1 – O Peso do Véu

8 de março de 2016

Neste primeiro episódio, apresentamos a primeira parte da história de Paula Zahra, muçulmana de Curitiba-PR que em 2015 foi aos jornais noticiar acerca de agressões que sofre diariamente nas ruas da cidade. E enquanto aprendemos sobre o islamismo através da sua história, nos perguntamos: seria a mulher muçulmana de fato tão diferente de outras no Ocidente?

Convidados especiais: Omar Nasser Filho e Francirosy Campos Barbosa.

 

Arte da capa por Amanda Menezes
Crédito da Foto: Artform Canada via Visual Hunt / CC BY-NC-ND
Lettering por Luiz Amorim

Links

Mulheres são vítimas de agressões por serem muçulmanas em Curitiba [Matéria da Gazeta do Povo]
Antropologia e Islã – Site da Francirosy Campos Barbosa

 

Transcrição

Voz: … vou falar pra ele, na situação que eu tava no ponto de ônibus, na 24 de maio, que dois rapazes dentro de um carro importado; eles tavam tomando cerveja; eles tavam com som absurdamente alto, num sábado, duas e meia da tarde; e eles pararam no semáforo, eles me viram no ponto de ônibus. Nessa época, eu trabalhava numa empresa de telefonia, que fica ali na 24 de maio. E eu tava sozinha no ponto. E antes, como eu falei pro senhor, eu só usava preto, porque eu trabalhava numa empresa, então, era… ficar usando véu colorido? Então, era… pra mim era mais discreto, mas, pra sociedade, era o que chamava mais atenção. E pra mim era o mais discreto. Então, eu tava ali, e eles falavam assim, “ah, ó o urubu!”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Voz: E volta… então, olha o trabalho que eles tiveram: eles já tinham passado por mim, eles já estavam no semáforo aguardando liberar ali o verde, eles deram a ré no carro, colocaram vida de outras pessoas em risco, porque eles tavam dando a ré, então poderia vir outro carro ali, né, e dar uma batida, causar um acidente de trânsito. Já começou dali a irresponsabilidade deles. A segunda, eles tavam bebendo, né, que eu acho que de todas é a mais grave, que eles fizeram pra mim não é nada, porque eles tavam dirigindo e bebendo. Ali eles deram a ré, voltaram, pararam na minha frente e falaram, “Daí, mulher bomba!” (breve pausa) E eu continuei com a cabeça baixa (breve pausa). Daí, “cê não… não fala nossa língua, né?” E davam risada. “Tá calor? Não tá calor aí de baixo desses pano”, uma coisa assim, “Tó aí pra você se refrescar!” E me arremessaram uma garra… uma latinha de cerveja. Me lavaram. Tava cheia, de certo, não sei… que me molharam tudo assim, só… tipo… jogou e bateu no meu peito assim. Então, foi no meu rosto e molhou toda a roupa. Foram cantando pneu e foram pela 24 de maio lá e… foram embora.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Eu acho que até o dia 11 de setembro de 2001, eu nunca havia parado pra pensar no que era um muçulmano. E à medida que os anos se passaram, o Oriente Médio sempre me pareceu ser um local cheio de guerras, violações de direitos humanos, perseguições a minorias, onde todos se odeiam, em que a religião não trouxe nada de bom. Eu já passei por fases da minha vida em que tive anseios religiosos. Hoje, estou bem alheio a isso, mas continuo fascinado pelo campo de estudos de religiões. E não foi à toa que fiz meu mestrado em Ciências da Religião, em 2008. Mas, mesmo nos períodos da minha vida em que pude me considerar um religioso, de criação católica, eu nunca fui muito aberto às tradições, por exemplo, cristãs. E se eu já tinha alguma resistência a cristãos praticantes, muçulmanos sempre me eram sinônimos de malucos. Apesar de sempre ouvir que o Islamismo é uma religião de paz, me perguntava “ok, se é assim, por que parece que eles estão sempre em guerra?” E eu tenho certeza que não sou o único com essas dúvidas. Então, esse é o objetivo dessa segunda temporada. Através de histórias pessoais, eu vou tentar entender o que é o islamismo, qual a sua relação com a política no Oriente Médio e como isso afeta eu, você e o resto do mundo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Eu acompanhava o perfil de uma refugiada da síria que vivia no Brasil, e um dia ela postou uma imagem. Essa imagem era um mapa-múndi que mostrava a Síria logo no centro. E de lá, linhas vermelhas saíam, conectando o país a todas as partes do planeta. Em baixo, havia uma inscrição. “Síria, o coração do mundo”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): E, ao olhar para aquele mapa, eu me perguntei o que aconteceria se esse órgão estivesse doente. Como sua dor se espalharia pelas artérias do planeta? Da onde ela veio e para onde ela vai? Como é esse tecido de vidas costuradas pelas veias deste coração em dor? Por isso, essa segunda temporada buscará contar histórias de brasileiros e refugiados que foram, de alguma forma, tocados pelos recentes conflitos do Oriente Médio. Sejam bem-vindos ao coração do mundo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Até onde sabemos, o Brasil nunca foi alvo dos recentes grupos terroristas que preenchem as páginas dos jornais. O autointitulado Estado Islâmico, a Al-Qaeda, o Boko Haram, nenhum deles realizou atentados por aqui. Ainda assim, houve uma comunidade no país que passou a sofrer com tais notícias. E, em novembro de 2015, isso ficou bem mais evidente.

(EFEITO SONORO: TOM DE IMPACTO)

(INÍCIO DE CLIPE DE ÁUDIO: MATÉRIA TELEJORNALÍSTICA)

Narração: A Paula e a Luciana, muçulmanas, sempre sofreram com piadinhas, provocações e até mesmo agressões. Mas os casos vêm aumentando, depois dos recentes episódios de atentados terroristas pelo mundo. Agora, infelizmente, a situação chegou num ponto em que elas têm medo de saírem sozinhas às ruas.

(FIM DO CLIPE DE ÁUDIO)

Ivan (narração): Por causa dos ataques terroristas que o mundo presenciou, pelo menos nos últimos 15 anos, os muçulmanos em geral passaram a ser vistos como potenciais terroristas em vários países, até mesmo no Brasil. E neste clima de medo e insegurança, as mulheres muçulmanas são as que mais sofrem no dia a dia, tendo em vista que utilizam diariamente seus véus. As agressões que aconteceram em Curitiba, em novembro de 2015, à Luciana e à Paula, serviram como uma pequena amostra do que milhares de brasileiras muçulmanas já estão acostumadas a conviver. Uma realidade que não é comum a uma grande parcela da população. E é por isso que eu fui conversar com uma delas. Para buscar justamente entender, através da sua história de vida, como é a vida de uma mulher muçulmana, tendo em vista que o islamismo é encarado por grande parte da população como de extrema opressão para com mulheres. Como seria seu dia a dia? Como seria sua percepção sobre a própria religião? E o que ela, como mulher, almejaria para si?

Voz: Meu nome é Paula Zahra, eu sou monitora de operações.

Ivan: Monitora de operações? É… como você… Isso aí já é uma curiosidade que eu tenho também. porque é Paula, é Zahra, como é que é? No Facebook está como Zahra…

Paula: Uhum.

Ivan: … essa é a tradução do seu nome em árabe? Como é que funciona…

Paula: Não, esse é o meu nome muçulmano.

Ivan: Nome muçulmano.

Paula: Nome muçulmano. Meu nome mesmo é Paula. De batismo, digamos assim, é Paula.

Ivan: De registro civil?

Paula: De registro civil é Paula. Mas é… quando você faz a reversão para o islamismo… não que isso seja uma regra que tem que… né? Mas você escolhe um nome muçulmano, e eu escolhi Zahra, por ser a filha do profeta Muhammad.

Ivan: Ah, tá certo. Qual que é o significado de Zahra?

Paula: Flor.

Ivan: Flor?

Paula: Uhum.

Ivan: Bacana, bacana. Você então é muçulmana revertida?

Paula: Revertida.

