Extras Episódio 29

Esse episódio expõe três revelações referentes à atuação da Polícia Federal (PF) em Altamira na década de 1990. Chegou a hora de finalmente trazer à luz alguns pontos nunca esclarecidos.
Antes, é importante recapitular os eventos. Naquela época, a PF esteve na cidade no mínimo três vezes:
- A primeira fase da Operação Monstro de Altamira aconteceu em 1993, quando as informações levantadas foram repassadas ao delegado Éder Mauro. A missão resultou nas prisões de Anísio Ferreira de Souza, Césio Flávio Caldas Brandão e Carlos Alberto dos Santos Lima; e nos indiciamentos de José Amadeu Gomes, Valentina de Andrade e Aldenor Ferreira Cardoso. Amailton Madeira Gomes já estava detido desde o final de 1992.
- A segunda fase, em 1994, focou no relato da adolescente Eudilene Pereira da Costa, de 13 anos, que dizia ter sido abusada por Césio. Além disso, a testemunha denunciou uma série de crimes contra meninos que teria presenciado em uma chácara no município.
- A terceira fase, realizada no ano seguinte, teve como personagem principal Valdete Rodrigues Barroso, que afirmava sofrer ameaças de um suposto pistoleiro da família Gomes. O motivo seria uma cena que ela viu em 1988, de Amailton transportando uma criança morta dentro de um carro.
Estranhamente, essas histórias não têm nenhum desdobramento no processo dos meninos de Altamira. Os autos contêm apenas os depoimentos dessas testemunhas, já destrinchados nos episódios 13 e 14 do podcast. Os relatos foram lidos nos júris como prova contra os acusados, mas nunca passaram por uma investigação mais profunda.
Apesar de não ter sido possível responder todas as dúvidas sobre o trabalho da PF nos anos 90, algumas questões finalmente serão divulgadas ao grande público. Com sorte, elas se tornarão base para pesquisadores que tenham vontade e meios de mergulhar nesse tema.
PRIMEIRA REVELAÇÃO
A pergunta básica é: quem autorizou a ida dos agentes federais para Altamira? Afinal, quem tem jurisdição para investigar crimes no estado é a Polícia Civil. Para a PF se envolver, em teoria, seria necessária a permissão de um órgão federal. No processo, no entanto, não há nenhuma portaria nesse sentido, relacionada à primeira fase da operação, em 1993.
Por meio dos relatos dos parentes das vítimas, sabemos que a PF esteve na cidade entre abril e junho de 1993. Uma matéria do jornal O Globo, de 10 de junho, que cita a presença dos agentes, confirma isso. Curiosamente, porém, a reportagem também afirma que deputados do Pará pediam ao então ministro da justiça, Maurício Corrêa, que a própria PF concluísse as investigações.
Matéria do jornal O Globo – “Magia negra pode ter matado meninos em sacrifício no Pará”
Ainda segundo as famílias, o envolvimento da corporação teria como origem um pedido do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) após uma visita à Altamira.
A produção do podcast verificou todas as atas do órgão e os Diários Oficiais do Ministério da Justiça, e não encontrou nada que justificasse a ida dos agentes à cidade em abril, maio e junho de 1993. O que existem são registros de reuniões do Conanda sobre o caso dos meninos, feitas após as prisões dos acusados, em julho. Isso poderia explicar a segunda e terceira fase da operação, mas não a primeira.
Há apenas duas exceções: uma delas é a ata de 13 de abril de 1993, em que o Conselho se propõe a discutir sobre os crimes em Altamira e montar uma comissão de combate à violência. A partir dessa data, os representantes acompanhariam a situação mais de perto. A ação foi motivada pelo trabalho de um de seus conselheiros, Augustino Pedro Veit, que foi até o Pará, avaliou o caso e produziu um relatório preliminar.
Ata do Conanda de 13 de abril de 1993
De acordo com a publicação do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses, de 1996, Veit sugeriu ao Conanda “que iniciasse mobilização para que a Polícia Federal e a Procuradoria Geral da União entrassem no caso”.
Relatório de Veit citado na publicação do Comitê
Ivan Mizanzuk entrou em contato com Augustino Pedro Veit, que aceitou gravar uma entrevista. Ele foi questionado sobre a recomendação que teria dado ao Conselho. “Se eu sugeri [a entrada da PF], é porque na época tinha uma notícia de que no Maranhão e em outros estados poderia estar ocorrendo a mesma coisa”, disse. Nesse período, Francisco das Chagas já havia atacado seis crianças no estado vizinho: cinco em 1991, e uma em 1992.
“Mas no caso específico de Altamira, eu nem poderia ter recomendado a presença da Polícia Federal porque [a investigação] é de competência da polícia do estado. Essa informação de eu ter sugerido a PF, acho que não procede não. Porque eu me lembro que a gente teve uma reunião com o delegado de Altamira, e ele me pareceu bastante empenhado”, completou Veit.
Já a segunda menção em atas do Conanda sobre os emasculados, antes das prisões, data de 8 de junho de 1993. O documento afirma:
O Conselheiro Roberto de Mello Ramos informou que a Comissão de Violência voltará à Altamira na semana que vem, pois a Polícia Federal já teve autorização para fazer a investigação sobre a emasculação de crianças e o inquérito já está praticamente concluso.
Ata do Conanda de 8 de junho de 1993
Em outras palavras, o Conanda já sabia que a PF estava envolvida. Como o próprio Veit relatou, não partiu do Conselho o pedido para a entrada da corporação no caso. Portanto, o relato das famílias não condizia com a documentação da época.
Foi aí que Ivan Mizanzuk encontrou uma reportagem do jornal O Liberal, de 2 de agosto de 1993. Nela, há uma entrevista com o então coordenador geral da Polícia Civil do Pará, Paulo Tamer. À matéria, ele nega que a entrada dos agentes federais no caso tenha sido determinação do Ministério da Justiça:
O que de fato ocorreu, diz [Tamer], foi a tomada de consciência coletiva da gravidade da situação por parte dos órgãos responsáveis. Essa tomada de consciência efetivou-se em esforço conjunto do qual participaram a Secretaria de Segurança, através da Divisão de Ordem Política e Social – a DOPS –, o Tribunal de Justiça do Estado, o Ministério Público Estadual e a Superintendência da Polícia Federal. Da soma de esforços entre os diversos órgãos, ocorreram providências na esfera de cada um. A Secretaria de Estado de Segurança Pública marcou presença com a entrada da DOPS no caso, a Polícia Federal recebeu autorização para investigar os crimes, o Poder Judiciário nomeou uma juíza específica para atuar na esfera judicial e o Ministério Público designou promotor específico para acompanhamento das investigações.
Matéria do jornal O Liberal – “Tamer admite erros em Altamira”
O promotor designado para acompanhar essas investigações foi Sérgio Tibúrcio dos Santos Silva. A produção do podcast tentou entrar em contato com o gabinete dele para marcar uma entrevista, mas não obteve retorno.
Já Paulo Tamer topou conversar com Ivan Mizanzuk. E aqui já é necessário um esclarecimento: quando se pensa em DOPS, geralmente vem à cabeça a Polícia Civil na época da ditadura militar. Mas o ex-coordenador relatou que, após a redemocratização, a Divisão passou por algumas mudanças. Uma explicação mais detalhada veio em uma mensagem de WhatsApp para a produção do podcast. Nela, Tamer diz:
A DOPS era uma unidade da Polícia Civil, esta órgão da Secretaria de Segurança Pública.
Tanto a Polícia Civil quanto a Federal, à época, em seu quadro de unidades, tinha a DOPS.
A DOPS, na era dos governos militares, era instituição destinada a apurar os crimes, à época, praticados contra a ordem social e política do estado ou nação, entretanto, com o advento da Constituição de 1988, passou a apurar crimes praticados contra a administração pública (sonegação fiscal) e ordem social, aqueles de larga repercussão social, como o caso dos emasculados.
A diferença entre as instituições é que uma apura crimes praticados contra a administração federal e a outra apura crimes que não sejam da esfera federal.
Segundo Tamer, a forte cobrança da população de Altamira fez com que o secretário de segurança do Pará o procurasse, para buscar ajuda nas investigações. Na época, ele havia acabado de assumir a coordenadoria geral da Polícia Civil no estado.
Tamer, então, sugeriu ao secretário a realização de um convênio com agentes federais. Enquanto a PF forneceria os profissionais, a Civil daria o apoio logístico necessário.
“Foi uma equipe da Polícia Federal para lá e, depois, fechou-se o convênio. Se não me falha a memória, após uns 15 dias, eles trouxeram um relatório. Em cima dele, aí sim nós designamos a equipe do delegado Éder Mauro para ouvir as pessoas e pedir as prisões”, comentou ele ao Projeto Humanos.
Isso significa que não houve interferência do Ministério da Justiça na primeira ida dos agentes à Altamira. Tamer afirmou ainda que a formalização desse convênio deveria estar nos autos, e se mostrou incrédulo quando Ivan lhe informou que o processo não contém nenhum documento sobre isso.
O espanto se estendeu também em relação ao sumiço de todos os registros da Operação Monstro de Altamira, conduzida pela PF. “Olha, é uma grande surpresa para mim porque eu te dou certeza que nessa época o inquérito policial foi anexado aos autos. Eu era o delegado geral. Eu li todos os relatórios sobre como eles chegaram ao possível envolvimento dos médicos”, completou.
Quando Ivan entrevistou Tamer, assim como na época em que lançou os episódios sobre a investigação de Éder Mauro, ele só tinha acesso aos autos principais dos casos de Altamira. No decorrer dos meses, no entanto, o advogado e pesquisador Rubens Pena Júnior o contatou sobre a descoberta de um anexo.
Nele, estava o antes sumido relatório do delegado Éder Mauro, um documento de cinco páginas, datado de 15 de julho de 1993. O texto completo, que não cita a Polícia Federal em nenhum momento, está disponível aqui:
Relatório final produzido por Éder Mauro
Ao analisar com cuidado o processo principal, Ivan notou que faltam 27 folhas. Como se trata de um documento físico, entretanto, era comum que materiais entrassem ou saíssem dos autos e, por isso, o escrivão precisava renumerar tudo manualmente.
Como vários desses profissionais passaram pelo caso dos emasculados, a diferença de folhas pode ou não ser um erro na enumeração. Para quem tiver interesse, há abaixo uma tabela com a análise das rubricas dos escrivães:
Tabela com análise das rubricas
Ainda durante a entrevista ao podcast, Paulo Tamer revelou um detalhe interessante: o agente federal José Carlos de Souza Machado, que chefiou as missões da PF, acompanhava as diligências conduzidas pelo delegado Éder Mauro. Isso significa que as prisões de julho de 1993 de fato tiveram como base as informações colhidas durante a Operação Monstro de Altamira.
Segundo matérias de imprensa da época, deputados estaduais e federais do Pará pressionaram o Ministério da Justiça para que a própria PF encerrasse o inquérito do caso, mas isso nunca aconteceu. No fim, o trabalho ficou sob responsabilidade de Éder Mauro, que formalizou as apurações dos agentes federais. Estranhamente, essa cooperação entre as instituições foi retirada dos autos.
