5 – O Interrogador

5 de abril de 2016

No quinto episódio da série O Coração do Mundo, continuamos a história do US Marine Francesco Tessitore, brasileiro que lutou nas guerras do Iraque e Afeganistão. Nesta segunda parte da sua história, conheceremos mais sobre suas atuações no serviço de contra-inteligência militar norte-americana, área onde construiu sua carreira trabalhando com obtenção de informarções, geração de fontes e, principalmente, seu trabalho como interrogador de guerra.

Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Kid Stradivarius via VisualHunt / CC BY-NC
Lettering por Luiz Amorim

Transcrição

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. No quinto episódio da nossa série “O Coração do Mundo”, conheceremos mais sobre a história de Francesco Tessitore, brasileiro que lutou pelos Marines, dos Estados Unidos, no Iraque e no Afeganistão. No programa anterior, nós narramos sua presença na famosa batalha de Fallujah, no Iraque, em 2004, e acabamos nos focando nas suas campanhas na infantaria. Contudo, como avisamos, a especialidade de Francesco não é apenas o campo de batalha, mas sim como interrogador e agente de inteligência. E, neste episódio, contaremos como era sua rotina como interrogador de guerra.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: E isso, dentro da inteligência humana que eu fazia como Marine, é… na inteligência humana nos Marines, você… e Counterintelligence, você lida com três áreas. Áreas de interrogação, eu era interrogador. Áreas de desenvolvimento de fontes, né, informantes, que você mesmo é o, o… handler, né, você é o… cara que lida com aquela pessoa e você tem que avaliar, tanto como na interrogação, quais são as motivações que ele tem pra fazer isso pra gente, por que ele quer fazer isso pra gente. Todo mundo tem um preço, todo mundo tem uma motivação. Quando eu falo preço, não é necessariamente preço financeiro. Ah… pode ser saúde, pode ser status, pode ser vingança, depende. Você tem que identificar isso na pessoa, e é por isso que é uma parte psicológica muito grande dentro da inteligência humana. E a terceira parte que eu fazia era, justamente, você se coloca como uma entidade, é… como você se coloca como inimigo, e procura vulnerabilidades nossas na qual o inimigo exploraria, para ver as nossas falhas para contra-atacar, que é o Counterintelligence, em quatro áreas. Áreas de terrorismo, espionagem, subversão e sabotagem. Então, você sempre se coloca… a terceira função que eu tinha era se colocar como… nós chamamos the red cell, né, a célula vermelha, célula vermelha é o inimigo, e o que dentro de uma base, por exemplo, poderia acontecer. Eu, verificando todo o perímetro da base, verificando todo o layout, né, da base, o que… um exemplo, isso é um exemplo, assim, básico. O que eu poderia explorar de espaço que nós estamos vulneráveis que o inimigo exploraria, e vendo e avaliando isso a gente tenta fechar os espaços para que o inimigo, que está fazendo a mesma coisa, não use esse tipo de espaço, né, pra ataque, pra qualquer coisa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Tendo em vista a complexidade do setor da inteligência militar para obtenção e verificação de informações, o Francesco não se dedicava apenas no setor de contra inteligência, ele trabalhava também no controle de informações que vinham sobre terroristas. E essas informações vinham de duas formas principais, por interrogação de prisioneiros ou por informantes, que são pessoas livres, cidadãos comuns que podem oferecer algo de útil para os militares.

Francesco: Então, você, quando desenvolve uma fonte, a primeira coisa que você tem que ter da fonte é… são duas coisas importantes. É… a pessoa tem que estar no lugar certo, onde ele tem a busca, ele tem acesso, né, acesso e posição. Você pode ser um fazendeiro dentro de uma chácara, exemplo, duma fazenda, e você está trabalhando prum cara que é líder de finanças do Talibã, só que você escuta no dia a dia a conversa dele. Não é porque você é um fazendeiro, que você não sabe ler e escrever, que você não é nada, mas você escuta, você tem posição e acesso. Acesso e posição é a coisa mais importante quando você desenvolve uma fonte, a pessoa tem que ter acesso e a posição. Se perder uma das duas, você não tem mais a fonte. Se o cara muda, e você continua trabalhando na propriedade dele, mas ele não discute negócios, e o que vai acontecer, quem ele vai encontrar, com quem que ele vai falar, o que vai acontecer, você simplesmente tá trabalhando pro cara, mas você não tem mais acesso às informações. Então, nós buscamos sempre pessoas que têm posição e acesso, e avaliamos as motivações dessa pessoa.

Ivan (narração): Ser uma fonte num ambiente como o Afeganistão é uma atividade de extremo risco, e não à toa os militares americanos tinham que oferecer algum tipo de garantia para quem aceitasse colaborar. E, como mencionamos, a outra forma de se obter informações preciosas sobre inimigos é através de interrogatório com prisioneiros.