Ivan (narração): O termo “reversão”, usado aqui pela Paula, é um dos vários que podem soar estranhos para quem não conhece nada ou pouco sobre o islamismo. E serão vários os termos que entrarão aqui e poderão atrapalhar o entendimento sobre a religião. E é por conta disso que eu entrei em contato com a mesquita de Curitiba e pedi por recomendações de pessoas especialistas que pudessem nos esclarecer algumas das questões fundamentais. E aqui eu preciso dar um aviso.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Durante toda a produção dessa temporada, eu sempre tentei falar com especialistas sobre os assuntos que serão abordados. Mas, mesmo assim, é importante dizer que não são visões que dão conta do Islamismo como um todo. Com certeza, há argumentos contrários, mesmo dentro do Islamismo. Só o fato da mesquita de Curitiba ser xiita, já pode incomodar alguns dos ouvintes sobre declarações que serão feitas. Eu entendo essa questão. E, por isso, estou tentando ser honesto para vocês. Eu tenho plena noção desses limites. Ainda assim, eu fiz o que pude para buscar o máximo de visões possíveis.  E, sempre que houver alguma discordância fundamental no que estou apresentando, eu vou tentar avisar. Mas também reconheço que, às vezes, posso não dar conta de tudo. Mas eu espero que entendam, se às vezes, a verdade pode ser relativa, quando o assunto é alguma religião, isso se torna ainda mais difícil. Por isso, nosso foco será nos personagens, nas experiências pessoais que cada um falará aqui. E para me ajudar a começar a entender melhor alguns conceitos da religião muçulmana, eu tive ajuda.

Omar: Meu nome é Omar Nasser Filho, eu sou jornalista. Tenho bacharelado em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo; bacharelado em Ciências Econômicas; e mestrado pela… em História, pela Universidade Federal do Paraná.

Ivan: Qual que foi a sua dissertação?

Omar: Foi sobre a imigração árabe e muçulmana pra Curitiba, né, entre a década de 40 e o meados dos anos 80.

Ivan (narração): O Omar é um dos membros mais ativos da comunidade muçulmana de Curitiba e foi um dos responsáveis por organizar as coletivas de imprensa que ocorreram após o caso de agressão às muçulmanas na cidade. Ele me explicou o conceito de “reversão”.

Omar: Nós cremos que todos os seres humanos nascem muçulmanos, no sentido de terem no seu âmago, no seu íntimo, essa noção instintiva de que foram criadas; de que não nasceram ao acaso; não são simplesmente resultado de uma série de reações físico-químicas e materiais. Então, o ser humano, ele é adotado já, desde o ventre materno, dessa fitra, essa noção básica primordial e instintiva de que somos resultado de um processo inteligente de planejamento e de criação. Então, a rigor, nós não usamos o termo “conversão”, nós usamos o termo “reversão”, que traz esse sentido de retorno a uma condição primordial do ser humano, que é condição realmente de ser muçulmano.

Ivan (narração): Tenham sempre em mente de que estamos falando de uma noção religiosa. Logo, por mais que um muçulmano não questione, por exemplo, a teoria da evolução, ele sempre vai entender que Deus está por trás deste processo. E isso pode parecer óbvio, mas é importante dizermos com o intuito de estabelecer algum respeito daqueles que negam qualquer visão religiosa. Ou seja, se você, como eu, não é uma pessoa religiosa, o mínimo necessário é tentar entender a visão de mundo dessas pessoas.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: O que eu sei é que eles não… não podiam ter filhos, já estavam há muitos anos casados. A minha mãe biológica foi até uma rádio dizer que ela tava gestante de uma criança, acho que, na época, de dois meses, e ela já tinha um filho de dois anos e não tinha condições de criar. E que ela tava dando para… pra doação. Aí, a minha madrinha de batismo cristão, trabalhava junto com a minha mãe, escutou essa notícia na A.M., na época, e falou pra ela, “ah, vamos lá na casa dessa moça, vamo lá conhecer ela”. E minha mãe tinha por volta de 21, 22 anos. Daí, quando elas chegaram lá, diz que a situação era bem precária, era ali no Santa Quitéria, ela não tinha mais nada na casa, provavelmente eu acredito que ela tenha vendido as coisas, né? E tinha meu irmão junto com ela. E ela falou, “olha, eu tô doando a criança, só que quem quiser adotar, vai ter que custear todo o processo da minha gestação, né?” Isso meus pais aceitaram essa imposição dela lá, e passaram a pagar as despesas dela com comida, medicamento, enfim, até… Aí chegaram, minha mãe comentou que chegaram a ir até o juizado de menor, só que o juiz disse que ela não poderia…  ter, digamos assim, uma desistência de um feto, tinha que esperar essa criança nascer, porque eles ainda acham que quando a criança nasce, a mãe pode ver a criança, criar aquele vínculo, né, de mãe e filho na hora de ver o bebê. Mas não foi o que aconteceu. Tanto que ela não chegou nem a amamentar. E o meu tio falou que quando eu nasci, eles foram me buscar na maternidade, e que ela nem me pegou no colo. Diz que da mesma forma que a enfermeira passou, deu pra ela, ela pegou na palma da mão e entregou pro meu pai.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Eu falava pra minha mãe, “ó, mãe, um dia, eu vou seguir uma religião diferente”. Só que nem eu, professor, sabia por que eu tava falando aquilo. Porque nem eu sabia. Porque minha mãe é católica praticante, católica apostólica romana. Ela beija foto do Papa(Ivan ri). Né? Grosso modo, assim. Né? E eu também admiro muito esse Papa Francisco, é um… eu acho ele um cara fantástico, assim. As ideologias dele, o conhecimento dele, enfim… Eu fiz todo, tudo aquela questão do batismo cristão; eu fiz a catequese; eu fiz a crisma, né? Então, eu tenho todos… isso dos católicos, eu fiz. Mas eu era muito polêmica na sala de catequese. Muito polêmica! Porque eu perguntava pro catequista, “mas… como eles pregam que Jesus morreu pra nos salvar”. Eu falei, “que culpa tem Jesus do meu pecado?” Uma criança, professor, de 8 anos, tava no… imagine?! “mas por quê? Mas por quê?” Então, assim, eu sempre fui muito polêmica.

Ivan: (risos) Imagino.

Paula: (risos) Porque eu… eu queria entender. E eu lembro muito, assim, que no dia da minha crisma… Ou foi da comunhão, não vou lembrar assim muito bem pro senhor. Eu falei, eu pedi pro padre que eu só entraria na igreja… E eles tavam fazendo o ensaio. Se eles tirassem Jesus da cruz. Porque aquilo me incomodava muito, ver aquela imagem de Jesus na cruz. Me doía. Né? Porque Jesus é nosso profeta. Muçulmano acredita no profeta Jesus, que em árabe Jesus é “Isa”. Não é muçulmano, né? Então, eu falava, “por que o profeta tá…?” E eu também não chamava ele de Jesus, eu chamava ele de profeta.

Ivan: Ah…

Paula: E, daí eu falava assim, “ó, professora, eu vou, mas me incomoda demais ver ele na cruz, me dói!” E eu lembro assim, eu não lembro da explicação certa do padre, da paróquia, na época, mas ele falou assim, que eu lembro, assim, professor, eu vou tentar… ele falou assim, que esse realmente era o sentido de Jesus tá na cruz no altar. Essa dor que eu dizia sentir, era esse sentimento mesmo que todo mundo tinha que ter quando entrasse na igreja, né? De sentir esse sentimento de dor que ele se sacrificou por mim. Acho que mais ou menos assim, foi a explicação que ele me deu. E eu, lógico, polêmica, indaguei ele, “não, mas eu não quero sentir essa dor…me dói ver ele aqui, né? Você tem que tirar ele daqui.” E várias vezes eu falava assim, “mas por quê, por quê, por quê?”