O que chama a atenção é como a Polícia Federal parecia tentar emular a situação de Guaratuba, do caso Evandro Ramos Caetano, ocorrido em 1992. No Paraná, sete pessoas foram presas. Em Altamira, havia sete suspeitos: Amailton e o pai, os dois médicos, os dois ex-PMs e Valentina. Na época, falava-se que esse era o número de participantes necessário para a realização dos rituais. Uma bobagem que nunca teve qualquer fundamento, criada nas confissões sob tortura dos acusados.
Todas essas informações valem para a primeira fase da operação. Após as prisões, a sensação da própria PF e das famílias das vítimas era de que a seita tinha mais membros.
Em setembro de 1993, dois meses depois dos suspeitos serem detidos, mais um garoto desapareceu em Altamira: Rosinaldo Farias da Silva, de 11 anos. Uma década mais tarde, Francisco das Chagas admitiria ter sido o responsável pela morte da criança, que jamais foi encontrada. Na ocasião do sumiço, contudo, a população acreditava que o menino teria sido vítima de outro membro da seita, o fazendeiro Vantuil Estevão de Souza. Tudo isso já foi explicado em detalhes no episódio 13.
Mais uma vez, os crimes continuaram mesmo depois das prisões dos supostos membros da seita. Para relembrar, os casos de Klebson Ferreira Caldas, Maurício Farias de Souza e Flávio Lopes da Silva aconteceram após o principal acusado na época, Amailton, ter saído da cidade – ele viajou de moto em outubro de 1992, data do assassinato de Jaenes da Silva Pessoa. Todos esses garotos estão na lista de confissão de Chagas.
O que as famílias viam, porém, era uma seita com muitos participantes, a maioria ainda solta pela região. Baseada nessa crença, a Polícia Federal conduziu a segunda fase da operação, que possui mais documentações. E elas são bem esquisitas.
Nos autos do processo, há uma matéria em vídeo, de 1994 ou 1995, feita para um programa da Rede Bandeirantes e apresentado por Marília Gabriela. Nela, o jornalista Valteno de Oliveira mostra uma cópia do relatório Monstro de Altamira, datado de 24 de setembro de 1993 – ou seja, já após as prisões. O documento é assinado pelo agente José Carlos de Souza Machado, o mesmo que depôs no júri de Valentina.
CDDPH
Apesar da ordem para a entrada da PF não ter partido do Ministério da Justiça, há indícios de que a pasta acompanhava o caso de perto. Um deles é uma resolução publicada no Diário Oficial, de 13 de outubro de 1993:
O Ministério da Justiça e Presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, no uso de suas atribuições legais e ad referendum do Colegiado, resolve:
Instaurar inquérito para investigar as graves denúncias de violações de direitos humanos em Altamira, no Estado do Pará, onde pelo menos desde 1989 há registros de violências praticadas contra crianças: sevícias, violações, emasculações e assassinatos.
Resolução de 13 de outubro de 1993 para abertura de inquérito em Altamira
Essa resolução partiu do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), que fazia parte do Ministério da Justiça.
A abertura desse inquérito se baseou na lei 4.319, de 16 de março de 1964. O artigo e os incisos específicos afirmam:
Compete ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana:
• promover nas áreas que apresentem maiores índices de violação dos direitos humanos:
• receber representações que contenham denúncias de violações dos direitos da pessoa humana, apurar sua procedência e tomar providências capazes de fazer cessar os abusos dos particulares ou das autoridades por eles responsáveis.
Para compor a comissão de inquérito, foram designados três membros do CDDPH: José Roberto Batochio, representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); Álvaro Augusto Ribeiro Costa, do Ministério Público Federal; e Francisco Clóvis de Souza, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Ivan Mizanzuk conseguiu conversar com Batochio, que hoje é um ocupado advogado em São Paulo. Ele foi bastante prestativo, mas não se lembrava de muita coisa. Por isso, declinou o convite para uma entrevista. Infelizmente, o contato com os outros dois envolvidos não foi bem sucedido.
De qualquer modo, o que importa é o seguinte: a segunda e a terceira fase da operação da PF provavelmente ocorreu por determinação do CDDPH, que era localizado no Ministério da Justiça. No momento, pelo menos, é o que os documentos disponíveis parecem apontar.
Mas, afinal, o que era o CDDPH? Como o próprio nome sugere, o Conselho era o órgão responsável por avaliar denúncias de violações de direitos humanos. Há aqui um grande porém: ele teve origem na ditadura militar, justamente o período de maior repressão política na história do Brasil. Como isso aconteceu? E qual a relação desse grupo com as investigações em Altamira?
Ao pesquisar sobre o CDDPH, Ivan Mizanzuk encontrou o trabalho do professor e historiador Leonardo Fetter da Silva, que estudou sobre o tema.
De acordo com o pesquisador, a primeira proposta de um mecanismo para tratar sobre direitos humanos no Brasil data de 1956. Na ocasião, o Congresso Nacional sugeriu a criação do CDDPH, e o projeto ficou em tramitação por oito anos até ser aprovado. Em 16 de março de 1964, ele passou pela sanção do presidente João Goulart, mas logo encontrou um obstáculo: 15 dias depois, o governo sofreu um golpe civil-militar, Goulart acabou destituído e a instalação do Conselho foi deixada de lado.
Em 1968, o regime resolveu organizar uma cerimônia para finalmente inaugurar os trabalhos do CDDPH. O evento, que contou com representantes nacionais e internacionais, marcou o início de um órgão que atuaria durante todo o período da ditadura – ele só não se reuniu entre 1974 e 1979.
Segundo Leonardo Fetter, entre as instituições que insistiram pela instauração do Conselho estavam a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o partido opositor ao regime, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
“Eu destaco 1968 como um ano muito importante para os direitos humanos no Brasil. Como sabemos, nesse período nós temos uma maior repressão a uma série de grandes manifestações da classe média e dos estudantes, e às greves dos trabalhadores. Diante disso, principalmente a OAB vai pautar a instalação do Conselho”, explicou o pesquisador.
É importante ter em mente que as lutas sociais que nós conhecemos hoje, como o movimento negro ou indígena, começaram a surgir com mais força a partir da década de 1970, depois da criação do CDDPH. Isso quer dizer que o Conselho não foi instalado com o objetivo de representar essas minorias, mas sim como forma de legitimar a ditadura como não violadora dos direitos humanos – o que é, claro, um enorme contrassenso.
“Na cerimônia de instalação do Conselho, no final de 1968, o ministro da justiça e o presidente ditador Arthur Costa e Silva fazem dois pronunciamentos. Eles destacam esse ato como representante do Estado de Direito que a ditadura buscava trazer para si. Como representante da democracia, da constitucionalidade e do respeito aos direitos humanos no Brasil”, completou o historiador.
De 1968 a 1985, o CDDPH foi acionado pelo regime a fim de apurar diversas denúncias de violações e, sobretudo, silenciá-las. “Durante todo esse período, o Conselho não conseguiu promover nenhuma ampla ou profunda investigação. Todos os casos envolvendo opositores políticos eram prontamente arquivados em uma breve análise. Não se questionava a versão oficial dos fatos. Não se questionava os órgãos de segurança, de repressão”.
Entre os noves membros do CDDPH, quatro até tentavam levar as denúncias adiante, como era o caso dos representantes da OAB, do MDB e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). O problema é que eles não tinham força o suficiente para que isso de fato acontecesse.
No fim, os relatórios reafirmavam a versão oficial do governo: de que a pessoa não esteve presa, de que não morreu em função de tortura ou não foi assassinada dentro de um órgão repressivo.
Para piorar, em 1971, a lei Ruy Santos aumentou para 12 o número de integrantes do Conselho, o que adicionou mais três pessoas favoráveis ao regime. Vale lembrar que o CDDPH estava dentro do Ministério da Justiça, órgão que tem o poder de acionar a Polícia Federal.
Na década de 1990, o cenário já era outro. Com o fim da ditadura, os membros eram todos civis, realmente interessados em investigar as violações de direitos humanos. No entanto, por ser um grupo que já surgiu com problemas, ele precisou ser totalmente reestruturado para que pudesse cumprir o seu papel.
Na época dos júris em Belém, em 2003, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva criou a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Comandada então por Nilmário Miranda, ela ganhou status ministerial e se tornou posteriormente uma pasta oficial do Executivo.
“Talvez a criação dessa secretaria seja um desses caminhos para tentar resolver uma série de denúncias de violações de direitos humanos no Brasil, para que essas questões ganhem mais força. E aí o próprio Conselho [CDDPH] fica subordinada à essa secretaria”, afirmou Leonardo Fetter.
Também no início dos anos 2000, um projeto de lei propôs transformar o CDDPH no que hoje é o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o que só ocorreu em 2014. A partir dessa mudança, ele saiu do Ministério da Justiça para integrar o Ministério de Direitos Humanos.
Em resumo, o órgão responsável por avaliar denúncias relacionadas aos direitos humanos foi estruturado durante a ditadura militar, de forma que silenciasse os crimes e legitimasse o regime. Após a redemocratização, o CDDPH continuou a enfrentar várias dificuldades, mas era o que existia na época. E, por estar dentro do Ministério da Justiça, ele podia acionar a Polícia Federal.
Sobre a PF em específico, o historiador relembrou que a instituição também esteve envolvida em ações repressivas no período da ditadura, e acabou citada na Comissão Nacional da Verdade. Como a Lei da Anistia, de 1979, absolveu não só os perseguidos pelo regime, mas também os agentes de repressão, esses funcionários não foram expulsos do governo. Eles simplesmente foram direcionados para outras funções e repartições públicas.
“A Polícia Federal é uma das únicas instituições que participaram da repressão e que sobreviveram à passagem para a democracia. Então, muitos desses agentes que faziam parte de outros órgãos podem ter sido incorporados à PF”, comentou o pesquisador.
A auto-anistia, cujas consequências vemos até hoje, fez com que métodos do regime continuassem a ser adotados mesmo após a redemocratização. “A permanência desses agentes dentro do Estado possibilita que eles fiquem livres e impunes dos crimes que cometeram, e provavelmente replicando práticas aprendidas durante a ditadura. Práticas que violam os direitos humanos”.
Para Ivan Mizanzuk, a formação dos policiais federais que foram para Altamira na década de 1990 é uma questão-chave. Eles estavam em uma missão sob a bandeira dos direitos humanos, a mando do CDDPH, um órgão projetado para não ter força de atuação.
Isso é especialmente curioso porque o Arquivo Nacional contém dois relatórios sobre José Carlos de Souza Machado, o chefe de missão nas três primeiras fases da Operação Monstro de Altamira. Esses documentos, produzidos nos anos 70, ajudam a entender os métodos de investigação utilizados por ele.
RELATÓRIOS DO ARQUIVO NACIONAL
O primeiro relatório é da Divisão de Segurança de Informações, do Ministério do Interior. Ele é o resultado de uma investigação sobre um conflito contra garimpeiros no Amapá, em 14 de setembro de 1976. A primeira página diz:
Segundo a autoridade processante, a autoria dos crimes de homicídios e lesões corporais graves cabiam a um servidor da FUNAI e ao agente da Polícia Federal JOSÉ CARLOS DE SOUZA MACHADO, por estarem na ocasião da direção da diligência.
De acordo com o documento, José Carlos teria sido o responsável por iniciar o confronto, com a ajuda de indígenas e servidores da FUNAI. Um deles era um respeitado sertanista da região, chamado Fiorello Parise. Ivan Mizanzuk entrou em contato com a família de Parise para tentar uma entrevista, mas ele recusou por questões de saúde.