Francesco: Agora, interrogação, já é outro lance. Por exemplo, é… é comum, quando eu vou e converso com pessoas, principalmente do Brasil e de outros lugares, e eu falo que eu, né, a pessoa sabe que eu sou interrogador, e “poxa, mas aquela tortura…”. Não existe tortura. Existiu? Existiu. Existiu métodos, não é tortura, mas existiram métodos para conseguir informações, lógico que existiram. Na captura que todo mundo ficou sabendo, do… do segundo em comando do… do plano do 11 de Setembro, ele foi capturado no Paquistão. Ele receber mais de 180 interrogações, com muita waterboarding, né, waterboard é colocar água e… contudo (risos), isso foi uma coisa de outra entidade, né, da CIA, de todo mundo, é… mas ele conseguiu, ele soltou, ele soltou todas as verdades, ele soltou tudo. Mas no decorrer do geral, da quantidade de coisa que nós fazemos, nós soubemos que isso não é um método eficaz, e nunca… E mais ainda também porque caíram de pau, né, direitos humanos, todo esse tipo de coisa. Ah… mesmo que a gente esteja lidando com quem, terroristas que não querem… não estão nem aí com a sua vida, ou com a vida da sua família, com a vida de qualquer pessoa. Se nós somos capturados com eles, nós somos mortos, se nós capturá-los… os capturarmos, nós temos que fazer o que, tratá-los como pessoas humanas. E sempre foram tratados como pessoas humanas. Nós somos mortos, eles não.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Uma… quando a gente fala uma sala de interrogação, ah… nós usávamos muitos trailers, né, usamos trailers pra… e são todas filmadas. Ah, os trailers são fechados, containers, né, com containers, é… transformados numa sala normal, onde você tem câmera e tem sempre uma pessoa do outro lado monitorando a sua interrogação, que é justamente pra evitar qualquer tipo de… de violência, ou mesmo se o cara tentar ser violento contra você, sempre tem um guarda do lado de fora, tem um… militar do lado de fora, da MP, né, Military Police. Mas isso nunca aconteceu, de eles tentarem reagir. E… você é monitorado através de câmeras, porque todas as gravações, todas as… desculpa, todas as interrogações que você possa imaginar são gravadas, tanto para  a proteção do detento quanto para a proteção sua. Legal, né, principalmente na parte legal. Então, você entra, você tem que tirar fotos dele na entrada. Isso em mente que cada vez que você conversa com o cara por uma, duas, três, quatro horas, você escreve um relatório enorme de… todas as vezes, toda interrogação tem um relatório. Então, você tem que tirar uma foto porque todas as vezes que você interroga alguém, você entra, ele entra na sala trazido pela… Military Police. É… normalmente eu gostava que ele viesse com… vendado, né, com um goggles, né, e os goggles, eles colocam os goggles, mas são pintados de preto por dentro. Algemado. E tudo isso eu fazia porque é uma tática de, tipo, eu estou no controle, ele nunca estará em controle. Isso no… isso no começo. Depois que as coisas foram se desenvolvendo é como um animal, é como uma criança, você começa a dar um pouco mais de liberdade, de acordo com a reciprocidade da pessoa, se ele continua agindo de uma certa forma, você continua agindo da mesma forma, no nível dele. Mas você tem que sempre manter na mente uma coisa, quem controla aquela sala de interrogação sempre é você, e sempre será você, nunca ele.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: É… cada pessoa tem um método diferente, e o meu método sempre foi este que eu vou falar pra você. E o meu método é muito padrão. E eu… é… mandava entrar na sala, né, e eu não entrav.. eu não estava dentro da sala quando ele entrava, eu chegava depois. Certo? E eu chegava depois, eu tinha o meu intérprete, o intérprete é uma pessoa, também, que ele tem uma identidade sigilosa, porque ele tá traduzindo tudo ali, ao pé da letra. Tem uma diferença entre um tradutor e o intérprete, o intérprete é aquele que tem que interpretar a ponto de que se eu levantar na mesa e der uma bicuda na cadeira ele tem que ter a mesma reação que eu tenho, para que a pessoa sinta a mesma entonação. Porque eu to falando inglês e o cara entende árabe, então, não tem uma… o intérprete tem que ser capaz de fazer a mímica minha de emoções, brincadeiras, de qualquer coisa, do mesmo nível que eu estou fazendo. Então, o intérprete chegava, esperava o detento lá na sala, já, e eu sempre chegava depois. Eu gostava de chegar depois porque eu queria que ele ficasse na tensão de saber quem é que está chegando, por que está chegando, como que é a pessoa. Eu entrava na sala, ele ainda tava de goggles, né. Aí, eu mandava o… esse é um método padrão, que eu sempre fiz. Eu mandava o Military Police, né, o policial militar dos… dos Marines, policial, é… que toma conta, né, dos detentos, mandava tirar o goggle dele e desalgemar. Eu era obrigatório, por lei, tirar fotos dele e perguntar pra ele se ele tinha qualquer tipo de marca no corpo, né, qualquer tipo de coisa, cicatriz, hematoma, qualquer coisa. Se ele tivesse eu tinha que mandar tirar… levantar o uniforme dele, de detento, e tirar foto, tirar foto de perfil, tirar foto de frente, tirar foto de costas, vários tipos de foto. E disso tudo vai depois no relatório, porque… na entrada dele, ele tem que estar do mesmo jeito que na saída. Na saída também tinha que tirar foto, depois da interrogação, e a foto da entrada tinha que bater com a foto da saída, pra mostrar que não teve nenhuma violência, que não teve nada, mesmo que nós estamos sendo monitorados por câmeras. Aí, eu mandava ele sentar, eu sempre mandava ele sentar no chão. Eu nunca mandava um detento sentar na cadeira ou na mesa, com exceção, depois, com o tempo e a… performance, né, da pessoa. Eu botava ele no chão porque… a pessoa, no chão, é… eu falei pra você, controle é a coisa básica, é o número 1 de tudo isso. Quem está em controle de tudo aquilo, a qualquer momento, sou eu. Eu sou a pessoa em controle, eu sou o alfa, e ponto. Acabou. Não interessa, eu posso estar numa… num great mood, né, como é que chama… posso estar de bom humor, ou posso estar muito puto da vida, eu posso estar muito nervoso, mas mesmo assim eu estou no controle de tudo, não interessa. Ele é… ele é a minha pessoa, que eu vou simplesmente induzir naquilo que eu quero conversar, de acordo com aquilo que eu quero conversar. Quando ele começa a se abrir, eu deixo ele liderar certas coisas, mas quem está no controle sempre sou eu. Eu coloco ele… eu sempre coloquei o detento no chão por quê? Porque é uma posição de submissão, que nem um animal. Você… se você entende de cachorro, eu sou muito apegado a cachorro, muito… pastor alemão, sempre fui. É… o cachorro não vem à mim, eu vou ao cachorro e convido o cachorro pra fazer aquilo, e o cachorro sempre tá no chão. É a mesma coisa. Ele está no chão, eu estou superior a ele, eu estou em comando dele. Eu queria que os detentos sempre sentissem que eu estou acima dele naquele momento. Com o desenvolver de tudo, que eu falei… das várias interrogações, de meses, aí, depois eu te conto o que eu fazia. Mas eu… ele entrava, fazia tudo isso, eu mandava sentar no chão. Já tava sem algema, sem nada, e eu me colocava em espaço aberto, sem mesa na frente, com ele no chão e o meu intérprete do lado esquerdo. E eu começava como uma conversa normal, agradecendo a presença dele lá e perguntando primeiro pra ele se tudo estava bem e se ele precisava… se ele tinha alguma reclamação de como ele estava sendo tratado, se existia algo que ele gostaria de falar pra mim, que ele não gostou de como o pessoal o está tratando, ou que tem alguma coisa que ele gostaria de pedir, que fosse importante pra ele. Por que eu fazia a primeira pergunta, de saber se alguma coisa estava importante pra ele, se tinha alguma coisa que ele gostaria de mudasse e que ele gostaria de pedir? Porque a partir do momento que ele pedisse alguma coisa pra mim, a partir do momento que ele reclamasse de alguém, ou que ele falasse alguma coisa, e principalmente pedisse uma mudança de algo, é algo que eu já poderia usar contra ele durante o meu questionamento. Então, se você fala… se ele falasse, “Ó, eu não to gostando da cela tal porque tem certos guardas lá que os caras não me respeitam, eu acho que…”, “Mas por que não te respeitam? Ah, tá, vou ver o que eu posso fazer, só que você vai ter que cooperar comigo agora”. Então, se ele já desse algo para mim trabalhar com ele, eu já começava a explorar aquilo, porque ali já é um indício pequeno de uma motivação que ele tem. Qual a motivação dele? Que as qualidades de vida dentro da cadeia melhorem, por qualquer que seja o motivo. Mas eu já tinha algo pra trabalhar em cima dele. Porque tudo ali, além de controle, é aquilo que ele quer e que ele pense que eu posso dar a ele. Mas para que eu possa dar a ele, mesmo que eu não possa dar a ele, ele tem que pensar que eu posso. Mas ele tem que cooperar comigo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: E nós temos… isso eu não posso explicar quais são, em detalhe. Nós temos basicamente dezesseis tipos de aproximações que nós usamos, de acordo com as primeiras conversas iniciais, né. Então, se eu vou sentar com o Ivan, e eu bato um papo com o Ivan e eu acho que o Ivan está envolvido com tráfico de drogas, eu… as primeiras conversas, eu quero saber da sua vida, eu quero saber da vida, eu quero saber do passado, como ele cresceu, quais são as coisas que ele fazia, em que área do país ele cresce. Tem uma grande diferença de crescer no centro de Bagdá e crescer numa região tribal do Iraque, onde é controlada por xeiques, onde é controlada por tráfico de drogas, onde é controlada por certas pessoas, tá entendendo? Então, por aí você vê a… o background da pessoa, o que ele fez, quais são as coisas que… que ele sempre fez na vida, ele fazia esporte, ele eh… era comerciante, ou ele não tinha trabalho, mas vivia bem. Se tinha trabalho e vivia bem, então, de onde ele tirava o dinheiro dele? Então, eu sempre começo a conversa, sem a pessoa saber, é lógico, de eu querer conhecer o que ele… quem é. E eu sempre perguntava, mesmo que eu sabia o que estava acontecendo, a primeira pergunta que eu sempre fazia, depois de perguntar pra ele, pro detento, o que é que… se ele está bem, se teve algum problema, como foi, como está sendo a estadia dele ali, eu sempre perguntava pra ele, ah, se… o porquê que ele estava ali na minha frente, mesmo que eu já sabia a história, que ele estava ali na minha frente, mas eu queria escutar a versão dele. Porque, lembre-se, a pessoa que mente ela pode mentir uma, duas, três, quatro, cinco vezes, mas depois de muito tempo, ela vai esquecer a primeira, segunda, terceira, ou quarta mentira que ela falou, e vai acabar caindo em contradição. Eu sei, eu sei do motivo que ele está ali, ele não precisa falar isso pra mim, mas eu dava liberdade, sempre dei liberdade, quando o detento senta na minha frente, para que eu perguntasse, “explica pra mim, como é que você veio parar aqui, vai? O que que aconteceu?”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Então… mas lembre-se, né, Ivan, que… tudo, infelizmente isso é uma coisa que… por nós termos esse grande… Isso já é uma coisa política, mas por termos essa grande, ah… imagem de que nós temos que constantemente, ah… apoiar, incentivar e desenvolver a democracia, isso nos afeta muito negativamente, para quando esses momentos acontecem, principalmente momentos de interrogação, porque… é justamente aí que também eles conhecem o sistema, eles sabem que nós não podemos botar a mão neles, eles sabem que nós não vamos matá-lo, ele sabe que nós não vamos forçá-lo ou… ou coagi-los de uma certa forma que também é ilegal. Eles sabem de tudo isso, eles sabem do nosso sistema. Eles também assistem televisão, eles sabem da opinião pública, eles sabem o que tá acontecendo. Se eu falasse pra ele, “se cê não falar eles vão te matar”, não é verdade. Eu nem posso falar isso. Se eu falar pra ele, “se você não falar, eu vou te matar”, eu entro em problema. Eu posso ficar… ser desligado, acontecer alguma coisa, punição pra mim, porque você tá coagindo uma pessoa que, mesmo na interrogação, de acordo com os direitos humanos da… tsc… da Convenção de Geneva, né, Geneva Convention, você não pode coagir uma pessoa dizendo “Se você não falar isso, você vai morrer”. Isso é errado. Então, eles sabem de tudo isso, eles já sabem. Eles entram na sala já sabendo de muita coisa porque muitos, de amigos, amigos de amigos, foram capturados e depois liberados, e eles falam, eles sabem como é o nosso sistema. Por isso que o tempo, a paciência e você conseguir ler a pessoa é importantíssimo na interrogação, porque é uma coisa que leva meses até se soltar.