2 – Sharia, a Lei Islâmica

15 de março de 2016

Neste segundo episódio de O Coração do Mundo, deixamos um pouco de lado a história de Paula Zahra para explorarmos o conceito de Sharia, o código de Leis fundamentadas pelas sociedades muçulmanas. Seria ela perigosa? Como funcionam países teocráticos? Será Irã e Arábia Saudita possuem a mesma interpretação? Qual o papel dela na vida de muçulmanos?
Convidados: Omar Nasser Filho, Francirosy Campos Barbosa e Francielli Morêz Gusso.

Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Free Quran Pictures 4K via Visual hunt / CC BY
Lettering por Luiz Amorim

Links

Antropologia e Islã – Site da Francirosy Campos Barbosa

Transcrição

(FADE IN e fade out DE TRILHA SONORA)

Omar: A primeira surata, o primeiro versículo, recebido pelo profeta Muhammad, foi a surata  Al-Alaq, “O coágulo”. Profeta Muhammad era um comerciante, ele não tinha outra função a não ser de caravaneiro, era um administrador de caravanas. Inclusive, a primeira mulher dele, a primeira esposa dele, era uma mulher muito rica. Ela, sim, dona de caravanas que comerciavam entre Hejaz e a região de Bilad al-Sham, que a gente chama, que é a região da Síria. E ela despertou a atenção… O profeta despertou a atenção dela pela sua extrema inteligência e a habilidade na negociação. E outra habilidade que ele tinha era a calma e a tranquilidade, o raciocínio muito lógico, tanto que era ainda jovem, na faixa dos 25, 30 anos, consultado pelos seus contemporâneos para dirimir dúvidas, solucionar litígios que surgiam entre as pessoas da época. Suas sentenças, os seus pensamentos e suas conclusões eram sempre muito lógicas e muito sábias. Ele tinha uma outra característica interessante, que era um pendor místico, muitas vezes ele se retirava de Meca, que era um grande centro comercial, um grande centro comercial para a época né, na região do Hejaz, se retirava para as colinas que existem até hoje em torno da cidade, pra meditar. E foi num desses retiros numa caverna, caverna Ghar E Hira, nas imediações de Medina, que numa noite ele recebe a visita do arcanjo Gabriel. E o arcanjo Gabriel ordena, “قرأ” (a palavra é enunciada com reverberação), significa “Lê”. E ele diz atônito, “Eu não sei ler”. E novamente o arcanjo, “قرأ”. Ele, ”Eu sou analfabeto”. “قرأ”, pela terceira vez, e aí vem a revelação de toda surata “يقرأ باسم ربك الذي خلق لكم …” E por ai vai. “Lê em nome do Senhor que te criou, te criou de um coágulo e te deu cálamo, ensinou, enfim, ensinou o homem o que existe na natureza”. Por isso que nós dizemos também que o primeiro grande mandamento do islã é o conhecimento, porque a primeira ordem divina descida ao profeta Muhammad foi esse verbo no imperativo, “Icra!” (قرأ).

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Nesse segundo episódio da série “O coração do mundo”, vamos explicar algumas questões fundamentais sobre a relação entre texto e prática do islamismo. Então, por enquanto, vamos deixar a história da Paula Zahra em suspensão por um momento, pois é necessário explicarmos algumas dessas questões internas da religião, antes de dizermos como está a sua vida hoje. Sobre a surata, ou Coágulo, que foi lido há pouco, o jornalista e historiador Omar Nasser Filho comenta acerca de seu local e papel no alcorão.

Omar: Só que esse não é o primeiro versículo que nós encontramos na versão do alcorão que nós temos até os dias de hoje, uma versão que já tem 14 séculos já. O porquê desse primeiro versículo não ter sido o primeiro colocado no alcorão, até hoje, é objeto de controvérsia entre os estudiosos. Se nós analisarmos, em geral, o alcorão, nós vamos perceber o seguinte, que as Suratas, os capítulos do alcorão, vêm, da mais longa, à exceção da primeira, que é a surata Al-Fatiha, que é surata de abertura. A segunda é Al-Baqara, que seria a mais extensa. E aí, elas vêm, à exceção da Al-Fatiha, elas vem diminuindo em extensão. Quanto mais nós chegamos ao final do alcorão, mais curtas ficam as Suratas, menor número de versículos para cada uma.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Omar: Ao todo, são 114 capítulos, 114 Suratas. Os versículos variam muito de uma para outra. Mas, assim, à exceção da Al-Fatiha, que é a primeira, as demais decrescem em tamanho. Foi um critério que se adotou nos califados de Al Uthman ibn Affan e de Ali. Pode ter sido, da mais longa pra mais curta. Mas até hoje isso é um motivo de controvérsia. O que se sabe é isso, que o alcorão é extremamente fiel. Ao contrário, você citou a Bíblia, né. A bíblia, não só ela tem um problema grave de tradução porque do…  nem tanto do hebraico, mas especialmente do aramaico, porque o hebraico não era mais falado, na época do Cristo. O hebraico é uma língua que ressuscitou, era uma língua praticamente morta já. A língua falada pelo Cristo era o aramaico. Primeiro, ela foi traduzida do hebraico e do aramaico pro grego, depois do grego pro latim. Do latim, aí nós temos as várias versões das línguas que derivaram do latim. Até mesmo hoje em dia, cada igreja, cada seita, cada ramo do cristianismo tem as suas versões. Então, tem a versão Batista, a Menonita… O que acaba trazendo um problema, se a pessoa quer realmente chegar à mensagem original. Se nós formos ver determinados trechos, inclusive dos evangelhos, Marcos, Mateus, Lucas e João, para um mesmo fato, muitas vezes nós vamos encontrar versões conflitantes. O alcorão, podemos dizer que não padece desse problema, com toda certeza. Ele é um livro que, hoje, no século 21, é fiel aquela versão revelada há 14 séculos. Tanto que isso, só pra te citar um fato curioso, há questão de uns 5, 6 meses, descobriram aquela que talvez seja a versão mais antiga do alcorão e esse foi um fato, essa foi uma notícia, amplamente divulgada no mundo inteiro. Inclusive, os canais de televisão, aqui no Brasil mesmo, deram um grande destaque.

(INSERÇÃO DE CLIPE DE ÁUDIO: TRECHO CURTO DE REPORTAGEM TELEVISIVA, A CHAMADA DE UMA MATÉRIA, EM INGLÊS)

Ivan (narração): Essa cópia do alcorão à qual Osmar se refere, é o chamado Manuscrito de Birmingham, que pertence à Universidade de Birmingham, no Reino Unido. O resultado dos estudos de datação de carbono foram divulgados em julho de 2015, estima se que ele tenha sido escrito logo após a morte de Muhammad, e de fato, parece comprovar a ideia de que o alcorão que temos hoje é bastante fiel à mensagem original.

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: ENTREVISTA EM INGLÊS, SOBRE O MANUSCRITO)

Voz: And so, this tends to support the view that the Koran that we now have is, more or less, very close, indeed, to the Koran as it was brought together, in the early years of Islam.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Mas, claro, isso não isenta ele de problemas de tradução, quando é introduzido em países que não falam o Árabe. Falarei disso mais a diante.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O islamismo é uma religião que entra na categoria de religiões reveladas. Isso basicamente quer dizer que o texto teria sido transmitido de Deus para o seu profeta, Muhammad. Através dessa transmissão, revela-se a verdade. É o mesmo princípio do Cristianismo e Judaísmo, por exemplo, que são religiões nas quais seus livros sagrados, a Torá e a Bíblia, também seriam fruto de revelação divina. As três são chamadas de religiões abraâmicas. Isso implica dizer que todas possuem a mesma raiz histórica e, além disso, uma seria a continuação da outra. As diferenças básicas são, o judaísmo, cuja Torá é basicamente o antigo testamento cristão, acredita que o messias ainda virá. O cristianismo, cuja base do texto é um conjunto de livros chamado de novo testamento, acredita que o messias prometido já veio, e ele é Jesus. Os judeus negam seu estatuto de messias e o classificam como um profeta. O Islamismo, assim como o judaísmo, nega que cristo seja o messias e também o classificam com um profeta, um dos mais importantes, por sinal. E neste ponto, a versão islâmica de cristo chega a negar, inclusive, a história de que ele teria sido crucificado. Os muçulmanos, por sua vez, esperam por um messias. Sendo assim, à primeira vista, também não seria uma religião com grandes diferenças das suas antecessoras. Contudo, na prática, ela acaba sendo vista pelo resto do mundo como algo muito diferente, por conta de um elemento essencial, a Sharia, a chamada Lei Islâmica.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Por sinal, se você quiser deixar europeus morrendo de medo de muçulmanos, basta procurar pesquisas em que apontam a quantidade de muçulmanos que residem na Europa, e que dizem que gostariam que a Sharia fosse implementada nesses países. Sharia tornou-se sinônimo de violência e não foi sem motivos. Os países que a seguem são chamados de países teocráticos, e como eu já falei anteriormente, os grandes exemplos são o Irã, do lado xiita, e a Arábia Saudita, do lado sunita. Diferente dos modelos de estados seculares do ocidente, em que a religião e estado são separados, o tal do estado laico, a Sharia é a aplicação da Lei Islâmica na Constituição de um país. Na verdade, a coisa é um pouquinho mais complicada. No Oriente Médio Inteiro, basicamente funciona o chamado princípio do Personal Status Law, que é a Lei de Estatuto Pessoal. Quando é necessário, você é julgado de acordo com as leis que regem sua religião. Mas isso tem algumas variações, dependendo do país em que você está; e mesmo se você for ateu, e existem muitos, especialmente ali na região da Síria, as leis aplicadas serão baseadas na religião que a sua família se identifica. De qualquer maneira, falando da Sharia especificamente, quando olhamos para as práticas do Irã e Arábia Saudita, recebemos as mesmas informações. Perseguições aos homossexuais, decepamento de mãos de ladrões, apedrejamento de mulheres adúlteras. Enfim, são várias as violações aos direitos humanos. Essa relação próxima entre estado e religião seria mais presente no Islamismo por conta da figura do profeta Muhammad, que defendia que tais esferas deveriam, sim, andar juntas. E a revolução iraniana de 79 é vista como um exemplo, especialmente na comunidade xiita. Inclusive, essa é uma das críticas recorrentes dos que defendem o cristianismo como religião superior, enquanto Cristo teria dito “dai a César o que é de César”, ou seja, religião e o estado seriam coisas diferentes, Muhammad teria dito justamente o contrário. E por mais que a Igreja Católica não tenha seguido esse princípio durante toda a Idade Média, que uma separação entre estado e igreja só tenha ocorrido na Europa a partir da Reforma Protestante do século 16, e que a Revolução Francesa no final do 18 tenha marcado em definitivo a necessidade de separação no Ocidente, a lógica destes princípios é que no texto cristão há ao menos a possibilidade de separação, enquanto que no Islamismo não haveria essa possibilidade. E se essa é a primeira vez que você está ouvindo sobre essas coisas, vale o aviso, esse é um dos debates mais quentes em toda a questão das gigantescas ondas migratórias de muçulmanos que adentram hoje a Europa. O medo de que a Sharia, responsável por perseguições e condenação de morte a homossexuais, por exemplo, se torne legislação em países laicos em alguns anos é bastante ativo.