A história do relatório é a seguinte: em certa ocasião, indígenas denunciaram à FUNAI a invasão de suas terras por garimpeiros. O servidor da Fundação, então, procurou o auxílio da Polícia Federal, que enviou o agente José Carlos.
O policial teria agido com truculência e mandado os indígenas e servidores atirar contra os garimpeiros. Além disso, o grupo teria amarrado os invasores, os espancado e os colocado de joelhos em cima de pedregulhos. Como consequência, um indivíduo morreu e outros ficaram feridos.
A investigação ainda apurou que os garimpeiros não sabiam que aquela era uma área reservada, por serem pessoas muito simples e ignorantes. Para tornar o caso ainda mais estranho, a morte causada no episódio foi atribuída à ação do servidor da FUNAI, incentivada por José Carlos.
Segundo o documento, essa violência era desnecessária, já que as armas dos invasores já haviam sido apreendidas. Uma passagem do relatório lista os supostos abusos:
E o que se sentiu desde o primeiro contato mantido entre FUNAI e Departamento da Polícia Federal foi que José Carlos de Souza Machado, que então respondia pela citada Divisão, demonstrava logo seu instinto maldoso.
Primeiro: quando da apresentação de Agostinho [um outro agente da PF que estava no grupo], afirmando ser ele de fé, que atirava primeiro para depois ir ver quem era;
Segundo, quando pediu cordas para amarrar os garimpeiros, depois afirmando que se queriam briga, que aguentassem as consequências;
Terceiro, dando ordem à José Alves Sobrinho [outro servidor da FUNAI], que se alguém tentasse passar na ponte do rio Onça, que podia levantar a “carabina”. Antes, já tinha prendido algumas pessoas e apreendido armas, algumas delas distribuídas para a diligência.
Nossa afirmativa já começou a se concretizar quando, no caminho, prendeu dois garimpeiros, e os espancou sem que apresentassem qualquer reação. Depois, dando ordens a que dois servidores da FUNAI também os espancassem, o que não fizeram, e mandando atirar nos garimpeiros para valer se tentassem reagir, e nas pernas, se tentassem correr.
Quarto, ameaçando e prendendo garimpeiros e mandando amarrá-los com as mãos para trás, colocando-os de joelhos sobre pedregulhos, bem assim uma senhora que acompanhava o marido e um menor de cinco anos de idade, espancando sem necessidade dois deles, os quais não mandamos para corpo de delito por não apresentarem lesões aparentes.
Além de uma série de outras arbitrariedades por ele praticadas, chegando a um desfecho violento, posto que na confusão verificada nos garimpos morreu um e dois ficaram feridos, sem que possamos atribuir a outras quaisquer pessoas, a não ser ao agente José Carlos de Souza Machado e ao sertanista da FUNAI, Fiorello Parise, a autoria desses crimes, por terem sobre seus ombros a direção da diligência, e não tiveram o controle devido na hora precisa, sendo PARISE acusado frontalmente por dois garimpeiros atacados como o autor do disparo que vitimou um deles.
Esse relatório, que ficou pronto em dezembro de 1976, foi assinado pelo delegado José Alves de Oliveira. Na cópia do documento que consta no Arquivo Nacional, há ainda um pedido do Serviço Nacional de Informações, o antigo SNI, de 8 de março de 1977. Nele, o órgão solicitava atualizações do caso, especialmente em relação às acusações contra Parise e José Carlos.
A resposta, enviada em 12 de maio, dizia apenas que o Ministério Público ainda não havia oferecido denúncia, e que a FUNAI aguardava a avaliação de um perito para constatar se a área do conflito era de fato indígena.
Depois disso, não há mais informações. Não foi possível verificar se isso chegou a virar uma ação contra o agente José Carlos, que na época era um jovem policial.
José Carlos x Garimpeiros (Arquivo Nacional)
Mas, apesar de não sabermos os rumos legais desse episódio, é inegável que ele teve repercussões bastante desagradáveis para o agente.
É aqui que entra o segundo relatório, uma sindicância da Polícia Federal, de 8 de junho de 1977. Ele envolve o chamado Jornal do Povo, de Macapá (AM), o primeiro veículo diário do estado, e relativamente novo na época. O periódico era dirigido pelo jornalista Haroldo Franco, que hoje é considerado um personagem histórico da região.
Na década de 1970, o jornal fez uma série de reportagens denunciando abusos do agente José Carlos, sobretudo nos conflitos em garimpos. De acordo com o relatório, em 1977, o policial era Chefe do Serviço de Censura no Amapá.
Em certo momento, ele teria apreendido todas as edições do Jornal do Povo, sob a justificativa de que estavam sem expediente – a lista dos jornalistas responsáveis pelas matérias, além de informações de contato e endereço do veículo.
Após a apreensão, o próprio delegado da Polícia Federal interveio. Ele alegou que José Carlos teria se confundido, pois o expediente não estava na capa, mas sim na terceira página do jornal.
Anexadas ao relatório, estão algumas reportagens que narram a truculência do policial nesse episódio, e como ele estava incomodado com as notícias publicadas sobre ele. Uma delas, do jornal O Estado do Pará, de 9 de maio de 1977, relata:
As ocorrências vergonhosas no Território, patrocinadas pela PF, como se o Jornal do Povo estivesse em algum delito contra a segurança nacional, foram provocadas pelo agente Zé Carlos em represália a uma notícia veiculada no JP a respeito de cenas violentas praticadas com armas de fogo contra garimpeiros na localidade Pedra Branca, na zona da Estrada de Ferro. Por causa disso, José Carlos, bêbado, já estivera no Jornal do Povo, querendo censurar a redação, no que foi impedido pelos diretores do periódico, que o convidaram a sair. Depois da notícia, era intenção do agente prejudicar de qualquer maneira o matutino, e com esse propósito envolveu o delegado Geraldo, que foi obrigado a assumir a responsabilidade dos fatos.
No fim, a sindicância entendeu que a apreensão dos jornais havia sido um erro, mas que o policial tinha a autorização do delegado e agia de acordo com a lei.
Assim como no caso contra os garimpeiros, não se sabe qual foi o desfecho desse outro evento. O teor da conclusão, porém, deixa claro que a PF não tomou nenhuma medida punitiva contra José Carlos.
De qualquer forma, aqui temos algo novo: ele era bastante ativo em órgãos de repressão durante a ditadura e, mesmo nesse contexto, foi suspeito de atos excessivos contra civis.
Sindicância envolvendo José Carlos (Arquivo Nacional)
Além disso, outra informação importante sobre o agente é que, em maio de 1993, ele foi eleito presidente do Sindicato dos Policiais Federais no Estado do Pará. Mais detalhes sobre isso foram encontrados na página da instituição na internet:
Em 04 de maio de 1993, houve eleição com três chapas. Os empossados foram eleitos para o mandato da Diretoria no biênio 93/95.
Esta Diretoria dirigiu a maior greve da história do Departamento da Polícia Federal. Em novembro de 1994, assumiu interinamente o 2º tesoureiro, onde foi escolhida uma junta governativa provisória para administrar o sindicato no período de novembro de 1994 a maio de 1995, em virtude de renúncia coletiva.
Essa eleição ocorreu na mesma época em que José Carlos estava em Altamira na primeira fase das investigações. Por ter sido escolhido em uma disputa com duas chapas, é possível supor que ele era uma figura de respeito na PF do Pará. Não à toa, como o próprio sindicato informa, ele dirigiu a maior greve da história da instituição, o que resultou na renúncia coletiva do grupo eleito.
Arquivo Histórico Presidentes – SINPEF – PA
Voltando ao caso dos emasculados, em abril de 1994, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) realizou um novo encontro. Os membros agora cobravam providências para que os representantes do CDDPH fossem para Altamira investigar a situação.
A reunião do Conanda aconteceu na época da finalização da CPI destinada a apurar crimes contra menores no país, que ouviu os familiares das vítimas no Pará. Na Comissão, destrinchada nos episódios 4 e 13, foi levantada a suspeita de que o fazendeiro Vantuil teria participado do desaparecimento do menino Rosinaldo, em setembro de 1993.
Além da CPI, neste mesmo período, o promotor Roberto Pereira Pinho sugeriu a impronúncia de todos os acusados em Altamira, por considerar que não havia provas suficientes contra eles. No fim, o juiz José Orlando de Paula Arrifano contrariou a recomendação e determinou que os suspeitos fossem a júri.
Portanto, a nova assembleia do Conanda tinha o seguinte clima: “os poderosos estão agindo para saírem impunes novamente, e algo precisa ser feito”.
Ata da reunião do Conanda de abril de 1994 – cita Altamira na página 3
Em 31 de maio de 1994, uma grande audiência pública ocorreu em Altamira. No dia seguinte, ela foi noticiada pelo jornal O Liberal:
A Polícia Federal deve voltar a investigar os assassinatos, emasculações, sequestros e desaparecimento de meninos em Altamira. Essa foi a principal reivindicação dos parentes das vítimas, representantes de entidades empenhadas na elucidação dos crimes e do povo altamirense, feita durante a audiência pública realizada, na tarde de ontem, na cidade.
O coronel Euro Barbosa de Barros, diretor do Departamento de Assuntos de Segurança Pública, órgão vinculado ao Departamento da Polícia Federal, que estava presente, vai entregar ao ministro da Justiça, Alexandre Dupeyrat, um relatório sugerindo a medida. “Tudo o que eu vi e ouvi leva ao convencimento de se prosseguir com as investigações através da Polícia Federal”, disse o coronel, que tentou acompanhar de forma discreta a audiência, mas acabou falando ao público presente no salão de convenções Papa João XXIII sobre o assunto.
Matéria do jornal O Liberal – “Polícia Federal vai voltar à Altamira”
Esse nome é importante: Euro Barbosa de Barros. Um coronel do exército que, de acordo com a reportagem, era diretor do Departamento de Assuntos de Segurança Pública, órgão vinculado à Polícia Federal.
Um militar na PF, em 1994. No episódio 27, o ex-ministro da justiça Alexandre Dupeyrat explicou como a redemocratização foi marcada por uma tensão entre os que queriam militares à frente do órgão e os que preferiam delegados de carreira.
Na época da audiência pública divulgada pelo jornal, o diretor geral da PF era Wilson Brandi Romão, um militar.
Ainda segundo a matéria, o coronel Euro Barbosa tinha a intenção de conversar com Dupeyrat sobre as demandas das famílias. Para relembrar, algo semelhante foi dito pelo agente José Carlos no júri de Valentina. Na ocasião, ele afirmou que o superintendente da PF na época também teria entrado em contato com o ministro.
É importante destacar que José Carlos participou da reunião com os familiares das vítimas no fim de maio de 1994. Além dele, estavam presentes membros do CDDPH, como foi exigido no encontro do Conanda. Todos se reportavam, em alguma medida, ao Ministério da Justiça.
Em outras palavras, Dupeyrat poderia ter algumas respostas. Ele foi ministro da pasta entre abril de 1994 e janeiro de 1995, época da segunda fase da Operação Monstro de Altamira.
Entre as conversas que teve com o ex-ministro, Ivan Mizanzuk lhe enviou uma série de materiais, como reportagens, publicações em diários oficiais e o depoimento de José Carlos. Durante a entrevista para o podcast, Dupeyrat também falou sobre o coronel Euro Barbosa, que hoje já é falecido, assim como Wilson Brandi Romão.