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Tem a tabela, né, você tem a lista de todas as pessoas que tão capturadas e quem tá chegando, porque que tá chegando… Exames médicos são feitos, e os médicos… Toda vez que você vai interrogar um médico, você tem que ligar na noite anterior, falar assim, “amanhã eu vou interrogar fulano FG2664, e eu preciso dele, eh, totalmente verificado, se ele tá em condições de ser interrogado”, porque passa por exame médico. Toda vez que você vai falar com o cara, tem que passar pelo médico. O médico tem que falar, “ele tem condições psíquicas de ser interrogado, ele está bem fisicamente”, tudo isso. Toda vez. Então, o que eu fazia, de acordo com a minha semana, eu tinha um luxo, como interrogador, de montar meu próprio horário, entendeu. Nós, interrogadores somo meio… somos meio, assim, indepen… meio não, completamente independentes. Então, eu gostava de interrogar começando, assim, 7h30, 8h da noite, que era depois da janta, e às vezes até quando o cara tava pronto pra dormir, porque você tira o sono dele um pouco, ou acorda ele no meio da noite, ele fica meio desorientado, cansado e quer voltar a dormir, sabe… então, eles às vezes coopera mais, às vezes coopera menos, depende da pessoa que está interrogando. Eu gostava de interrogar, assim, não mais que três por noite, porque a interrogação, Ivan, é uma coisa… não é brincadeira, viu. É, você avaliar três pessoas por noite, depois escrever um relatório no dia seguinte dessas três pessoas, e cada um com uma posição diferente, cada uma… O que você tá usando em relação a tentar extrair informação, o background dessas pessoas ou como é que tá sendo a progressão dessas pessoas. Mas é muito, muito estressante, porque demanda muito do interrogador, na parte emocional, na parte de memória. Eu sempre fui uma pessoa com uma memória muito boa, por isso que eu, modéstia à parte, sempre fui bom na interrogação. Porque a interrogação é algo que… Você tá contando uma história. Se você não for bom de memória, lembrar o que o cara falou… às vezes, uma palavra que ele citou, você pode perder completamente uma oportunidade de pegar grandes informações dele nas próximas interrogações. Mas é muito estressante porque você também… Tem momentos que você, é… Estoura, né, na interrogação. Tem momentos que você… A sua… O que eu falo, eu sempre falei, um interrogador não é nada mais do que um ator perfeito. Eu tenho cert… Eu tenho certeza que se eu tivesse chance de fazer um (entre risos) teste pra ser um ator, de qualquer papel, eu me daria bem, porque… Não, porque um interrogador tem que ser um ator. Um interrogador tem que sentar na frente do cara e escutar ele falar que ele nunca viu a bomba que ele colocou, mesmo que todos os… as evidências do perito, do dedo dele com pólvora, da impressão digital dele na bomba que explodiu que nós recuperamos… Eles… Eles fingem que não entende o que é ciência, eles se dão de louco, sabe. “O que você tava fazendo tal hora, tal dia, tal hora?” “Ah, eu não tava fazendo nada, eu tava limpando… eu tava fazendo farming… Eu sou fazendeiro”. Todo mundo é fazendeiro, lá, todo mundo tem… Todo mundo tem… lá no Afeganistão. Mas você sabe que não. Você sabe que o cara tá linked, né. Lincado com A, B, C e D guys… Caras que nós pegamos. Nós sabemos as atividades dele. Então, tem hora que você perde um pouco a sua estribeira, porque você se sente insultado, né. E quanto mais ele mente, até você colocar, às vezes, na base da… Que eu falo assim, porrada, não física, mas na base da explosão, o cara num… E tem outra, varia muito de cultura. O árabe… E isso eu vou falar em geral, o árabe… o árabe em geral, vou falar o iraquiano. O iraquiano é muito covarde, sabe. O afegão já não é covarde. O afegão, você pode estourar com ele, tudo, mas o afegão, ele só entende uma coisa, é um povo que só entende a força do punho. Se ele sentir que você é muito bacana, ele vai tentar andar em cima de você. Entendeu? Já o árabe é meio covarde, qualquer coisa ele já fica nervoso, já, é… Chora. O afegão, não. O afegão é bem… É um povo de muito mais luta que o árabe, lógico, do que o iraquiano, porque o afegão… O Afeganistão tá em… (ele solta um riso) Em guerra a existência do Afeganistão inteira, desde a invasão de Alexandre, O Grande, tá… Existiu… Nas tribos afegãs. Então, é um povo que, eles lutam entre eles mesmos, é um povo tribal. Como o Iraque, né. Tribo. Mas as condições geográficas do Afeganistão foram muito… Isso é outra coisa que o interrogador tem que ser muito bom, conhecer história do país. Conhecer a cultura, história, economia, política. Porque você não entende como é que um cara detesta outro cara a nível de querer matar o outro cara, durante gerações, porque o tatara-tatara-avô daquele cara matou o… o tatara-tatara-avô dele. Mas é… O Afegão é de muita vingança. O iraquiano também, mas não tanto. Mas o afegão é de vingança, ele carrega por gerações isso. Então, uma tribo detesta a outra tribo, e às vezes eles querem entregar a outra tribo, dizendo que tal pessoa é parte do Talibã, mas tem que saber mesmo qual é o relacionamento entre essas duas tribos. Porque… se eles são amigáveis ou se eles se detestam. Será que esse cara tá falando a verdade, ou se ele tá falando só pra a gente ir lá e capturar um cara que não tem nada a ver, porque ele tem uma vingança contra ele? Então, é muito complexo isso. É extremamen… Então, pra nós, interrogadores, que nem eu falei, mais que três, meu, pra mim, não funcionava, porque… é muito estressante.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: O momento de estouro maior é quando você acha que você vai partir pra cima do cara e, realmente, bater. Aí, se eu tocar no cara, eu tô frito. Então, é o momento que você sai fora, corta a interrogação, chama o guarda, manda ele de volta, esfria a cabeça, vai embora, espera outro dia. Um exemplo perfeito foi no Afeganistão. Eu estava com… Nós tínhamos imagens, né. Essa aí foi muito nítida, história muito interessante. Eh… nós tínhamos uma unidade no chão, no Afeganistão, e nós tínhamos satélite e… buscando imagens. Aí, nós vimos um cara, que nós tínhamos uma… Nós tínhamos uma dica do… Subgovernador do Distrito de que esse moleque… MOLEQUE! Devia ter uns… devia ter uns 19 anos de idade, ele estava de moto com um outro irmão dele, e nós tínhamos uma unidade perto. E nós tivemos uma dica, pelo Subgovernador do Distrito, no Afeganistão, ali da província que nós estávamos, de um dos Distritos, o Subgovernador… estava passando informações pra gente, boas. E ele era um cara bom. Porque os políticos, no Afeganistão, também são… tão quanto, ou piores, do que o do Brasil (ele ri). Só pra te falar… Ah, então, esse cara era um cara decente. E ele tava falando que esse moleque, ele estava com um poder muito grande de autoridade no Talibã. Com 18… 19 anos de idade! O moleque tinha um poder muito forte. E ele já estava comandando os próprios, é… Grupos dele, né, de Talib.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Talib é… Talibã… Só pra dar uma parte histórica. “Talibã” é plural de “estudantes”, né, é o plural de… Então, Taliban, com N, é, significa “estudantes”. “Talib” é “estudante”, sem plural, singular. Então, quando a gente chama o Taliban, são os estudantes, por quê? Porque são os estudantes que vêm das Madrastas do Paquistão e são doutrinados a aprender o Corão, e eles são formados, simplesmente, nisso de exercer o Corão na parte de vingança contra o oeste. Então, por isso são conhecidos como Taliban, que são os estudantes do Corão, das Madrastas, no Paquistão. Madrastas são escolas que pegam o moleque com 10 anos de idade e fica lá até 18, e doutrina o cara durante oito anos. Só estudando o Corão, mais nada. Então, esse cara, ele tava… Ele tava comandando lá, ele tava colocando IEDs, né. IED é Improv… (ele gagueja um pouco) Improvised Explosive Device. E que são, basicamente, bombas feitas por eles, né. E caseiras, e coisas que tão realmente… Que são número 1 de nós perdermos pernas, braços, nos matar. Você passa no lugar, o cara ativa e explode um Humvee inteiro. Isso tanto no Iraque como no Afeganistão. Aí, ele estava como um dos maiores fabricantes e coordenadores de IED da área. E nós recebemos uma dica do Subgovernador de que ele estaria em tal lugar, e nós tínhamos uma unidade perto. Aí, nós lançamos uma… Nós refocamos uma das nossas plataformas de observação aérea em cima dessa área. E ele veio.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Ele veio de moto, com o irmão dele. Eles chegaram, mais ou menos, no final da tarde. Eles chegaram no local, você vê tudo isso… Tudo gravado, isso. Isso tudo gravado. Gravado, assim, como um filme. E nós temos todos os satélites gravando isso aí tudo. Nós temos todos os nossos, é… Né, UAVs tudo gravando isso aí. E ele parou de moto, ele tirou o tapetinho dele de reza. Porque eles rezam cinco vezes por dia, né. O muçulmano reza cinco vezes por dia. Principalmente quando vai fazer algo que é pra matar um infiel. Ou seja, ele ia colocar um IED lá na estrada. Porque essa unidade que estava ali perto, nossa, ia passar por ali. Ele sabia. Aí, nós… Tudo isso, nós filmando. E nós filmamos tudo isso. E ele parou de moto, ele e o irmão dele desceram, o buraco já tinha sido feito por alguma outra pessoa, ele chegou com o dispositivo, colocou. Antes de colocar o dispositivo, ele desenrolou o tapetinho dele, lá, de orar, né. Colocou o tapete em direção à Medina, que é uma das oraç… umas das cinco orações que eles fazem durante o dia. Que é parte de muçulmanos fervorosos. Ele se ajoelhou e fez o ritual dele de rezar, né, voltado pra Medina, na Arábia Saudita. Fez tudo, enrolou o tapete, enterrou e montou na moto. Assim que ele montou na moto, nós despachamos a unidade que tava ali, que ia passar por ali, e que ia ser explodida com certeza. Eles iam detonar. E nós interceptamos ele. E ele veio parar na minha mão. Ele e o irmão dele.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Aí, eu interroguei ele e o meu amigo interrogou o irmão dele. Separado. E… tudo separado. E cada um contando uma história já (ele solta um riso)… Não precisava contar história nenhuma, nós vimos tudo, tá tudo gravado ali, né. E… e esse foi um cara que ele era muito sarcástico, e ele era muito, é… Achava que ele era invencível, moleque, sabe. Imagina um… Imagina um moleque de 19 anos da favela, aí no Rio, passando droga e sendo aquele cara que sabe que nada vai… É teflon, né. Nada vai grudar nele, e é bem sarcástico, bem audacioso, bem cínico. E ele fez tudo isso o tempo todo, dentro da sala de interrogação, durante dias. E infelizmente, com eles, por algum motivo legal que, às vezes, era muito difícil de nós entendermos, nós tínhamos somente 14 dias pra poder segurá-los, até provar que eles eram… Que nós tínhamos alguma coisa neles.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Entendeu? Porque nós tínhamos também a parte do departamento de… Nossa, de… Legal, né. Os advogados. Que, meu, é muito difícil. Você tem um certo número de dias pra segurar. Você, como interrogador, tem que provar que esse cara tava envolvido com A, B, C e D, e que, ah, outras coisas vão acontecer. E tem que tirar informação, depois essa informação tem que ser colaborada com outra, se não, sabe o que acontece com eles? Eles são soltos. E esse cara (ele suspira)… Nós chegamos ao ponto que eu e meu amigo botamos ele e o irmão na mesma sala de interrogação, depois de várias interrogações. Uma coisa que nós, normalmente, não fazemos, que é colocar dois detentos juntos, principalmente irmãos. E nós ligamos o… trouxe o computador, e nós ligamos o vídeo. E é… Não tinha como negar. Eu falei, “é você. Você, ali. Oh, lá, você”. E os intérpretes ali, e eles negando. Mas você via que eles negavam, mas… O irmão, que o meu amigo tava interrogando, teve uma reação mais, assim, de medo. E esse que eu interroguei teve uma reação mais de cínico e de que não, não era ele. E eu perdi a cabeça. Eu perdi a cabeça e queria quase matar o moleque de dar porrada. Mas não cheguei a dar porrada. Mas eu tive que sair de lá, tudo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Infelizmente, ele foi liberado de volta. Imagina só! Ele foi liberado de volta para o distrito que ele tava, e um dos meus Marines que estavam lá nesse distrito e que tinha inicialmente começado tudo isso, que era um da inteligência humana meu, que fazia coletagem de informações, que tinha conseguido, através do Subgovernador, a informação desse cara, através de um informante dele, né, do meu Marine, que chegou a nossa capturação desse cara. Ele, depois que nós… eu fiquei no telefone com ele várias vezes e ele falou, “meu, cês não podem soltar esse cara”. E eu falei, “meu, não sou eu que faço essa decisão, é o JAG “. JAG é o cara do… da parte legal, o advogado da base lá. E eles vão soltar esse cara. E ele falou, “não pode soltar esse cara”. Esse cara já estava sabendo que o Subgovernador que passou a informação sobre ele e, de alguma forma, vazou que o Subgovernador tinha feito isso, né. E esse cara foi solto de novo, ele e o irmão dele. Eu não sei como, com todo aquele vídeo. Até hoje eu não consegui entender, porque… Eu tive que dar um passo para trás desse vídeo… desse caso, porque eu realmente quase cheguei a enfiar a mão nesse moleque. E ele foi solto e em três dias ele já tinha mandado o que a gente chama de cartas da noite, night letters, que o talibã manda. O que o talibã faz, eles mandam ameaças, que são ameaças verídicas, para as pessoas que eles vão executar. Chamam-se night letters, cartas da noite, eles deixam à noite na casa da pessoa, a pessoa lê o que está acontecendo. E chegou na mão do Subgovernador de que ele seria o próximo alvo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Ou seja, comprometeu o Governador, o moleque foi solto, continuou com a arrogância dele, achando que ele é invencível. E… e ele ameaçou o Governador e tava atrás do Governador, tanto que teve alguns atentados contra o governador que nós tivemos que protegê-lo, não chegou a matá-lo, mas perdemos várias fontes de informação por causa desse moleque.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: É… Só pra, também, pegar direito, o vídeo mostrava só ele deitando, rezando, não tinha… não foi preso com bomba nem nada? Porque eu tô tentando entender, assim, o que que incriminava ele nessa cena exatamente?