Omar: É, a gente entra numa mesquita xiita, da mesma maneira, não vai encontrar imagens lá dentro. Nas procissões xiitas, às vezes, nós percebemos. Mas é aquela diferença, né, Ivan, entre o cânone e a religião popular. A gente sabe que a religião popular muitas vezes adota práticas, expressões, que não são chanceladas pelo stablishment religioso. Mas é uma religiosidade natural, que nasce nas ruas, que nasce nas comunidades. E é difícil repreender. É difícil, é… eliminar, né? Por exemplo, a gente tá falando da questão da iconografia. Então, eu tô te respondendo que nem em mesquitas sunitas, nem em mesquitas xiitas encontraremos ícones, representações da figura humana. Nós temos aquela questão geométrica, né, do uso das formas geométricas como elemento decorativo; a caligrafia árabe foi amplamente desenvolvida no aspecto decorativo. Existem inúmeros estilos, inclusive cursos universitários, no Oriente Médio, que ensinam a pessoa a fazer a Al-jaṭṭ, árabe, quer dizer, a caligrafia árabe, a caligrafia islâmica. Mas isso é uma coisa. A prática religiosa, a prática popular religiosa, muitas vezes ela foge do controle das autoridades religiosas. Um exemplo, no caso islâmico, é a autoflagelação de algumas correntes xiitas. Então, se nós formos abrir agora um mecanismo de busca na internet e digitarmos lá, “imagens xiitas” ou “xiismo”, mas vai aparecer uma profusão de imagens de pessoas cortando a cabeça, se autoflagelando com lâminas de aço nas costas, né, com faca, cortando o rosto e tal. Isso é aprovado, é ensinado, é orientado para que os muçulmanos, especialmente os muçulmanos xiitas façam? De maneira alguma. A religião islâmica não manda as pessoas ferirem o corpo, porque isso é um pecado. O corpo, ele é uma dádiva, uma bênção de Allah. Por isso, muçulmano deve proteger seu corpo. Por isso, inclusive, aquelas prescrições com relação à coberta do corpo. O corpo não é algo que se mostre por aí. O corpo, ele deve ser escondido e usufruído de maneira particular e individual, né? No casamento entre o homem e a mulher. Não é para ser exposto e muito menos violado/violentado. Então, o islamismo e o xiismo apoiam o autoflagelo? De maneira alguma. Existem sentenças dos grandes líderes religiosos condenando essa prática. Mas vamos fazer o quê? “Ah, é proibido? Tá, então vamos mandar o exército massacrar os xiitas que tão…” É uma prática, enfim, desses grupos. O que se procura fazer é trabalhar nas mesquitas, nas escolas, nas aulas de religião, essa questão conceitual. O corpo deve ser protegido, o que eles fazem não é correto, nós não devemos agir dessa maneira.

Paula: E a minha mãe adotiva, ela fala que quando eu era muito pequena, ela passava na frente da mesquita e diz que eu queria entrar.

Ivan: Ah…

Paula: E tanto que quando eu fui ficando mais velha, com 8, 9 anos, ela trabalhava num local que tinha muito judeu. E eu também tive esse contato bem próximo com os judeus, né? Então, essa rixa que todo mundo acha que existe, ela não existe, né? Eles se dão muito bem sim, conversam, sim, são amigos, sim, né? E aí, ela dizia que quando eu passava na frente da mesquita, eu queria entrar, eu queria usar roupas que não condizia, né, ela diz que eu tinha um… não era um pudor, não sei, assim, um… um resguardo comigo que era fora do normal pra uma criança, e quando eu fui ficando adolescente, mais anormal ainda. Porque quando você fica adolescente, você quer mostrar o que você tem, que você tem um cabelo bonito, que você é… Né? Eu não, eu queria esconder, e eu dizia “Não, eu vou guardar a minha beleza, ou enfim, para o meu marido”. E eu, assim… é uma coisa que ficou nessa. E eu comecei a pesquisar, comecei a ter contato com essas pessoas da religião. Mas assim, hoje eu penso que é… não tem, acho que é um troço que tá dentro de você.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Uma família muçulmana de Foz do Iguaçu, que se mudou para perto da minha casa, e eu conheci eles. E ali no meio, e foi indo, e foi indo, mas eu não lembro nunca deles quererem me reverter. Eu ficava lá na casa, eu ia brincar com a menina, que era a Gimana… (Ivan: “tinha quantos anos?”) É, quantos anos eu tinha? eu era bem criança, mas era mais ou menos nessa idade, nove… Nove, dez anos, que eu lembro que o nome da moça era Gimana.

Ivan (narração): A Gimana era de uma família sunita. E através dessa amizade, a Paula transformou sua curiosidade inicial pelo Islamismo num profundo interesse. Seu pai, que já havia morado na Inglaterra e, portanto, já havia convivido com a comunidade muçulmana, não foi contrário. Tampouco sua mãe. E numa época em que ainda não havia internet, a Paula pesquisava sobre a religião através de livros que conseguia ter acesso.  Até que aos doze anos, numa viagem que fez a Foz do Iguaçu com sua família, ela realizou sua reversão.

Paula: Dentro da mesquita, era um horário depois da reza do meio dia, então fizemos a reza e depois da reza fui falar com o Sheik. A gente estava bem na frente do Púlpito. Aí, tinha pegado três irmãos que tavam lá, que eu também não conheço, mas tem que ter as três testemunhas, e eu fiz a Shahada.  Ele foi falando em árabe e eu fui repetindo. É muito rápido, é coisa de dois, três minutos, não mais que isso.

Ivan: Você lembra o que você estava sentindo na hora, assim?

Paula: É… Parece… o sentimento é de conquista, assim, né?  Você está conquistando… De renascimento, não é conquista. Eu estou nascendo de novo, assim. Este é o sentimento, acho. Quem faz a reversão de coração. Porque eu falo, professor, que não é fácil ser mulçumana. Não é fácil, não é fácil mesmo. A aceitação da sociedade em um país onde tudo pode…  tem muitos ali na mesquita que a aceitação da família é complicada, mas a convicção nossa, no coração, que é o que importa. Então, naquele momento, assim, estava nervosa, né, porque você fica nervoso. Mas, assim, é aquela coisa, eu tô nascendo de novo. Agora… (ela hesita um pouco) Eu posso descrever para o senhor quando eu saí de lá. É como seu fosse uma folha em branco. Sabe quando você tá um passarinho na gaiola? Por isso que eu falo “Que opressão?” Eu tive foi a liberdade, quando eu escolhi seguir o islamismo. Não existe opressão, a opressão está na cabeça das pessoas, no entendimento, né. Porque as pessoas entendem o que elas querem. Não adianta você ficar batendo na mesma tecla, tentando explicar, ela vai absorver aquilo que ela quer. Então, assim, eu lembro que estava muito calor. Porque Foz é assim muito quente. E a gente descendo ali a escada, e todo mundo eufórico, feliz. Ai as irmãs que estavam ali começam a te cumprimentar. É uma felicidade muito grande, professor, todo mundo te cumprimenta, todo mundo aplaude, né. Se a mesquita estiver cheia, todo mundo vem te cumprimentar, eles fazem uma fila gigante e todo mundo te abraça, todo mundo te cumprimenta. Os irmãos, eles ficam muito felizes. Então, eu saí na escada, e você se sente uma celebridade, porque está todo mundo “parabéns” e “graças a Deus”. E todo mundo sai dizendo coisas positivas pra você. E você se sente, assim, um passarinho na gaiola. E quando abre, você tem a tua liberdade, assim. “Agora eu posso ser realmente quem eu sou”.