“Eu vi que esse sujeito [Barbosa] ocupava a Secretaria de Segurança, que era absolutamente apagada e se limitava a fazer o seguinte: dar autorização à empresas de segurança privada para a compra de rifles, balas e revólveres. Um troço totalmente sem relevância. Ele era um burocrata que chancelava pedidos de renovação de licença e aquisição de materiais”, disse o ex-ministro.
Justamente por isso, Dupeyrat estranhou o fato do coronel ter atuado em uma situação tão fora de sua alçada e competência, como era o caso de Altamira. “Essa pessoa se meteu a palpitar sobre esse assunto sem ter nenhum conhecimento, nada, zero, o que é uma coisa estranha”, completou.
Tanto Euro Barbosa quanto Brandi Romão são citados na Comissão Nacional da Verdade, que foi um grande esforço do estado brasileiro para tentar elucidar crimes políticos pelo regime militar.
De acordo com uma matéria do G1 sobre o tema, Romão é mencionado da seguinte forma:
Coronel do Exército. Foi secretário de Segurança Pública do estado do Pará de maio de 1974 a março de 1975, período em que as Forças Armadas levaram a cabo a Operação Marajoara, no sudeste paraense. Durante a operação, pelo menos 49 guerrilheiros foram vítimas de desaparecimento forçado.
Já sobre o coronel Barbosa, a reportagem afirma:
Coronel da Polícia Militar do estado do Mato Grosso. Em 1º de junho de 1973, comandou a invasão da sede da prelazia de São Félix do Araguaia (MT), como forma de intimidação ao bispo dom Pedro Casaldáliga e à agente da prelazia Thereza Salles. Na operação, foram detidas ilegalmente e torturadas pessoas ligadas à prelazia.
Matéria do G1 – “Veja a lista dos 377 apontados como responsáveis por crimes na ditadura”
Tudo isso se traduz na seguinte situação: na segunda fase da operação em Altamira, nós temos a atuação de dois diretores vinculados à PF citados na Comissão Nacional da Verdade, envolvidos em torturas e violações de direitos humanos na época da ditadura.
Enquanto isso, o agente que comandou as missões, José Carlos, foi formado justamente durante o regime, com histórico de ser truculento. Ironicamente, essas pessoas foram designadas pelo CDDPH a investigar os crimes dos emasculados, supostamente por ser um caso de violação de direitos humanos.
Esse é um resquício cristalino da anistia que ocorreu após a ditadura militar. Apesar do fim do regime, os setores policiais continuaram “contaminados”. O resultado é uma situação contraditória agravada pelo fato de Altamira ser uma região com disputas históricas entre a população e os militares, sobretudo no período da construção da Transamazônica.
Não à toa, esses conflitos levaram a Igreja Católica a se posicionar politicamente a favor dos mais pobres. Mas, no caso dos meninos emasculados, os mesmos agentes combatidos por ela, de repente, viraram aliados.
Na visão de Dupeyrat, não havia qualquer justificativa legal para a entrada da PF nas investigações. A única ocasião em que ele chegou a considerar uma intervenção federal foi quando se ventilou a hipótese de tráfico internacional de órgãos.
Ele lembra que, em certa ocasião, essa tese foi divulgada por um jornal no exterior, a partir da entrevista com um professor universitário brasileiro, que dizia ter convicção de que se tratava de tráfico.
Ao ler a reportagem, o então ministro convocou o docente para ouvi-lo. Afinal, se ele tivesse provas, aí sim era caso de acionar a PF. “Mas, chamado às falas, primeiro ele não compareceu. E, depois, quando compareceu, não teve nada de concreto. Era tudo ‘ouvi dizer’. Por ‘ouvir dizer’ você não pode movimentar aparato investigatório nenhum”, comentou Dupeyrat.
Uma matéria da Folha de S. Paulo, de 4 de agosto de 1994, há mais informações sobre esse episódio:
O governo federal suspeita que a organização criminosa que faz a emasculação de meninos em Altamira também atue em outros estados e até em outros países. A Polícia Federal obteve indícios de que a mesma organização ainda assassinaria bebês para retirada de sangue e faria sequestro de meninas com mais de 14 anos.
Os estados onde ela atuaria são Maranhão, Piauí, Goiás, Espírito Santo, Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A organização teria conexões dos EUA, Argentina, Uruguai e Paraguai.
O CDDPH, ligado ao Ministério da Justiça, se reuniu ontem para avaliar as investigações que a PF faz há 40 dias.
O ministro Alexandre Dupeyrat disse que só pedirá a abertura de inquérito policial depois de obter mais evidências sobre a atuação da organização.
O coordenador das investigações, o Coronel Euro Barbosa de Barros, disse que a PF interceptou um telefonema entre uma mulher de Altamira e um homem de Belém, no qual eles negociavam o transporte do corpo de um bebê.
[…]
A PF trabalha com a hipótese de que a emasculação de meninos e os assassinato de bebês, com a retirada do sangue, serviriam para rituais satânicos.
Matéria da Folha de S. Paulo – “PF investiga rede para extração de órgãos humanos”
Em resumo, de acordo com os documentos que o podcast teve acesso, a primeira fase da Operação Monstro de Altamira, de 1993, seria resultado de um acordo de cooperação entre a Polícia Federal e o Estado do Pará. Já a segunda e a terceira etapa, de 1994 e 1995, teriam ocorrido a pedido do CDDPH, ligado ao Ministério da Justiça, que tinha poderes sobre a PF – tudo isso intermediado pelo coronel Euro Barbosa, diretor do Departamento de Assuntos de Segurança Pública da corporação.
No meio da pesquisa, a produção do Projeto Humanos encontrou uma publicação no Diário Oficial sobre a repartição comandada pelo coronel. É a portaria 717, de 13 de setembro de 1994. Ela determina a criação, dentro do departamento, de um grupo armado que investigaria violações de direitos humanos.
Segundo as suas diretrizes, os membros da equipe seriam escolhidos pelo diretor do setor – ou seja, Euro Barbosa -, que supervisionaria os trabalhos. Além disso, a atuação do grupo dependeria da requisição do CDDPH.
Portaria 717 de 13 de setembro de 1994
Outra portaria do Ministério da Justiça, publicada em Diário Oficial, aprova a credencial dos integrantes do grupo comandado pelo coronel:
O portador da presente credencial é membro do Grupo Permanente de Investigação de Violações aos Direitos Humanos do Departamento de Assuntos de Segurança Pública, da Secretaria de Polícia Federal, a quem as autoridades públicas e privadas devem prestar auxílio e cooperação para o desempenho de suas missões oficiais emanadas do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Ministério da Justiça.
No exercício de suas funções, está investido das prerrogativas de acesso, fiscalização e porte de arma, autorizadas aos integrantes do Sistema de Segurança Pública, nos termos da Lei.
Portaria de 17 de novembro de 1994 – aprovação de credencial
Abaixo da credencial, viria a assinatura do ministro da justiça – na época, o doutor Dupeyrat. Aliás, ao analisar o documento agora, tantos anos depois, essa foi a primeira coisa que chamou a atenção dele. E, curiosamente, o espaço destinado à assinatura está em branco na resolução.
“O ministro da justiça não assina carteira funcional de ninguém. Não existe isso em lugar nenhum do mundo. E pior, dando porte de arma e poderes de requisição. Que negócio é esse?”, questionou.
De acordo com Dupeyrat, outros elementos que faltam nesse documento são o número da portaria e do ofício que a encaminhou à Imprensa Nacional. Além disso, ele notou que a primeira resolução, criando o grupo de trabalho de Barbosa, não aparece no site oficial do Ministério da Justiça. Ela só está disponível na página da própria Imprensa Nacional. Não é possível saber, infelizmente, o motivo dessas ausências.
Depois de avaliar os documentos e revisitar a memória, o ex-ministro chegou à conclusão de que, apesar das pessoas envolvidas serem agentes da PF, o que as levou à Altamira não teria sido a instituição em si. Mas sim o departamento comandado pelo coronel Euro Barbosa, uma repartição sem grande importância.
Essa é uma confusão típica de um país que, ao passar por um período de transição sob a luz de uma nova constituição, preservou agentes e instituições que há pouco estavam sob o regime da ditadura.
“O historiador, ou aquela pessoa que está revendo os dados históricos, precisa ser alertado para essas circunstâncias por quem viveu o momento. Eu vivi. Eu vivenciei essa transição e esses dois mundos que conviviam ali feito cão e gato. E isso pode explicar muita coisa”, finalizou Dupeyrat.
Os fatos, então, são os seguintes: em um contexto histórico confuso, a Polícia Federal se envolveu nas investigações de Altamira e ficou muito próxima das famílias das vítimas. Até onde sabemos, as missões resultaram na produção de dois relatórios, um em 1993, durante a primeira etapa, e outro em 1996, sobre a terceira fase.
No episódio 15, o podcast abordou todos os materiais que citam a existência desse último parecer. Entre eles, estão uma matéria do jornal O Globo, de 1998; um artigo da revista do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, de 2004; e os discursos de promotores e procuradores do Pará durante audiência na Comissão de Direitos Humanos em Brasília, em 1996.
Matéria do jornal O Globo – “Impunidade e mistério nos crimes em Altamira”
Artigo da revista do Instituto Interamericano de Direitos Humanos
Transcrição da audiência na Comissão de Direitos Humanos em 1996
Ao longo da produção desta temporada, Ivan Mizanzuk conversou com pessoas que tiveram acesso ao relatório anos atrás. Elas não quiseram gravar entrevista, mas passaram algumas informações sobre o documento:
- O parecer de 1996 tinha como foco o testemunho de uma mulher que auxiliou as investigações de José Carlos e equipe;
- também falava sobre como a seita de Altamira teria relações com pessoas dos Estados Unidos;
- por fim, segundo um agente federal da época, o relatório usaria vários pseudônimos, explicados em um anexo nas páginas finais.
Por muito tempo, esses eram os únicos dados que Ivan tinha. Elementos que o ajudaram muito nos últimos meses de produção do podcast, levando à segunda revelação deste episódio: ele finalmente teve acesso ao relatório de 1996.
SEGUNDA REVELAÇÃO
Como a fonte que disponibilizou o documento não quer ser relevada, a sua identidade permanecerá em sigilo. Lembrando que o relatório de 1993, importantíssimo para se entender a primeira fase da operação, ainda não foi encontrado.
De cara, o que chama a atenção no parecer de 1996 é que Valentina de Andrade mal é citada. O nome da líder do Lineamento aparece apenas uma vez, quando José Carlos menciona o mandado de prisão expedido para ela e para o ex-PM Aldenor Ferreira Cardoso, que nunca foi encontrado.
Todas as informações que Ivan tinha sobre esse relatório foram confirmadas após analisá-lo. A data, a quantidade de páginas, as menções aos Estados Unidos e a uma mulher muito próxima do chefe da operação, além da citação direta divulgada na revista de direitos humanos. Está tudo lá. Isso é importante para dizer que, sim, esse documento é verdadeiro.
Com um total de 87 páginas, as primeiras 81 são o relatório em si, as descrições e impressões do trabalho da PF. As últimas seis contêm um anexo com a revelação dos pseudônimos. Não são todos, mas a maioria. Isso comprova a informação repassada ao podcast por um agente federal da época.