(TRILHA SONORA SOBE E ACABA SUBITAMENTE)

Ivan (narração): Mas daí vem a questão óbvia, se o islamismo se diz uma religião de paz, como é possível que a Sharia mostre-se tão violenta? O que é a Sharia exatamente?

Francielli: Bom, meu nome é Francielli Morêz Gusso, eu sou advogada e professora universitária… eu sou Bacharel em Direito, pela PUC Paraná; especialista em Sociologia Política, pela Universidade Federal do Paraná; Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia, pela Unibrasil; também tenho um segundo mestrado em Direitos Humanos e Interculturalidade e Desenvolvimento, pela Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha; e atualmente eu sou doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento, pela Universidade Pablo de Olavide, lá em Sevilha.

Ivan (narração): A Francielli é muçulmana revertida, sua família é católica, do interior de Santa Catarina. E após o 11 de setembro, ela quis estudar mais sobre o Islamismo, para entender o que exatamente era essa religião. E como muitos relatos que encontrei, ela disse que aprendeu que grupos terroristas como o Al-Qaeda não representam o Islamismo, eles são vertentes ultra radicais renegadas e criticadas pelos próprios muçulmanos. Como advogada e especialista em direitos humanos, ela foi a pessoa ideal para tirar minhas dúvidas sobre a questão da Sharia e seus contrastes com o mundo ocidental.

Francielli: Sharia, em árabe, significa ‘ascenda reta’, o caminho certo, o caminho a seguir. Então, consequentemente, se atribuiu essa nomenclatura, esse vocábulo, para designar aquele conjunto de prescrições de conduta que todos os fiéis deveriam seguir, a fim de conviverem harmoniosamente em sociedade. E é importante que a gente ressalte que a Sharia, ela tem inspiração teocrática, tem inspiração religiosa, mas ela se volta para organização humana por si só, tá. Então, é muito importante que a gente saiba distinguir o crime, que se opera entre os homens, e o pecado, que se opera entre o ser humano e Deus. Isso não pela ótica muçulmana apenas, mas também pela ótica monoteísta como um todo. Bom, a Sharia, ela surge já nos primórdios do Islã, quando com a Hégira, em 622, Muhammad migra para Medina e precisa enfim consolidar a sua sociedade. É muito importante, naquele primeiro momento, que ele comece a consolidar normas de conduta entre os fiéis. Então, por exemplo, a questão da proibição do jogo, da proibição da bebida, tem toda a prescrição religiosa, correlativamente a perda da razão aos quadros desencadeados de violência, por exemplo, doméstica ou mesmo social, num grupo mais restrito que essas práticas poderiam causar. Mas em um primeiro momento, a proibição da bebida e do jogo foi importantíssima para evitar aglutinações de muçulmanos recém convertidos, recém adeptos, com oponentes políticos em capas de tavolagem, nos… Bar não existia na época, mas enfim, nesses recintos. Então, na verdade, foi um mecanismo de controle social para se evitar sublevações políticas, em um primeiro momento, né. Então, a Sharia, ela surge justamente nesse sentido; o Alcorão, ao contrário de outros escritos sagrados de outras religiões, ele não foi obtido momentaneamente, ele foi uma sequência de revelações, ao que preleciona a crença islâmica, que demorou enfim, ali… diversos anos pra ser compilado, para ser refeito, praticamente toda a vida do profeta Muhammad, né. Considera-se concluído o Alcorão pouco antes de sua morte

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Francielli: O Alcorão é a fonte primária, direta e imediata, tá. Então, em relação… do que está ali se extrai todos os princípios que vão desenvolver as normas jurídicas que ampararão a Sharia. A segunda fonte secundária, e a segunda fonte principal vem a ser a Suna, que eu acabei de mencionar a você, que é… se consubstancia na interpretação do Alcorão. Então, o Alcorão não deve nunca, jamais, ser interpretado com a sua literalidade, e a Suna é a prova disso. Então, para os sunitas, a Suna, a partir do que Muhammad interpretava, e para os xiitas, do que Muhammad e seus descendentes das sete ou doze gerações, dependendo do rito xiita, interpretavam acerca daquilo.

Ivan (narração): Eu não gostaria de entrar muito nos motivos históricos que levaram à separação entre xiitas e sunitas, mas algumas coisas devem ser esclarecidas para facilitar o entendimento a partir daqui. Primeiro que a divergência básica entre as duas  vertentes é a questão de quem estaria na linha de sucessão do profeta Muhammad, após a sua morte, no século 7. Os sunitas defendiam que ela se daria por uma eleição na comunidade, enquanto os xiitas acreditavam que deveria ser pela linhagem familiar do profeta. Os sunitas são maioria no mundo muçulmano, e apesar de no Brasil termos essa noção de que xiitas são radicais, os grupos terroristas mais conhecidos, como a Al-Qaeda e o autointitulado Estado Islâmico, são da vertente sunita. Os motivos pelos quais os xiitas são chamados de radicais por aqui não são muito claros, eu já ouvi desde versões de que seria por conta da Revolução Iraniana Xiita de 1979, até de que os sunitas são maioria e ajudaram a criar essa imagem do radical xiita através dos tempos. De qualquer maneira, apesar dessa discordância, ambos os grupos se reconhecem como legítimos muçulmanos, com exceção obviamente dos grupos terroristas, os ultra radicais que advogam para si um verdadeiro Islamismo. E aí, não importa se você é sunita ou xiita, se você não concorda com as práticas dele, você está em haram, pecado. É um infiel.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O ponto que eu gostaria de esclarecer é que apenas essa divisão binária não dá conta de se entender a configuração social e teológica do islamismo, pois não apenas outros grupos surgiram além desses dois, tais como os drusos, alauítas e tantos outros, quanto mesmo dentro do xiismo e do sunismo há divisões internas, especialmente no que se refere à Sharia.

Omar: É, não existe divergência com relação ao texto do Alcorão. O texto do Alcorão não foi alterado. Agora, é claro, é uma mensagem divina, sujeita à interpretação humana, né… aí, começa a ocorrer diferenças. Então, por isso existem escolas islâmicas… a estimativa é de que hoje existam cerca de 72 escolas de pensamento islâmico. Dentro do xiismo existem os xiitas duodecimanos, que creem toda a linhagem dos doze imames a partir de Ale ibn Abi Talib, até o imam al-Mahdi, que é o décimo segundo, o imam oculto… Existem os xiitas aeditas, que dizem que não, a partir do sétimo imam houve uma… houve uma divergência, uma disputa com relação à sucessão. Quem seria realmente o sucessor do sexto imam. Então… vem a linhagem do duodecimana e a linguagem dos aeditas, que acabaram se tornando uma minoria dentro do xiismo, localizados no Iêmen. Nós temos os alauitas, que dão a Ali um status muito maior que aquele que nós xiitas duodecimanos acreditamos que ele deva ter. Alguns, inclusive, dão a Ali um status maior… um status maior do que ao próprio profeta Muhammad. Então, a corrente majoritária, canônica, vamos dizer assim, do xiismo não concorda com essa visão. Se nós formos para a escola sunita, existem quatro grandes escolas de pensamento dentro do sunismo. Shafi’i, que é o… vamos dizer assim… o mentor da escola chafeita, Abu Hanifa, que é o fundador da escola hanafita, Malik, da escola malikita, e ibn Hanbal, da… da escola hanbalita, que mais tarde vai originar o wahhabismo, com o ibn Abd al-Wahhab.