Omar: Muçulmano é aquele que segue a religião islâmica, não islâmico, né. Eu ouvi, e ouço muitas vezes, as pessoas, “não, porque os islâmicos…”, não! Islâmico é o objeto, o conceito, a cultura, né. São referenciais islâmicos. As pessoas são muçulmanas, o Muçulmano, a Muçulmana. A raiz consonantal da palavra Islam são as letras (transcritas como pronunciadas) “Sin” (س), “Lam” (ل) e “Min” (م), são as mesmas letras que formam a palavra Salaam, “paz” e a palavra Muslim, aquele que professa, que pratica, que aceita o Islã. Então, semanticamente falando, existe uma relação muito estreita entre esses conceitos, “Muslim”, “Islam” e “Salaam”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Foi o momento, assim, que eu não tive adolescência. Meu Pai, ele é daqueles, assim, que trabalho braçal é para homem, mulher tem que ficar em casa, quem tem que levar comida para preencher o armário é o homem. Mulher cuida do esposo, dos filhos, da casa. E quando meu Pai foi morar na Europa, eu meio que tive aquela liberdade que tinha sido me tirada quando eu tinha lá, né os 17 anos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Eu meio que… “Ah, agora eu posso sair, vou poder viajar”. Eu nunca tinha ido em uma praia sozinha. Eu queria saber como é que é. E eu não tinha assim muito contato com homem, assim, eu tinha mais contato… Eu tinha muito amiga menina, e eu não tinha contato com homem. Eu participava de uma sala de bate-papo de muçulmanos, e ele entrou nessa sala, por curiosidade.  E ele falou que entrou lá para ver, e ele começou a conversar com a gente ali. Ele queria saber mais da religião… E falou, assim, que os pais dele eram alemães… E foi dali, dali que a gente começou a conversar, e dali partiu para o telefone pessoal. E eu conversava bastante com ele nessa época que meu Pai morava fora. E eu falei, “olha, eu sou muçulmana e tal, nunca tive namorado”. E tanto que ele contou para mim, depois, que ele achava que era mentira. “Capaz, uma menina de 23 anos nunca ter namorado?” Eu falei, “é verdade, não tive namorado”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: A gente ficou dois meses. Outubro, novembro, dezembro, jan… Três meses conversando pela internet. E depois, eu falei, “se você quiser me conhecer, você tem que ir na minha casa”. Nós nos encontramos no Shopping Curitiba, eu levei uma prima minha junto comigo. Na outra semana, ele foi na minha casa. Obviamente, ele conquistou a minha Mãe porque ele foi lá e levou uma bíblia de Maria pra minha Mãe. Daí, minha Mãe já… Pronto, ele conquistou a minha Mãe (Ivan ri), que daí minha Mãe achou lindo, maravilhoso, né.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Ele era mais velho do que eu. E aquela coisa, assim, aquele sentimento de adolescente. Aquelas paixonites da adolescência, eu fui ter com 23 anos. E como ele era um cara mais vivido, mais experiente, você acaba se deixando levar. Só que eu já usava véu, tudo isso. E foi quando ele foi na minha casa também. E tipo, falei de cara assim, eu falei para ele, eu expliquei para ele a religião assim, assim, assim… e ele falou, “a minha intenção de conhecer você é para casamento mesmo”. Eu, “nossa, perfeito”, pronto, Graças a Deus. 23 anos… Eu, “nossa, vou morrer solteira”. E foi assim muito rápido. E foi em janeiro, eu lembro até hoje, 15 de janeiro de 2005… De 2005. E eu engravidei dois meses depois.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: No meu sétimo mês de gestação, todo aquele amor lindo, perfeito, aquelas promessas que existiram da parte do Pai dele, elas se evaporaram. Quando a barriga começou a aparecer, ele simplesmente se distanciou.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Ah, ele interferia muito nos meus estudos. Aparecia na faculdade, me tirava de dentro da sala. Se eu não estava usando o véu, ele, “ah, mas você não é mulçumana?” Me cobrava. Falei “pô, pera, mas quem tem que me cobrar da minha vestimenta, se não tá de acordo, sou eu mesma.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Teve muitas situações que aconteceram pra que eu criasse uma resistência de chegar ao ponto do celular tocar, eu ver o nome dele, eu já ficar… Do coração disparar, mas não no sentimento de gostar dele ainda, mas de que se eu atendesse o telefone, ele ia me falar coisas que iriam estragar o meu dia.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Volta e meia, eu estava na mesquita e ele aparecia no portão da mesquita. Uma vez, ele fez uma ofensa muito grande, ele abriu o portão da mesquita e cuspiu lá no chão.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Por que meu pai teve que largar toda a vida dele lá, que tava praticamente tranquilo, para voltar para o Brasil, para colocar a ordem na casa dele. Porque, se não… Minha mãe falou, “se você não voltar, tua filha vai morrer”. Não que eu ia desistir da minha vida e tal, mas é… Depressão mata! Ela é uma doença. Porque eu estava em uma situação, assim, eu fiquei pesando 57kg, cabelo eu não tinha, tava caindo todo meu cabelo. E daí, minha mãe ligou para ele, “se você não vir, tua filha vai morrer, porque ela tem 1,74m e tá pesando 57kg”.

Ivan: Mas você grávida?

Paula: Não, não. O Nicolas já estava aqui. O Nicolas já estava com dois anos. Aí, foi quando o meu pai pegou e falou, “e aí, meu cidadão?” Meu pai chegou dia 25 de dezembro, e o Nicolas faria aniversário no dia 27. E meu pai veio sem avisar para ninguém. Aí, ele falou, falou assim, “olha, e aí? Vocês vão casar, tão com aliança, tem casa, a Paula tem trabalho, você tem trabalho, vocês têm apartamento, vocês tem tudo. Vocês vão começar uma vida a dois aqui, já. Não vão pagar aluguel, não vão… E aí?” “Então, que eu sou muito…” Na época, ele tinha vinte e oito anos, eu acho. E aí, ele falou para meu pai que se achava muito novo para casar, e as minhas escolhas profissionais, elas iam de encontro com a vida de uma  mulher casada. Porque eu estava estudando, porque eu queria ser polícia. Na verdade, eu queria fazer concurso para a Polícia Civil, e eu tava tentando. Eu falava para ele, “eu vou fazer concurso para a Polícia Civil, eu quero trabalhar no DENARC”. Aí, ele falou assim, “como é que eu vou casar com uma pessoa que vai ficar trabalhando com um monte de homem?” E eu falava assim, e ele falava, “vai ser a primeira muçulmana polícia”. E ele não aceitava essas coisas. Daí, meu pai falou, “vamos fazer o seguinte então, a partir de hoje, a Paula vai viver a vida dela, aqui dentro de casa, da minha casa. Você tem somente o seu filho. E cada um vai viver sua vida”. Aí, foi quando acabou, professor. O Nicolas estava com dois anos. O Nicolas está com dez anos. E daí, foi quando eu fiquei, nesse tempo… Nesse tempo, lógico, ele me procurou. Eu até fui, fiz muita loucura, no sentido de encontrar com ele escondido.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Então, para evitar esses atritos, a gente foi se distanciando. Até um certo momento, eu mendigava, assim, mendigava atenção dele para com o filho. Mas aí, chegou num determinado momento que eu falei assim, “olha, eu acho que existe ex-marido, ex-mulher, ex-namorada, mas não existe e nunca existirá ex-pai, ex-mãe”. Então, assim, “ah, você tem que colocar ele na justiça”. Eu falei “Opa, pera aí, eu vou ter que colocar, vou ter que acionar esse cidadão na justiça, para que o juiz diga para ele como que deve ser um pai?” (ela faz um muxoxo de negação) Deixa… Aí, eu abracei a causa para mim, professor. Até hoje é assim, eu trabalho para o Nicolas, para comprar a roupa dele, para pagar o estudo dele, né. A parte financeira do Nicolas é tudo eu. Então, é assim, eu deixei de fazer… Saí da faculdade, porque é uma faculdade privada. Ele não da nenhum tipo de ajuda financeira, né. Ele se distanciou de vez mesmo. Aí, ele procura o Nicolas na páscoa, quando ele vem trazer um chocolate. E no aniversário e no natal. Então, três, quatro vezes por ano. E eu percebo que o Nicolas acaba sentindo esse distanciamento, porque o comportamental dele, tanto em casa quanto na escola, fica bem diferente. Mas a gente vai tentando driblar essas situações, que hoje ele é criança, mas daqui a pouco ele vai ser um homem, e ele vai entender, daí.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan: Você… Também só pra ter certeza, então, ele não era muçulmano?

Paula: Não.

Ivan: É cristão? Ou é meio…

Paula: Não, não, assim, ó, não sei te dizer, assim, o que ele era, ele nunca foi num…

Ivan: Religião nunca foi um problema para ele.

Paula: Não, não.

Ivan: E aí, então é um cara que, teoricamente, deveria ser mais aberto, porque, de acordo com o senso comum, muçulmano são super machistas, e você teve um relacionamento com um cara que teoricamente não deveria ser machista e teve atitudes horrorosas como cobrar que você não estava usando o véu em sala de aula.

Paula: Sim, sim.

Ivan: Como você se sente quando pensa… Daí, quando você ouve alguém dizendo que muçulmanos são machistas, e você passou por uma situação dessas?