Segundo a matéria do Globo já mencionada, o parecer tinha 88 folhas. Pode ser que alguma tenha se perdido, ou que havia uma capa. Mas é um número bem próximo.
Antes de entrar no relatório em si, é preciso confessar que, sob a luz do que sabemos hoje sobre Francisco das Chagas, o conteúdo dele parece ser uma grande bobagem.
Quem tiver interesse pode acessar o documento completo ou até mesmo uma versão comentada por Ivan. As notas em vermelho são questionamentos deixados em aberto:
1996-04-18 – Relatório PF Altamira (Fases 2 e 3 Operação Monstro de Altamira)
1996-04-18 – Relatório PF Altamira (Fases 2 e 3 Operação Monstro de Altamira) COMENTADO
Já no início, o relatório fala sobre a operação de 1993 e cita o número de um processo no Ministério da Justiça, cuja existência não foi possível atestar. Portanto, é provável que a versão de Paulo Tamer seja apenas uma parte da realidade. Ou seja, além do termo de cooperação entre PF e Estado do Pará, pode ter havido também uma autorização ministerial. Essa aposta, porém, não possui documentação suficiente para ser comprovada.
Como mencionado anteriormente, matérias da época e outras fontes sempre falavam em apenas dois relatórios: sobre a primeira e a terceira etapa da operação. Mas e quanto à segunda? O que aconteceu? Agora, no documento de 1996, há uma resposta:
Cumpre aqui esclarecer uma situação. Informar o porquê não foi entregue o Relatório de 1994. Aquele não foi entregue, em virtude de que o Relatório elaborado pela equipe em 1993 foi mostrado ao chefe da Equipe e na ocasião Presidente do Sindicato dos Policiais Federais do Estado do Pará – SINPEF/PA, na sede do próprio Sindicato, por repórter da TV Bandeirantes/Brasília, que diante das inúmeras respostas de “não sei nada sobre isto” a perguntas formuladas pertinentes ao assunto, retirou de uma pasta o Relatório, grafado com o carimbo de Confidencial, (este documento nunca foi emitido com tal carimbo) colocou-o em cima da mesa perguntou ao APF José Carlos, em tom de deboche, se o mesmo o havia assinado, culminando com o relatório sendo mostrado ao vivo e em cores, inclusive com a assinatura do signatário, num programa de domingo da apresentadora Marília Gabriela, quando esta ainda trabalhava para a TV Bandeirantes. Tal fato chocou-nos por duas razões: primeiro porque não emitimos nenhum relatório “confidencial” (daí considerarmos estranho que alguém estivesse querendo dar um cunho de subterfúgio a algo que não existe); segundo, porque ao revelar fontes e dar conhecimento a terceiros de algo que não lhes dizia respeito, quebrou um relacionamento de confiança existente entre informantes, testemunhas e nós, e esta condição nos foi assegurada e asseverada pelo ex-Superintendente desta casa, Dr. Fábio Caetano, quando determinou a realização da Missão, em Maio/93. Assim, para que tal fato não se repetisse, houvemos por bem não entregar o relatório da Operação Monstro de Altamira II.
A matéria da Band, citada no início deste episódio, foi, então, o motivo para a segunda fase da operação não ter produzido um relatório. Ivan Mizanzuk entrou em contato com Valteno de Oliveira, o repórter responsável pela reportagem, mas ele não se recordava de nada disso.
O detalhe mais espantoso desse trecho, porém, é o fato de que o superintendente da PF do Pará, Fábio Caetano, teria prometido sigilo de tudo o que a corporação produzisse sobre o caso. Por um lado, essa seria uma forma de fazer com que eventuais testemunhas perdessem o medo de falar com a polícia. Por outro, a atitude indica que esse relatório nunca foi feito para ser anexado aos autos.
Em seguida à parte mencionada acima, o documento relata que, apesar da segunda fase não ter registro, as informações coletadas na época não foram perdidas. Elas estão, na verdade, incluídas neste novo parecer, de 1996.
É aqui que descobrimos que a PF esteve em Altamira duas vezes em 1994, nos meses de setembro e dezembro. Essas idas serviram como resposta às demandas das famílias das vítimas, que pediam o retorno dos agentes à cidade, e ao envolvimento do CDDPH e do Conanda.
Em setembro, o foco das investigações foi levantar dados sobre possíveis outros membros da seita. A crença de que havia mais pessoas envolvidas se dava principalmente pelo desaparecimento de Rosinaldo Farias da Silva, um ano antes, quando os acusados já estavam presos.
Segundo a família da criança, o principal suspeito do crime seria Vantuil Estevão de Souza, marido da juíza Vera. O fazendeiro é, inclusive, ponto central de grande parte desse relatório, pois a PF acreditava que ele era um integrante da seita.
Mas as desconfianças não paravam por aí. Para a polícia, o grupo contava com o apoio de policiais civis e militares, soldados do exército, políticos, advogados, e outros indivíduos de menor destaque social. São levantados, no total, 40 suspeitos.
Para além desses absurdos, o parecer possui informações interessantes sobre Amailton Madeira Gomes, que teriam sido apuradas na segunda e terceira fase da operação.
Recapitulando, o delegado Brivaldo Pinto Soares Filho desconfiou do filho de Amadeu por alguns motivos:
- Primeiro, a história de que o suspeito teria pintado o cabelo de loiro na época em que Judirley da Cunha Chipaia foi morto, no início de 1992. Esse detalhe condizia com o relato de Josivaldo Aranha da Silva, que afirmava ter sido ameaçado por três homens, um deles de cabelos claros, no mesmo dia e local em que o garoto indígena havia sido encontrado.
- Segundo, as viagens de Amailton após as mortes das crianças. Brivaldo mencionava os casos de Judirley, momento em que o acusado foi para o Ceará, e de Jaenes da Silva Pessoa, quando ele saiu de moto rumo ao Sul. Neste último evento, porém, o delegado acreditava que o filho de Amadeu ainda estava nas redondezas em novembro de 1992, período em que Klebson Ferreira Caldas foi assassinado. Na visão do investigador, se o próprio suspeito não tinha matado Klebson, ele ao menos seria o mandante do crime.
- Terceiro, o fato de que Amailton dirigia uma Pampa cor vinho, veículo visto por testemunhas perto de onde Judirley desapareceu. Durante o júri em 2003, o suspeito foi condenado pela morte do menino indígena. Ou seja, para o processo, haveria provas de que ele seria o responsável nesse caso.
No relatório da PF, no entanto, o agente José Carlos deixa claro que não acreditava em nada disso. Pelo contrário, ele leva em consideração o que afirmavam as testemunhas de defesa – que Amailton estava em uma festa na hora que a criança sumiu:
Quanto a outros fatos que relacionem Amailton aos casos das crianças mortas, temos que Amailton definitivamente não participou do rapto de Judirley Chipaia, já que àquela hora encontrava-se participando de um churrasco numa chácara localizada na estrada da Betânia. Tudo indica que nada teve a ver com a morte e emasculação deste menor, deixando dúvidas, entretanto, pela sua viagem, quase em seguida, ao Ceará, como, aliás, acima já foi dito. A viagem feita por Amailton, de moto, para o Sul do Brasil é inteiramente verídica, inclusive o mesmo recebeu três ordens de pagamento no Banco Bamerindus, nas cidades de Itajaí/SC e Santa Vitória do Palmar/RS, (duas) enviadas por seu Pai, antes de seguir para a Argentina. Os telefonemas e fax recebidos e dados para a Argentina são reais, haja vista as contas telefônicas da residência de seu pai e de sua irmã Marcli.
Ainda assim, a Polícia Federal ligava Amailton ao assassinato de outros garotos. O relatório menciona, por exemplo, a história da empregada Fátima, contada no episódio 5. Para relembrar, parte da suspeita de Brivaldo vinha da informação de que, após a morte de Judirley, o filho de Amadeu teria chegado em casa com a camisa suja de sangue e sido flagrado por uma funcionária da família.
Ninguém nunca conseguiu sequer confirmar a existência dessa mulher. Agora, as apurações da PF dão conta de outra versão para esse evento. Após anos de boataria rolando solta em Altamira, os agentes ouviram a seguinte narrativa: o caso da camisa manchada não teria ocorrido depois da morte de Judirley, mas sim de Jaenes.
O filho de Rosa Maria Pessoa foi assassinado em outubro de 1992. No inquérito conduzido por Brivaldo, não há nenhum depoimento que ligue a história da empregada ao caso de Jaenes.
O relatório de 1996, entretanto, descreve uma situação totalmente diferente. A doméstica não era mais Fátima, mas sim Rosa Souza Coelho, a mulher encontrada morta dentro de um igarapé, também em outubro de 1992. Enquanto o laudo oficial apontou que ela sofreu um afogamento acidental, a população de Altamira sempre acreditou na tese de assassinato.
Segundo o documento da PF, a equipe de José Carlos recebeu boa parte dessas informações por volta de outubro de 1995, durante a terceira fase da operação. O inquérito para apurar a morte de Rosa foi aberto pela Polícia Civil no mês seguinte, em novembro. Ou seja, tudo indica que o levantamento dos agentes federais motivou as investigações da Civil:
Outro ponto a salientar é de que, desde o início das nossas investigações, em 1993 na cidade de Altamira, escutamos dizer que uma empregada de sua casa, de nome Fátima, encontrara a camisa suja de sangue que Amailton usava no dia em que Jaenes foi morto, e que em razão disto Amailton teria também assassinado a empregada e desaparecido com o seu corpo.
Tais boatos não tornaram verídica a existência de Fátima até o presente momento, porém, várias foram as vozes correntes na cidade de Altamira de que Rosa Coelho de Souza, que adiante mencionaremos, teria sido morta em razão de ser ela a pessoa empregada, à época, na residência de Amailton, e que teria visto as ditas roupas sujas de sangue.
Pois bem, se Rosa foi ou não morta pelos motivos acima descritos, a Equipe não pode ainda constatar, todavia, presume-se que a mesma tivesse tomado conhecimento de algo que pudesse identificar os envolvidos nos crimes de emasculação.
De acordo com o documento, a testemunha Jaciara Silva Barros teria contado aos agentes que Rosa trabalhou para a família Gomes e viu Amailton com a roupa suja de sangue.
O problema é que, no inquérito da Polícia Civil, existem dois depoimentos de Jaciara dizendo justamente o contrário, que Rosa jamais foi funcionária de Amadeu. Além disso, nenhuma das declarações menciona a camisa manchada de sangue.
Primeiro depoimento de Jaciara Silva Barros
Isso é um telefone sem fio. O relatório da PF tem como fonte uma mensagem recebida por fax de uma pessoa identificada como “Irmã Vanilda”, que morava em Roma, e afirmava ter ouvido essa história de Jaciara.
A partir daí, a narrativa fica ainda mais complicada:
No limiar do encerramento da missão em 1995, após havermos praticamente esgotado todos os esforços no sentido de encontrar Fátima, localizamos uma pessoa que havia trabalhado na residência de Amailton, que nos disse ter visto uma camisa azul, suja de sangue, embaixo de uma cama, dentro de um dos quartos da casa, dois dias depois do sumiço de Jaenes Pessoa, época em que a mesma começou a trabalhar para a família. A estória ora narrada só é do conhecimento da testemunha, da Equipe e de uma outra pessoa, amiga da testemunha, que a indicou-nos.