Ivan (narração): O wahhabismo é a base ideológica do autointitulado Estado Islâmico. Tem sua origem no século 18 e é considerada uma das escolas mais radicais de pensamento no Islamismo, já que rejeita uma série de inovações jurídicas das primeiras gerações de muçulmanos, buscando uma espécie de Islamismo mais puro. É considerada uma minoria dominante na Arábia Saudita, de caráter ultraconservador, e sendo assim, também caracterizada como um possível braço de outra escola de pensamento, o Salafismo, que é a base ideológica do Al-Qaeda. As aproximações entre o Wahhabismo e o Salafismo são objetos de discussão entre intelectuais muçulmanos, ao passo também que um membro dessas escolas não necessariamente é adepto de um grupo terrorista. Em outras palavras, wahabistas e salafistas nem sempre são radicais terroristas, mas membros do Al-Qaeda e do autointitulado Estado Islâmico são wahabistas e/ou salafistas.

Omar: Então, são as quatro grandes… os quatro grandes ramos do pensamento sunita. Desses, vão surgir outros…

Ivan: Vão surgir outros…

Omar: É…

Ivan: E isso dá um total de…

Omar: Setenta e duas, tá, se nós formos calcular xiitas e sunitas. Mas veja… não há questionamento com relação ao Alcorão. “Não, aqui Alá falou assim”, não, o texto é o mesmo, o que… o que diverge é a interpretação a respeito desse texto.

Ivan (narração): Apenas a exposição acerca da diversidade das escolas de pensamento e interpretação do Alcorão já devem ser suficientes para entendermos que a Sharia não é alguma coisa homogênea, fechada em si mesma ou até mesmo imutável. Mas além dessas posturas interpretativas, há mais fatores que contribuem para tornar a Sharia algo mais complexo.

Francielli: De acordo com as regiões e com a cultura local, nós poderemos ter outras fontes. A jurisprudência, assim como no Brasil, a jurisprudência é fonte jurídica, né. Então, uma decisão judicial pode amparar a produção de uma norma futura, no Islamismo nós temos isso também. Os princípios gerais de direito, e não princípios religiosos como um todo. Então, por exemplo, é… questões como a boa fé nos contratos, questões como o respeito irrestrito aos pactos firmados que no Direito nós chamamos de Pacta sunt servanda, “os pactos devem ser cumpridos”, em latim. Até a própria questão da dignidade humana, só que é uma concepção de dignidade que difere um pouco daquela que foi trazida a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lá da Revolução Francesa. Enfim, nós temos diversas fontes que acabam amparando a produção de normas dentro dos ordenamentos jurídicos islâmicos. E aqui é muito importante sublinhar, não existe país islâmico no mundo que tenha no Alcorão a sua constituição. Mesmo o Estado Islâmico, que não é aceito nem pelos muçulmanos, e sobretudo pelos muçulmanos, como um país propriamente dito, tem sua carta constitucional que difere do Alcorão, que deriva do Alcorão, mas que difere do Alcorão. E claro, ali eles dão a interpretação que eles querem àquelas palavras, e a gente sabe que com palavras a gente pode tecer um jogo de manipulação muito sofisticado.

Ivan: Uhum…

Francielli: Então, o Direito islâmico, ele é, em termos práticos, como é o direito no Ocidente, com suas constituições, com suas leis infraconstitucionais, com a sua organização do poder judiciário, né, em séries de tribunais, de juízes, de advogados e de promotores, de delegados… então, não é aquele sistema arcaico que nós usualmente estamos habituados a… a verificar ali pelos meios de comunicação, em geral, de acordo com as comoções da atualidade.

Ivan (narração): A Sharia é o terceiro sistema jurídico mais aplicado no mundo, estando atrás da Common Law, que é praticada, por exemplo, nos Estados Unidos, e a Civil Law, que é o modelo do Brasil. Entre tantas diferenças, vale apontar talvez a que é mais estranha para a mentalidade ocidental. Enquanto a Common Law e a Civil Law possuem suas bases morais no ideário judaico-cristão, a Sharia está localizada no islamismo, e a partir daí uma série de valores divergem.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Antes de apresentarmos um exemplo prático disso, é importante também questionarmos sobre o método de interpretação do Alcorão. E daí, como a Francielli apontou, entram as chamadas Sunas.

Francielli: A Suna…

Ivan: Eu posso pegar a Suna, assim, e ler e… o que eu vou encontrar… eu quero… eu quero descrições minuciosas…

Francielli: Pode. Você pode, mas você vai ter bastante trabalho porque a Suna, nem no caso dos sunitas, onde ela é menor, nem no caso dos xiitas, para os quais ela é bem maior, bem mais estendida, ela se resume num livro só.

Ivan (narração): Lembrando que essa diferença do tamanho das Sunas entre xiitas e sunitas se dá justamente porque os xiitas aceitam os relatos de modelos de comportamento de seus descendentes, ao contrário dos sunitas, que são mais ortodoxos e restritos nesse ponto.

Francielli: São centenas e centenas de… de escritos, de volumes, de anais que foram se construindo historicamente e que hoje estão reunidos em grandes bibliotecas… são mais documentos históricos, propriamente ditos, do que jurídicos, né…

Ivan: Mas o que eles relatam, o que eu encontro na Suna?

Francielli: Ali você encontra… casos do cotidiano que acabam sendo interpretados à luz do que o Alcorão preleciona. E não apenas casos, e sim opiniões, então, por exemplo, aquilo que hoje, no Direito atual, né, nós conhecemos como um parecer, como uma consultoria, nós encontraremos na Suna de antigamente. Então, a Suna nada mais é que os ditos e feitos, também exemplos da… daquilo que… que fez, daquilo que praticou o Profeta ou os seus descendentes, no caso pros xiitas, acabam sendo compilados ali. Então são diversos e diversos volumes de Suna que nós teremos.

Ivan: Você consegue me dar um… primeiro eu queria saber quem que escreveu… quem que escreveu elas?

Francielli: O profeta Muhammad, ele não sabia ler nem escrever. Então, foram companheiros muito próximos, né, de Muhammad, em um primeiro momento. E a posteriori, os seus descendentes, que já eram alfabetizados, que também foram escrevendo esses relatos, estas… estes pareceres, essas opiniões, né, então…

Ivan: Seriam como diários, assim, pode dizer…?

Francielli: Diários jurídicos. Exatamente, exatamente… sempre com base no Corão, né… esmiuçando e interpretando o Corão. Então, veja você que uma fonte de 114 capítulos, que é o Corão, né, suras… ele foi aptopra produzir milhões e milhões de páginas só de interpretação.

Francirosy: Então, a cadeia de transmissão no Islã, (incompreensível) ela é muito preciosa, nesse sentido, de você…

Ivan (narração): Novamente, a professora Francirosy Campos Barbosa, do Departamento de Antropologia da USP.

Francirosy: … ter as pessoas que eram companheiras do Profeta, que transmitiram determinadas histórias. Aí, você tem uma segunda geração, que é aquelas pessoas que conviveram com quem conviveu com o Profeta. E aí, uma terceira linha, que são os hadiths mais fracos, que são uma outra geração de pessoas que ouviram de outras que disseram que o Profeta fez isso ou aquilo. Então, a própria maneira de estruturar o conhecimento no Islã, ele é muito, muito… detido, sabe, a própria cadeia de transmissão, ela é muito específica. Então, quando alguém me diz um hadith do Profeta, eu pergunto, né, “ah, esse é um hadith forte, um hadith médio ou hadith fraco?” Porque, aí, eu vou saber se aquele hadith foi transmitido diretamente do grupo que conviveu com o Profeta ou não.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Você consegue me dar um exemplo de um trecho que teria numa… numa Suna, assim, por exemplo, de uma, é… do teor dele, por exemplo aconteceu… porque, pelo que você tá me falando, eu tô entendendo assim, hoje teve alguém que roubou um pão na casa de alguém, daí eu fui no Alcorão e encontrei na Suna tal, encontrei isso, portanto a punição daquela pessoa vai ser… é mais ou menos isso?

Francielli: Seria mais ou menos isso, né…

Ivan: Você conseguiria me dar um exemplo… factível?