Francesco: Ele já tinha colocado a bomba. Nós conseguíamos ver o… fio, né, que foi identificado, tanto que a unidade que capturou, foi lá depois e tirou tudo. Desecavou, desenterrou a bomba. O que aconteceu é o seguinte, nós não tínhamos, no vídeo não aparecia ele, ele colocando a bomba e o IED e fechando o buraco. Ele foi lá para rezar, porque quando você, como muçulmano é… fanático, ideologista, antes de você matar o seu inimigo, você agradece aquela, aquele dispositivo que vai matar um infiel. Ele parou ali para rezar, uma das cinco rezas do dia dele, ele parou para rezar em agradecimento de que em alguns minutos, que era aquela unidade que acabou capturando ele, ele ia passar por ali (som de batida com mão) e alguns de nós íamos ser mortos. Então, ele estava agradecendo, numa das rezas dele do dia, ele chegou naquela posição, naquele local, agradecendo a… que aquele local, infiéis, nós, americanos, infiéis… nós… Se você não é um muçulmano, você é infiel. Infidel. E nós infiéis, iríamos… alguns de nós íamos morrer. Então, ele estava agradecendo no futura operação que iria acontecer ali da… como se diz… da execução dele ou da… do planejamento dele.

Ivan: Foi isso então que, digamos, absolveu ele, liberou, porque não aparecia ele montando a bomba, necessariamente?

