2 – A Verdade Nua e Crua

14 de setembro de 2015

Todos os dias, milhares de fotos íntimas de mulheres são compartilhadas em várias redes sociais, sem o consentimento ou autorização delas. Apresentamos a história de Mariana Miranda, que passou por essa experiência e explicou com maiores detalhes em que esse evento afetou sua vida.
Material Extra

Transcrição

Ivan (em off): Olá, pessoal. Aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. NO programa de hoje, eu vou começar com o seguinte trecho de uma conversa que eu tive, com uma ex-aluna minha.

Aluna: Numa sexta-feira de manhã, eu vim pra aula, normal. Era frio, eu lembro que eu tava com blusa de lã e calça, Eu tava na aula de Projeto, eu desci pra comer e todo mundo tava me olhando. Apontando, me olhando. O pessoal da faculdade inteira, Era Engenharia… Tanto que eu… Tinha uma mesa cheia de pessoas que eu sei que estudam Engenharia, que conheço de vista. Todos levantaram, começaram a bater palma. As meninas apontando, e eu não entendi. Pensei, meu deus, eu tô linda hoje, que eu não percebi. Eu tô com uma roupa normal. E eu vi meninas… Grupo de meninas, assim, de duas, três meninas mexendo no celular e apontando. E eu não entendi. Pensei, meu deus, eu tô linda hoje, que eu não percebi. Tô com uma roupa normal. Peguei, voltei pra sala. Entrei na sala. Algumas pessoas da sala também tavam me olhando. Eu vi meninas passando o celular de mão em mão. Mas não achei nada de mais, e fui embora. Quando… Nesse dia, eu tinha combinado de almoçar com meu namorado, e ele me encontrou. Ele tava bem tenso. Ele falou, “olha, eu preciso conversar com você.” E daí, o que foi? Daí, ele… “Tal menina…” Que era uma antiga ficante dele, é… “ela tá com as suas fotos.”

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Aluna: Meu nome é Mariana Miranda Farias. Sou estudante de Arquitetura, trabalho na área, estagiária. Tenho 20 anos (ela faz um muxoxo), basicamente, no entorno, é isso aí (ela solta um riso).

Ivan (em off): Mariana é jovem, bonita, e é uma típica estudante universitária. Baladas, rotinas de estudos, estágio, namorado, o pacote completo de alguém com seus 20 e poucos anos. E a matéria que lecionei pra turma dela foi História da Arte Moderna. E tradicionalmente eu passo um trabalho final, que é o seguinte. No final da matéria, os alunos devem fazer uma foto conceitual, dar um nome pra ela, que ajude na criação do conceito, e tem que fazer um memorial descritivo, onde vai ser explicado como que o significado da obra é montado. E quando eu tava corrigindo os trabalhos daquele semestre, o trabalho dela chamou a atenção, de cara. Ele se chamava “Verdade Nua e Crua”, e a imagem, em si, era a tal da foto vazada, devidamente censurada. Eu não vi nada. E a descrição contava a história que vocês vão ouvir hoje. Já fiquem avisados que essa não é a típica história de fotos vazadas que encontramos por aí. E mais importante, é a história da Mariana. Na época,  ela tinha uns 18 anos e estava namorando já há alguns meses. Durante as férias, ela fez uma viagem para a cidade natal do namorado. Mas, enquanto estavam lá, ela ficou doente, pegou conjuntivite, e acabou voltando pra casa, onde conversava diariamente com ele, via Skype.