Francielli: Não, com certeza. Deixa eu até… deixa eu fazer uma explicação inicial. No Árabe, nós temos um problema que nós não temos em outras línguas, que é a riqueza linguística. Pra se interpretar o Árabe, precisa ter um conhecimento linguístico, por assim dizer, muito grande acerca deste idioma, antes de um conhecimento religioso ou jurídico. Uma das grandes críticas aos exemplares do Corão que nós temos no Ocidente é a tradução mal feita. Então, por exemplo, em diversos exemplares do Alcorão que encontramos em língua portuguesa, onde, por exemplo, em relação a uma mulher desobediente, é… “batei nela”, na verdade o que se preleciona, e nós temos uma única tradução autorizada pra língua portuguesa, que foi feita por um professor da USP já aposentado, Helmi Muhammad Nasr, é o seguinte… “quando a mulher se mostra rebelde, repreendei-lhe”. É muito diferente, você pode repreender com palavras, não necessariamente batendo. Então, primeiramente, a interpretação, não apenas com base no sentido da palavra, mas também com base nas riquezas da língua, ela deve ser extremamente cautelosa nesse sentido. Então a Suna, ela já começa com esses modos diferentes de interpretação de um mesmo texto. A Suna, ela trouxe muitas contribuições, sobretudo acerca do direito de família. Então, por exemplo, com a questão do divórcio, quais são os direitos da mulher a partir do divórcio? A mulher tem direito à meação dos bens, a divisão dos bens, e isso a Suna consolidou a partir do que diz o Alcorão. A partir de quando a mulher pode se casar de novo. Então, tem um período de espera que a Suna colocou também, justamente pra que se pudesse verificar se, por exemplo, a mulher já não se divorciou grávida do marido, e quem teria a responsabilidade sobre aquela criança. Então, nós temos diversas situações que a Suna acaba esmiuçando, especificando, com base naquelas prescrições gerais do Alcorão. Porque o Alcorão, ele não é específico em muita coisa.

Ivan: Uhum, mas o Alcorão… O trecho que você me falou, da questão da…

Francielli: Da repreensão.

Ivan: … Da repreensão, também está no Alcorão.

Francielli: Sim, repreender, mas não espancar.

Ivan: Sim, sim. Mas como você, como mulher, se sente ao ver um trecho  desse, direcionado. Por mais que seja repreensão…

Francielli: Uhum, já denota uma…

Ivan: … Já é pra mulheres… Não tá dizendo, em momento algum, acredito… Ah, tem momento de… Ah, “mulher, se o seu marido fez tal coisa, repreenda”.

Francielli: Tem.

Ivan: Tem também?

Francielli: Tem, aham. E, inclusive, além… Essa repreensão, ela é financeira, né. Então, ainda… A lógica da indenização, ela existe no próprio Alcorão.

Ivan: Mas você concorda com as críticas de que a mulher é colocada em segundo plano, dentro (incompreensível)?

Francielli: Se eu concordo com o fato da mulher ser…? Não, não concordo com o fato da…

Ivan: Não, concorda com a interpretação de que os textos permitem isso?

Francielli: Ah, sim. Assim como a Bíblia também permite isso, assim como, enfim, o Código de Manu permite isso, né. Diversos outros escritos religiosos de um contexto histórico muito particular. Agora, nós estamos em um outro momento histórico, que demanda um outro olhar interpretativo sobre aquelas palavras, né. Então, claro, se eu concordo com a subjugação da mulher? Sob hipótese alguma. E por isso que eu não concordo com uma interpretação literal daquilo que foi criado, daquilo que foi, enfim, revelado, enfim, de acordo com cada crença, lá atrás.

Ivan (narração): como mencionei antes, os países islâmicos que seguem a Sharia são chamados de teocráticos, já que, em princípio, se baseiam em conceitos religiosos para formar suas leis. Contudo, até o próprio termo “teocracia” aqui é controverso, tendo em vista que o Islamismo nunca teve uma instituição, como a Igreja Católica e o Vaticano como centro de poder, algo organizador. Logo, a relação exata entre Estado e Religião fica mais complicada de ser definida, já que há inúmeras formas de pensamento e práticas dentro do Islamismo.

Francielli: É, aí, nós já partimos pra um conceito de Ciência do Estado. Ciência Política e Teoria do Estado, que ele, enfim, é deveras complicado. O que é democracia? Teocracia, pela simples analogia, ali, com a semântica da palavra, é o governo de deus. Tá, então eu vislumbraria um regime teocrático dentro do Islã, hoje, como aquele que se embasa única e exclusivamente no Alcorão. E, na prática, nós não temos nenhum, hoje, neste modelo.

Ivan: Nenhum?

Francielli: Não.

Ivan: Nem mesmo o… Eu vou dar um exemplo aqui…

Francielli: Sim…

Ivan: Iraque, ah… Durante o Saddam Hussein…

Francielli: Não, porque Iraque tinha uma Constituição, com milhares de leis infraconstitucionais. Então, nós já não temos uma teocracia pura. A base teocrática é a fonte primária do Direito e do regime jurídico que se consolidou ali, mas não é o regime jurídico como um todo.

Ivan: Sim. Irã?

Francielli: Também não. O Irã tem sua Constituição, tem todo o seu corpo de normas, né. Se cataloga o Irã como regime teocrático por conta da liga dos Aiatolás, que está acima do Primeiro Ministro, acima do Presidente, né. Aí, nesse sentido, dependendo do conceito de teocracia que você utilize, até se poderia, né. Só que, daí, neste caso, por exemplo, Israel também seria teocrática. Israel tem Constituição, mas não tem Constituição escrita. É uma Constituição costumeira. E estes costumes derivam das normas mosaicas, né, do Antigo Testamento, da Torá. Então, eu, pela… pelo conceito que eu tenho, para mim, de teocracia, nós não temos nenhum regime islâmico, hoje, que seja integralmente teocrático.

Ivan: Tem algum regime não islâmico teocrático, que você acredita?

Francielli: Talvez em tribos menores, né, no continente… No subcontinente asiático, ali, na África. Mas em grandes Estados no mundo, hoje, com alguma repercussão política considerável, eu não consigo visualizar. Nem o Vaticano, né. Porque, enfim, em virtude deste código de direito canônico, deste tribunal eclesiástico, né, desta… Desse colégio de Cardeais, que faz as funções legislativas também, aquilo pode ser mutável. Então, é muito importante que a gente saiba distinguir o regime jurídico enquanto corpo de leis e a fonte. A fonte é teocrática, mas não o regime jurídico, por si só.

Ivan: Certo. Ou seja, a gente pode ter a mesma fonte, exato, só que o fato de terem pessoas interpretando e criando suas leis a partir daquilo…

Francielli: Exatam… Humaniza, né. Seculariza esse processo de construção jurídica.

Ivan: E já não existe nenhum Estado em que vai dizer que esse representante religioso é ligado diretamente com deus, então, portanto, a sua palavra… Daí, uma pessoa teria o poder de alterar toda a lei. É essa…?

Francielli: É… No Irã, talvez, nós teríamos isso, por causa da liga dos Aiatolás. Por serem todos os Aiatolás, né, os portadores de turbantes pretos, portanto, descendentes consanguíneos de Muhammad, eles teriam esse poder de mudar a lei. A lei humana, não a lei divina.

Ivan: Certo.

Francielli: O Alcorão permanece como está. A Suna dos sete, ou dos doze, no caso, os Xiitas, permanece como está. Ela é imutável. A fonte é imutável, o produto, ele pode ser atualizado, se por assim dizer. Por essas pessoas, exclusivamente.

Francirosy: Olha, é bastante complexo, né. Essa ideia de teocracia é a ideia de que é um governante religioso que, ao mesmo tempo, discute… Tem o poder político, poder religioso, essa coisa toda. Que a Sharia é a lei que rege o país, e tudo o mais, né. Olha, pra ser bem sincera, eu não acho que nenhum dos países, hoje, que se dizem teocráticos, né, Arábia Saudita e o Irã, especificamente. Acho que o Paquistão também, né. Nenhum desses países vivem, de fato, a Sharia, né. Eu acho que o Irã, talvez, um pouco mais avançado, mas eu conheça pouco o Irã, embora tenha passado alguns dias lá, mas é muito pouco pra dizer que eu conheço profundamente. Mas eu acho que são países muito controversos, né, em determinadas situações, determinadas coisas que a gente não consegue compreender ainda, né. Eu acho que, no caso do Irã, a gente pode pegar… Você pode pegar o último filme do Panahi, né, o Taxi Teerã, que eu acho que ele responde bem à sua questão, né. O que é um  Estado Teocrático como o Irã. E a Arábia saudita, a gente sabe que é esse desastre monumental, onde as mulheres não têm direito a nada, onde A mulher não pode dirigir… Agora, em 2015, que as mulheres puderam votar… O primeiro sinalzinho, né, quase colocar o dedinho, né, no oceano. E a gente sabe, ainda, que a mulher não tem o seu lugar… Assim, muitos casamentos arranjados. Há toda uma situação muito conflituosa, muito obscura sobre a Arábia Saudita. Mas eu também sei que, como pesquisadora, eu não gosto de aferir 100%… “Ah, é 100% assim”. Porque eu acho que o pesquisador tem que ser minimamente comprometido com este lugar, tem que conhecer o lugar pra falar dele. Então, as leituras que a gente sempre faz, é sempre leituras através de outros, né. Então, eu acho que esses Estados Teocráticos, esses países teocráticos, eles de fato não são. Os próprios muçulmanos vão achar isso.