Francesco: Exatamente.

Ivan: Isso era uma suposição, daí, muito grande, mas era uma suposição.

Francesco: Exatamente. Porque aí ele alegou que ele simplesmente parou ali para rezar, uma das cinco rezas do dia dele. E aí? (risos) Só que nós sabemos a verdade. Infelizmente, não foi visto ele colocando a bomba, mas tava ali. Até na capturação da imagem, enquanto ele estava rezando, você dá pra ver, escondido, onde tava o fio, né, que conectava a bomba embaixo, enterrada, e o fio. Porque essa bomba ia ser self-detonned. Não self-detonned, ia ser man-made, a gente chama man-made device. Man-made device é quando tem alguém com um telefone em algum lugar… Eles tem todo um aparato enorme, eles sabem fazer uma bomba no papel, num negócio de plástico, os caras são bons. Eles usam aquilo que eles podem. Então, eles… Por exemplo, uma coisa que eles usam muito lá, que a gente capturava gente lá, e, às vezes, não dava em nada, é cara com fertilizante, com uma quantidade enorme de fertilizante guardado na casa dele. Por que tanto fertilizante disso? Porque eles usam fertilizante para fazer bomba. Então, isso… A não ser que você veja o cara colocando e seja identificado e depois você vai lá e desativa a bomba e prova que é uma bomba. Meu, é muito complexo também essa parte. E nós temos que provar tudo certinho. Só o fato dele estar rezando, mesmo nós sabendo que ele era um líder daquele grupo que estava fazendo isso, e que nós tínhamos já várias informações quem ele era. Tanto que ele foi solto e já ameaçou o Subgovernador de morte. Ah, mas o fato de nós não vimos ele enterrando, ele só estava rezando, mas nós sabemos que a reza dele, uma das cinco do dia, das cinco rezas dele do dia, era justamente para agradecer aquele momento em que um de nós será morto.

Ivan: Uhum. Sim.

 

Francesco: Entendeu?

 

Ivan: Você, que hoje já é americano e… você falou muito sobre a questão de direitos humanos, democracia em geral… E justamente sobre, os Estados Unidos é conhecido por, justamente como você falou antes, você é culpado… você inocente até que te provem culpado. Eu sinto que você fica bastante frustrado quando conta isso, principalmente em um caso desse e acredito que em outros também. Você não acha que justamente é isso, essa proteção ao acusado, ao réu, que torna vocês… torna os Estados Unidos modelo de julgamento, enfim, por mais que seja uma fraqueza, é isso que diferencia vocês de um terrorista, por exemplo?