Mariana: Conversa vai, conversa vem, todo mundo namora… Todo mundo que namora sabe como é que é. A gente começou a, né… As coisas começaram a esquentar, e tudo o mais, e ele começou a tirar print. E eu falei que eu não queria que ele tirasse print. Aí, ele falou que era pra guardar, normal, não ia usar aquilo depois, nada demais . Eu confiava muito nele, acreditei nele, óbvio. E pedi, pra como garantia, pra ele me mandar todas as imagens por e-mail, pra que eu também pudesse ter essas fotos, se um dia eu… Se ele usasse de má fé, eu faria o mesmo. E guardei essas fotos no meu e-mail. Aí, as fotos foram assim, eu tava bem doente nas fotos. Dá pra ver o meu rosto, o olho inteiro fechado. Não abria o olho, tanta conjuntivite que eu tinha. Quando eu melhorei, as aulas voltaram, eu voltei a trabalhar, normal. E uma amiga minha, que não tem nada a ver com o assunto, mas era amiga da amiga de alguém, que era amiga de alguém, veio me avisar que era pra eu cuidar do meu e-mail, do meu Facebook, no trabalho. Eu achei estranho, porque eu sempre saía do meu e-mail, quando lembrava. Mas não achei que alguém ia mexer, justamente num e-mail tão específico. No qual o nome do e-mail não tinha nada, só tá o e-mail de quem eu tinha recebido. Que era, no caso, do meu namorado, na época.

Ivan (em off): Duas semanas depois após o aviso da amiga, aconteceu o episódio da cantina, em que vários alunos da faculdade e de outros cursos bateram palmas para ela. Horas depois, durante o almoço com o namorado, naquele mesmo dia da cantina, ele avisou que a ex dele estava com as tais fotos. Foi quando a onda de choque veio.

(EFEITO SONORO DE IMPACTO GRAVE)

Mariana: E eu fiquei horrorizada. Comecei a chorar, desesperada. Como que ela tinha minhas fotos? Não era possível isso. A gente chegou na casa de um amigo nosso, que ia almoçar junto com nós. Na hora que a gente chegou, a minha amiga me ligou, amiga da minha sala. Me ligou, pedindo pra ficar sozinha, ela perguntou se eu tava sozinha, que ela precisava me contar uma coisa muito séria. Na hora que ela falou isso, eu já deduzi que era da foto. Não sabia que foto era, até então, ninguém tinha me mandado. Ninguém tinha mandado pra ninguém que tava comigo. Porque como era algumas fotos, eu não sabia qual foto era. Eu sabia só que elas… Que essa menina, a antiga ficante do meu ex, tinha conseguido essas fotos. Eu não fazia ideia como isso tinha acontecido.

Ivan (em off): tenham em mente que, até este momento, a Mariana ainda não tinha visto o que havia vazado exatamente. Teriam sido todas as fotos? Só uma? Qual?  Teria seu namorado passado as fotos pra ex dele? Por que ele faria isso? Infelizmente, como sabemos, essas histórias de fotos íntimas vazadas não são incomuns. Nem mesmo celebridades são exceções. Tanto internacionais, como no caso da Jennifer Lawrence, quanto brasileiras, como a também atriz Carolina Dieckmann. E ambos os casos foram de hackers. Ou seja, não foi algum ex, ou ficante, ou namorado, ou nada do tipo. Afinal de contas, como sabemos, de acordo com dados da Safernet, a ONG mais atuante, no Brasil, em averiguar crimes da internet, de 2013 para 2014, houve um aumento de 120% nos casos de denúncias a respeito de fotos íntimas que vazaram na internet. E desses, 81% são de mulheres que foram expostas. Elas são sempre as mais atingidas. Na maioria dos casos, são vazadas por vingança, e há até um termo recorrente para o assunto, “revenge porn”. Para termos uma noção de como isso é comum em meros mortais, como pessoas como nós, não são celebridades nem nada, eu entrevistei algumas pessoas na rua, para que falassem se já ouviram falar de algum caso desse tipo.

Ivan (em externa): Você… já teve algum caso de você ver alguém que passou por, por exemplo, de fotos íntimas expostas?

Voz 1: Muitas pessoas, eu já vi! Eu acho que é muito queima-cara.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Voz 2: Sim, bastante… Bastante.

Ivan (em externa): Alguém conhecido?

Voz 2: Até, tipo… A gente ser evangélico, né, então a gente tinha esse… Meio assim, também, entrar em grupos, de site de relacionamento, e tal. Então a gente viu… (ES de clique fotográfico) Viu bastante gente… Meninada que postava foto lá… Pegava, daí salvava automaticamente, e publicava. Fazia uma montagem, talvez. E publicar. Eu vi muitos casos assim. Tem pessoas conhecidas.

Ivan (em externa): conhecidas? Conhece alguém que já passou por isso?