Diante destes fatos, usa-se o raciocínio de que anteriormente à testemunha, alguma outra empregada teria trabalhado na casa de Amailton e, esta pessoa teria vivido o clímax dos fatos e comentado a outras pessoas o que teria visto, razão pela qual a mesma poderia ter sido morta, fortificando ainda as informações prestadas por outra testemunha residente numa cidade da região do Tocantins, que narra ter ouvido Amailton dizer para um parente próximo, numa fazenda, na noite do dia em que Jaenes foi assassinado: – “que ele ficara com pena de ter ajudado a matar seu parente”, e deste parente ter dito, relacionando-se a empregada assassinada por Amailton: – “Por que você fez isso com ela? Ela já trabalhava há mais de três anos com a família”.
Aqui temos mais uma versão sobre quem seria a empregada dos Gomes. Não era mais Rosa, mas sim uma mulher chamada Olinda Mora Silva, que teria narrado aos agentes o episódio da camisa azul.
Novamente, nada disso condiz com os autos. Fátima aparece pela primeira vez no processo por meio do depoimento de José Luiz Sobrinho, de 23 de outubro de 1992. No relato, ele diz que ouviu a história sobre a empregada por volta de janeiro, época do assassinato de Judirley.
Depoimento de José Luiz Sobrinho
Fora isso, o relatório da PF sugere que Amailton matou Jaenes, deixou a tal camisa embaixo da cama, onde qualquer um poderia encontrar, e saiu de moto por meses. Isso não faz sentido nenhum.
Parece que os agentes estão tentando adaptar um boato frente aos fatos apurados, como o álibi de Amailton para a morte de Judirley. Na visão deles, se todo mundo falava da camisa suja de sangue, então a história era verdadeira. Se ela não aconteceu no caso do menino indígena, então teria sido com outra vítima.
Fátima pode não existir ou ser uma pessoa que nunca foi encontrada. Pode ser Rosa ou Olinda, ou uma mulher chamada Madalena da Silva Brito, que trabalhou para os Gomes. Ela pode ter relação com o caso de Judirley ou de Jaenes, ou os dois. É isso que a investigação da PF levantou sobre o assunto. Nada com coisa alguma.
Sobre isso, há um trecho do relatório bastante revelador:
Outro caso que não podemos desvincular desses monstruosos crimes é o assassinato de Rosa Souza Coelho ocorrido em 07.10.92, em circunstâncias até hoje obscuras. É fato e voz corrente, ainda não provado, que Rosa teria sido a empregada da casa de Amadeu que teria visto Amailton quando retornou, provavelmente do assassinato de Jaenes, com a roupa suja de sangue e disse que “tinha deixado seu priminho assim, assim”. Rosa foi encontrada morta, segundo o laudo do Dr. Aragão, afogada no igarapé Ambé, localidade conhecida por Três Pontes.
“É fato e voz corrente, ainda não provado”. Ou é fato provado ou não é. Isso foi escrito por um agente da Polícia Federal à frente de uma investigação importante. Ser “voz corrente” não torna algo verdadeiro. Pelo menos não deveria. Os policiais deveriam ter sido mais criteriosos, mas não foram.
Ainda em relação à Amailton, o relatório contém outras informações curiosas. No episódio 3, que relata a investigação de Brivaldo, aparece uma testemunha chamada Adijael Silva Feitosa. Em 13 de novembro de 1992, o rapaz contou ao delegado que teria sido abusado pelo filho de Amadeu após dar uma carona para ele.
Na época, o relato de Adijael serviu para formar a imagem que Brivaldo montou de Amailton: um homossexual violento e abusador, capaz de emascular e matar os meninos de Altamira.
Depoimento de Adijael Silva Feitosa
Esse mesmo policial está no relatório da PF, onde é citado como um “bate-pau” – indivíduo que trabalhava informalmente para a Polícia Civil. Uma das pessoas que exerciam essa função era Edmilson da Silva Frazão, a testemunha que relata a suposta “missa macabra” na chácara de Anísio.
Na época em que era delegado geral da instituição, Paulo Tamer já expunha os problemas que esse tipo de “contratação” causava, inclusive nas investigações de Altamira. Ele abordou o assunto durante a entrevista que concedeu ao jornal O Liberal, de 2 de agosto de 1993:
O efetivo policial do sul do Pará, por exemplo, até pouco tempo formado de bate-paus, hoje é completamente constituído de policiais de carreira. “Bate-pau”, explica o chefe da Polícia, “é o policial comissionado, indicado por políticos e nomeado pela Secretaria de Estado de Administração”. Altamira, lamentavelmente, foi, durante os primeiros anos de investigação dos crimes, vítima dos “bate-paus”, mas esse quadro, assegura o delegado, está mudando.
De acordo com o relatório, Adijael seria um “bate-pau”. Mas, se na investigação de Brivaldo ele aparecia como uma figura importante para denunciar um suspeito, agora a situação é outra.
O trecho a seguir se refere ao assassinato de Klebson, ocorrido em novembro de 1992, enquanto Amailton estava foragido:
Na emasculação de Klebson surge claramente a participação de Policiais Militares e bate-paus da Polícia Civil como executantes dos crimes. Aí é que se encaixa com perfeição o depoimento dado por A. Santos para a Conselheira Sueli do Conselho Tutelar do Amapá, oportunidade em que lhe contou como eram executados os crimes.
Na madrugada seguinte ao dia da morte de Klebson, um bate-pau que havia chegado em casa com a camisa suja de sangue sumiu de Altamira para nunca mais voltar. Dias depois, outro ex bate-pau, ligado à família do Amadeu, seguiria o mesmo caminho. A estória do primeiro bate-pau tomamos conhecimento através de sua avó, pessoa hoje já falecida, mas que revelou os fatos para vizinhos.
O texto não identifica quem seriam esses policiais e bate-paus. Mas, no apêndice do relatório, que possui uma lista de nomes, há a seguinte informação:
ADJAEL DA SILVA FEITOSA – segundo os informes, participou da morte de Klebson, junto com ÉDER GOMES COELHO. Ambos são ex bate-pau e desapareceram da cidade após o homicídio, seguido de emasculação de Klebson.
Não se explica aqui como exatamente José Carlos chegou nesses nomes e a essas conclusões. O depoimento de Adijael para Brivaldo, incriminando Amailton, foi feito no mesmo dia em que Klebson sumiu. Como é possível, então, a PF suspeitar que o bate-pau teria participado da morte do menino?
Uma coisa é certa: Ivan Mizanzuk sempre se perguntou o que teria acontecido com Adijael. Segundo o relatório, ele teria desaparecido da cidade após a morte de Klebson – ou seja, também depois de ser ouvido por Brivaldo. Não há como saber se esses fatos são relacionados, ou sequer se são verdadeiros.
Já a outra pessoa citada, Éder Gomes Coelho, aparece brevemente nos autos em alguns depoimentos. Um que logo vem à memória é o relato de Luiz Kapiche Neto, radialista e advogado ligado à família Gomes, de 30 de novembro de 1993. Nele, a testemunha afirma que um investigador de polícia chamado “Éder” teria feito de tudo para incriminá-la. Possivelmente, tratava-se de Éder Gomes Coelho. Se realmente esse for o caso, é difícil acreditar que o bate-pau seria aliado de Amailton.
Depoimento de Luiz Kapiche Neto
Como era de se esperar, Kapiche também era apontado como um membro da seita pelo relatório da PF. Ele está entre os quase 40 suspeitos listados no documento.
Para recapitular, o radialista chegou a ser foco das investigações em Altamira ainda na época da morte de Judirley, em janeiro de 1992. O motivo era a tal caminhonete Pampa cor vinho, que teria sido vista nas redondezas. Inicialmente, a polícia desconfiou que o veículo pertenceria a Kapiche. Foi só depois que as suspeitas recaíram sobre Amailton.
O parecer da Polícia Federal afirma que não era nem um, nem outro. Na verdade, o automóvel não tinha cor vinho, mas sim café com leite. E o dono era José Carlos Bergamin, que teria conexões com o fazendeiro Vantuil. Para a PF, ele era, inclusive, um dos principais suspeitos da morte do garoto indígena.
Além disso, no relatório, o veículo é relacionado ao testemunho de Josivaldo Aranha da Silva – o rapaz que teria sido ameaçado por três homens, um deles loiro, próximo da data e local onde o corpo de Jurdiley foi descoberto.
Depoimento de Josivaldo Aranha
Agora, o homem de cabelos claros não seria mais Amailton. Afinal, ele tinha álibi para a ocasião. No documento, o agente José Carlos diz o seguinte:
Josivaldo Aranha, filho de criação de uma família que possui um pequeno sítio às proximidades do Cupiúba, dias após a morte de Judirley Chipaia, em janeiro/92, declarou ao delegado da Polícia Civil Bertolino que fora abordado, ainda dentro do mato, numa estradinha interna que liga o sítio a estrada da Serrinha, por três homens que estavam numa Pick-up Willys, carroceria de madeira, de cor clara, estacionada a menos de 100 mts. da porteira de sua mãe adotiva. A descrição fornecida por Aranha, desses homens, aproxima-os de militares em operação de busca de informações. Na ocasião, Josivaldo foi por um deles ameaçado de morte, se contasse para a Polícia algo sobre eles, suas descrições ou aparência, ou que ali estiveram fazendo perguntas sobre Judirley.
Então, segundo a PF, os homens descritos por Josivaldo seriam, na verdade, militares que faziam parte da seita. Essa informação, assim como o avistamento da caminhonete Pampa cor café com leite, tinha como fonte uma única pessoa. A testemunha que o agente José Carlos considerava ser a mais importante: Valdete Rodrigues Barroso, a mulher que teria sofrido ameaças de um pistoleiro ligado à família Gomes. Grande parte do relatório, aliás, é baseado em coisas que ela falou para a Polícia Federal.
VALDETE
Em diversos trechos do documento, José Carlos comenta como funcionava a rede de informantes em Altamira. Ele dá a entender, inclusive, que alguns deles receberiam algo em troca para colaborar com as investigações:
Elaboramos o Planejamento Operacional da Missão no que tange aos meios de transportes; armamento e comunicações, acrescido do custo operacional Altamira, que abrangeu a locação de veículos, suprimentos de fundo para informante; material de consumo; aluguel de embarcações; combustível e diárias.
O termo “fundo para informante” nunca é esclarecido. Pelo contexto, parece ser uma quantia de dinheiro disponível a fim de manter a rede de informações. Como, quanto e com que objetivo, não dá para saber.
O conteúdo do relatório também indica que muitos materiais coletados pela Polícia Federal nunca foram revelados ao público. Por exemplo, uma passagem fala da existência de uma pasta com o nome de Césio. Isso leva a crer que havia arquivos para os demais investigados, principalmente quando o parecer recomenda que a pasta de número 39 seja conferida. Ou seja, havia outras 38? Onde elas estão? Nenhuma dessas perguntas tem resposta.
Além disso, outro detalhe chama a atenção. O episódio 8 desta temporada explica como foi feito o reconhecimento de Césio pelo lavrador Agostinho José da Costa. Na ocasião, a polícia lhe apresentou alguns vídeos em que o médico aparecia. Essas fitas foram gravadas em uma das visitas dos agentes federais ao hospital onde o acusado trabalhava, pouco antes das prisões.
