas. Eu me orgulho muito de ter mentido, Senador. Porque mentir, na tortura, não é fácil. Agora, na Democracia, se fala a verdade. Diante da tortura, quem tem coragem, dignidade, fala a mentira.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Gustavo (narração): Dilma Vana Rousseff era uma estudante e liderança da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, organização de combate armado à Ditadura. Foi presa em 16 de janeiro de 1970, numa emboscada na Rua Augusta, de São Paulo. Chegou ao Presídio Tiradentes alguns meses depois de Rose. Antes, passou 22 dias sendo torturada. Quarenta anos depois, Dilma foi eleita Presidente da República.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: SOB A VINHETA DO PLANTÃO TELEJORNALÍSTICO DA REDE GLOBO)

William Bonner: Nos próximos quatro anos, pela primeira vez na história, o poder executivo do Brasil será comandado por uma mulher. Dilma Rousseff está oficialmente eleita Presidente da República.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Rose: A Dilma era só da área, ah, de estudo, de… Ela era a mais estudiosa, de todo mundo. Eu fiquei alguns meses com ela, né. Ela continuava estudando economia. Ela era estudante de economia, então ela e a… me lembro da Diva Burnier, economista já formada, as duas ficavam estudando sem parar. E ela tava, na época, muito interessada em macroeconomia. Eu, quando, as duas vezes que eu votei na Dilma, me emocionei muito. Chorei muito, a última vez, o moço perguntou se eu tava passando bem. Porque botar o 13 lá, e ver a carinha dela sorrindo (ela fala com voz chorosa, emocionada), Presidente do Brasil, era demais de bom, entendeu. E demais de bom de saber que a gente lutou do lado certo, entende.. Eu tenho como olhar na cara do meu filho, eles não têm. Eles não têm. Entende, não têm. Tenho coragem de olhar na sua cara. Eles não têm.

(FADE IN DE TRILHA SONORA. TRECHO DA MÚSICA “Apesar de Você”, de Chico Buarque)

Amanhã vai ser outro dia.

Amanhã vai ser outro dia.

Amanhã vai ser outro dia.

Hoje você é quem manda

Falou, tá falado

Não tem discussão, não

A minha gente hoje anda…

(FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rose: Aí, fiquei ainda sete meses e saí no mesmo dia que a Nair Benedicto, aquela fotógrafa genial. Ah, saímos juntas em ménage. Ménage sabe o que que era? É liberdade vigiada. Fiquei ainda quase, acho que dois anos em liberdade vigiada, mais. E tinha que assinar toda semana um livrão, na auditoria militar, ali na Brigadeiro Luiz Antônio. Aí, tinha que assinar o livro lá, toda semana, eh, eu ia lá assinar. E no papel de ménage que a gente assinou, não podia chegar depois das 10 da noite em casa, viajar fora da cidade e não podia trabalhar. Era o tempo do “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Tava em tudo que é carro, em tudo que é coisa, entende. Que era pra a gente ir embora do Brasil, dar um jeito, né, pra mandar embora. Mas a gente tava sendo processada, ou seria presa de novo. O meu marido ainda ficou mais um ano, depois que eu saí. Eu fiquei em liberdade vigiada dois anos, ele ficou um ano, mais ou menos. Ele ficou um ano a mais do que eu, né. Porque eu tinha meu filho, eu fui conhecer meu filho, aí, ele já tinha dez meses. Conhecer melhor, né, porque minha sogra levava ele nas visitas, era quando eu via ele. E tinha muito medo que eles pegassem o menino. Eu morria de medo, morria de medo. (ela embarga a voz) Eu fico um pouco emocionada, desculpa. Meu marido ainda ficou… Eu fiquei morando com minha sogra, eles destruíram o apartamento da gente, não sei o que aconteceu com a maioria das nossas coisas. Fiquei morando com a minha sogra, meu sogro. Foram geniais, cuidaram do meu filho esse tempo todo. E ele tinha dez meses, e ele tava começando a andar. Tava começando a dar uns passinhos, a ficar em pé. E eu tinha… Eu tinha que conhecer melhor ele. Ficar perto dele. E ficar, também, cuidando, que meu marido tava preso. E também teve, quando eu tava presa, já tava no Presídio Tiradentes, em março, o meu padrasto morreu. Meu… Meu pai, que me criou, não é… Meu pai mesmo era um caminhoneiro que morreu, eu tinha quatro anos. Minha mãe casou de novo. Eu chamei ele de pai a vida inteira. E aí, ele morreu. E minha mãe nunca tinha trabalhado. E ainda tinha filhos menores. Tinha duas irmãs menores. E meu irmão, acho que também era menor de idade, foi trabalhar de office boy num laboratório. E ainda tinha irmãs menores. E eu fiz o seguinte, eu fui trabalhar, mesmo com, ah… o que eu tinha assinado lá, que era, que não podia trabalhar, assim mesmo eu fui, numa revista técnica de construção, construção… chama “Construção em São Paulo”. Nessa revista técnica, achando que, por ser técnica, ninguém ia me ver, nem nada. Depois, quando eu fui pegar o meu dossiê no SNI, tava lá que eu trabalhava das 8h30, tal, não sei quê, e ainda escrito “aparentemente, não oferece perigo” (ela ri). Coisas assim, entende. Depois me separei, sabe, do Luiz Roberto. Nós viramos irmão. Aí, depois da prisão, é muito… A maioria não conseguiu continuar casado. Porque você… é uma coisa fraterna. E o casamento não é fraterno, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Gustavo (narração): Nos dias 13 e 14 de setembro de 1971, ocorreu o julgamento de Rose Nogueira e diversas outras pessoas da Ação Libertadora Nacional. O Destaque do processo eram os freis dominicanos, que apoiavam a ALN. Nesse dia, todos eles foram condenados. Rose, por sua vez, foi considerada inocente. Já em liberdade, ela foi contratada na TV Cultura, onde trabalhou com Vladimir Herzog, o Vlado, personagem crucial para entender o fim do Regime.