Voz 2: Já, conheço. Conheço. Tem até umas amigas minhas, do interior, até que já passaram por isso aí.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Ivan (em off): Nas histórias que coletei, tem sempre um ponto em comum. A distribuição das imagens era feita por Whats App. Geralmente em grupo de amigos, e geralmente através de homens. Há grupos, inclusive, que distribuem essas imagens sem nem saber quem é a pessoa. Melhor ainda (ES de clique fotográfico) quando é alguém conhecido. E como não há como regular o volume de informação que passa pelo aplicativo, ele se torna um ambiente livre e sem censura para exposições íntimas. Que foi o caso da Mariana.

Mariana: Quando me mandaram a foto, é… Eu vi… Eu percebi que era o layout do escritório em volta, e o horário de trabalho do… o horário da outra menina que estagiava comigo. Aí, eu linquei as coisas e percebi. Depois que eu fui pesquisar mais a fundo, que a menina que trabalhava comigo era amiga da ficante do meu ex.

Ivan (em off): Não havia sido um caso típico de revenge porn, então. Ao menos, não nos moldes clássicos que conhecemos. Teria sido vingança, sim, mas por parte de outras pessoas do passado namorado dela. Pelo menos, é o que a Mariana acredita.

Mariana: Eu tenho quase 100% de certeza, porque não precisa ser muito inteligente pra você fazer a lincagem. Se era uma menina do meu trabalho, que estudava na mesma sala da ex ficante do meu namorado, logo, ela pegou a foto, chegou na sala, mostrou a foto pra as amigas. Não sei se  foi a menina, se foi ela. Alguém botou em algum grupo. E pipocou.

Ivan (em off): Neste ponto, é importante reforçarmos que esta é a opinião da vítima sobre o assunto. Ela não reflete a opinião do programa e tampouco é a nossa intenção apontar possíveis culpados. De nossa parte, interessa-nos mais apresentar o efeito de uma situação assim na vida de alguém.

Mariana: E foto assim, ela espalha de uma maneira incrivelmente rápida. Principalmente quando você é uma pessoa que tá… Você tem Facebook, você sai, as pessoas te conhecem. Se você é uma pessoa que… No meu caso, que fala bastante, conhece muita gente. Então, isso espalhou porquê … Eu tenho mais certeza ainda, porque eu conhecia muita gente na época e todo mundo sabia quem eu era. Quando recebeu a foto, disse que não sabia, descobriu no dia. E tenho relatos até hoje, de pessoas que recebem, hoje em dia, minha foto.

Ivan (em off): O que acontece quando alguém tem suas fotos expostas? Como elas são distribuídas?  O que se passa na cabeça de alguém, nessa hora? Se você sempre se perguntou sobre isso, agora você vai saber.

Mariana: Na hora que a minha amiga me contou, eu tava na frente do prédio, a mulher tava lavando a calçada, a diarista. E eu caí no chão, eu gritei por, mais ou menos, dez minutos, sem parar. Eu não chorei, eu só gritava, tremia, eu… foi… Quando meu vô faleceu, eu não sofri metade do que eu passei naqueles dez minutos. Ninguém sabia o que fazer comigo. Ninguém sabia onde me botasse, se me botava numa cadeira, se me dava água, se jogava água na minha cara. Eles conseguiram me levar pra dentro do prédio, e me colocaram numa cadeirinha,  alguém me trouxe água. Foi minha amiga, acho. É… Depois disso, virou um caos, porque quando a gente já descobriu quem era, quem tinha pego, a gente só queria pegar o telefone dessa pessoa e ligar pra ela. E nesse mesmo dia, até umas duas da tarde, eu recebi ligações, sem parar, de todas as pessoas que eu conhecia na vida. Que ninguém sabia se eu já sabia. Então, todo mundo tentou me avisar, tipo, o dia inteiro. As pessoas foram recebendo. Porque como essa foto foi mandada via Whatsapp, pelo que eu entendi, elas pegaram a foto numa quarta, ou numa quinta, não lembro, começaram a espalhar na quinta-feira, disso eu tenho certeza.

Ivan (em off): Na sexta-feira, o campus inteiro já tinha a foto. Nos próximos dias, outras faculdades já tinham também. E a partir daí, algo que era controlável, só piorou.