Paula: Eu falo, eu conto a minha história. Eu conto a minha história e falo, “isso aí não é questão de religião”. Mas entra naquilo, professor, que eu falo, as pessoas… Não adianta você brigar, quando a pessoa não quer entender. Então, assim, tem pessoas que me procuram, que me questionam… E não é que tudo “ah, então, ah, tá, quer dizer que as pessoas que você explicou eu sou obrigado a aceitar a sua explicação”. Não, não é isso. Mas é… quando eles vêm e falam isso, eu já coloco a minha história. “Não, mas eu passei por coisas que uma pessoa que não é um Árabe, que não é um muçulmano, que não é um radical, que…” Entendeu? Na verdade, é um radical, porque ele me cobrava coisas assim, que… Totalmente sem noção, sem nexo. Coisas que eu nem sabia, que eu… Em locais que eu não ia. “Ah, você foi. Ah, você fez. Ah, você falou”… Eu não falei isso, eu não disse isso. “Ah, mas nenhum homem muçulmano vai querer ficar com você”, eu já ouvi pessoas falarem isso para mim. “Mas por quê?” “Porque você tem filho”. Mas não é homem muçulmano que vai aceitar, se você conversar com dez homens e você perguntar, “você aceita casar com uma mulher que tenha filhos?”, isso vai muito do particular.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): Como toda religião, o Islamismo possui normas de conduta para seus seguidores. Uma síntese delas pode ser encontrado nos chamados “Cinco Pilares do Islamismo”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O primeiro pilar é a declaração de aceitação da fé, a Shahada, formalizada no momento da reversão, como podemos notar no relato da Paula. O segundo pilar é a obrigação de cinco rezas realizadas durante o dia. O terceiro é a caridade, materializada no imposto chamado de Zakat, que é pago à comunidade muçulmana onde se habita, como uma espécie de dízimo. O quarto pilar é o jejum, que é realizado anualmente, durante o mês do Ramadan, que ocorre no nono mês do calendário islâmico; e durante esse período, os muçulmanos adultos e aqueles que estão bem de saúde devem se abster de comer, desde o nascer do sol até o pôr do sol. Idosos, crianças e doentes não são exigidos de participar e, geralmente, não participam. Beber água ou qualquer outro líquido também é proibido. Por conta disso, todas as noites do Ramadan acabam sendo grandes confraternizações familiares, com muita comida, grandes festas. O quinto pilar é peregrinação à sagrada cidade de Meca, que o muçulmano deve visitar ao menos uma vez na vida. Fica na Arábia Saudita, que é de maioria Sunita, governo Sunita, mas Xiitas também são bem vindos para fazer sua peregrinação. Outros hábitos, como as rezas de sexta-feira, não ingerir bebida alcoólica ou fumar, também fazem parte do dia a dia do muçulmano. E, claro, o sexo antes do casamento também é proibido. E por incrível que pareça, a lógica por traz dessa proibição é justamente para que a mulher não ficasse desamparada pelo companheiro, caso engravidasse. Essas situações de abandono, como a que ocorreu com a Paula, não são incomuns, em pleno século 21. Não é um absurdo considerarmos que tais instruções vieram da Idade Média, justamente com o intuito de trazer alguma estabilidade para o núcleo familiar. Muitos estudiosos, inclusive, leem esse tipo de conduta como uma forma de preservação da mulher. Mas isso é um outro assunto que vamos explorar mais a seguir. No geral, os Cinco Pilares do Islamismo não deveriam ser tão difíceis de ser entendidos e aceitos num país como o Brasil. Afinal, muitos costumes cristãos são bastante similares. Talvez a grande diferença seja que o Cristianismo se desenvolveu de outras formas, e hoje nós temos inúmeras vertentes, especialmente na religiosidade popular, que não parecem ser tão rígidas ou conservadoras. Mas isso não significa que uma instituição cristã aceite, por exemplo, o sexo antes do casamento. E a visão popular de que o muçulmano é um radical por natureza agrava o entendimento de como essas práticas se dão no dia-a-dia, e como o cristão e o muçulmano, muitas vezes, são parecidos.

Paula: Existem muçulmanos e muçulmanos. Existe o muçulmano, existe o crente muçulmano, tem essa diferenciação dentro do islamismo, sim. O cara é muçulmano porque ele foi criado dentro de uma família. É a mesma coisa. Porque hoje o que é mais fácil? Conversar com uma pessoa, “você tem religião?” “Ah, eu sou católico”. Por quê? Porque o católico pode tudo. Não pode, não. Mas as pessoas acham que se você falar que você é católico, você pode usar… A mulher pode usar minissaia, ela pode usar um decote, ela pode fazer isso. Mas quem disse? Eu conheço…o Padre Reginaldo, que é uma figura, uma pessoa que eu gosto muito, e eu já vi ele dando…é, como fala? Sermão, no sentido assim, puxando a orelha de mocinha que ia na missa com decote e minissaia. Ele falou, “Não vou deixar entrar, não! Que é que é isso? Vai virar bagunça?”. Mas é mais fácil falar que é católico, que tudo pode. Ele falava assim, “Não, eu sou católico, sou católico não praticante”. Como também tem o muçulmano. O cidadão ali, a menina, o menino, é muçulmano e no momento da vida também…eu aprendi, quando eu tive o Nicolas, eu sabia o Corão de cabo a rabo. Eu sabia tudo. Eu não fiz errado? Eu não me envolvi com um rapaz, eu não tive um filho fora do casamento? Sou passível de errar.

Ivan (narração): Tenham em mente que eu estou apresentando esta comparação apenas para estabelecer o óbvio. Que em países laicos, como o Brasil supostamente é, religião é questão de foro privado. Se a pessoa quiser seguir determinado estilo de vida, é  direito dela. Por mais incômodo que seja para mim ou para você. Mas o que parece incomodar mais a comunidade muçulmana em geral, no que se refere às visões populares de suas práticas, é que muitas vezes existe a sensação de que são dois pesos e duas medidas, quando compara-se a prática diária desta religião com o Judaísmo, o Cristianismo, por exemplo. Mesmo se compararmos com a maneira como alguns evangélicos neopentecostais são tratados diariamente, entendendo-se este grupo como uma vertente mais dura do Cristianismo, ninguém os encara como homens e mulheres bombas. Além disso, o brasileiro, no geral, parece que tem alguma proximidade ideológica com certas vertentes cristãs, vide a composição atual do quadro de políticos em Brasília. É claro, em princípio não há países neopentecostais em que atentados terroristas estejam sendo feitos em nome de deus. Mas eu vou tentar dar um exemplo de como a questão pode ficar complicada, quando analisamos por esta perspectiva. Em uma matéria do The Guardian, datada de 7 de outubro de 2005, é dito que dois anos antes, logo após a invasão dos Estados Unidos no Iraque, o então presidente George W. Bush teria dito “Sou motivado por uma missão divina. Deus me dizia, ‘George, vá e lute contra os terroristas do Afeganistão’. E eu fui. E então Deus me dizia, ‘George, vá acabar com a tirania no Iraque’. E eu fui.” É claro, os Estados Unidos não são uma teocracia cristã declarada. Sem dúvida, a bússola moral aponta para valores cristãos, mas mesmo quando o Bush dizia que estava entrando em uma, abre aspas, Cruzada contra o Terrorismo, fecha aspas, grande parcela do mundo ocidental não parece ter se incomodado com o fato do presidente dos Estados Unidos ter usado justamente um termo que se refere ao período de conflitos medievais mais sangrentos, no que tange às rusgas entre cristãos e muçulmanos. Ou pelo menos, não começaram a dizer que o fato dos Estados Unidos estarem invadindo outros países de forma bastante controversa, como foi especialmente o caso do Iraque, seria culpa da mentalidade cristã e que todos os cristãos do mundo seriam a favor da guerra. Em outras palavras, enquanto muçulmanos passaram a ser vistos por boa parte da população ocidental como potenciais terroristas, cristãos não sofreram o mesmo efeito. Nem mesmo quando civis são mortos por ataques de drones americanos na Síria. Parece que daí sabem diferenciar bem o que é um cristão e o que foi o Estado “Estados Unidos”. Talvez como muitos críticos ao Islamismo defendem, a raiz deste problema esteja na relação mais direta entre Estado e Religião, imposta pelos regimes teocráticos do Oriente Médio. Por exemplo, o Irã, o grande representante de uma teocracia xiita, e Arábia Saudita, grande representante de uma teocracia sunita. Ambos países possuem suas constituições baseadas nos princípios da Sharia, a lei islâmica, sendo esta diretamente derivada diretamente do Alcorão. Eu abordarei este tópico mais adiante. Por hora, gostaria apenas de apontar de que a noção de que é possível um muçulmano não ser radical ou, ao menos, que ele esteja disposto a uma convivência pacífica com outras religiões parece estranha para muitas pessoas. E o compromisso com suas práticas religiosas muitas vezes podem contribuir a reforçar esse estereótipo. Mas estamos falando de pessoas. E como podemos notar na experiência de vida da Paula, os problemas que ela enfrenta, e enfrentou, não são tão diferentes assim daqueles fora do círculo islâmico. Não é exclusividade deles.

