Enciclopédia do caso Evandro

EXTRAS EPISÓDIO 36

PÂNICO SATÂNICO

Inúmeras histórias sobre abusos sexuais e outros crimes contra crianças em supostos “rituais” marcaram os Estados Unidos e o Canadá durante a década de 1980. Geralmente, as narrativas eram bem parecidas: havia uma seita satânica em ação em uma pequena cidade do interior. Os membros do grupo eram policiais, políticos, empresários e até mesmo frequentadores da igreja local. Essas pessoas seriam responsáveis pelo abuso sexual sistemático de crianças ou, em outros casos, pelo sacrifício dos menores – tudo em nome de Satã.

O fato é que nenhum desses eventos nunca foi comprovado. Na época, o agente especial do FBI, Kenneth V. Lanning, ganhou notoriedade ao questionar a veracidade dessas histórias. Em janeiro de 1992, ele finalizou um relatório sobre as suas investigações, intitulado “O Guia do Investigador para Alegações de Abuso ‘Ritual’ em Crianças”.

DOWNLOAD Investigator’s Guide to Allegations of “Ritual” Child Abuse

A maior parte do trabalho do agente focou nas alegações de abuso sexual de menores. Para analisar os episódios, investigadores norte-americanos cunharam o termo “Satanic Ritual Abuse” (“Abuso de Ritual Satânico”), chamado frequentemente de SRA.

O caso mais famoso é provavelmente o relatado no livro “Michelle Remembers” – “Michelle se Lembra” em português. Ele conta a história de Michelle Smith, uma mulher que, após sessões de hipnose com um terapeuta chamado Lawrence Pazder, passou a relatar que tinha sido vítima de abusos aos cinco anos de idade. Ela acusou a própria mãe de cometer os crimes e de participar de um culto satânico no Canadá. Smith e Pazder escreveram o livro juntos em 1980 e a obra foi um sucesso de vendas.

Em 1989, os dois apareceram no popular programa de televisão da apresentadora Oprah Winfrey, no qual Michelle descreveu os abusos sofridos. O caso teria acontecido durante a década de 1950 e, só 20 anos mais tarde, após o tratamento com o terapeuta, é que a vítima começou a se lembrar da violência que supostamente sofreu. Muitos estudiosos do fenômeno de SRA acreditam que o livro de Smith e Pazder deu o pontapé inicial para o Pânico Satânico da década de 1980.

Certa vez, o terapeuta afirmou que já havia conseguido reunir mais de mil casos de SRA – alguns deles inclusive tiveram pessoas acusadas pela polícia e levadas a julgamento. Contudo, nenhum deles jamais foi comprovado.

Além disso, o livro é bastante controverso e não é aceito por grande parte da comunidade científica. A avaliação geral é que ele consiste em memórias fabricadas por Smith com a interferência de Pazder. A mãe de Michelle faleceu em 1964, mas o pai dela negava que os abusos teriam ocorrido. O mesmo relato foi repetido por pessoas que conheciam a família e pelas duas irmãs de Michelle, que jamais fizeram acusações semelhantes.

Mesmo assim, a obra foi um sucesso, especialmente em círculos cristãos mais fundamentalistas e, até hoje, é referenciada como prova da existência de seitas satânicas. Não há nada, no entanto, que confirme essa suspeita. Com frequência, na realidade, descobria-se que as investigações haviam sido contaminadas por má conduta policial, como abuso de força ou erros em interrogatórios. Somado a isso, os relatos de abusos não condiziam com provas materiais e exames de corpo de delito, e boa parte dos acusados geralmente tinha álibi.

Esses tipos de acusações não eram os únicos. Muitas cidades também registraram desaparecimento ou assassinato de crianças e, em algumas situações, moradores convenceram os policiais que grupos satanistas eram os responsáveis. Um bom apanhado desses eventos é encontrado no livro “Satanic Panic – The Creation of a Contemporary Legend” (“Pânico Satânico – A Criação de uma Lenda Contemporânea”), escrito em 1993 por Jeffrey S. Victor, professor de sociologia da Universidade do Estado de Nova Iorque (SUNY).