Mariana: Depois de uma semana, eram pessoas de outras cidades. Florianópolis, Joinville, Ponta Grossa, Pato Branco. Não tentando me ligar, mas, assim, “ai, recebi a foto!” ou “tal pessoa recebeu tua foto”. Muitas pessoas vieram falar, “nossa, um amigo meu, que nunca te viu na vida, me mandou tua foto”. Pessoas, assim, totalmente aleatórias. E hoje em dia, as pessoas mandam a foto logo junto com perfil, Instagram. Elas mandam com uma espécie de kit. Completo. Pra você saber bem quem é a pessoa.

(EFEITO SONORO  DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Mariana: Tudo que eu via à minha volta, alguém mexendo no celular, alguém olhando pra mim, eu tinha 100% de certeza que era sobre a foto. E teve vezes que eu vi que era realmente a minha foto, que eu consegui enxergar do celular da pessoa que era a minha foto. Mas teve vezes que não.

(EFEITO SONORO  DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Mariana: Teve uma menina que tentou tirar uma foto minha, com meu namorado. Ela falou, “ai, preciso tirar uma foto disso”, eu escutei ela falando. E daí, na hora que eu vi que ela tava fazendo isso, eu comecei a gritar com ela, e ela fingiu que tava falando no telefone. Só que quando ela virou pra fingir que tava falando no telefone, ela não percebeu que a câmera tava ligada. E eu vi a câmera ligada. Então, ela realmente ia tirar uma foto minha. E eu nunca tinha visto aquela menina na vida. E eu não faço ideia de onde ela me conhece, não sei, até hoje, quem ela é.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Mariana: Fiquei muito nervosa. Aí, todo mundo ficou bravo comigo, dizendo que eu tava fazendo escândalo. Mas acho que, assim como eu já disse, só eu sei o que eu passei. Só eu sei o que eu senti.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Mariana: Você chegar no intervalo do bloco (bip de censura), que é o intervalo mais cheio de pessoas e você sentir que tá todo mundo falando de você. Porque eu fui… eu lembro que, uma semana depois que espalhou a foto, eu fui lá. Era o intervalo de onde meu namorado tinha, eu ia lá ver ele, e eu lembro de ficar completamente encucada com isso e agoniada porque eu queria pegar o celular de todo mundo e jogar no chão, e quebrar.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Mariana: Eu tenho um amigo que disse que recebeu do grupo do Whatsapp dos amigos dele, que todos estudaram comigo no colégio. E falou que todos eles tinham mandado o kit. Como eu tinha falado, mandaram o meu perfil, mandaram a minha foto, tudo.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Mariana: No Facebook, sim. Vários homens me adicionaram no dia. Não chegaram a falar nada, só tentaram me adicionar e eu neguei.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Mariana: Boa parte das pessoas acharam que quem tinha mandado era meu namorado, então eu acho que as pessoas tavam esperando eu mudar meu status do Facebook, sabe. Muitas pessoas não fazem ideia que não foi ele. Muitas pessoas. Se perguntar, muita gente… Já encontrei gente perguntando “por que você ainda tá com ele?”, “por que você tá namorando ele?” Eu falava, “porque não foi ele!” Não foi ele que espalhou. “Ah, mas foi ele que tirou.” Não, eu sei, mas eu deixei. Eu não posso culpar ele, uma coisa que eu sabia que tava acontecendo.

(BREVE SILÊNCIO)

Ivan: Mas, até sobre essa questão de repasse, você chegou a ver algum grupo de Whatsapp que a tua foto apareceu e a conversa que você tava tendo?

Mariana: Não. Não. Não, ninguém chegou a me mostrar.

Ivan: Como é que você acha que se sentiria, se visse?

Mariana: Horrível.

Ivan: Por quê?

Mariana: Porque ver as pessoas que eu conheço, e talvez pessoas que se dizem meus amigos, talvez, falando de um jeito sujo de mim, ou as pessoas pensando de uma forma… Não suja, porque eu não tava fazendo nada sujo. Eu tava fazendo uma coisa natural. Uma coisa natural de namoro. Mas me verem com outros olhos, sabe? Isso poderia ter feito muitas pessoas perder… Deve ter feito muitas pessoas perderem o respeito por mim.