Paula: O que aconteceu comigo serve de exemplo que não é a religião que é machista. É as pessoas que a gente convive ou que passam na vida da gente que não teve caráter. Tem nada a ver com religião. “Ah, mas você errou”. Eu falei assim, “Claro que eu errei”. Fala “ah, Você tinha o conhecimento”. “Tá, mas eu não sou perfeita, não acabei de falar pra você que é muito difícil ser muçulmana? Você acha que é fácil, você fazer um Ramadan? Você acha que é fácil?” Professor, eu fiz um Ramadan, lá no Oriente Médio, pelo amor de deus. Nossa, é muito difícil. É muito difícil mesmo. Porque é muito calor, como é que você vai andar o dia inteiro, ou trabalhar, e não vai tomar água? Porque se eu fizer isso aqui, ó, salivar, quebrou meu jejum. Se eu chupar uma bala, quebrou o meu jejum. Então, você acha que é fácil, você acha que minha consciência não dói? Eu lá comigo não tenho o meu…eu não me cobro do que eu fiz? Sou ser humano, sou ser humano e sou mulher, né. Tenho minhas desilusões, tenho meu medo de ficar sozinha.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Eu mostrei uma foto no celular. “Eu tenho que te mostrar uma coisa”. Não foi nem falar, professor. Eu falei assim, “Eu tenho que te mostrar uma coisa”. Daí, ele perguntou assim… Daí, ele falou, “Eu queria mostrar minha família”. Aí, eu comecei a mostrar o meu pai, minha mãe… aí, as fotos daqui do Brasil. Daí, passou o Nicolas. Ele, “Quem que é? Seu irmão? Você não me falou que você tinha um irmão.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: De um rapaz de Dubai, que eu conheci ele através de uma família, né. “Olha, a gente tem um rapaz, quer conhecer ele? Ele viu você no Facebook da família, as fotos e tal, perguntou quem que era, se interessou. Você quer conversar?” Aí, me deu uma titubeada. Ah, vamos fazer amizade, né? Vamos partir por esse princípio. E a gente foi conversando, conversando. E a minha amiga falou pra mim “Olha”. Eu falei pra minha amiga, “Eu não vou falar pra ele que eu tenho o Nicolas”. Já comecei errando, né, professor. Errei negando o meu próprio filho. Eu falei, “Mas não agora, não vou falar pra ele. Porque eu acho que agora encontrei alguém bacana, alguém com quem eu vou poder ter a minha família”. Porque acho que pelo fato de ter sido adotada, você tem aquela rejeição do teu pai e da tua mãe. Deus te deu uma família, fique feliz por isso, mas não adianta, professor, a gente fica com aquele sentimento de rejeição. Então assim, todo mundo tem o sonho de ter uma casa própria. Eu tenho de ter uma família. (Ela e Ivan riem levemente) Seja onde for. Se for num quartinho pequenininho, mas que teja uma família. Então assim, todo mundo busca a casa própria, o carro, eu busco uma família. E daí, eu falei assim…Aí, aparece uma oportunidade de ter um cara que é muçulmano, que é praticante, que ia entender. Não ia ter conflito nenhum ali. Porque a cultura era a mesma.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Era 4h, 4h30 da manhã, era Ramadan, a gente tava de frente pro Nilo, tava passeando, porque lá a vida é noturna, né, especialmente no Ramadan. Então, as pessoas vão à noite porque comem, comem, comem e de dia, dorme, né. Era 4h30 da manhã, a gente tava numa ponte, assim. Aí, você via o Nilo todo, muito bonito. E aí, fazendo planos. Tava com mais o primo dele e mais uma amiga minha junto. A gente tinha ido fazer a quebra de jejum. Aí, a gente virou a madrugada num café e ficamos lá. E daí, “Ah, vou te levar num lugar lá, no Rio Nilo, que é bem bonito e tal”. Tava conversando e fazendo planos, né. E daí, falei assim, “Você quer ir pro Brasil, pra conhecer a minha família?”, né, “não, eu vou…” e tal, e tal. E naquela hora, professor, minha amiga falou, “Não fale pra ele. Isso, não fale, não fale. Deixe pra você falar do filho, lá do Nicolas, quando ele tiver lá no Brasil e o noivado for firmado, que vai ficar feio pra ele voltar atrás”. Tudo estratégia. Mas aquilo tava me incomodando.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Falei assim, “Olha, fulano, eu tenho uma coisa pra te contar”. Ele falou assim, “Ah, você não é virgem mais?” Daí, “Não, não tem problema. Não tenho…” Porque tem muito homem, que ele não aceita. Tanto que em alguns países, onde existe os casamentos…eu dou muito a Arábia Saudita como exemplo, porque eu conheço bastante pessoas de lá e eles são muito…os salafis, eles são muito radicais. E as meninas, elas fazem cirurgia de reconstituição de hímen. E quando aprontam, elas fazem sim, elas praticam o ato sexual, mas por outros modos. E quando fazem ali, elas fazem sim cirurgia de reconstituição. E assim, o número de cirurgias de reconstituição de hímen é muito alto. É tudo pra quem tem dinheiro porque tudo precisa de luxo. Mas elas existem e acontecem muito hoje, nesses países.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: E ele falou que não tinha problema nenhum. Ele falou, “Não, pra mim não tem problema quanto a isso”, né. Porque isso seria o quê? Algo mais grave que teria pra falar pra uma pessoa que você vai casar, né. Daí, ele falou que pra ele não teria problema, por que a cabeça dele era diferente, que ele tinha estudado nos Estados Unidos, que, né… Ele tinha cabeça aberta e tal né. Aí, eu falei, “Não, não é isso”.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: E daí, conversa vai, conversa vem, professor, e eu ali com a oportunidade de ter tudo que eu queria com a pessoa que eu não ia ter conflito nenhum na minha vida…

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Aí, ele olhou pra mim, assim… Eu lembro até hoje quando eu passei na foto, assim. Daí, ele falou, “Ele não é seu irmão?” Daí, eu, “Não”. “É seu primo?” Eu falei, “Não, ele é meu filho.” (breve pausa) Aí, ele me olhou e falou, “Seu filho?”. Eu falei, “É”. “Por quê você não me falou que você tinha um filho?” “Porque eu fiquei com medo de você não me querer.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: Fisicamente eu vi, assim ó, o rosto dele, tipo, se desconfigurou todo. O olho dele encheu d’água, o rosto dele, tipo, eu não sei dizer assim, a expressão dele mudou totalmente, assim. Então, aquele semblante, vamos dizer assim, angelical, aquela coisa doce que ele tinha no olhar dele, no semblante dele, desapareceu. Na hora, ele falou assim, “Vamos embora”. O tom de voz dele mudou. “Vamos embora, eu vou te deixar na sua casa. E vamos embora”. Aí, naquilo eu me desesperei, né. Eu comecei a chorar e falei, “Calma, você queria que eu mentisse pra você? Que eu fizesse você ir pro Brasil, gastar dinheiro, tudo?” Porque eu sei que é caro . blá blá blá… “Vamos embora, Paula!” Aí, minha amiga veio, “O que aconteceu?”. “Eu contei pra ele que eu tenho o Nicolas.” “Por que você fez isso?” Aí, eu não entendo o árabe 100%. Aí, ele começou a conversar com o primo dele em árabe. O primo dele olhou pra mim. Quando ele olhou, eu já percebi. Pronto, ele contou pro primo dele. Ele olhou pra mim e fez assim, “Como você fez isso? Por que você fez isso pra ele?” Então, tipo assim, algo lá do meu passado, né. Ele se sentiu traído. E foi a última vez que eu vi ele.

 

Ivan: Eita…

 

Ele não quis mais me encontrar. Aí, eu fiquei mais, eu fiquei (incompreensível) pra ficar no Cairo, pra morar lá. Já tava vendo questão de emprego. E daí, eu só viria mesmo… Nem viria, na verdade. Eu mandaria dinheiro pro Nicolas ir. Hoje, eu converso com ele e ele fala que ele se sentiu traído. Ele falou assim, “Eu senti aquele sentimento de traição. Eu sei que você não tava comigo quando você teve o Nicolas, mas eu me senti traído”. Ele falou assim que ele se sentiu traído. Então, assim, eu quis ir embora, tudo… “Não, vamos tentar conversar com ele”. Mas ele não atendia nem mais as minhas ligações. E pro pai dele e pra mãe dele eu também nem sei. Eu vou perguntar pra ele o que ele falou pros pais dele. Porque demorou pra ele falar comigo. Demorou pra ele falar comigo. Demorou bastante, ele não quis mais nem falar. Mas foi assim, não teve conversa, ele só falou e o primo dele também perguntou por que eu menti. E depois, agora que ele fala que ele se sentiu traído, que se sentiu enganado. Não vou tirar a razão dele, né. E eu falei, “Eu não falei isso porque realmente eu fiquei com medo. Eu já tinha passado por essa situação, né, de ter um filho sozinha. E aí, quando você vê uma oportunidade de encontrar alguém, você não vai querer estragar, né”. “É, mas você acabou estragando porque se você tivesse me contado, de repente, a gente teria conversado”. Mas eu acredito que ele não aceitaria da mesma forma, se de cara eu tivesse falado. E a família dele… E aquilo que eu falei,  o pai e a mãe são figuras, assim, sagradas. Então, se o pai dele ou a mãe dele falasse “Não, você não vai”… “Ela é muçulmana?” Ok, eles ficaram muito felizes e admirados por ele estar conversando com uma mulher brasileira muçulmana. Porque eles também não aceitam. É difícil aceitar que os filhos casem com estrangeiras. O pai dele e a mãe dele só abriram a exceção porque ele falou que eu era muçulmana praticante, ele mostrou tudo, né. Mas se falasse, eu acho que, pra família dele que eu tinha um filho, né. Na verdade, assim, eu poderia ter falado de outra forma. Desde o começo, eu poderia ter falado. Eu poderia ter falado que era divorciada, por exemplo. Não ia ter problema nenhum. Porque ele não ia querer saber, professor, se eu casei no civil. Ele não entende isso. Ele não ia entender. Então, digamos assim, ia ser fácil enrolar ele, digamos assim. Né, eu ia contar a verdade e eu ia omitir, né, do caso, assim, “Ah, eu nunca casei no civil”. Mas eu podia ter falado pra ele, assim, que eu era divorciada e que, desse casamento que eu tive, eu tinha tido um filho. Aí, ok. Aí, eu acredito que, né, não teria problema. Porque a mulher divorciada hoje, em países… Ela consegue casar de volta tranquilamente. Agora, botar na cabeça deles isso… Eles não entendem mesmo de que você pode ser mãe solteira. Eles não entendem essa coisa de mãe solteira. Eles não entendem. Por mais que você tenha que explicar, explicar, explicar, eles não entendem. Não entendem mesmo.