Francesco: Sem dúvida, sem dúvida! O princípio democrático e a… o que a gente chama de dual process, processo dual, ida e vinda praticamente. É uma coisa que tá no nosso… na constituição e tá no nosso Bill of Rights, né. Ah, os Estados Unidos têm que permanecer dessa forma, por mais que a gente veja, por exemplo, a Rússia fazendo o que quer, quando quer e como quer, é isso que diferencia… E eu falo isso independente do amor que eu tenho pelos Estados Unidos, é o meu país, eu nasci no Brasil, mas montei minha carreira, minha vida, tudo, minha ex-esposa é americana, minhas filhas são daqui, lutei pelo país, continuo lutando, continuo exercendo a profissão como civil agora, mas dentro da mesma área. É isso que diferencia nós, é isso que nos dá força e isso que nos faz modelo do mundo. É frustrante, muito frustrante, muito frustrante pra você, dentro do campo de combate, como interrogador, como infantaria, porque eu também já fui infantaria durante seis anos, a minha carreira começou com os seis anos de infantaria e depois eu entrei pra área de Counterintelligence. Mas é muito frustrante, porque, vivamente, você sabe que a pessoa ali é culpada, tudo, mas nós não podemos negar o dual process, nós não podemos negar o processo em que ele só pode ser culpado, ele só pode ser inocente, depois que for julgado, certo? Só… Mesmo que nós saibamos tudo, é importante que a gente preserve a Constituição. Os Estados Unidos, o americano, nós preservamos a Constituição como número um, símbolo e documento do país. Então, nós seguimos a Constituição. A Constituição nos garante nossa liberdade, a liberdade e a justiça para com os outros. Existem falhas? Lógico, que existe, em todo sistema existe falha. Mas, o que você falou, a sua pergunta, sim. É muito difícil encarar no dia a dia, no momento, na execução, no campo de batalha. Mas… a longo prazo, nós sabemos que nós estamos onde nós estamos e nós continuamos exercendo o que nós exercemos, porque justamente nós respeitamos os princípios democráticos e nós respeitamos os direitos de um ser humano, por mais ladrão, por mais terrorista, (ele ri) por mais… é isso que pega também os terroristas, porque eles esperam sempre que nós vamos fazer algo, né, que vai contra tudo isso, os princípios que nós acreditamos. E é justamente, justamente a diferença que você falou, é isso que faz a diferença entre nós sermos o que nós somos e o terrorista ser um terrorista.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: A frustração maior é de você… é, saber… eu vou botar isso bem claro. A frustração maior nossa, no geral, é de você saber que seu próprio governo, às vezes, pode se voltar contra você, sabendo que você estava fazendo a coisa certa. Mas, legalmente, se você… mesmo que você esteja fazendo a coisa certa, mas não se encaixe nos parâmetros legais daquilo que foi estipulado, você está quebrando a lei. Eu vou te dar um exemplo perfeito.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Um dos meus Marines estava no apoio de uma unidade. Porque nós, como Counterintelligence, nós damos apoio a muitas unidades, principalmente da área de infantaria. Nós estávamos no Afeganistão, agora em 2011, 2012, e um dos meus Marines estava na… um grupo de snipers, e ele estava dando apoio em coletagem e trabalhando com os snipers. E… havia tido um firefight, né, uma luta, de uma unidade nossa com o talibã. O talibã escapou, um dos talibã ficou ferido, certo? E nós queríamos capturá-lo, porque nós sabíamos onde ele tava. Os snipers tavam vendo tudo acontecendo. O que aconteceu: um caminhão dum zé mané qualquer, um coitado dum afegão, passou, no momento que um dos talibãs mandou ele parar, armado, e apontou a arma pra ele e mandou ele carregar o amigo dele que tava ferido, mandou levar eles para assistência médica que eles tem. O Talibã tem o próprio negócio deles. E o cara… o cara do caminhão, pensa… veja bem, presta atenção na na parte legal do negócio. O cara do caminhão era um zé mané qualquer, só que foi coagido pelo talibã, depois que um deles foi atingido por nós, de colocar o cara do Talibã no caminhão dele e providenciar assistência médica a ele. E tudo isso, os nossos snipers vendo. Um sniper vendo e eles estava no range, o range que eu falo é na distância de… de desabilitar o veículo e pegar o cara que tava ferido. O cara que tava ferido é talibã, nós precisamos pegar o cara pra mandar gente, pro meu amigo, pra interrogar, depois que ele passar por operação e tudo isso também. Eu ia em hospitais depois pegava o talibã e o cara recebe o mesmo tratamento que qualquer um de nós, UTI. O cara pode tá ferido e é colocado lá, se recupera e depois de recuperado e ter os melhores tratamentos, que ele nunca vai ter na vida dele de novo, ele vai pra cadeia. E aí, quando tiver liberado para a interrogação, aí que ele é liberado. Pra você ver uma ideia, eu fui várias vezes no hospital para identificar talibã que já iria depois pra cadeia, porque era Talibã, e os caras lá se recuperando na cama do lado de um Marine. Quer dizer, não tem separação, não tem nada. Pra quem quiser falar qualquer coisa dessa, eu sou prova e vi e fazia esse tipo de trabalho também. Toda vez que chegava um talibã estourado, vivo, baleado e ainda vivo, e tava na UTI, eu tinha que ir lá identificar o cara e já fazer o levantamento de tudo isso. Bom, então nós queríamos pegar o cara justamente pra isso. Capturá-lo, porque tava vivo ainda e, muito importante, prendê-lo e depois interrogar, depois que ele tivesse toda a assistência médica dada a ele. Aí, o sniper, o time do… um dos caras do time do sniper, sniper nosso tava com o meu amigo e tava com outro… o assistente do sniper, né, o spotter. E eles tavam no range perfeito. Aí, ele reportou na hora, (voz com efeito de rádio) “estou aqui, mais ou menos a 450 metros de distância, tenho alvo na mira e estou pronto pra… para desenganchar o carro”, ou seja, imobilizar o carro. Porque o próprio coitado do motorista ali não é nada, ele tá simplesmente coagido pra levar um talibã, porque se ele não levar, ele morre. E deu uma… deu um tempo, né. E ninguém passava de volta a mensagem. O que acontece, na lei de combate que foi estabelecida ali, nós não podíamos atirar em ninguém que não atirasse na gente, certo? Só que aí, veja a situação, essa é uma situação de várias que acontecem lá. Isso depois pra voltar na nossa conversa de frustração. Ele reportou esse caminhão, falou, “ó, o cara acabou de ser coagido, parou. Taliban on sight, Talibã aqui visto, talibã ferido, talibã foi carregado no caminhão, o cara não tem outra opção. Está partindo com o caminhão e eu posso parar o caminhão com um tiro no motor”. Certo? E, aí, depois, a gente ia lá, e ele tava a 400, 500 metros e chegava o suporte de helicóptero, capturava o cara, levava pro médico e deixava o dono do caminhão… Não, tem outra. Se a gente faz um negócio com o caminhão dele, sabe o que a gente ainda faz? Dá dinheiro pro cara como indenização pra comprar outro caminhão, sempre foi assim. Até isso nós fazemos. Se você chega na casa de alguém e destrói a casa porque tava um Talibã lá dentro, sabe o que a gente fazia, o que a gente faz? A gente indeniza a pessoa pra ela construir outra casa, dá dinheiro e tudo. Não é assim, “obrigado, tchau. Infelizmente foi você. Tchau”, não, nós… Até indenização nós pagamos. Então, ele pediu para engage, né, no caminhão e atirar no bloco do motor e parar o caminhão, porque o outro talibã, que coagiu esse cara, colocou o cara no caminhão, o ferido, e mandou o outro tocar e ele foi embora, entendeu? Então, nós tínhamos, dentro de que, nós queríamos capturar aquele cara ferido, nós sabíamos que ele estava vivo, todo mundo estava vendo ali nos snipers, os snipers tinham todos os recursos de poder vê-lo, assim, o que tava acontecendo ali dentro. E era um caminhão aberto, né, com a parte de trás aberta. Ninguém deu autorização, mas um capitão Marine falou, (voz com efeito de rádio) “engage. Go ahead”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: O sniper foi lá e meteu bala no truck, estourou o motor, parou o motor, parou o caminhão. Corremos lá, pegamos o cara, capturamos e tudo, beleza. Esse sniper que recebeu a ordem e o capitão foram processados pelo nosso próprio Governo… O motivo era que ele deu a ordem e o outro aceitou a ordem de enganjar em um caminhão que pertencia a um civil e que não estava dando fogo de volta na gente.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francesco: Agora você imagina, isso é frustrante ou não? Quer dizer, dois caras tentando fazer o papel deles certo. Ali na nossa frente. O potencial de capturar esse cara, numa luta pesada que nós tivemos com um grupo e uma secção do Talibã, que nós precisávamos de informação. Nós sabíamos e capturamos o cara, mandamos para o hospital, recuperou e foi interrogado. Mas o capitão e… e o sniper!… O sniper que recebeu a ordem, porra, do capitão! Os dois tirados do campo, e foram administrativamente, já começado o processo de terem negli… Como que foi a palavra… foram negligentes de terem ameaçado ou arriscado a vida de um civil, que poderia ter sido morto, fazendo uma ação daquela, um autorizando e o outro atirando no bloco do caminhão. Agora, nós estamos falando de um capitão no meio do campo de combate, com um talibã na sua frente e um sniper altamente, altamente treinado que realmente não fez nada a não ser meteu bala no motor e parou o caminhão. Quer dizer, tudo certo. E mesmo que tudo deu certo, os dois caras foram enquadrado. Para nós, isso é extremamente frustrante. Eles ficaram na… voltaram para a base, ficaram lá, malhavam todo dia na academia esperando o processo. E, aquele lance, né, mesmo que não dê em nada, eu não sei o que aconteceu depois, porque eu bati papo com eles e tudo, mas eles ficam meio fora de poder conversar com qualquer pessoa, e… eu não sei. Eles voltaram para os Estados Unidos e mesmo, acredito que nada aconteceu, porque uma investigação é feita, mas o que acontece, isso vai no seu record, quando vai no seu record um negócio desse, pra você continuar sua carreira é muito difícil, ou seja… basicamente, acabou a… Basicamente, o fato de você ter que explicar uma história tão patética dessa, ou se enquadrado em uma posição dessa, é algo que frustrou qualquer Marine que estava lá naquela base, que escutou essa história, principalmente nós que vimos isso acontecendo. É… Por quê? Porque você, na próxima vez que você realmente tiver que puxar o gatilho pra acertar alguém, você pensa na sua família, na sua carreira, você pensa se você vai sair de herói pra vilão, entendeu. Então, nessa parte, quando você perguntou pra mim, voltando à pergunta, é frustrante? Lógico que é frustrante. Não só frustrante, mas é muito delicado, porque você não sabe… Uma ação sua, que você sabe que é 100% que você tá fazendo, tomando toda cautela possível, que de repente pode te colocar numa situação que, meu, você passa a ser vilão. Aí, você vai ter que provar que focinho de porco não é tomada. Uma coisa, assim, absurda.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Essas complicações legais acerca de ações de militares no Afeganistão e no Iraque não são à toa. E para entendermos o motivo de, hoje, certas ações serem tão controladas, basta lembrarmos de um caso que estourou na imprensa mundial, em 2003.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA)