Ivan (em off): E naquele turbilhão de  emoções que foi apenas o primeiro dia, com tanta gente ligando pra Mariana toda hora, ela ainda teve que enfrentar a situação de contar o que houve para os seus pais.

Mariana: Eu sentei pra comer uma pizza. Sentei com eles e falei que eu precisava de um advogado. Daí, meu pai perguntou por que eu precisava de um advogado. Eu falei o que tinha acontecido. E ele perguntou assim, “é uma foto de cunho sexual, Mariana?” E eu, “sim, pai, é uma foto de cunho sexual.” O meu namorado estava junto no jantar. Contei pros meus pais, no mesmo dia, foi horrível. Foi horrível contar pros meus pais. Minha mãe chorava sem parar. Meus pais ficaram, mais ou menos, umas duas semanas me tratando como uma filha não muito boa (ela solta um riso nervoso). Mas, no final, eu tiro o meu chapéu pro meu pai, que a pessoa que tinha de tudo pra ficar muito bravo comigo. E, no final, quem foi a primeira pessoa a falar com pena de mim, dizer que ia me ajudar se eu ficasse mal, foi ele. De toda a minha família, foi ele a primeira pessoa e, provavelmente, era a pessoa que eu menos esperava que fizesse isso. Minha mãe, hoje tem… Até hoje, minha mãe fala disso com muita raiva. Ela, “por que você fez isso? Não devia ter feito!” Mas ela sofreu comigo também, foram… Foi bem assustador quando aconteceu.

Ivan (em off): A Mariana nunca entrou com um processo, pois não quis levar o assunto adiante. Ia dar muita dor de cabeça, mais problema do que já teve. E, no fim, a sua foto nunca ia deixar de circular na internet. Ela tá aí pra sempre. A sua foto ainda circula por aí. E, volta e meia, em algum grupo de Whatsapp, ela ressurge com todos os seus dados pessoais. E apesar de dizer que hoje lida bem com o assunto, fazendo piadas sobre o ocorrido, e tudo o mais, mesmo este lidar bem é relativo.

Ivan: Quanto que você pensou nisso? Assim, tipo, você me diz que ficou dois… dois dias, vamos dizer assim, mal. Assim, as primeiras horas…

Mariana: Dois dias… É igual fim de namoro. Dois dias mal. Muito mal. Chorei bastante. Fiquei uns quatro, cinco meses… Chorava toda vez que ia dormir…

Ivan: Quatro, cinco meses…

Mariana: Quatro, cinco meses. Se duvidar, até hoje rola. E eu penso nisso todo dia da minha vida.

Ivan: Mas você disse que lidou super bem e daí diz que chora toda noite…

Mariana: Eu lidei! Porque acontece muita coisa pior. Tem gente que se mata… Tem gente que se mata, tem gente que troca de cidade, troca de cabelo, troca de tudo.

Ivan: Ou seja, lidar super bem, na verdade… Você não se matou…

Mariana: Lidar super bem… É, exatamente. Porque é uma coisa horrível. Isso é muito pior do que muita coisa. É muito pior do que perder o emprego, que ser demitida. Muito pior do que você perder dinheiro. É você não ter controle do que aconteceu, total. Você não ter controle das pessoas receberem isso ainda. Eu nunca vou ter poder sobre isso. E eu nunca vou poder fazer… fazer o mesmo com outra pessoa, sabe. Me vingar, não existe isso. Nunca faria o mal assim pra alguém. Então, no final, alguém só fez isso e eu só tenho que aceitar.

Ivan (em off): compartilhar fotos íntimas parece ser um fenômeno típico de hoje em dia. Não que tenha sido criado no século 21. Mas, sem dúvidas, os smartphones ajudaram bastante nisso. E não há regras. Às vezes, é um casal que está junto há muito tempo, às vezes alguém manda foto pro outro por mera curiosidade, às vezes há confiança, às vezes exibicionismo. Cada caso é um caso. O mais surpreendente, pra mim, enquanto montava essa história, foi notar que grande parte da opinião pública acha que o próprio ato de se tirar a foto já estaria errado. E que, especialmente, se uma mulher se propor a se fotografar ou ser fotografada nua, já seria algo contra ela.