Ivan (narração): De fato, todos os muçulmanos com quem conversei foram bastante claros nessa questão. Todos se declararam contra cortar a mão de um ladrão, por exemplo, uma punição que está prevista, inclusive, na surata 5, versículos 38 a 40, do Alcorão. Afinal, apesar do castigo descrito, existem também passagens do Alcorão que explicitam que, havendo arrependimento, o indivíduo estaria perdoado. E daí, aqui entra toda a questão da avaliação do Estado sobre se aquela pessoa, de fato, se arrependeu ou não. É neste ponto que as coisas divergem de forma radical. O que faz com que vários muçulmanos digam que, por mais que determinado Estado diga que aplica a Sharia, ele não é necessariamente teocrático. Curiosamente, eu já ouvi várias vezes, pessoas defendendo que um ladrão, ou até mesmo um pichador, deveria ter suas mãos cortadas. E nenhum dos defensores dessas ideias eram muçulmanos.

Ivan: Porque vão dizer que isso é a Sharia. Eu quero saber se isso é a Sharia.

Francielli: Não necessariamente.

Ivan: Tá. Você sabe me dizer em que países isso ocorre, qual é a jurisprudência…?

Francielli: Arábia Saudita, né, com uma interpretação mais literal acerca do que vem a ser castigo e repreensão, né. Então, por exemplo, dentro do idioma árabe, nós temos diversos dialetos. E esses dialetos acabam irradiando diversos sentidos pra uma mesma palavra, tá. Então, por exemplo, na Arábia saudita, nós temos as penas corporais aplicáveis, aí, aos montes. A questão do apedrejamento, né, a amputação de membros. Mutilação genital feminina, né. A ablação, que também é uma prática que se impõe ao Islamismo. Nem no Alcorão e nem na Suna, seja Sunita, seja Xiita, você vai encontrar alusão sequer à ablação. Essa é uma prática tribal, né, de países ali do Magrebe, do norte da África, que a colonização islâmica não foi capaz de remover. Então, acabou incorporando naquelas regiões, Burkina Faso, entre outros países ali da África Magrebina. Então, automaticamente, em virtude, por exemplo, da divulgação, né, e recentemente nós tivemos um caso na corte europeia de Direitos humanos, envolvendo a mutilação genital de uma imigrante, na Europa, né. Nós temos a imputação disso ao Islamismo. Temos alguns países em que a interpretação daquilo que já tem como pena corporal no Alcorão, ela é irrestritamente observada, é literalmente ponderada. É o que a gente chama de interpretação dogmática da lei. E temos outros países que, claro, acabaram adaptando isso e, hoje, as penas são restritivas de liberdade, e pode ser até prisão perpétua, ou a pena de morte, mas, enfim… Com… É meio paradoxal falar isso, né. Menos cruéis.

Francirosy: Se ele é muçulmano, ele não pode discordar da Sharia, da lei islâmica. Agora, a pergunta que a gente tem que fazer, em que situações essas penas são aplicadas? Qual é o processo que é constituído em relação a essas penas, por exemplo? Você sabe, por exemplo, se houve um caso de estupro comprovado, e parará-parará… A pessoa vai ser condenada. Se, por acaso, a família da pessoa que sofreu esse ataque, foi morta, não sei o que lá, parará, perdoar esse criminoso, você sabe que ela tem o direito de tirar a penalização? Se a família se indispor contra aquela penalização, ela tem o direito de perdoar o criminoso, ela tem o direito de tirar a penalização. Então, isso é um fato. A outra coisa é que essa penalização não pode ser dada imediatamente, há todo um processo jurídico, que vai ser julgado, até a penalização. E, assim, você precisa de quatro testemunhas imunes, né, pra cada ato. Então, no caso do adultério, você tem que ter quatro testemunhas, que sejam pessoas idôneas, praticantes, e que tenham visto o ato. Porque se você não tiver, a penalização não pode ser feita. Então, assim, tem uma série de questões, hoje, que perpassa a penalização final, que não são tão fáceis assim, né, de soluções. Então, dizer que o Islã é naturalmente violento é não saber como é que essas leis são aplicadas, né. Eu lembro de um rapaz libanês, que ele falou assim… Ele passou nove meses no Brasil, e quando voltou, ele percebeu que ele deixou o carro dele no povoado dele, lá, na cidadezinha dele, destrancado. E o carro tava lá do mesmo jeito. Então, você imagine a gente deixar o nosso carro (ela ri) destrancado, um minuto, no Brasil. Então, é assim, são formas… Então, quando você pensa na penalização de cortar a mão, quer dizer, eu teria medo (ela ri) de roubar uma borracha qualquer, entendeu. Então, lógico que eu não tô dizendo nem que é bom, nem que é ruim. Mas eu tô buscando entender qual é a lógica pra a aprovação de determinadas leis.

Ivan: O que eu tenho uma dificuldade de entender… Mas eu até consigo entender, fazendo um paralelo com o cristianismo. Mas eu tenho uma grande dificuldade de entender como é possível, um regime Islâmico que… Toda hora que eu abordo um muçulmano, eles me dizem, “Islã significa paz”…

Francielli: Sim.

Ivan: … Ah, da união, etc. E daí, eu vejo… Que, querendo ou não… Claro, é uma questão de (incompreensível) radicalismo muito forte…

Francielli: Sim.

Ivan: E não apenas radicalismo por terroristas, mas também institucionalizados como, por exemplo, na Arábia Saudita.

Francielli: Sim.

Ivan: Essa questão de práticas tão (incompreensível) população. Por que isso é possível, e se parece mais evidente em regimes de (incompreensível)?

Francielli: Porque, para estes grupos, pontualmente falando, os fins justificam os meios.

(EFEITO SONORO: TOM DE IMPACTO)

Francielli: Se Islã significa paz, o que é necessário para se obter a paz? Harmonização social. Na lógica deles, são esses instrumentos. Então, a imposição do medo, a organização social com base na subordinação forçada dos membros daquela sociedade a determinado padrão de conduta. No caso do Estado Islâmico, que eu já gostaria de esclarecer, não conheço nenhum muçulmano do meu círculo ou de, enfim, pessoas com as quais eu tenho contato em outros locais do mundo, que os categorize como muçulmanos, né. São uma vergonha pra a gente. Mas, enfim, o Estado Islâmico como movimento de depuração, de profilaxia social. Então, eles prelecionam… Eles objetivam o alcance da paz, matando, né, aquilo que consideram como impuro. Então, a lógica é efetivamente essa. Se subverte o objetivo do Islã, que é a paz, se prelecionando os seus… Os instrumentos que se acham necessário pra isso. E geralmente, essa questão de limpeza social vem até mesmo por conta desses contextos muito particulares, muito dolorosos, onde essas pessoas vivem, em termos políticos, econômicos, até geográficos, né. Acabam justificando este tipo de prática.

Ivan (narração): Ou seja, esse tipo de desejo por violência institucionalizada pelo Estado não é exclusivo de um governo vinculado a uma religião. Se fosse, poderíamos dizer  que o Brasil também é um país teocrático, tendo em vista, por exemplo, que mulheres hoje são limitadas em suas opções de realizar aborto, muito por conta de uma moral cristã que guia a população e seus representantes políticos. Mas, sem dúvida, o que faz com que o Brasil não seja oficialmente uma teocracia cristã é o fato de que, no plano político, há muitas pessoas que se opõem à  legislações desse tipo, mesmo que elas encontrem grande resistência em representação no congresso. Mesmo que um político que se declare ateu, ou umbandista, tenha poucas chances de ser eleito, ainda assim, ele é permitido de participar do seu processo democrático. Numa teocracia, apenas membros da religião oficial poderiam tentar alguma eleição. Num Estado laico, como o Brasil, teoricamente, todos têm chances iguais. Teoricamente. E neste ponto, mesmo dentro dos limites da religião, há aqueles mais progressistas e os mais conservadores. Todos estão sob o regime da Sharia, mas são contra as normas mais duras de repreensão, especialmente no tratamento de mulheres e minorias tais como os homossexuais. E não é à toa que, no Irã, nos últimos anos, as mulheres ganharam uma série de direitos, chegando, inclusive, ao ponto de, hoje, ocuparem a maior parte das cadeiras em universidades.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Mais uma vez, dos muçulmanos que entrevistei, todos, sem exceção, se diziam contra a morte e perseguição de homossexuais. E sobre a teoria que a Sharia seria duramente contra esse grupo, a Francielli trouxe alguns dados interessantes. E antes de entrarmos neste assunto, eu só gostaria de lembrá-los de que não sou muçulmano, tampouco sigo qualquer prática religiosa, e tampouco sou 100% a favor de tudo que estamos expondo aqui. Meu objetivo com essas questões é apenas de demonstrar que a Sharia, e o Oriente Médio como um todo, é extremamente complexo e diversificado, e que se queremos tratar dos assuntos com alguma seriedade, não é possível considerarmos o Islamismo como uma religião de práticas e mentalidade homogêneas.

Francielli: bom, o Alcorão não é expresso nessa temática. Mas a gente vai encontrar uma alusão a isso, não no Alcorão, no Antigo Testamento. A questão da sodomia, né. Proibindo esse tipo de prática, justamente em virtude dessa suposta transgressão à ordem natural da procriação, né. Então, nós temos, nesse ponto chave, aí, o trunfo de todos esses discursos. É… A tua pergunta foi se nós podemos ter, em algum regime majoritariamente muçulmano, essa brecha, essa modificação. Veja, em um regime islâmico, que aceita o Islã como religião oficial em sua Constituição, não… Né, justamente por conta desta ser uma cláusula pétrea no Alcorão, se por assim dizer.