Um dos episódios de Pânico Satânico relatado por Victor ocorreu em outubro de 1988, nos condados de Whitley, DeKalb e Steuben, no estado da Indiana, nos EUA. Os rumores começaram depois que uma menina loira e de olhos azuis, de oito anos de idade, foi abusada e assassinada em DeKalb, em abril daquele ano. Os boatos ganharam ainda mais intensidade após o suicídio de uma adolescente em Whitley.

Os jornais passaram a tentar relacionar ambos os casos com histórias de sacrifício humano, supostos encontros ritualísticos secretos, uma rede satânica criminosa e o acobertamento de sequestros por policiais. A junção desses elementos causou pânico na população, que realizou um encontro público para discutir as medidas de segurança a serem tomadas. Uma força-tarefa começou a investigar a atuação de satanistas na região e o chefe da polícia local deu palestras sobre o assunto.

Os moradores acreditavam que um culto satânico estava planejando o rapto e sacrifício de uma adolescente loira de olhos azuis na noite do Dia das Bruxas. Circulavam rumores de listas de potenciais vítimas e muitos pais passaram a impedir que os filhos fossem para a escola. Lojas tiveram prejuízo financeiro por conta de boatos de que estariam recebendo reuniões de satanistas nos porões à noite.

Aqui é possível notar alguns elementos que se repetem com frequência em casos de Pânico Satânico: a suposta existência de um culto secreto, crianças em perigo e a suspeita de que policiais acobertavam os crimes. No compilado criado por Jeffrey S. Victor, também se destacam referências a vítimas “loiras de olhos claros”, como se elas representassem a “pureza” que os satanistas imaginários pretendiam destruir. Coincidência ou não, Evandro Ramos Caetano e Leandro Bossi tinham exatamente essas características.

Apesar das semelhanças, é importante ressaltar que nunca houve no Brasil um levantamento de casos criminais caracterizados como típicos de Pânico Satânico. Existe, todavia, uma série de crimes reportados na internet com os termos “assassinato ritual satânico”, como mostra uma rápida busca no Google.

Segundo o ex-agente do FBI Kenneth Lanning, há ao menos dois grandes problemas por trás desse fenômeno: o primeiro é que ele atrapalha as investigações sérias, e o segundo é o fato de que a população muitas vezes prefere acreditar que crianças são abusadas por satanistas em rituais secretos do que por familiares ou pessoas próximas.

 

 

PENDÊNCIAS NO CASO EVANDRO

Existem algumas pendências no caso Evandro que não haviam sido mencionadas até agora pelo podcast. A primeira é sobre um possível suspeito que nunca ganhou destaque nas investigações. Informações referentes a ele constam em uma matéria escrita pelo jornalista Edson Fonseca, que teria sido publicada no jornal Folha de Londrina no início de 1995.

O texto traz uma entrevista com o advogado de defesa Figueiredo Basto, que afirmava na época “possuir provas suficientes para inocentar os sete acusados”. Na reportagem, ele fala sobre uma nova testemunha, um homem chamado Diorli José Beza, que havia sido preso em 28 de abril de 1995 em Guaratuba. Enquanto estava detido, Beza teria ouvido um integrante da quadrilha de Arlete Hilu, que sequestrava crianças, confessar o rapto de Leandro e Evandro. O nome desse rapaz era Leandro Facco.

De acordo com Beza, Facco disse que os garotos seriam levados para Pernambuco para serem vendidos a um fazendeiro por US$ 7 mil. Um dos meninos, no entanto, teria sido morto por chorar demais. O outro estaria vivo e havia sido entregue ao “comprador” como o combinado.

Ivan Mizanzuk tentou entrar em contato com Leandro Facco em 2019, mas ele já havia falecido. Outras pessoas da quadrilha de Arlete Hilu com quem Mizanzuk conversou não confirmaram essa história.

O podcast conseguiu localizar Diorli José Beza, que reiterou tudo o que relatou ao advogado Basto. Ele sustenta que Facco lhe confessou os crimes em um momento de desabafo, enquanto os dois dividiam uma cela. Os investigadores, todavia, nunca lhe procuraram para saber mais informações. Sobre o assunto, o próprio Basto afirmou ao podcast que não havia nada de substancial na história de Beza e, por isso, as acusações não foram para frente.