Ivan (narração): Mais uma vez, seria fácil apontar o dedo e dizer que essa situação é única de muçulmanos. Mas assim que eu a ouvi, fui conversar com algumas mulheres sobre se elas já tinham vivenciado, ou ao menos visto alguma amiga que era mãe solteira. E para minha não tão grande surpresa assim, recebi relatos de que as dificuldades de se ter um novo relacionamento são muito maiores para mulheres com filhos do que para com homens na mesma situação. Em resumo, enquanto a primeira é vista como “ela já vem com um pacote de problemas”, os pais solteiros são encarados positivamente. Pois seriam um indicativo de que se importam com família. Por mais que seja fácil dizer que ela errou, e ela tem plena noção disso, não é difícil entender sua motivação. Perto dos 30 anos, já com um filho de pai ausente e com um desejo intenso de montar uma família, sua atitude pode ser criticada, mas é compreensível. Pelo menos pra mim. E como ela bem falou, ao se declarar divorciada, os problemas diminuem bastante. Aquele pretendente talvez não aceitasse, mas daí seria mais por pressão familiar do que por princípios religiosos. Prova disso é que nos últimos anos, a Paula teve ao menos duas propostas de casamento de dentro da comunidade religiosa. Homens que conheciam sua história e conviviam com seu filho, Nicolas. Isso talvez seja uma das coisas que mais incomodam pessoas de fora desse ambiente. O fato de que não há namoro. Você conhece alguém, fica noivo e, logo em seguida, se casa. São costumes que hoje não são tão comuns em grandes cidades. Mas novamente, não são exclusivos de muçulmanos. Provavelmente o ponto de incômodo mais comum, no que se refere ao tema casamento e direito das mulheres no Islamismo, seja o tal do casamento poligâmico. Eu perguntei para Paula sobre isso.

Paula: Eu não aceitaria. Mas estou embasada pela minha religião também. O homem, ele… O alcorão diz que ele tem o direito, né, de ter quatro esposas, desde que a primeira esposa aceite. Então, obviamente, se ele chegar pra mim, “olha…” né, contar a situação e tal, e eu ia conversar, né. Então, não é, não sou obrigada a aceitar. Né, eu li recentemente dois livros de duas mulheres da Arábia Saudita e realmente acontece isso. A Arábia Saudita é um país bem fechado nesta questão cultural, religiosa, eles são bem… E elas contam, tem uma dessas meninas que ela descreve que ela casou e chegou um momento lá que ele quis ter uma outra esposa, que se encantou lá, né, enfim. E ela não aceitou e ele não casou. A justificativa deles, que eu já vi casos assim, a justificativa que o esposo de uma amiga minha deu foi isso, que a casa era muito grande, que eles tinham quatro filhos, que ia ajudá-la, né. Então, primeiro eles, né… “Você vai poder ir no shopping com mais tempo… porque vai ter a outra pessoa aqui pra te ajudar”. Né, eles vão pelas bordas ali, né.Não, não, e ela foi muito… “Não, não, contratamos uma empregada. E uma senhora, não é uma mocinha não!” Então, assim, acontece bastante. Eu não aceitaria, mas eu conheço bastantes situações que aconteceram e que elas não aceitaram.

Ivan: E tem casais… Você conhece pessoas que aceitaram? Tem casais aqui em Curitiba, você sabe?

Paula: Não. Não sei, eu acho que se tiver, né, professor, ninguém sabe, pela questão da Constituição daqui.

Ivan: Ah, sim. A Constituição brasileira não permite.

Paula: Não permite. É adultério.

Ivan (narração): Eu peço que memorizem essa parte. Mesmo que um homem muçulmano quisesse ter uma segunda esposa no Brasil, isso seria proibido por lei. Por mais que a primeira esposa aceitasse, que a comunidade aceitasse, que a religião permita, seria ilegal. Essa questão será importante mais adiante. Por ora, vamos nos aprofundar um pouco mais na questão do casamento poligâmico.

Omar: O versículo do Alcorão que prescreve a poligamia diz assim, “podeis desposar de tantas mulheres quantas quiserdes… DOIS PONTOS”. Isso é muito importante, porque tem gente que diz assim, “ah, porque o homem muçulmano pode ter tantas mulheres quanto quiser”. Não é assim. Aí, “DOIS PONTOS, uma, duas, três ou quatro. PONTO”. Então, aqui nós já temos uma restrição ao direito à poligamia, até quatro mulheres. Mas se for de justus, apenas uma. Certo? Então, assim, é um direito que é concedido ao homem, por Deus, mas ele tem que ter a consciência de que, se não for equitativo, apenas uma. Que é a regra. A regra, nos países islâmicos, é o casamento monogâmico, por que é um fardo muito grande pro homem, não só do ponto de vista material, mas também sentimental. Então, é raríssimo nós encontrarmos a poligamia entre os muçulmanos, normalmente são grandes potentados, indivíduos que têm grande poder econômico e podem dar esse sustento, porque também não é só a mulher, é os filhos que advém dessa relação, né. Então, a poligamia, ela é prescrita, ela existe, ela pode ser praticada, mas dentro de limitações de ordem religiosa e jurídica muito estritas.

Ivan (narração): Se estamos falando de uma religião que surgiu e opera em núcleos mais tradicionalistas, os papéis da mulher e do homem são bem definidos. O homem é o provedor e a mulher é aquela que educa e cuida dos filhos. Segundo Omar, uma das dificuldades de sociedades ocidentais de aceitarem essa lógica, decorre justamente dessa mudança de status que as mulheres passaram nos últimos séculos. Em termos históricos, perceber a mulher como força de trabalho é um fenômeno relativamente recente, especialmente se estamos falando de membros da classe média para cima. O salário que o homem recebe, hoje em dia, já não daria conta das despesas do lar, a vida ficou mais cara e esse fator levaria a uma reavaliação do papel da mulher e, consequentemente, o do homem também. Nesse caso, o casamento poligâmico se torna um fenômeno cada vez mais raro, mas presente em alguns locais do Oriente Médio e só por uma pequena parcela da população que tenha muito dinheiro. Afinal, esse tipo de união ocorre dentro da lógica de homem mantenedor e mulher que cuida da família. E ao entender isso, eu fiquei curioso em saber se existem mulheres muçulmanas que lutam, por exemplo, pelo direito de se casarem com vários homens, ou pelo menos essa permissão de que homens tenham mais de uma esposa seria algo que incomoda mulheres muçulmanas.

Francirosy: Francirosy Campos Barbosa, eu sou antropóloga, professora da Universidade de São Paulo. Eu pesquiso comunidade muçulmana no Brasil há quase 18 anos, né, tá indo pra 18 anos. Ah, mulheres muçulmanas; hoje em dia, rede social, tudo que tem a ver com comunidade muçulmana. Imagem, performance…

Ivan (narração): Eu conversei com a professora Francirosy por telefone, por isso a qualidade não está das melhores. Sendo uma estudiosa de feministas islâmicas, eu a perguntei sobre algumas questões que geralmente são consideradas opressoras pelos olhos dos que estão de fora. Eu estava interessado, principalmente, em entender qual a percepção da mulher muçulmana acerca de alguns costumes.