Ivan: Tem um trecho no Alcorão que diz claramente… que as relações…

Francielli: Não…não, mas ele é… enaltece sempre a relação homem e mulher, não se faz alusão expressa à relação mulher-mulher, e relação homem-homem, mas sempre enaltecendo a relação homem e mulher, né… e consequentemente… Porque, veja, o Islã também vem a ser uma espécie de produto das duas anteriores, né, do Judaísmo e do Cristianismo. Então, o Antigo Testamento também é ponderado como fonte no direito islâmico. E aí é que também entra a proibição mais expressa com base no que diz o Antigo Testamento, porque o Antigo Testamento é expresso nesse sentido, o que é muito engraçado, né… porque nós temos sinagogas no Judaísmo que celebram casamentos homoafetivos. Eu conheço um rabino de São Paulo que celebra casamentos homoafetivos na… Ali na sua instituição. Mas enfim, vai do vanguardismo da interpretação.

Omar: A prática homossexual é liberada e chancelada pelo Islã? Não. Eu não vou te contar uma mentira aqui…

Ivan: É impossível…

Omar: Não…

Ivan: É impossível ser muçulmano e gay, por exemplo…

Omar: Não é impossível. Existe… existem homossexuais nos países islâmicos? Sim, como existe em qualquer lugar do mundo… ué, a homossexualidade é uma inclinação que nasce no indivíduo, homem ou mulher, né. O indivíduo tem essa inclinação, então vamos entendê-lo, vamos estender a mão, né… vamos tentar entender em que contexto nasceu essa inclinação. É natural, é chancelada e apoiada, estimulada pela religião islâmica? Não é, não é, né. Quer dizer, essa pessoa não vai ter liberdade de pegar a bandeira do arco-íris e sair em praça pública e dizer, “ah, seja homos…”? Não, o proselitismo homossexual não existe. To sendo muito claro em afirmar isso. Agora, daí a dizer que essa pessoa tem que ser morta por isso, não… não creio nisso, não defendo essa ideia, e uma boa parte dos sardos muçulmanos também não comungam dessa ideia. Eu vou te dar um exemplo… qual é o país, você deve saber, qual é o país campeão do mundo em operações de mudança de sexo?

Ivan (narração): Eu não consegui encontrar dados que comprovassem que o Irã é, de fato, o líder em cirurgias de mudança de sexo. De qualquer maneira, você ouviu certo, no Irã, esse procedimento é bastante comum. Mas…

Francirosy: No caso do Irã, com as cirurgias, embora o Islã se vogue dizendo que faz as cirurgias dos transexuais e tarãrã, no Irã também você não pode ser uma coisa ou outra. Você não tem opção de ser, por exemplo, homossexual e não querer fazer cirurgia. Se você é um homossexual assumido, você vai ter que fazer a cirurgia, entendeu? Então, é uma coisa que não… a dúvida não pode ficar, você escolhe ser o que você quer ser. Você quer ser mulher, você vai ser mulher. Você quer ser homem, você vai ser homem. Então, assim, não há essa possibilidade de não fazer… não é dada essa possibilidade. Então, a cirurgia é uma coisa recomendada e financiada pelo governo, né. Mas mesmo assim, não deixa de ser um avanço nessa discussão, né. E outras, na sociedade sunita, isso… não tem esse debate, é um debate ainda muito delicado. Mas o que eles vão dizer é que não existe, que na verdade está errado e vão dar os exemplos do Alcorão pra fundamentar isso. Mas, no fundo, é sempre uma questão da preservação da família… Né, a ideia… Porque a família, no Islã, é metade da religião. Então, se você começa a entender que, pelos fundamentos religiosos, você vai entender como é que as pessoas se posicionam, porque é que elas pensam dessa maneira e tudo mais. A gente tá falando do século 7º, 11, onde as famílias viajavam juntas. Então, preservar a família é fundamental, né, pra a manutenção da própria religião. Então, essa discussão passa por aí. Só que a partir de uma sociedade em que a gente vive, com as questões todas aparecendo, essas questões vão ter que ser debatidas em algum momento, né. Mas a comunidade Muçulmana tá cheia de homossexuais, certamente, eu mesma conheço vários.

Ivan: Tá, mas no Irã, por exemplo, eu to falando no Irã por ser o país que citamos, mas poderia citar outros. Eu, como um casal, se eu for viajar com a minha esposa, eu posso andar de mãos dadas com ela na rua, por exemplo.

Omar: Depende muito do país, né, porque daí entra não só a questão da Sharia, né, mas os hábitos e os costumes locais. A gente falou, por exemplo, da variedade do comportamento do homem em relação a mulheres. Existem países em que a violência contra as mulheres é realmente um problema, como o Egito, existem países em que não há esse tipo de problema… é, sair de mãos dadas no Irã, eu sinceramente não vi. Eu vi casais, um homem e uma mulher, um do lado do outro. Mas não há essa necessidade que nós temos, no ocidente, de demonstrar, né, um extremo afeto pela minha mulher, que muitas vezes, inclusive, é mais uma questão de aparência. Quer dizer, mostrar pro outro que eu sou legal, sou bacana, amo a minha mulher e a minha mulher me ama, né, do que a prática de um sentimento efetivo, né, que nasce no interior da pessoa e se manifesta naquele ato.

Ivan: Mas digamos a Síria, então, que era num país, nesse…

Omar: Não, você tem a Turquia. Na Turquia, você vê… a Turquia é um país que estaria assim, podemos dizer, até num outro espectro, né. Quer dizer, num país que existe um ressurgimento do Islamismo, né, como norma de vestimenta, de comportamento, como a quantidade muito grande de mulheres na rua usando o hijab, se vestindo de acordo com a norma islâmica do país, né. O próprio primeiro ministro, o Davutoğlu, ele apareceu, recentemente, nesse evento que houve na Turquia que reuniu os chefes do G20, a mulher dele é uma mulher que usa o hijab. O partido, inclusive, que está no poder hoje na Turquia é um partido religioso, né… Mas se encontra casais de mão dada, mulheres sem hijab, venda de bebida alcoólica, né, nos bares, enfim. Existe uma diversidade muito grande, uma variedade muito grande, né. Por isso que eu te digo, querer… você tem que fazer uma abstração muito grande pra ver o mundo islâmico de uma maneira uniforme assim como vê o mundo ocidental, né. (Ivan fala algo incompreensível), não existe o homossexualismo no Irã? Existe. Deve existir, né, homens que se apaixonam um pelo outro, vivem juntos, enfim, mantém as suas relações entre si, mas não é algo ostensivo, sabe? E não é algo ostensivo porque isso não acontece nem entre casais heterossexuais. Não acontece porque, nessas sociedades, a sexualidade, ela ainda é vista e preservada como algo a ser exercido no íntimo do lar, né, a ser vivenciado dentro da casa, não fora. Quer dizer, mais uma vez vem essa nossa necessidade de querer mostrar tudo pro outro. “Olha como sou bacana, olha como sou bonito, olha como sou forte”. Mas é um… é um desejo alienado em favor do outro, quer dizer, até que ponto isso é saudável? Pros muçulmanos que vivem em sociedade, como a iraniana, não é. Então, você vai sair num bar, por exemplo, eu não vi isso num bar, num bar no sentido assim, num local de encontro de jovens, uma pizzaria, uma lanchonete.

Ivan: Lá não vai beber álcool.

Omar: Não vende álcool, né. E se vender, é contrabandeado. Aí, as pessoas compram,  pagam um valor altíssimo, compram no mercado negro e levam pra casa.

Ivan: Que deve ter bastante, né?

Omar: Não sei, não sei te dizer, né. Assim, eu não vi pessoas alcoolizadas na rua, nos locais que nós frequentamos lá, como falei. Pizzarias, que as famílias vão especialmente na noite de sexta-feira, que é o feriado deles lá, né, vão pra oração e depois aproveitam com a família o dia. Quinta-feira também à noite é um momento em que os restaurantes, as lanchonetes, as pizzarias, estão cheias de gente porque as famílias vão, como nós aqui no ocidente. Mas você não vê consumo de bebida alcoólica. Então, são sociedades conservadoras, nesse sentido. Quer dizer, as pessoas se amam, se gostam, têm interesse umas pelas outras, mas esse afeto e a sexualidade são exercidas no ambiente particular, não na rua, não diante dos outros. Quer dizer, é a maneira que eles têm de vivenciar a sua sexualidade, até a sua homossexualidade.