 

A segunda pendência é referente ao ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, que tinha residência em Guaratuba – a mesma casa usada como base de operações da Polícia Federal na época, e um dos locais nos quais Davi dos Santos Soares e Osvaldo Marcineiro foram torturados no início de julho de 1992.

Muitos ouvintes do podcast perguntam se não seria possível que Stroessner estivesse por trás dos casos Evandro e Leandro. Afinal, é comum a citação de que ele seria um pedófilo notório no Paraguai, envolvido inclusive na morte de crianças no período em que foi ditador. Após ser deposto em 1989, ele se exilou no Brasil e passou os últimos anos de vida em Brasília.

As pesquisas para o podcast indicam que Stroessner passou um tempo em Guaratuba em 1989, logo após fugir do Paraguai, mas não permaneceu por lá. Não é possível dizer se ele estava na cidade entre fevereiro e abril de 1992, quando os garotos desapareceram.

O que se sabe é que a casa no município litorâneo ainda pertence à família do ex-ditador. O caseiro, que é o mesmo desde a época dos crimes, não fala sobre o assunto. Outra dúvida pertinente é o motivo pelo qual a Polícia Federal usava a residência como base de operações. Havia um acordo formal? O que aconteceu exatamente? Essas perguntas, infelizmente, ainda não têm respostas.

 

 

ANÁLISE DE MIZANZUK

Em um esforço para tentar estabelecer o que é válido no caso, Ivan Mizanzuk listou nove pontos de partida para embasar a sua hipótese sobre os crimes. São eles:

  1. Os sete acusados são inocentes. As fitas mostradas no episódio 25 são prova de que as confissões foram feitas sob tortura.
  2. O corpo encontrado no matagal é de Evandro Ramos Caetano. Apesar das possíveis falhas no laudo de necropsia, o DNA é bem convincente.
  3. Em meio aos conflitos políticos, as alegações de Diógenes Caetano dos Santos Filho estavam erradas. Tomado pelo sentimento paranoico de que a família Abagge fazia parte de uma seita satânica, ele desqualificou testemunhas que poderiam levantar informações importantes.
  4. Ao contrário do que acreditavam as autoridades, especialmente o Ministério Público, não existia seita satânica alguma. Isso tudo foi obra de um delírio coletivo de Pânico Satânico.
  5. Há diversos indícios de interferência política no caso, que ocorreu principalmente após as prisões dos sete acusados. Ela parece ter sido fruto de esforços (muitas vezes questionáveis) para libertar os inocentes. Várias das acusações, porém, não passavam de fofocas ou deduções por parte de promotores e outros agentes públicos.
  6. O Grupo Tigre pode ter cometido uma série de erros, mas o trabalho dos investigadores da época ainda é o melhor material para analisar outras possibilidades de solucionar o caso.
  7. Muito se especulou que a morte de Evandro estaria ligada ao crime de tráfico de órgãos. Especialistas já diziam na época, no entanto, que essa possibilidade era muito remota. Transplantes de órgãos costumam ser procedimentos extremamente complicados e bastante vigiados no Brasil, o que era comum mesmo nos anos 1990. A estrutura para um crime dessa natureza demandaria o envolvimento de tantas pessoas que seria difícil elas passarem despercebidas. Logo, dada a falta de indícios, essa hipótese foi descartada.
  8. Não havia sinais de violência sexual no corpo de Evandro. O Grupo Tigre suspeitava de possíveis abusadores e, por isso, tentou investigar casos desse tipo na cidade. Durante os três meses de trabalho, contudo, os policiais não tiveram acesso ao laudo de necropsia. É de se supor que, se tivessem recebido o documento, descartariam essa linha de investigação.
  9. Tudo o que ocorre depois das prisões raramente inspira confiança. A atuação do Grupo Águia da Polícia Militar destruiu qualquer possibilidade de o caso ser solucionado, assim como de se obter informações relevantes.

Diante desses esclarecimentos, Mizanzuk acredita que os casos Leandro Bossi e Evandro Ramos Caetano estão de alguma forma conectados. Essa crença se baseia no fato de que ambas as crianças eram muito parecidas fisicamente, de idades próximas, e desapareceram em uma pequena cidade em um curto período de tempo. Para Ivan, há mais semelhanças entre os dois crimes e apenas uma notável diferença: o corpo de Evandro foi encontrado, enquanto Leandro nunca foi localizado.