Rose: Eu era da TV Cultura. Eu era editora de internacional. Eu era muito amiga do Vlado. Trabalhei muito com ele, foi meu professor de televisão, me adorava. E uns quinze dias antes, nem isso, dele morrer, aí nós tivemos uma reunião e o Vlado falou assim, “Olha, eles tão brigando lá em cima, oh. E nós somos o alvo”, eles escolheram a gente de alvo, porque começava aquela história, um cara que era ligado a eles, que tinha uma coluna no Jornal Shopping News, era assim… O hotel da Rua Tutoia, que é o DOI-CODI, está esperando a turma da TV Vietcultura. Porque o problema é que a gente ia no limite da censura. Olhava lá, a censura mandava telex, “Está proibido falar nisso”. Às vezes, a gente nem sabia, era informada da notícia pela censura (ela ri). Ainda o Vlado falou, “Oh, nós somos o alvo. Viramos o alvo. Porque eles não têm mais quem prender. E quem levantar a cabeça, eles cortam”, né. Então, o… Na sexta-feira, o Vlado chamou, um por um, na sala dele, e falou, “Clarice veio aí e disse que a polícia tá lá em casa. Eu vou me apresentar amanhã. Eu vou me apresentar. Antes, vamo fechar o jornal”. Aí, eu falei, “Vlado, cê sabe da minha história? Sabia que eu fui presa? Fui absolvida, mas eu fui presa…” Ainda… ainda tinha recurso. Ele falou, “Então, some! Some! Porque se eles pegarem você aqui, cê tá perdida”. Que vai se apresentar. Aí, voltamos pra casa à noite. E foi à noite que veio lá em casa dois… dois, um repórter e uma moça do arquivo, lá, da TV Cultura, dizendo que o Vlado tinha se suicidado. Entende, claro. Eles foram lá em casa, eu… Nossa, eu desabei, quase morri. E depois, aquela foto ridícula lá, dele enforcado numa corda menor que ele, com as pernas dobradas. Depois apareceu o fotógrafo. Porque ele fotografou o Vlado e ele falou, “Visivelmente ele foi colocado lá depois de morto”. O Vlado, pra mim, foi também… Meu Deus, que perda.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Gustavo (narração): A morte do Vlado gerou indignação em vários setores da sociedade. Intelectuais, acadêmicos, jornalistas, artistas e militantes aderiram à resistência à Ditadura, indignados com a violência do Regime. Vladimir Herzog nasceu na Iugoslávia, sua família veio para o Brasil durante a Segunda Guerra, fugindo do antissemitismo. Tornou-se jornalista e diretor da TV Cultura. Foi assassinado em 1975, nas dependências do DOI-CODI. O laudo oficial afirmava que Vlado teria cometido suicídio. Na foto divulgada pela polícia, que você pode encontrar facilmente procurando por “Vladimir Herzog”, é possível vê-lo com uma tira de pano amarrada ao pescoço, enquanto seus pés tocavam o chão. Trinta e sete anos depois, seu atestado de óbito foi corrigido. Nele, hoje, consta que a morte decorreu de lesões e maus tratos sofridos em dependência do Segundo Exército São Paulo, DOI-CODI.