Francirosy: Homossexuais tem em todo lugar, né… Mas é contrário ao fundamento religioso. No Islã, você não pode dizer que o fulano não é muçulmano porque ele é homossexual, por exemplo. Eu não posso dizer. Mas o que, por exemplo, eu já vi, casos assim, vi já situações de pessoas se declararem homossexual, e aí, o comentário do sheik é que… O que ela faz dentro da casa dela, ela vai responder pra Deus, e não pros homens, né, mas que a pessoa tivesse cuidado de deixar isso transparecer na sociedade muçulmana, né, no grupo. Então, eu acho que há muita controvérsia nessa discussão. Você tem grupos homossexuais muçulmanos bem organizados, na Europa, principalmente. Hoje, já tem grupos, legiões, mesquita, que não são oficializadas, obviamente. Hoje já tem pesquisadores que trabalham com esta questão, efetivamente. Mas a gente sabe que a religião é muito clara nesse sentido, de dizer que isso é um desvio, que isso não é da natureza, né? Que o homem fez… Como todas as religiões do livro. Como os judeus, como os cristãos, enfim. A discussão é sempre a mesma. É uma discussão de natureza e cultura. Tudo o que não passa pela natureza e cultura é um desvio. Mas isso não significa, por exemplo, que o muçulmano pode fazer chacota com um homossexual, ou que pode violentar, ou que possa matar. Mas ele vai dizer que está no desvio, que vai ser julgado pelo seu ato, que é um ato que é incorreto e tudo mais. Então, há uma discussão muito grande e há também várias interpretações.

Francielli: Agora, em um regime majoritariamente muçulmano, mas laico, sim, nós poderemos ter. Aí, não é nem uma questão de brecha, é uma questão de inovação jurídica. Prelecionar com base na dignidade da pessoa humana, e no princípio da afetividade familiar, a possibilidade da consagração jurídica das uniões homoafetivas. É difícil? Claro que é. Pegue uma Turquia com 98,9% de população muçulmana. Vai demorar muito para a gente ver ali a homologação das uniões homoafetivas, porque há um clamor popular ditando o contrário. Só que, em compensação, nós temos outros princípios, como, por exemplo, da proteção das minorias. Se, em determinado contexto, os homossexuais são minoria, já tem uma predisposição da Declaração Universal dos Direitos Humanos que lhes garante direito ao reconhecimento. Então, depende muito, se é um regime muçulmano laico, ou se é um regime muçulmano teocrático propriamente dito.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Voltando ao caso do Irã. Apesar de as cirurgias de mudança de sexo serem já de prática comum no país, o que sem dúvida, traz uma série de problemas para aqueles indivíduos que não desejam mudar de sexo, há grandes mobilizações de grupos homossexuais que lutam por reconhecimento. E há alguns anos chegaram a haver denúncias de que muitos membros desses grupos estariam sendo condenados à morte pelo simples fato de serem gays. O governo se defendeu, dizendo que esses indivíduos teriam sido punidos dessa forma por conta de outros crimes. Eu perguntei a Francielli sobre isso.

Francielli: Quem sofre agressão alega que é por conta dessa manifestação de liberdade de expressão. Quem pratica a punição preleciona ser um crime político, uma sublevação contra o poder público. E os crimes políticos nesses locais são questões muito graves contra a segurança nacional. Assim como é aqui no Brasil. Só que a nossa Lei de Segurança Nacional, por ser do Regime Militar, é completamente defasada e tem muitos dispositivos que já caíram em desuso. Agora, lá não. Na prática, a gente pode até ponderar que sim, pelo fato de serem homossexuais, se utiliza de determinadas manifestações públicas como subterfúgio para amedrontar essas comunidades, esses grupos que surgem. Mas enfim, em contrapartida nós temos esses discursos das autoridades públicas atribuindo determinado delito, geralmente contra a segurança nacional a esses grupos e…

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Dos países que adotam a Sharia como base de suas leis oficiais, temos atualmente Afeganistão, Irã, Mauritânia, Arábia Saudita, Sudão e Iêmen. Seis países no mundo todo. E é importante frisarmos que cada um desses países terá interpretações, leituras e aplicações diferentes entre si, como explicamos no episódio. Alguns mais radicais e outros mais liberais. E quando estamos falando liberais, devemos entender isso dentro do que uma sociedade majoritariamente religiosa e conservadora permite. É como o atual Papa Francisco. Dentro de uma instituição conservadora como é a Igreja Católica, ele é visto como um progressista por muitos. Mas, ainda assim, continua sendo contra sexo fora do casamento, para ficarmos num exemplo mais simples e não tão polêmico.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Então, vamos lá. Seis países são os que se utilizam da Sharia. O Oriente Médio, como um espaço geográfico imaginado, possui ao menos dezessete países, dependendo da leitura que se faz da região. Desses dezessete, temos uma mistura de pelo menos catorze ramos linguísticos diferentes, além de dialetos incontáveis locais, com suas diversas culturas. Dessa mistura toda, dos dezessete países, apenas três têm a Sharia como base legislativa estatal, Irã, Arábia Saudita e Iêmen. Os outros três, Afeganistão, Mauritânia e Sudão, estão mais ou para o continente africano ou asiático. Todas essas identidades culturais e linguísticas, tão diversas entre si, são frutos não de séculos, mas milênios de desenvolvimento humano na região. Afinal, vale lembrar que as atuais regiões do Iraque e do Egito são consideradas os berços das civilizações da Antiguidade remota. E se tudo isso já era complicado no século dezenove, no século vinte ficou ainda pior, depois da Primeira Guerra Mundial e da derrota do Império Turco-Otomano, que resultou no Tratado Sykes-Picot, que visava uma ação do Ocidente, especialmente por parte de França e Inglaterra, em dividir politicamente as regiões do Oriente Médio. Foi daí que nasceram os países que conhecemos hoje. Esse tratado foi recebido por muitos habitantes como uma traição, já que a promessa de uma nação árabe unificada não foi cumprida. Há autores que, inclusive, creditam boa parte dos conflitos existentes hoje na reunião como resultado direto do Tratado Sykes-Picot. E se você conseguiu calcular isso tudo, eu espero que tenha ficado claro quão complexa é a região, e como é um erro quando acreditamos que lá é tudo a mesma coisa, ou mesmo que são todos árabes. Mesmo a relação direta entre o árabe e o islamismo não é tão simples assim. De acordo com o site Pew Research, em uma pesquisa realizada em 2013, aponta-se que dos 1,6 bilhão de muçulmanos que existem no mundo, menos de 20% são do Oriente Médio, e menos ainda seriam árabes de fato. A maior concentração de muçulmanos no mundo encontra-se atualmente no continente asiático, com quase um bilhão de praticantes.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Nessa relação entre religião e estado, o próprio profeta Muhammad dizia que são indissociáveis. Como então lidar com essa diferença com a nossa visão ocidental?

Francielli: O estado e a religião são indissociáveis em termos, e isso também vai depender da interpretação que você dá a essa afirmação profética. Primeiramente, o estado e religião são indissociáveis em que sentido? Não são em todos os parâmetros. A organização política se dissocia da religião. E considerando que Muhammad, ele acreditava em Cristo, ele foi casado por um cristão, o seu casamento foi celebrado por um cristão, ele também não deixa de ponderar a velha máxima, “dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus”. Nesse primeiro lastro de secularização que começa com o ideário cristão. E outra coisa também, e isso é enaltecido pelo islamismo, e eu acho que eu comecei a fala de hoje sobre a Sharia explicitando exatamente isso. A Sharia, ela se opera entre os homens. A crença se opera entre você e o teu Deus. Então, é muito importante que a gente entenda a religião como uma questão de ordem subjetiva. Se ela é uma questão de ordem subjetiva, ela é sua, e portanto ela não deve influenciar no seu relacionamento com outros. Se o outro quer ser homossexual, que seja. Porque aquilo não afeta a minha crença, porque ele não está obrigando que eu seja. Claro, nós temos contextos de atrito, a partir do momento em que nós temos quadros de imposição de uma concepção individual sobre outras pessoas, e que os conflitos surgem. Agora, analisando do ponto de vista que eu usufruo, que é a possibilidade de crer no que eu acredito, sem sofrer imposições de outras pessoas, eu realmente entendo que o Islã é perfeitamente aberto a uma convivência harmoniosa. Só que, claro, isso parte dos outros e parte de nós muçulmanos também.

Omar: Vamos fazer um exercício enorme de abstração e imaginar que existe um mundo ocidental monolítico, que tem uma maneira única de pensar; e do outro lado, um mundo islâmico também, onde só existe um tipo de… só se usa shador, né… Nós podemos traçar alguns paralelos muito interessantes. A gente sabe que, durante séculos, o cânone católico, esse corpo definido de regras de caráter religioso, dominou a evolução do pensamento ocidental. Então, o despertar científico do Ocidente aconteceu apesar da religião. A Revolução Francesa foi, talvez, o ápice desse fenômeno traumático, esse processo traumático de separação entre o mundano e o espiritual. Tanto que os revolucionários aboliram o calendário gregoriano, um calendário de caráter religioso, né, e instituíram um calendário revolucionário. O mês do Brumário, por exemplo. Criaram todo um calendário concebido de maneira racional, de maneira científica e revolucionária. A Revolução Francesa não foi só uma revolução contra a aristocracia, foi uma revolução também contra o clero. Porque quem sustentava, em grande medida, a aristocracia, quem coroava os reis era a Igreja. A evolução das sociedades islâmicas aconteceu num sentido totalmente oposto. É muito difícil você falar pra um indivíduo desse, que não teve a experiência traumática e essa dicotomia violenta entre religião e ciência, perguntar pra essa pessoa o que… “Secularize-se”. “Não, mas por que me secularizar, se o mundo que eu vejo é um mundo de fenômenos e de manifestações da inteligência divina?” Eu vou buscar o conhecimento desse mundo, eu vou procurar descobrir esse mundo, eu vou procurar entrar na estrutura da planta; na estrutura da circulação sanguínea, que foi descoberta não por Harvey, na Europa, mas pelos muçulmanos, séculos antes. Qanun fi al-Tibb, o Cânone de Medicina, de Ibn Sina, era ensinado nas universidades da Europa até o século 18. Então, veja, quando o muçulmano, ele entende… Ele, primeiro, recebe a revelação e, depois, entende que os fenômenos da natureza são manifestações da inteligência de deus, ele vai querer descobrir isso. De que maneira a inteligência de Allah se manifesta nas coisas. E por isso eu vou querer desenvolver a Ciência, né. E aí, ele descobre o mundo. Então, veja, são duas realidades muito distintas.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: A própria… Essa questão também, que… Da Síria ser esse país que abraça muito bem diferenças, pelo menos nos relatos que eu tô pegando. Muita gente vai dizer que seria um dos países mais moderados, ali, e que isso seria muito por conta de todas as ações que principalmente a França teve ali, depois da queda do Império Otomano, depois da Primeira Guerra Mundial. Você concorda que esse processo de “secularização”, eu vou usar esse termo, que a Síria passou, em certa medida, e o próprio Líbano também, seria por causa de ações de países europeus?