Um elemento importante a ser considerado e que sempre foi ignorado durante as investigações é a ossada de menina achada em Guaratuba com as roupas de Leandro em 27 de fevereiro de 1993.

Naquele dia, quatro adolescentes entre 12 e 15 anos brincavam de caçar lagartos no matagal onde o corpo de Evandro havia sido encontrado meses antes. Eles levavam consigo um cachorro para ajudar na tarefa. Em um determinado momento, o cão começou a latir e partiu em disparada para o meio do mato. Um dos jovens, Ismael Amorim Carneiro, de 14 anos, seguiu o animal e se deparou com algo enterrado, que parecia ser uma bola.

O adolescente pegou o facão que levava consigo, o enfiou na terra e revirou o objeto. Era um crânio humano. Ismael se assustou e saiu gritando para avisar os amigos, que correram para ver o que tinha acontecido. Dois deles resolveram ir embora, enquanto Ismael e Luciano Clarinda, de 13 anos, ficaram no matagal para continuar a busca por lagartos. Depois de 20 minutos, a dupla voltou para casa e, apesar do susto, ninguém contou para os adultos logo de cara o que haviam encontrado no mato. Isso só ocorreu no dia 3 de março, quando Luciano relatou o episódio para Leocádio Miranda e Manoel Correa, que seriam vizinhos ou conhecidos do adolescente.

Leocádio foi até o local para verificar se o crânio ainda estava lá e, após a confirmação, chamou a polícia. O Instituto de Criminalística foi acionado para procurar e desenterrar outros materiais suspeitos. Junto com o crânio, os peritos encontraram mais ossos pertencentes a uma criança e peças de roupas infantis – entre elas, uma cueca.

Em 5 de março, João e Paulina Bossi, pais de Leandro, foram chamados à delegacia para prestar depoimento e tentar reconhecer se a cueca era ou não de seu filho. De acordo com uma matéria escrita pela jornalista Monica Santanna, de 6 de março de 1993, Paulina confirmou que um par de chinelos encontrado próximo da ossada pertencia a Leandro.

Ainda segundo a reportagem, a mãe teve dúvidas em relação a cueca, mas entregou à polícia uma outra que tinha em casa, que já havia sido usada pelo filho. Ao confrontar as duas, os peritos afirmaram que elas eram do mesmo tecido e confecção, e possuíam estampas semelhantes na parte da frente. Justamente por isso, Paulina chegou a admitir que a ossada poderia ser de Leandro.

As pesquisas mostram que, no meio da disputa de narrativas entre acusação e defesa no caso Evandro, um inquérito nunca foi aberto para investigar a identidade da menina. Sobre isso, os dois lados só concordam em um ponto: o corpo teria sido montado, mas o responsável não imaginava que um teste de DNA entraria em ação e identificaria o sexo da criança.

Mizanzuk, por outro lado, discorda dessa afirmação. Para ele, é difícil crer que a descoberta da ossada tenha sido feita de forma combinada. Segundo ele, acreditar que ela foi plantada no matagal envolve também aceitar o fato de que o corpo teria que ser achado propositalmente em um determinado momento para influenciar o caso Evandro. Ivan crê que não há qualquer elemento que aponte para uma armação.

Em relação às roupas de Leandro, há uma questão fundamental deixada de lado diante das paranoias e teorias da conspiração: a ossada estava vestida com as roupas do garoto ou as peças estavam ao lado do corpo? O documento que poderia responder essa pergunta é o Laudo de Exame de Levantamento de Local de Achado de Cadáver, realizado pelo Instituto de Criminalística. O problema é que esse laudo não existe. O delegado de Guaratuba, Agenor Salgado Filho, e o promotor Antonio Cesar Cioffi de Moura chegaram a solicitar esse material por meio de ofícios, mas eles nunca foram respondidos.

Pouco tempo depois, o teste de DNA da ossada comprovou que o corpo era de uma menina, e o laudo de levantamento de local foi simplesmente esquecido. As reportagens referentes à descoberta dos ossos no matagal sempre citavam que o cadáver estava vestido com as roupas de Leandro, mas não há nenhum documento oficial que suporte essa afirmação.