Narração: For many Americans, notorious pictures of abuse inside Iraq’s Abu ghraib prison was a turning point in the way they saw war. Now, a new film…

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan: Você acha que isso… As leis, hoje, só são rígidas… Ah, frente aos soldados, por causa daqueles abusos que aconteceram, nos primeiros anos… Ah, aquelas imagens que vazaram, por exemplo, de bombardeios… O que aconteceu em Abu Ghraib… Isso é resultado disso, ou é outra coisa paralela?

Francesco: É… 100% Abu Ghraib. O que aconteceu em Abu Ghraib foi uma mancha… foi um… Como é que chama? Um soco, né… Que botou um olho preto na nossa reputação. Que, até então, nós tínhamos muita… Primeiro, foi um acúmulo, né. Depois que aquelas imagens vazaram, devido àqueles indivíduos do Army, que fizeram aquela menina lá, Private England… Isso simplesmente colocou uma… Um Black eye, né. Um olho preto na gente muito grande, porque… Aí, teve uma sucessão de desencadeamento de coisas, Estados Unidos invadiu um país soberano, o Estados Unidos abusou, o Estados Unidos tá colocando tudo isso, desrespeitando os direitos dos muçulmanos. E isso… Isso também, na época do Bush, que é considerado um político de direita, fortaleceu mais ainda a retórica da oposição, e passou a ser algo extremamente político. Foi errado tudo que aconteceu? Lógico que foi errado. Mas você não pode julgar um país pela ação de quatro pessoas. Que foram… Que foram altamente punidas (risos nervosos). I mean, altamente punidas, acabaram com a vida delas. Eles, eles… Tanto que essa Private England, a menina lá, que tirou foto, ela tava lá… Eu morava em San Diego, ela tava lá na base dos Marines, que tem a cadeia institucional de todas as forças armadas, uma delas é ali na base. Ela tava lá. Ela ficou lá presa dez anos. Então, ela foi julgada, também teve direito de defesa, tudo mais. Isso tudo foi usado, obviamente, pela oposição, na época, né. Democratas, pesados… Liberais, não são nem mais democratas, são os liberais progressistas, que usaram isso pra usar da invasão, da… Abuso. Aí, disso foi pra interrogação. Se tão fazendo isso no… Se tão… Aí, desencadeou o quê? Ela alegou e o cara que era namorado dela alegou, e mais dois caras, que tiraram foto, e tudo, que eles tavam fazendo aquilo porque os interrogadores… Veja bem, os interrogadores pediram que fizessem isso, no tempo de folga deles, pra desmoralizar o iraquiano. Entendeu? Que eu tenho certeza que não é verdade. O que aconteceu com tudo isso? A… O Coronel… A Coronel, que era uma mulher do Army, que ela…  Ela tava responsável pelo Abu Ghraib, caiu. Perdeu a carreira dela. Outros perderam carreira, sem ter nada a ver, por causa da ação de quatro pessoas. Mas, sim, tudo isso… Tudo isso, todas essas regras… E isso é uma coisa que nós, infelizmente, na minha opinião, nós somos muito reacionários aqui nos Estados Unidos. Uma coisa acontece, surgem 55 exceções, agora, que eles implementam para que nunca mais aconteça. Mas, aí, exageram, entendeu. Então, o que aconteceu, por causa disso, afetou todos os nossos princípios de interrogação, tudo começou a ser tortura, tudo você fala sobre… Os americanos estão torturando, e tem, é… Como é que é? Bases da CIA que levam pra outros países, pra torturar. Começa tudo est… Espalhar todo esse tipo de coisa. Aí, são implementadas leis, comissões no Senado, no Congresso, e quem é quem, quem fez isso, quem autorizou. Aí, começam a carreiras ser perdidas. Aí, você que pessoas inocentes, completamente, não tavam nem sabendo da ação dessas pessoas, quando tava acontecendo. É… Passa a ser uma coisa, como eu falei, uma reação… Uma, uma reação… É chain reaction, né. Uma reação de cadeia. Começa a tudo cair. E isso, de uma certa forma, nos limitou, na minha área, principalmente, a muita coisa, a muita coisa. E isso é frustrante, porque uma coisa é teoria, outra coisa é você tá no campo e você não poder fazer coisas que você sabe que, se você fizesse, e que se… Ainda você sabe que você poderia fazer, e se fizesse, não vai afetar nada a pessoa,  mas você não pode fazer. E sabendo que, se você fizesse, você vai conseguir resultado positivo para a sua missão. E você não pode fazer. Entendeu? Então, isso… Isso… Abu Ghraib, em dois mil e… Acho que foi em 2003, ah… 2004… Abu Ghraib completamente afetou todo o curso da guerra. Todo o curso de operações, tudo.

Ivan: Como é que você recebeu a notícia do Abu Ghraib, quando saiu? Qual que foi a tua reação, assim, você se lembra? Você acordou de manhã, ligou o jornal… Você lembra como é que era?

Francesco: Lembro, lembro, lembro. Eu estava… Eu sempre ligo a CNN de manhã, no trabalho, nós temos muito acesso, né, nossos computadores, a todos os jornais, Fox News, CNN. E quando aconteceu a primeira coisa, nós já sabíamos, quando aconteceu… Não que já sabíamos o que tinha acontecido. Quando estourou, assim que nós vimos, nós já… Na nossa comunidade, nós falamos, “Agora, acabou”. Agora, nós vamos, realmente, sofrer o impacto disso de uma forma que o curso que a guerra estava tomando, o curso das informações que nós estávamos obtendo, agora vai ser, assim, mil vezes mais difícil.