De acordo com o relatório, a PF fez outras filmagens em Altamira. Uma delas era focada em José Amadeu Gomes, pai de Amailton:
Em entrevista gravada em Maio/93, Amadeu declarou para nós que as atitudes que tomou foram a do pai que defende o filho para livrá-lo de um mal maior, entretanto, sugere ele na entrevista ter oferecido “presentes” ao Delegado de Polícia Civil Brivaldo e Flexa, na tentativa de abrandar a posição de Amailton no inquérito policial que era presidido pelo Delegado Brivaldo.
Poucos meses depois da gravação, tanto Césio quanto Amadeu foram apontados pelo delegado Éder Mauro como suspeitos nos crimes contra os meninos.
Mas onde foram parar essas fitas? Quem mais foi gravado? Por que os vídeos sumiram? Também não é possível saber.
Tudo indica que o material coletado era uma enciclopédia de boatos e histórias mal contadas. A coisa chega em um ponto tão absurdo que até um suposto amante de Césio é citado no relatório:
Em conversa com a Dra. Ociralva Farias de Souza Tabosa, Promotora de Justiça, da 1ª Promotoria de Altamira, a mesma nos informou que lá pelos idos de 1990, recebeu certo dia a queixa de um enfermeiro que trabalhou com Césio na Unidade da SESP em Brasil Novo, o qual relatou ter tido um caso amoroso com o citado médico, quando ali conviviam, habitando o mesmo quarto, e, que o motivo de ele ter comparecido à presença da Promotora, fora para que ela o notificasse a fim de que partilhassem os poucos bens que haviam amealhado na vida conjunta. Assim, a Dra. Ociralva expediu uma notificação ao Dr. Césio, tendo este comparecido e partilhado com o enfermeiro um ventilador cor-de-rosa, almofadas, roupas de cama, toalhas e outros pequenos objetos. A Dra. Ociralva contou ainda que não sabe que fim levou a notificação expedida, porém lembra-se bem do Dr. Césio, “do seu jeito arrogante e da sua cara feia”. Quanto ao enfermeiro, não guardou bem a sua fisionomia, pois só o viu naqueles momentos, mas lembra-se de tê-lo ouvido falar “ser de tamanha injustiça o que estava acontecendo, depois de tanta dedicação e carinho. Ele chegava cansado do hospital e deitava-se de roupa e tudo, e eu sempre lhe preparava um lanche e cuidava de suas coisas. Eu não sou qualquer um, sou um enfermeiro formado.”
Se essa história fosse verdadeira – o que não é – seria mais uma forma da polícia ligar os crimes de emasculação à homossexualidade.
A leitura do relatório deixa claro que o critério usado por José Carlos para filtrar as informações é muito ruim. É uma investigação recheada de boatos que não se sustentam em nada.
A partir dessa problemática, surge uma explicação para Valdete. No relatório, ela é chamada de Silvia, mas o texto abaixo foi adaptado com o seu nome verdadeiro. Além dela, o trecho cita o seu companheiro pelas iniciais A.M.A. O contato entre a testemunha e a PF teria se iniciado em outubro de 1994, durante a segunda fase da Operação Monstro de Altamira:
Certa ocasião, dois integrantes da Equipe encontraram-se com Valdete, que estava acompanhada de seu companheiro A. M. A., sendo por ela feitas as apresentações e, depois de um certo bate-papo, as despedidas.
No dia seguinte a este episódio, recebemos a mensagem de que Valdete precisava falar com a Equipe, e que, para sua segurança, iria estar em local e horário determinados por ela. Foi com grande surpresa que a encontramos muito nervosa, chorando e pedindo a nossa proteção. Porém, não citava qual seria o motivo para tanto nervosismo, nem o porquê da segurança.
Passados alguns momentos, Valdete narrou que seu companheiro, após o encontro com os dois colegas no dia anterior, havia lhe perguntado quem eram aquelas pessoas, sendo-lhe respondido por ela que eram amigos da Polícia Federal, ficando A. furioso e proferindo as seguintes palavras: – “Deixe de andar com esse pessoal, você ainda é muito moça para morrer”.
Valdete ficou intrigada com aquelas palavras e passou a observar melhor o companheiro, que teve o seu comportamento totalmente alterado nas horas seguintes, inclusive, durante a madrugada tentou esganá-la. Tentamos acalmá-la procurando entender o comportamento de A., pedindo que retornasse à sua residência e procurasse nos manter informados dos acontecimentos seguintes. Três dias depois desta conversa, Valdete informou-nos que A. teria sumido e que provavelmente rumou para a localidade de Bom Jardim, onde teria negócios, ficando a Equipe curiosa com toda a situação.
Terminada a Missão Altamira em outubro 94 e com o retorno da Equipe à Sede, não mais tivemos contato com Valdete.
Em dezembro de 94, parte da Equipe retornou a Altamira em cumprimento de outra Missão. Contatamos novamente com a mesma que solicitou um encontro reservado, oportunidade que pretendia narrar fatos de seu conhecimento. Entretanto não o fez, mostrando-se dissimulada, vaga, imprecisa, apesar do esforço da Equipe policial, não falando coisa com coisa, dando a impressão de estar propositadamente tentando nos passar uma falsa imagem sobre sua pessoa.
O importante é que no local onde foi realizada esta reunião, Valdete nada nos revelou, vindo a nos revelar fatos sucintos numa segunda reunião, cujo local foi a estrada que vai para a localidade denominada Cama de Vara. Por ser um local aberto, Valdete não foi incisiva nos fatos revelados, o que nos deixou temerosos quanto à veracidade dos fatos descritos.
[…]
Os vários testemunhos de Valdete, cujo valor como prova pode parecer para alguns fracos quando em juízo, para a Equipe é de um valor incalculável, pois diante daquilo que se procura para alicerçar a tese da Culpabilidade dos Acusados, seus testemunhos não só vieram confirmar dados que já eram de nosso conhecimento, como também trouxeram à tona outros dados cuja espontaneidade, em suas declarações, sem qualquer tipo de pressão, tanto física quanto psicológica, nos serão de grande valia, pois, depois de totalmente confirmados, colocarão não só esses acusados, mas também os outros, se Deus quiser, definitivamente atrás das grades.
[…]
Sendo Valdete uma pessoa totalmente insegura, o seu interlocutor tem de ser dotado de grande habilidade – tato -, pois ao menor sinal de dúvida, a mesma se fecha e começa a soltar evasivas, sendo essas as razões de que, no princípio, pensávamos ser ela uma doida ignorante, que falava alhos com bugalhos, não dizia coisa com coisa, mas que com o passar do tempo, começamos a compreender aquele tipo de evasiva, de alguém que deseja fazer-se de bobo e o consegue, iludindo aqueles que se consideram sabidos demais, nada lhes revelando, apesar de saber muito a respeito dos fatos que se está perquirindo.
Quando, através de um consenso da Equipe, aprendemos a lidar com a mesma, adotando medidas que começaram a lhe agradar, utilizando as mesmas palavras que ela, adotando o seu linguajar, descendo ao seu nível de expressões idiomáticas, contornamos o maior obstáculo que se depara na cidade de Altamira, que é justamente a omissão e o medo latente que a população tem dos poderosos, principalmente aqueles que viveram ou sofreram em algum momento essas mortes.
Mormente porque não só nesses, mas em todos, está intrinsecamente arraigado que os criminosos permaneceram, permanecem ou permanecerão eternamente impunes, em razão da Justiça ser morosa, e as Polícias Civil e Militar serem susceptíveis à influência política, e alguns dos seus elementos venais, haja vista a implicação direta desses policiais na prática destes crimes, quase sempre utilizados pelos poderosos para pegarem os meninos, mantê-los em cativeiro, fazerem a segurança do local onde os mesmos ficavam presos e eram sacrificados, e por fim protegê-los de forma a que não fossem incomodados nas investigações, incumbidos ainda de se elas ameaçassem se dirigir para eles, desviá-las, de modo que nunca fossem atingidos pela lei, quer em processos, quer na sua aplicação. Enfim, a impunidade total, consideram-se intocáveis.
Ao ler o depoimento de Valdete presente nos autos, a história é a seguinte: no final da década de 1980, ela tinha um namorado chamado Isaías. Certa vez, ela o viu dentro de um carro com Amailton, levando um menino morto no porta-malas. O companheiro, então, a ameaçou e mandou que ela não contasse aquilo para ninguém.
Depoimento de Valdete Rodrigues Barroso
Em 1994, quando a PF foi à Altamira, Valdete conversou com os agentes. No ano seguinte, passou a ser perseguida por um pistoleiro chamado Maurício, que teria ligações com a família Gomes. Esse homem foi preso ainda em 1995, e a polícia descobriu que ele era cobrador de dívidas. Uma das notas promissórias que o suspeito carregava tinha justamente o nome de um parente do fazendeiro. Toda essa história é contada em detalhes no episódio 14.
Ivan sempre estranhou o fato disso tudo não ter nenhum desdobramento, dada a gravidade e aparente materialidade da situação. Agora, lendo o relatório da PF, é possível entender por que as investigações não avançaram.
De acordo com o documento de José Carlos, Valdete na verdade estava sendo ameaçada pelo fazendeiro Vantuil. Ele é quem teria enviado o pistoleiro Maurício atrás dela.
Em resumo, Valdete tinha um bar em Altamira na época dos crimes, que seria frequentado por vários membros da seita: policiais militares e civis, soldados e muitos outros. Lá, eles falavam sobre atividades estranhas que, na interpretação da testemunha, estavam relacionadas às mortes e emasculações de crianças. Uma dessas pessoas era José Carlos Bergamin, dono da caminhonete café com leite, que também teria conexões com Vantuil.
Segundo o relatório, em certa ocasião, o fazendeiro Vantuil foi até o bar com Maurício, para ameaçar Valdete. O motivo teria a ver com o companheiro dela, nomeado pelas iniciais A.M.A.:
Quanto aos fatos por ela narrados, consta o de que seu companheiro A. teria sido empregado de VANTUIL, por um período de aproximadamente 04 anos, e que teria conhecimento de vários atos praticados pelo patrão, citando dentre outras falcatruas, o seguinte: – “Que na fazenda da Estrada da Serrinha, funcionava um desmanche de carros roubados e que também havia um barracão onde eram alojados menores por ele levados para trabalhar, e que seu capataz distribuía alguns víveres com o intuito de atrair esses menores”.
Sobre a vida amorosa de Valdete, o parecer aponta que, entre 1988 e 1994, ela teve três relacionamentos: Isaías, que estava com Amailton na história do carro; um homem chamado Josivaldo, ex bate-pau da polícia; e A.M.A, que trabalharia para Vantuil. Para a PF, todos eles tinham algum envolvimento com a seita.
Sobre Isaías, a narrativa tem outros elementos. Valdete dizia que ele tinha sido motorista de Anísio, no mesmo período em que ela também trabalhou na clínica. A testemunha, ainda adolescente, teria sido violentada pelo médico. Foi nessa época que ela conheceu Isaías, e eles iniciaram um relacionamento.