Ivan Mizanzuk passou meses procurando pelo laudo do achado da ossada, inclusive com a ajuda da atual delegada do Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas (Sicride), Patrícia Conceição Nobre Paz, hoje responsável pelo caso Leandro Bossi. O podcast também tentou descobrir a identidade do perito que analisou o local, mas nenhum desses esforços trouxe resultado.

As únicas informações registradas sobre a ossada constam no laudo cadavérico produzido pelo Instituto Médico-Legal de Curitiba. De acordo com o exame, a menina teria entre sete e oito anos de idade pela medição óssea, e a esqueletização indicava que a morte teria ocorrido há mais de um ano. Como a ossada estava incompleta e em estado avançado de decomposição, os legistas não conseguiram determinar a causa da morte.

 

DOWNLOAD Parte do inquérito de Leandro Bossi sobre a ossada

DOWNLOAD DNA e Exame cadavérico da Ossada

 

 

CRIMES RELACIONADOS: SERIAL KILLER?

Para Mizanzuk, a morte da menina também está relacionada com os casos Leandro e Evandro. Afinal, as semelhanças entre eles são significantes: ela tinha idade aproximada dos dois garotos e foi encontrada no mesmo matagal que o corpo de Evandro. Além disso, a ossada estava sem as mãos e os pés – o que poderia ou não ser resultado da avançada deterioração do cadáver.

 

Em vermelho, as partes encontradas da ossada em Março de 1993 (esboço) de acordo com o laudo cadavérico

 

Por fim, há as roupas de Leandro Bossi. Se as peças estavam apenas próximas dos ossos, existe a possibilidade de o menino também ter sido morto e desovado no mesmo terreno. Seguindo essa linha de raciocínio, a tese da ação de um serial killer não pode ser descartada. Para Ivan, essa é a hipótese mais viável.

A menina, então, teria sido provavelmente a primeira vítima – ou pelo menos a primeira que o assassino ou assassina enterrou em Guaratuba. A garota poderia ser moradora de uma cidade vizinha, por exemplo, e ter sido apenas desovada no matagal por se tratar de um local afastado, com poucas casas.

Desse modo, é possível especular que o corpo de Leandro tenha sido enterrado próximo das margens de um riacho que existe na área, e acabou sendo carregado por conta de chuvas ou do próprio movimento das águas. Mas parte de suas roupas ficaram para trás.

Nesse contexto, o estado do cadáver de Evandro fornece pistas importantes sobre o modus operandi desse hipotético serial killer. As vítimas teriam em torno de sete ou oito anos de idade e o matagal seria o local de despejo dos cadáveres. Com o objetivo de dificultar o trabalho da polícia se os corpos fossem descobertos, ele cortava as mãos, dedos dos pés e o escalpo das crianças. O criminoso também retirava os órgãos internos, para acelerar o processo de esqueletização. Como na época a tecnologia de identificação por DNA ainda era desconhecida, seria quase impossível que uma ossada fosse identificada.

 

Matéria da Folha de Londrina, de 15 de Abril de 1992. Na quarta coluna da matéria, lê-se: “Para o diretor do IML de Curitiba, José Cassio Albuquerque, o menino foi vítima de um psicopata que fez o corte de 14 centímetros com o objetivo de acelerar o processo de putrefação do corpo para que nada fosse encontrado. ‘Nada de tráfico de órgãos ou ritual'”.

 

E se Evandro, Leandro e a menina de fato foram suas vítimas, há uma grande discrepância entre elas que precisa ser analisada: o corpo do primeiro foi encontrado facilmente à mostra no meio do mato, diferente dos outros. A ação rápida do Grupo Tigre poderia explicar o motivo para isso, já que, nos casos anteriores, a atuação da polícia não foi imediata. Além disso, a população realizou vários mutirões para tentar encontrar Evandro, o que teria deixado o assassino desesperado.

Por isso, o criminoso pode ter guardado o corpo em um lugar fechado, como um freezer desligado ou o porta-malas de um carro, e posteriormente jogado o cadáver no mato. Com medo de ser visto, como muita gente circulava pela cidade, ele nem se deu ao trabalho de enterrar o menino.