Ivan (em externa): O que você acha que as pessoas … você acha que a pessoa que tirou a foto tá errada? Quem tá errado nessa história?

Voz 1: Ah, eu acho que tá errado uma pessoa  de pedir… Caso ela peça… que tem gente que pede, né, vira uma troca hoje em dia, né. Mas eu acho muito mais feio a pessoa ter uma sensibilização de falta de amor de si próprio, assim, de tirar uma foto assim e mandar pra alguém. Porque como é que essa pessoa, um dia, vai ter uma cara de sair alguma coisa e depois… Pega ela num momento assim? Acho que intimidade tem que ser guardada, né. Não tem que ser exposta. Exposta, a gente mostra os nossos talentos, as nossas qualidades, virtudes.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Voz 2: É só que tem meninas que parece que gostam, tem menina que faz isso daí, tipo, mas é constrangedor pra algumas, né, de fazer. Eu já vi casos, assim, já ouvi falar de casos, assim, que, tipo, a guria tá ficando com o piá lá, compartilha foto com o piá, fica entre eles e, no fim, acaba vazando e… Tipo, queima a reputação da menina lá. Mas eu acho que tem umas pessoas que faz já no intuito de ganhar a fama, sei lá, tipo, ser popular, assim, no meio…

Ivan (em externa): A menina tirou  a foto já sabendo que ia ser divulgada?

Voz 2: Não, ela já… ela já, automaticamente, ela sabia que ela… Eu acho… Acredito eu que, é como eu disse, ela… acho que ela já fez com o pretexto de aparecer, porque assim como ela mandou pra mim, ela… Até onde eu sei, ela mandou pra dois amigos meus, que eu conheço. Então, a mesma foto. Então, acredito eu que ela fez no intuito já de aparecer, né. Porque se não fosse, ela não teria mandado a mesma foto pros demais.

Ivan (em externa): E o que aconteceu com essa menina?

Voz 2: O que aconteceu… Oh, atualmente, ela achou um louco que casou com ela, lá (ele fala entre risos). Então, acho que já faz uns três… Terceiro casamento que ela tá. Mas, e assim a vida segue (ele termina com uma risada).

Ivan (em off): Pense comigo a seguinte situação. Alguém manda uma foto íntima para você. Pode ser namorado, namorada, ficante, pretendente, marido, esposa, não importa. Se você é uma pessoa que, como eu, acha que essa foto não deve ser compartilhada, por questão de confiança, independente de quem está te enviando e com que intenções, mesmo que a pessoa goste de se mostrar, é assustador pensar que há muita gente por aí que deduz o seguinte. Se tirou foto pelada, gosta de se exibir, logo, não há problema algum em compartilhar. Inclusive, a pessoa vai gostar disso. Nessa lógica, aquele que compartilha uma foto vazada, por incrível que pareça, acredita que está fazendo um favor, um elogio, que não há nada de errado no fato de dividir uma foto íntima que foi ou não direcionada pra ele. E se você acha essa lógica bizarra, se prepare, pois só piora.

(EFEITO SONORO DE CLIQUE FOTOGRÁFICO)

Ivan (em externa): Então, eles tão errados, desde o início, quando tiveram a ideia…

Voz 2: Desde o início de tirar foto. Não tem… Isso daí serve pro rico, pro pobre, qualquer um. Vai… Automaticamente vai ser… Vão… vai ser divulgado. Você conheceu uma guria. Vamos dizer, você conheceu uma guria de ontem pra hoje. Aí, tipo, a guria já te mandou uma foto. (incompreensível) Nossa, um ponto de vista muito interessante. Já não é menina pra casar. Só pra dar um pegue, só. Nossa, do ponto de vista do homem, de qualquer um… Ou, às vezes, o homem fala, “nossa, eu tô apaixonado”. Que nada, ele só quer ficar com você. Ele não quer ter nada sério, assim, vamos dizer assim. Não tem nada… Na verdade, ele só quer ficar por ficar, porque…