Ivan: Uhum. Mas, vo… Qual que era a conversa que vocês tinham na base, na época, assim, sobre Abu Ghraib, quando receberam a notícia, começaram a conversar nos corredores…?

Francesco: Ah, foi… Ah, bom, é uma coisa que todos nós condenamos, né. Porque ali foi uma… Foi uma… Como poderia dizer? Foi uma ação, que nem eu falei, de quatro indivíduos do Exército, que são praticamente, é… Como é que chama no Brasil, Correctional Officers? Bom, Oficial de Correção, aqui chama Correctional Officer. Esses caras, eles são responsáveis por poucas coisas. Fazer comida pro detento, certo. Tirar ele de um ponto A, levar pro ponto B, trazer na sala de interrogação, e ter certeza que eles têm as coisas que a cadeia manda ter, que são de direitos deles. Esses caras não tinham absolutamente nada, nada… E tenho certeza que nenhum interrogador falou isso pra eles. Fazer o que eles fizeram. Ah, de fazer aquelas coisas… É… You know, pornográficas. Fotos desmoralizantes, esse tipo de coisa, que levaram à morte, também, de uns dois detentos lá. Coisas absurdas. Mas isso foi uma coisa que, no geral, afetou tudo! Tudo! Não só interrogadores, afetou todo mundo, afetou todos os… O procedimento de como você captura o cara, o que você pode fazer, o que você não pode fazer. Tudo que aconteceu no Iraque foi pior ainda, porque, é… Foi unilateral nosso, né. Nós estamos lá sozinhos. Com exceção dos ingleses também, que nos apoiaram, e foram pro sul do Iraque, na região de Basra. Os ingleses assumiram aquela área. Então, era nós e os ingleses. Então, nós… Porque os ingleses são nossos aliados número 1. O que nós decidimos, os ingleses, 99.9% apoiam. E na época, o Tony Blair era… Tava do lado do Bush, total, e se juntou a nós. Mas o resto do mundo, não. Agora, no Afeganistão, sim, o resto do mun… Todos os países da OTAN são parte das operações no Afeganistão. Mesmo que nós tenhamos uma participação maior, mas é a OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, então todos os aliados ali estão juntos. Mas, no Iraque, foi uma coisa que afetou muito. E nós távamos começando a começar as coisas no Afeganistão, é. Então, como já tinha acontecido isso no Iraque, a partir do momento que nós entramos no Afeganistão, foi já muitas restrições desde cara. O que frustra é justamente isso, que a ação de quatro pessoas mudaram completamente a direção, o itinerário e a progressão do combate, em muitas áreas que poderiam ter sido muito mais minimizadas, e muito mais fáceis de serem cumpridas, entendeu.

Ivan: Uhum. Você acredita, então, que se não tivesse ocorrido esse caso, ou se pelo menos ele não tivesse estourado, teria avançado mais rápido, então…?

Francesco: Muito mais rápido, com muito mais apoio também. Ah, o que aconteceu foi que, nesse momento, mantenha, né… Mantenha uma coisa na… É… Que isso, na cultura Árabe, foi um insulto extremamente grande. Até os que estavam nos apoiando se viraram contra nós, no sentido assim, de apoio, né. Não no sentido de combate, nada. E isso foi uma ferramenta enorme! Enorme! Enorme! Que esses quatro pessoas fizeram e deram ao Al-Qaeda, pra usar contra a gente. Isso instigou uma… Isso instigou e inflamou um grupo mundial de fanáticos. Ou seja, isso tudo afetou ainda mais positivamente pro lado do Al-Qaeda, do recrutamento de caras para virem lutar de qualquer lugar do mundo, dentro do Iraque. Quer dizer, as repercussões disso não foram somente, é… Nas nossas operações e nas pessoas que foram colocadas, nos novos mandatos que foram colocados, e novas leis, novas regras. Isso afetou positivamente, muito pro Al-Qaeda, que ganhou tanta… Tanto apoio dos que eram semi fanáticos, passaram a ser fanáticos. Porque, “Olha o que os caras tão fazendo com nosso povo”… é isso, é isso. Foi uma… Uma arma de propaganda enorme dada de graça pro Al-Qaeda usar. E daí pra frente, saíram vários vídeos com propaganda enorme do Al-Qaeda, a gente tinha acesso, né, que eles mandavam pra gente. Eles mandam pra gente direto. De recrutamento. Aí, mostravam as fotos de Abu Ghraib, mostravam fotos de crianças mortas, às vezes… Quer dizer, se você for imaginar a média do individuo, do… Do soldadão, né. Do cara, né, do executor ali de campo do Al-Qaeda ou do ISIS, é 90% dos caras. Esses 90%… Os 10% é a cúpula que tá causando tudo isso, mas os 90% é o cara que, meu, ele não sabe ler, não sabe escrever, ele quer… Ele quer matar nêgo. Ele quer matar, ele quer ir pra cima. Então, você mostra isso, é cara fazendo fila, cara, pra embarcar pro Iraque, pra lutar. Porque o objetivo era matar americano. “Agora nós vamos matar americano, acabou”. Entendeu? Isso causou muito problema porque aumentou muito mais o poder de recrutamento do Al-Qaeda.

Ivan: Sim. É, eu imagino a sinuca de bico, né. Porque, por um lado, é contra tudo isso que aconteceu, mas ao mesmo tem… E isso tinha que ser denunciado de alguma forma, os quatro tinha que levar… Tinham que ser processados por isso, levar as consequências. Mas, ao mesmo tempo, também reforça o outro lado e cria… E polariza ainda mais, né.

Francesco: Exatamente, você falou a palavra perfeita, polarizou ainda mais e fortaleceu muito mais ainda o inimigo. É, isso foi uma… Isso, eu falei, foi uma ferramenta de recrutaç… de recrutamento de mão beijada.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No próximo episódio… Através do seu trabalho como interrogador, Francesco teve a oportunidade de trabalhar de perto na caçada de um dos terroristas mais procurados do mundo, em 2005 e 2006.

Francesco: O Iraque, nós tínhamos um cara que nós capturamos, que era um dos caras mais, ah… Ah, que tinha maior acesso a Zarqawi. Zarqawi é o, né… Abu Musab al-Zarqawi, que era o líder que hoje seria o ISIS, né, o ISAL. Que ele tinha como segundo colocado, segundo, né, braço direito, que era o al-Baghdadi, que hoje está no lugar do Zarqawi. O Zarqawi era o considerada o Al-Qaeda no Iraque.

Ivan (narração): E por fim, mostraremos também como o pós-guerra afeta a vida de um soldado, na sua volta para casa.

Francesco: Comecei a sentir uns negócio, não conseguia dormir, calafrio á noite, suava, acordava suando, meu, umas coisas… Não conseguia sair de casa, não conseguia ficar em lugar aberto, né, agorafobia. Agorafobia, né, medo de lugares abertos. E não sabia o que tava acontecendo, meu. Comecei a perder o controle de mim mesmo, eu falei, “Pô, como é que pode ter, eu, ido pra Fallujah, passado por tudo isso, e não consigo entrar num Shopping Center, não consigo entrar num Mall, não consigo entrar num supermercado…” Meu, eu cheguei, num conseguia, num conseguia entrar no carro.

Ivan (narração): Aqui, no Projeto Humanos, “O coração do mundo”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir através do link na postagem. Agradecimento especial ao Francesco Tessitore, que me concedeu a entrevista que foi a base deste episódio e do anterior. Nos vemos no próximo programa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Matheus Souza, Sidney Andrade, Mariana Diello. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Zé Roberto