(FADE IN DE TRILHA SONORA. TRECHO DA MÚSICA “O Bêbado e o Equilibrista”, interpretada por Elis Regina)

Com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete

Chora a nossa pátria, mãe gentil

Choram Marias e Clarices no solo do Brasil

(FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Rose: Essa é a herança da Ditadura, é a certeza de impunidade, entende. Impunidade. Como os torturadores não foram punidos, e como alguém interpretou errado que a anistia foi pros dois lados… Que dois lados? Como se a gente tivesse no mesmo nível de poder, né, pra poder enfrentar. Não, nós enfrentamos com o direito à resistência à tirania, que é um dos direitos do homem. O direito à resistência à tirania, ele não está só na Carta dos Direitos Humanos de 48, da ONU. Ele tá na Bíblia. Foi com base nesse direito à resistência que o Davi venceu Golias, não foi? Entende, ele está nas cartas de São Tomás de Aquino, né. Ele tá na Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa. Ele tá na Declaração de Independência americana. E ele tá na Constituição brasileira, porque ela integra a Carta dos Direitos do Homem de 1948, da ONU. Então, o que nós exercemos foi um direito do homem. O que nós fizemos foi exercer um dos direitos humanos, que é resistir à tirania, né. E quem fez a luta contra o povo brasileiro foram eles. A luta armada foi a Ditadura que fez contra o povo brasileiro. Mas eu não sou igual a eles. Eu não festejo morte, entende. E acho, sim, que a vida foi injusta demais, entende. Porque o… ele não ter sido punido é uma injustiça contra o povo brasileiro. E é por isso que… muitos representantes do Estado pensam que são… que podem ser juízes de vida e morte. Ou quer que aqui tem pena de morte, ou que pode executar uma pessoa. Olha, ainda tenho muita… não é raiva, mas eu tenho… não… não vou falar assim, aquela coisa, tenho pena, né. Tenho pena dos filhos deles, entende, que vão carregar pra sempre isso nas costas. Meu pai… é, eu imagino o que seriam aquelas pessoas com a família, com a própria família. Terrível. Eu tenho é… acho que eles são… são criminosos. É isso, criminosos. Não sei se tem vivo, se tem gente, o que que eles tão fazendo hoje, mas acho que deviam responder pelo que fizeram. Lamento mil vezes mais a morte do meu cachorrinho que ficou doente e morreu, entende. Isso, sim. Não vou chorar por eles. Mas também não vou rir. “Ah, morreu, finalmente!”, como eles faziam. Não sou igual a eles. Não sou. Eu gosto da vida, não gosto da morte, né. Até hoje eu não… eu não aceito, né. Não aceito. Mas, oh, eu… tsc, eu superei, entende. Várias das coisas. Outras, não. Outras, mantenho em mim, entende. Fazem parte de mim.

Gustavo (narração): Atualmente, Rose Nogueira participa do grupo Tortura Nunca Mais e atuou na Comissão da Verdade. Sua história, sua dor e sua luta devem ser divulgadas. É nosso papel divulgá-las. Cada vez que alguém levanta um cartaz pedindo a volta da Ditadura, ou cada vez que alguém nega que as torturas tenham realmente ocorrido, são desrespeitadas as histórias de dor e de morte de pessoas que passaram pelos porões do DOI-CODI, do DOPS e das diversas outras instituições assassinas controladas pelo Regime Militar. Se a violência e a dor revoltam, a indignação tem que ser infinitamente maior, quando essa violência e essa dor saem das mãos do Estado. Realidade que, infelizmente, não acabou em 1985, e vemos repetidamente nas ruas, até os dias de hoje. Que a história da Rose e de tantos outros que derramaram sangue lutando pelo país sejam combustível para os que, ainda hoje, apanham lutando pela Democracia. Que a história deles sirva de inspiração para os que acreditam que não existe liberdade quando o Estado tem a farda e o cassetete sujos de sangue inocente.