O namorado de Valdete era amigo de Amailton. Por isso, ambos frequentavam a casa dos Gomes. Um trecho do relatório conta um pouco sobre esse período, no final da década de 1980. Ele contém alguns nomes desconhecidos:
Durante o namoro, geralmente os encontros eram marcados na esquina do Banco do Brasil, no horário entre dezessete e dezoito horas, em dias alternados. ISAÍAS, que andava sempre arrumado, saía para lhe encontrar da residência de AMAILTON MADEIRA GOMES, provavelmente, onde o mesmo trabalhava. Enquanto aguardava o namorado, presenciou certa vez o Dr. Anísio sair da casa de Amailton com vários sacos de sangue nos braços e colocar no banco traseiro de sua Brasília. Em mais de uma vez, não se recordando quantas vezes, presenciou LUIZ KAPICHE NETO sair da casa de Amailton com uma caixa de isopor, igual a dos vendedores de picolés, não sabendo precisar o seu conteúdo, vindo a saber anos depois, através de seu companheiro de nome A., que seriam órgãos genitais humanos. Frequentavam também a casa de Amailton, nos mesmos dias e horários que a mesma se encontrava à espera de seu namorado Isaías, um médico que trabalhava no hospital São José, o qual tinha os cabelos grisalhos, não se recordando do nome do mesmo; viu também uma mulher magra, alta, caneluda, cabelos lisos curtos, cortados reto, morena escura, aparentando uns trinta anos, que não conhecia; GENILSON e esposa, ambos mexem com compra e venda de madeiras, e têm fazenda no km 180; VANTUIL, chegava sempre em uma pampinha vermelha acompanhado de um homem moreno forte, aparentando ser mais velho que Vantuil e que pela semelhança poderia ser seu irmão; um médico moreno, 1.70 metros aproximadamente, compleição física média, cabelos lisos grossos, penteados para trás, de roupa branca e uma malinha quadrada preta.
No dia 15.09.95, quando repassávamos com Valdete a história narrada, esta revelou o nome do médico que visitava a residência de Amailton e portava uma malinha preta, quadrada, era o Dr. Césio Brandão.
[O ex-companheiro A.M.A.] contou também à Valdete que os órgãos dos meninos emasculados eram enviados para outro lugar junto com embalagens de peixinhos ornamentais e que Eunice sabia de tudo. Quem levava para embalar e tirar de Altamira eram LUIZ KAPICHE E A MULHER DE GENILSON.
Claramente, esse relatório foi feito para montar um caso contra Vantuil e outras pessoas de Altamira, transformando Valdete na grande testemunha da acusação. Uma informante mais poderosa do que Agostinho e Edmilson. Afinal, as histórias mirabolantes repassadas por ela envolviam Amailton, Césio, Anísio, e muitos outros. São desses relatos que surgem vários nomes de suspeitos levantados pelo parecer da PF.
Nada disso foi para frente. Ainda bem.
EUDILENE
Outra resposta que o relatório fornece é referente à Eudilene Pereira da Costa, de 13 anos, mencionada no episódio 13. Em depoimento dado em dezembro de 1994, ela acusa a esposa de um tio, Maria do Socorro Santos Costa, de levá-la ao posto de saúde da cidade para ser abusada pelo doutor Césio. Além disso, a adolescente diz ter presenciado uma série de crimes contra meninos em uma chácara, cometidos pelo médico, Amailton e outros suspeitos.
Termo de Informação de Eudilene Pereira da Costa
Parte da história de Eudilene é explicada no relatório da PF. No documento, ela é chamada de Samara, mas o texto novamente foi adaptado com o seu nome real. Os eventos narrados aqui não constam no relato anexado aos autos:
Através das Dras. Angélica Nancy Barbosa Araújo, Médica Psiquiatra da SESPA, e Simone Aldenora dos Anjos, Assistente Social, membros da Comissão Especial de Altamira designada pelo Governo do Estado do Pará, tomamos conhecimento da estória da menina Eudilene que perambulava pelas ruas de Altamira em companhia de outros meninos, aparentando não ter eira nem beira, sendo por isso recolhida pelo pessoal do Conselho Tutelar, que, ao ouvir as suas estórias, houve por bem conduzi-la a presença da já citada médica que encontrava-se em Altamira realizando trabalho de apoio psiquiátrico às famílias das vítimas de emasculação, e que, após minucioso exame clínico e psiquiátrico na menina, impressionada com o que ouviu e viu, houve por bem cientificar-nos.
Antes de Eudilene ser analisada pela Dra. Angélica, a mesma foi conduzida pela Presidente do Conselho Tutelar de Altamira, Sra. Antônia Melo, à presença da Psicóloga Shirley do Socorro Machado Góes, que a considerou como “doida” e disse que, por causa disto, não levava a sério as suas denúncias. Shirley, entretanto, é alvo de nossas investigações, por possível envolvimento com pessoas ligadas às emasculações.
Segundo a análise da psiquiatra Angélica, apesar do pouco tempo de contato, não se tratava de um quadro psicótico, pois a mesma esteve no sítio e acreditou que a estória de Eudilene tem muita lógica, não achando, em princípio, tratar-se de uma fantasia arquitetada pela mente da menina.
[…]
Que certa vez, Socorro, a esposa de seu tio, a levou para uma praia, que não sabe dizer o nome, juntamente com outras pessoas, e que lá havia um bebezinho, o qual foi morto pela Socorro e foi-lhe tirado uma seringa de sangue e injetado em Eudilene, e que esta se sentiu muito estranha, e que passou a incorporar um espírito chamado esqueletóide, e que o corpo do bebê foi enterrado embaixo de um coqueiro na praia.
[…]
Eudilene quando estava na Pastoral, ficou folheando uma galeria de recortes de jornal, onde lá constavam fotos de Amailton, Anísio, Césio, A. Santos e outros. Vendo a foto de Amailton, apontou-a como sendo PEDRO FIM, um dos homens que estavam na chácara onde foi levada, e reconheceu o Dr. Césio, porém ignorava a foto do Dr. Anísio, como se nunca o tivesse visto.
Porém, em uma de nossas saídas pela cidade, Eudilene conversava distraidamente quando, em uma rua, parou de falar e em seguida disse: “Já vim aqui nesta rua” e, em seguida, o policial que dirigia o carro retornou, trafegando em sentido inverso, ocasião que ela apontou para uma casa e disse: “ – Foi aqui que eu vim, mas esta casa não era assim”.
Em seguida lhe foi perguntado o que tinha ido fazer lá, recebendo os policiais como resposta que uma mulher naquela casa tinha recebido espírito antes do tempo, e que ela (Eudilene), Socorro, e outras pessoas que não lembrava os nomes, teriam ido buscar essa dita mulher em um carro grande, vermelho, e a levaram para o terreiro da Mãezinha, onde ia haver uma comemoração e lhe tirariam o espírito.
A rua era a Isaac Benaroc e a casa que ela apontou era a de Anísio, que havia sofrido uma reforma, estando a frente mudada. Em razão disso, os policiais levaram Eudilene até as imediações de sua chácara, sem que ela desse algum sinal de que conhecia aquela área. Porém, ao chegar próximo ao cercado da mesma, Eudilene começou a ter uma reação diferente, pedindo para sair daquele local, pois, segundo ela, se ali permanecessem, o que aconteceria não seria bom para ela nem para os policiais.
Percebendo a mudança no seu tom de voz, na sua fisionomia, enfim, no seu todo, os policiais prudentemente se retiraram do local com ela. Mais adiante, recuperada, explicou que naquela chácara havia reuniões de macumba, e que ela recebia um espírito maligno, que se batia todo, rasgava a roupa, enfim, que era muito feio, daí por que ela não queria ficar na porta da chácara.
Se o depoimento de Eudilene no processo já parecia fantasioso, o relatório da PF ajudou a reforçar essa convicção.
Ivan Mizanzuk entrou em contato com as pessoas citadas nessa passagem do parecer, mas nenhuma quis gravar entrevista. Outras fontes apontaram a existência de um laudo psiquiátrico de Eudilene, que foi enviado ao Ministério Público do Pará. O documento, no entanto, não está nos autos.
No fim, o que aconteceu com as pessoas citadas? E a lista de suspeitos? As investigações da PF tiveram algum resultado nesta fase? Pelos autos, a impressão é de que o relatório de 1996 não deu em nada. Tudo parece um amontoado de boatos, sem nenhuma prova.
Não parece ser à toa, então, que oito meses depois da conclusão do parecer da PF, em dezembro de 1996, houve a decisão de impronúncia dos acusados. Na ocasião, o juiz responsável, Paulo Roberto Ferreira Vieira, escreveu:
As provas manifestam-se por demais frágeis. São um amontoado de depoimentos sem nexo, sem ligação entre si, sem um mínimo de certeza, que leve ao julgador a segurança necessária para pronunciar o réu.
Decisão de impronúncia – juiz Vieira
Também não é surpreendente a conclusão da promotora Elaine de Souza Nuayed após a leitura do relatório. Durante a audiência realizada em 1996 na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, ela disse:
Depois de ler [o relatório da PF produzido em abril de 1996], entendi por bem que não deve ser apensado aos autos, porque o relatório da Polícia Federal, para mim, não sei se para os senhores que já leram, é uma peça que coloca mais em dúvida a autoria ou as autorias do processo.
Nenhum promotor em sã consciência, querendo construir um caso sólido de acusação, colocaria uma peça dessas nos autos. Mais do que qualquer coisa, esse relatório nos conta mais sobre quão insólita foi a investigação da Polícia Federal.
Mas as dúvidas permanecem: o que teria acontecido com Maurício, Valdete e Eudilene? O que houve nos bastidores? O que mais não sabemos dessa história fantasiosa? Que fim levou o primeiro relatório da PF, da missão de 1993? Será que ele era tão infundado quanto este? E por que Valentina sequer é citada neste relatório?
Essa ausência da líder do Lineamento comprova a suspeita de que ela não era o foco das investigações, mas passou a ser nos júris de 2003.
À luz do que hoje se sabe sobre Francisco das Chagas, tudo isso se torna ainda mais surreal. Quanto tempo foi gasto? Quanto dinheiro público? Quantas famílias foram destruídas? Quantas foram enganadas por confiar nas autoridades federais?
Para quem acredita que Chagas é o verdadeiro culpado, como é o caso de Ivan, o dano é incalculável e irreparável. Os familiares das vítimas de Altamira não acreditam na culpa do mecânico. Eles foram alimentados por anos por essas sandices. Sofreram o que ninguém deveria sofrer e foram enganados por um péssimo trabalho policial. Não há solução. O dano está feito.
Este episódio prometeu três revelações sobre o caso dos emasculados. A primeira foi sobre o que levou a Polícia Federal à Altamira. A segunda foi o relatório da PF.
A terceira tem a ver com uma das testemunhas mais importantes da acusação: Edmilson da Silva Frazão, o ex-bate pau que dizia ter participado de um culto macabro liderado por Valentina.
Durante as pesquisas, o advogado Rubens Pena Júnior conseguiu localizar Edmilson. Ivan, então, entrou em contato com ele e conseguiu uma entrevista. Nela, ele prometeu contar a verdade sobre tudo. E o que ele disse tem potencial para mudar essa história para sempre.
RELATÓRIO DA PF – 1996
1996-04-18 – Relatório PF Altamira (Fases 2 e 3 Operação Monstro de Altamira)
1996-04-18 – Relatório PF Altamira (Fases 2 e 3 Operação Monstro de Altamira) COMENTADO
*Este episódio usou reportagens da TV Bandeirantes.