Para verificar a possibilidade de outras vítimas, seria necessário levantar informações sobre todos os corpos de crianças achados em condições similares nas cidades próximas – isso se eles de fato foram encontrados. Pode ser que o hipotético serial killer não cometeu mais erros desse tipo. De qualquer forma, essa tarefa beira o impossível, considerando a enorme dificuldade de integração dos bancos de dados entre delegacias no Brasil. Esse é inclusive um dos motivos pelos quais poucos assassinos em série são capturados no país.

Se a hipótese da ação de um serial killer está correta, talvez essa pessoa tenha viajado para outra cidade ou estado após os crimes em Guaratuba. Talvez tenha feito mais vítimas ou tenha sido presa por outros delitos. Talvez já esteja morta.

 

 

CONVERSA COM CELINA E BEATRIZ

No fim de 2016, Ivan Mizanzuk conversou pessoalmente com Beatriz e Celina Abagge em Guaratuba por mais de três horas. Um dos assuntos tratados durante a entrevista é considerado uma última pendência ainda não citada a fundo no podcast: a atuação do prefeito Aldo Abagge no caso. Como mostra o episódio 25, por pouco ele também não foi apontado como suspeito. Por mais que os torturadores insistissem sobre a suposta participação de Aldo, nenhum dos acusados o colocou diretamente na cena do crime.

Logo após as prisões de sua esposa e filha, o prefeito de Guaratuba afirmou em depoimento que não tinha nada a declarar. Em entrevistas para a imprensa, ele sempre defendeu a inocência de Celina e Beatriz e comentou que faria de tudo para lutar pela liberdade delas. Acreditando que Evandro ainda estava vivo, ele se esforçou para tentar encontrá-lo por todos os cantos do Brasil até o seu último dia de vida, 19 de agosto de 1995.

A juíza de Guaratuba nos autorizou a ficar no Hospital Santa Cruz com o pai, porque ele estava muito doente. Já tinha tido metástase e eu fiquei com ele o tempo todo ali”, conta Beatriz ao podcast. Na época, ela e Celina estavam presas e foram acompanhadas pela polícia até o local.

A filha relatou que, mesmo sofrendo muito, parecia que algo ainda segurava o pai no plano terreno. “A gente via que ele estava resistindo, que não ia morrer de jeito nenhum, ia ficar ali. Daí eu falei para a mãe ‘vamos ter que dizer para ele que estamos livres, é o único jeito. Senão ele vai continuar por aí’. Nessa época eu já era espírita de volta”, completa.

Celina, então, entrou no quarto e mentiu para o marido. Ela disse que Evandro tinha sido encontrado vivo e que as duas estavam livres, graças a uma pista que Aldo havia achado. “Ele olhou para a mãe e perguntou ‘e esse monte de policial aí? Vocês estão querendo me enganar?’. E ela respondeu que não, que a presença da polícia era justificada porque a imprensa estava em cima do caso. Que todo mundo sabia que foi um grande erro judiciário e que o Evandro estava vivo. No fim, ele acreditou, fechou os olhos e morreu”, descreve Beatriz.

Celina também se lembra com detalhes daquele momento. “Eu falei que ele tinha que se desapegar, que nós tínhamos aprendido tudo o que ele nos ensinou e que continuaríamos a fazer o que ele queria. Eu disse ‘não fique com medo, você sabe que eu vou cuidar da turma. Fique em paz’. Nisso, ele apertou a minha mão e um passarinho pousou na janela. A ave piou, piou, piou, e ele morreu”.

Para a viúva, não há dúvidas de que o caso contribuiu para o adoecimento do companheiro. “A imprensa na época era cega, já chegou nos acusando, e meu marido ficou desesperado. Ele morreu de injustiça. Ficou com úlcera, que causou um câncer. O médico queria até botar no laudo ‘causa: morte por injustiça’”, desabafa.

Quando se pensa no caso Evandro, é difícil achar sentido em qualquer coisa. Uma criança morreu. Uma vida foi impedida de continuar. Enquanto isso, outras foram marcadas para sempre com acusações infundadas e as dores das torturas. Que essa triste história seja lembrada como merece ser: uma lição de como, muitas vezes, os culpados são ignorados, e só nos restam as vítimas.