Francirosy: E eu sempre tento observar, né, como antropóloga. Acho que é um hábito do antropólogo sempre tá em campo. A gente presta atenção no que as pessoas falam, mas a gente também presta atenção no que as pessoas fazem, né? Até para a gente balizar o discurso e a prática. Porque o discurso pode ser bonito, mas a prática pode ser outra e a gente tenta entender como se dá essa modificação, como é que dá  esses pertencimentos todos, né?

Ivan: Mas existe incômodo, também, pelo lado das mulheres, nessa questão de a poligamia ser permitida a homens e não a mulheres?

Francirosy: Não existe. Eu nunca vi nenhuma reclamar sobre isso. Isso não é uma questão para elas, porque isso acontece tão pouco. Isso é um casamento, e a primeira mulher tem que autorizar. Então, há todo um diálogo aí. E há controvérsias também, existem Sheiks, por exemplo, que não fazem casamento com segunda esposa, entendeu? E há  outros que são super a favor. Então, é uma questão muito diversa dentro do próprio grupo. Só se recomenda em situações de guerra, de violência, em situações limites, onde essas mulheres vão estar desprotegidas.

Omar: Na verdade, Ivan, a poligamia, ela, longe de ser um atentado ao direito da mulher, ela é uma garantia de segurança da mulher. Veja que, após a Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha perdeu um grande contingente de homens nas frentes de batalha e a Alemanha, de repente, se viu diante de um problema social enorme, que era um número muito grande de mulheres, e mulheres muitas vezes com filhos pequenos pra criar. O próprio Parlamento da Alemanha pós-guerra pensou em institucionalizar a poligamia, nessa perspectiva de que o homem pudesse cuidar de mais de uma mulher, para sustentar mais de uma família. E isso ao longo da história humana, né? Quer dizer, normalmente, os homens foram pras frentes de batalha, os homens perderam a vida.  E após grandes guerras, havia um contingente muito grande de mulheres desamparadas. Então, a poligamia, para as mulheres, especialmente nesses casos de conflitos, é uma garantia de segurança. Quer dizer, ela vai ser assistida, ela vai ser sustentada, vai ter a sua prole sustentada.

Francirosy: Então, por exemplo, outro dia, eu tive uma reunião com o Sheikh Taleb Hussein Al-Khazraji, no Centro Islâmico, e por conta do meu horário, eu só podia ir à noite. E aí, até o sheik falou pra mim, “Olha, Francis, se a gente tivesse num país islâmico, por exemplo, se você chegasse na casa de nós, sendo mulher e sozinha, isso ia chamar atenção, uma fofoca, entendeu? Mas, no Brasil, isso é uma coisa comum, né. Então, a gente sabe que o fato de estar num lugar aonde é mais… vamos chamar suburbano, e um lugar que a gente já tem um outro tipo de comportamento”. Então, isso varia. Então, tudo no Islã tem que olhar sempre por dois lados, porque a gente vai ficar criando estereótipos, como se fossem promíscuos, né. E não tem nada disso. As coisas têm lei, tem regras muito claras. Tem amor em jogo, tem uma série de histórias aí. O que as mulheres precisam, de fato, é aprender a religião. Isso elas precisam, com urgência. Porque o dia que elas aprenderem, elas não vão ser subjugadas por nenhum homem.

Paula: Não aceito. Já me perguntaram, “ah, você aceitaria?” Daí, eu sempre falei, não. Não aceitaria, não. Isso já é… E eu falei, minha religião lá diz que eu posso ter essa opinião, sim, de aceitar ou não. Ele pode ter, ele tá no direito dele. Mas eu também tenho meu direito, tanto de aceitar essa situação, quanto de um divórcio, se ele não tiver sendo aquele homem que ele propôs ser no dia que ele me pediu em casamento e a gente se casou.

Ivan: Sim. Te incomoda que, nesses países onde é permitido, como a Arábia Saudita, o próprio Irã… Te incomoda que a mulher não possa ter quatro esposos?

Paula: Não. Não, não, não me incomoda. Se houvesse a possibilidade de, por exemplo, eu ter quatro? Imagina, jamais! Não! Muito obrigada! (Ivan ri) Eu estou bem satisfeita. Não. Se existisse essa possibilidade, eu não ia querer, não. Porque um…

Ivan: Sim, mas… Mas eu tô perguntando assim, se não te incomoda porque com homem pode…

Paula: Ah! A questão de um pode, e ela não pode. Ah, entendi. Não, não, porque… Porque essa… Esse poder de ter ou não mais de uma mulher tem um sentido lá atrás, né. Eu acho que é assim, a mesma coisa, assim, vou colocar um exemplo, eu dou um benefício… Eu tenho uma empresa, lá, e dou um certo benefício pros meus funcionários e, de uma hora pra outra, eu vou lá e tiro. Antes, os homens poderiam ter tantas mulheres quanto eles quisessem. O profeta Muhammad veio, disse, “não, vamos reduzir essa quantidade de mulher, aí” (ela solta um riso). Então, eles tinham essa liberdade de fazer toda essa bagunça, mas quando foi dado o critério… E hoje em dia, é difícil, professor. É muito difícil. Porque se ele for um crente muçulmano que segue a Sharia ali, que segue a filosofia da religião mesmo, ele sabe que é difícil ele manter uma família com quatro esposas, porque, consequentemente, vai vir filhos desses casamentos. E aí? Tem que ter muito dinheiro. E se uma dessas esposas for lá reclamar da conduta dele? Ou que ele não tá dando atenção, ou porque deu presente mais bonito pra… É uma confusão. E eu já vi. A briga é feia. Briga de facão entre as mulher. É engraçado, assim, se ele força só… E elas brigam feio mesmo.

Ivan: Onde é que você já viu isso?

Paula: Eu vi lá no Cairo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Paula: A gente tava no… No Hardee’s, é tipo um McDonald’s, um fast-food que tem. E, assim, a gente percebeu que era esposas, assim, porque elas começaram… Só que elas falavam em árabe, então, você fala muito rápido e eu não consigo pegar quase nada. E ele foi lá e comprou alguma coisa pra uma lá, e eles foram comer, eu acho. Não, eles foram comer nesse fast-food, e daí, ela mostrava o presente pra ele e a outra lá, maravilhada com o que tinha ganho. E a gente deu… Assim, a leitura visual é que ela tava reclamando do que ele tinha dado pra ela. E eu dava muita risada, porque ele tava apavorado. Ele pedia pra ela ficar calma. Calma, calma, que ele ia dar pra ela. E a outra nem ligava, a outra lá, olhando e mexendo, era uma caixa. E ela tava com uma bolsinha de… Uma bolsinha, assim, na mão, e ela perguntava. E elas são bravas (Ivan ri). Elas são bem bravas. E assim, a outra nem ligava. E ela sentada, assim, e aquele monte de criança. Acho que tinha umas seis crianças. E era… Mãe, era sim, porque um chamava uma de mãe, e a outra ele não chamava de mãe. A gente via, assim, que… Então, não dá conta, professor. Então, isso existia há muito tempo atrás, existe ainda, mas o cidadão que é inteligente, ele se poupa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): No próximo episódio…

Francirosy: Mas a comunidade muçulmana tá cheia de homossexuais, certamente. Eu mesma conheço vários.

Ivan (narração): Amputação de membros, apedrejamento de mulheres, perseguições a homossexuais. O que é exatamente a Sharia, a chamada Lei Islâmica? E como é possível que uma religião que se diz pacífica mostre-se tão violenta? Voltaremos no tempo para entendermos como o Alcorão foi escrito e organizado, o que é exatamente a lei islâmica e por que ela incomoda tanto o Ocidente. Deixaremos a história da Paula em suspensão, por um momento, para que possamos entender melhor como está a sua vida hoje. Continuaremos sua história no terceiro episódio da série “O coração do mundo”, aqui no Projeto Humanos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (narração): O Projeto Humanos é um podcast que visa apresentar histórias íntimas de pessoas anônimas. Ele tornou-se possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Se você gosta do nosso trabalho e gostaria que ele continuasse, você pode contribuir a partir de US$ 1, através do link na postagem. Agradecimentos especiais a Paula Zahra, Omar Nasser Filho e Francirosy Campos Barbosa, por terem conversado comigo para este episódio. Nos vemos no próximo programa.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

FIM

Transcrição por Zé Roberto, Junior Lazaro, Alexandre Bertoletti, Eduarda Severo, Giancarllo Palmeira, Mariana Diello. Edição por Sidney Andrade. Revisão por Geraldo Miranda