Francirosy: Olha, eu não sei. Eu não gosto de país europeu (Ivan ri), eu não gosto de colonização. Ah, eu não gosto de França (ela ri). Eu não sei. Eu acho que, assim, se a Síria estava dando certo, alguma coisa da própria religião ela devia ter pra que isso desse certo. Porque assim, pra mim, é inconcebível um país islâmico que não promova o conhecimento. Que não promova o diálogo. Porque isso tudo é base do Islã, entendeu. Então, eu não consigo entender o fechamento de nenhum país, se não faz essa coisa que você tá chamando de secular, e eu posso até dizer que é islâmica, entendeu. De um outro ponto de vista, do Islã que eu conheci, das bases islâmicas que eu conheço. Então, essa busca do conhecimento é uma coisa que tem que vir pelo Islã, não dá pra se furtar a isso. Então, eu acho que isso também tem esse debate que é um pouco desviado, né, muitas vezes. Então, Infelizmente, o poder econômico é que tá superando, né, que destruiu a Síria. Essa coisa do petróleo, certamente, né, de você tá em cima de um campo de petróleo. E do interesse imperialista. Claro que há um interesse imperialista, acionista, eu não tenho dúvida disso. E a maneira como as pessoas usam a religião pra dizer… Esse suposto Daesh, aí, que é uma cena destruidora, né. Que ele surgiu pra defender um determinado grupo. E aí, as pessoas achavam que era pro bem, e acabou percebendo que era totalmente pro mal. Fazem mal uso da própria religião. Então, tudo isso, de certa forma, virou um caldeirão efervescente, né, dentro do Oriente Médio.

Francielli: É por isso que esses movimentos, como a Al-Qaeda, Talibã, Boko Haram, Estado Islâmico, eles logram de tanto êxito. Eles, justamente, manipulam o ideário coletivo de uma população que anseia por mudança, né. Pode ser que, em um futuro não tão próximo, nós tenhamos movimentos secularizadores em massa, no Oriente Médio. Mas, por ora, no atual contexto social e econômico em que essas pessoas vivem, realmente é muito difícil você apontar pra isso, porque a psicologia coletiva é muito vulnerável a esse tipo de manipulação, ainda.

Ivan: Eu, como alguém que tá morando no Brasil, em 2015, de uma criação secular… E me incomoda muito quando, por exemplo, acontece uma agência de um Estado Islâmico, de uma AL-Qaeda, e que começa a ter uma certa manifestação popular em dizer que todos os muçulmanos são assim, ou assado. E daí… Eu tento justamente fazer esse exercício de mostrar que não. É uma cultura muito rica, é uma religião como toda outra, tem ‘maluco’ e tem gente que tá interessado em fazer coisas boas, enfim. Mas uma coisa que incomoda muita gente é a pergunta de… O Islã, a cultura islâmica, ela consegue se secularizar pra viver em paz com o Ocidente, a ponto de se respeitar certas liberdades individuais como, por exemplo, como relacionar-se internacionalmente com um país em que não permite que uma mulher que não queira usar um véu não possa? E assim, dá um choque de cultura que gera um conflito que vai ter alguém que vai dizer que o problema é o Ocidente, que vocês são infiéis e que têm que morrer. Eu sei que não é o caso de vocês, e eu sei que só o fato da gente tá aqui conversando, no Brasil, não vai ser o caso, provavelmente, de nenhum muçulmano aqui de Curitiba. Mas eu queria que você falasse em questão de perspectiva, como é que a gente resolve isso? É um problema do ocidente? É um problema do Islã? É um problema que tá intrínseco na cultura árabe? Depende de cada país? E como resolver esse…?

Omar: Eu acho muito interessante a tua pergunta, porque você me pergunta assim, “de que maneira as sociedades islâmicas poderiam se secularizar para se relacionar de uma maneira mais tranquila com o Ocidente?” Quer dizer, então, a tua pergunta parte do pressuposto de que a minha referência tem que ser o Ocidente. O que eu, como muçulmano, tenho que fazer para satisfazer ou agradar ou tornar possível uma convivência com o Ocidente, que não comunga realmente da mesma percepção que os muçulmanos. E, na minha percepção, Ivan, esse tem sido um dos grandes problemas. Que traz um eco dessa visão eurocêntrica que, de certa forma, empurrou o colonialismo pra África e pra Ásia. Então, nós, ocidentais, somos dotados de um pensamento científico racional, de uma técnica e de uma tecnologia superiores, e podemos, por isso, usufruir e dispor dos povos que não são tão desenvolvidos quanto nós. Essa… Esse raciocínio colonialista, que foi exposto aqui de uma maneira muito simplista, de certa forma, moveu a empresa colonialista e levou à conquista da África, à conquista da Ásia, né. Da Índia, o colonialismo britânico que deixou sequelas terríveis, né, no subcontinente indiano, e na própria índia, dividiu os indianos entre Paquistão e Índia, quer dizer, criou conflitos entre hindus e muçulmanos. A mesma coisa no norte da África, né, quer dizer, aquelas fronteiras, fronteiras artificiais que não foram criadas pelos africanos, foram criadas pelos colonizadores. Aí, o mundo, no século 20, se… No século 21, se surpreendeu com os massacres que aconteceram em Uganda, né, entre Hutus e Tutsis. Mas esses conflitos sempre existiram entre eles. O que os europeus fizeram foi cercá-los e colocá-los junto, obedecendo aquela ótica de dividir para governar. O Iraque, como nação, nunca existiu. Existia a região do Iraque, mais ou menos ali às margens entre o Eufrates e o Tigre, naquela região ao norte do Shatt AL-arab, que é a cabeça do Golfo Arábico, ali. Mas nunca houve uma nação “Iraque”. O Iraque foi criado no Foreign Office, em Londres, por Sir Winston Churchill, que pegou o mapa, aí colocou ali o Xiita com Sunita com o zaidita com… Entendeu. Então, eu acho que, muito mais do que perguntar o que os muçulmanos têm que fazer para se secularizar e possibilitar uma ponte de relação com o ocidente, é o que o Ocidente e o Oriente Islâmico têm que aprender um com o outro para, respeitando as suas especificidades e as leituras muito particulares que fazem da realidade, possam se relacionar de maneira amistosa, fraterna e tolerante.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Obviamente, quando conversei sobre Estado e religião e a possibilidade de secularização de muçulmanos, nem eu nem meus entrevistados estavam se referindo a grupos terroristas, como Al-Qaeda, Estado Islâmico. Todos esses são condenáveis por todos que entrevistei. E quando falam de respeito às diferenças, é justamente como um cuidado para não achar que os valores europeus, cristãos, ou qualquer coisa que seja do Ocidente, são melhores do que aqueles de muçulmanos. Se você discorda dessa visão e acha que tudo que o Ocidente produziu em termos de cultura é o que há de melhor em toda a história do mundo, e que esses valores, às vezes, devem ser impostos à força em povos diferentes, aí é outro problema.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Se pensarmos em termos da Sharia, sabendo que, acima de tudo, ela é uma forma de compromisso que o praticante religioso estabelece consigo mesmo para com a divindade, podemos ter uma breve ideia do quão diversa ela pode se mostrar em cada casa muçulmana. E se essa diversidade ainda não está muito clara para você em termos práticos, chegou a hora de mostrarmos esses efeitos na vida diária de um muçulmano. Ou melhor, de uma muçulmana.

Paula: É… Eu não estou ilegal com ele dentro do Islamismo. Eu estou ilegal com ele dentro da religião dele.

Ivan (narração): É o que faremos na semana que vem, no terceiro episódio de “O coração do mundo”, aqui no Projeto Humanos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir através do link na postagem. Agradecimentos especiais a Omar Nasser Filho, Francirosy Campos Barbosa e Francielli Morêz Gusso, por terem conversado comigo para este episódio. Nos vemos no próximo programa, com a história da Paula de novo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Murilo Maciel, Sharisy Pezzi, Matheus Souza, Sidney Andrade, Carolina Moreno. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Geraldo Miranda