(INÍCIO DE MONTAGEM DE CLIPES DE ÁUDIO)

GRAVAÇÃO EM ESPAÇO EXTERNO, sob o vozerio de uma multidão)

Voz 1: Estamos todos aqui simplesmente gritando “sem violência!” Sem violência! (sons de tiros de balas de borracha) Oh, a truculência. Oh, a truculência! (uma explosão) Estávamos só gritando “sem violência!” Oh o que esses filhas da puta tão fazendo! (mais tiros, mais explosões) tinha 30 pessoas gritando “sem violência!”, e eles foram pra cima!

(CESSAM O VOZERIO E AS EXPLOSÕES, PASSA PRA OUTRA GRAVAÇÃO)

Voz 2: A noite que eu fui atingido por uma bala de borracha, disparada pela Tropa de Choque. E este né. Que aconteceu comigo, é… uma possível cegueira, é… um trauma o resto da vida, né. É uma família prejudicada. Eu sei a dor que eu passei naquele dia, aquela noite. E é uma dor que eu não desejo… que o… policial que me acertou… que ele não sinta isso nunca na vida dele.

(PASSA PARA OUTRA GRAVAÇÃO. VOZERIO ENTOA AOS GRITOS: “NÃO ACABOU, TEM QUE ACABAR. EU QUERO O FIM DA POLÍCIA MILITAR”)

(PASSA PARA OUTRA GRAVAÇÃO)

Voz 3: … Eu sou professora há 23 anos, 23 anos, é isso que eu mereço? (ela chora) Eu mereço uma bomba! Uma bomba no rosto! É isso que eu mereço, depois de 23 anos. É isso? É isso?

(PASSA PARA OUTRA GRAVAÇÃO)

Voz 4: Você vai desligar essa porra, ou vou ter que fazer alguma coisa na sua cara?

Voz 5: você vai bater em mim? Tá todo mundo vendo, meu!

Voz 4: Tira essa porra daí!

Voz 5: Tá todo mundo vendo aqui.

Voz 4: Sai fora daqui. Foda-se.

Voz 5: Por que… Que eu to fazendo com você?

Voz 4: Foda-se. Vai tomar no seu cu.

Voz 5: O que eu tô fazendo com você?

Voz 4: Vai tomar no seu cu.

Voz 5: O que eu tô fazendo com você?

Voz 4: Some daqui!

(PASSA PARA OUTRA GRAVAÇÃO, GRITARIA AO FUNDO)

Voz 6: Ele tá batendo em de menor, ele tá batendo em todo mundo! Olha aí o que cê tá fazendo?!

(PASSA PARA OUTRA GRAVAÇÃO. VOZERIO ENTOA, EM CORO: “SEM VIOLÊNCIA! SEM VIOLÊNCIA! SEM VIOLÊNCIA!” SONS DE TIROS E BOMBAS CESSAM O CORO)

(PASSA PARA OUTRA GRAVAÇÃO)

Voz 7: Eu não tava atacando ninguém, eu não tava xingando ninguém, eu tava fazendo meu trabalho, parada. Eu vi ele mirando em mim, mas eu jamais achei que ele fosse atirar. Porque já tinham mirado em mim outras vezes naquela noite. Ninguém tinha atirado. Você não imagina que um cara fardado com uma arma vai atirar na sua cara. Eu não achei que ele fosse atirar.

(PASSA PARA O encerramento do HINO NACIONAL DO BRASIL seguido POR SONS DE MUITOS TIROS E EXPLOSÕES)

Ivan (narração): (por cima dos sons de tiros e explosões) Gustavo de Lorenzo é jornalista, apaixonado por escrita e política.

(CESSAM OS SONS DE EXPLOSÃO AO FUNDO)

Ivan (narração): No próximo episódio…

Voz 8: E a história do Paraná, ela vai ser contada sempre com esse capítulo. Houve um 29 de abril. Houve (sons de sirene e batidas muito altos). Talvez, um dia, mudem o nome daquela praça de Nossa Senhora  da Salette, pra Praça 29 de abril.

(OS SONS DE SIRENE, EXPLOSÕES E VOZES CESSAM)

Ivan (narração): Aqui, no Projeto Humanos, O que faz um herói.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir acessando o site do Anticast, anticast.com.br, e clicando na seção “Seja Patrão”, logo ali no topo. Nos vemos na semana que vem.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Matheus Souza, Alexandre Bertoletti, Débora Veiga Ruiz, Sidney Andrade. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Zé Roberto