Ivan (em externa): Só quer se divertir…

Voz 2: Exatamente. Não quer… Não quer… como, né, às vezes ela quer, tipo… vamos dizer assim, se ela quer só ficar, só ficar, ela tem uma grande porcentagem de não ter nada com o cara, tipo, só ficar e o cara… E automaticamente o cara vai divulgar as fotos. Porque, afinal, só ficou, ele nem conhece. Então, automaticamente, ele vai divulgar as fotos, ou ele vai compartilhar a foto. Vai mostrar pra alguém, enfim, alguma coisa ele vai fazer com as fotos. Mas, acredite, nenhum homem apaga foto do celular quando recebe (ele ri). Sempre fica armazenado.

Ivan (em off): A questão toda não me parece ser possível de ser resumida em dizer apenas que é errado tirar fotos. Essas serão tiradas sempre, independente de medidas ou esforços de qualquer grupo de pessoas. Afinal, é direito de cada um fazer isso em âmbito privado. E aí se encontra o problema, entender o que é privacidade no mundo conectado. A intimidade está sempre com o pé pra fora da porta da exposição, gerando problemas que podem até sempre ter existido, mas nunca nas dimensões que existem hoje. O que mais chama minha atenção, nesse fenômeno todo, é a forma como os alvos que mais sofrem com isso são mulheres, como foi o caso da Mariana. Não seria, então, o caso de repensarmos a forma como enxergamos e tratamos a figura da mulher nos dias de hoje?

Mariana: Eu comecei a ficar assim quando eu tava num relacionamento e a pessoa botava toda a culpa em mim, por tudo, por qualquer briga, mesmo a pessoa fazendo o mesmo. A culpa era sempre minha. E eu percebi que como era fácil culpar uma mulher. E eu comecei a ver, em outros namoros, como tem muito homem que faz a menina parecer errada, com esses julgamentos machistas, sabe. Essa coisa, assim, que a gente não pode fazer o mesmo. Por que a gente não pode? Eu não consigo… Por que… Me bate de frente. E eu comecei a ver muitas meninas… Eu tô vendo, hoje em dia, muitas meninas furiosas. Por que a gente não pode a mesma coisa, sabe? Por que a gente não pode … Esse… Sempre me deixa encucada … Por que a menina não pode sair com o cara numa noite, ter uma relação com ele, acordar no dia seguinte, e viver a vida dela? Por que ele é o cara fodão, né, fez, comeu a mina, uhum! Bom pra ele, os amigos vão ficar festando junto. E ela vai contar pra as amigas, e todas as amigas dela vão julgar elas. Pior, nenhuma amiga vai, tipo, “boa, amiga, mandou bem!” nunca. Nunca nenhuma menina vai falar isso pra amiga. “Oh, guria, você devia ter tomado cuidado, você não devia ter feito isso.”

Ivan (em off): Ao que nos parece, então, o problema de fotos vazadas e como elas atingem mais mulheres seriam apenas a ponta de um enorme iceberg montado de acordo com uma série de convenções sociais que determinam como uma mulher deve agir. Para piorar, esse tipo de pensamento de ordem machista, tão naturalizado em falas do tipo “isso não é mulher pra casar”, “mulher que não se dá ao respeito”, coisas assim, acaba sendo disseminado pelas próprias mulheres.

Mariana: A voz da mulher não… Nunca vai ser forte, enquanto não for como um todo. Se só metade das mulheres concordarem, a outra metade vai discordar. Agora mesmo, eu saí do banheiro, tava escrito na porta que mulher é machista, sim. Tava escrito com corretivo na porta. Que agora, nas portas da faculdade, tá cheio de recado feminista. E tava escrito assim, “se você quiser…”, como é que é? “Se você quiser dar, arque com as consequências. Mulher é machista mesmo.” Tem mulher machista. Tem mulher que acha que a mulher não pode fazer certas coisas porque é feio, porque é vulgar, porque ela não pode… Não tem o direito de dar pra quem ela quer, fazer o que ela quiser, ter o emprego que ela quiser. Isso é muito triste, porque a gente, então, já nasce desfavorecida. O fato só da gente nascer mulher, a gente já tem a metade da vida barrada, porque a gente não pode… Perante a sociedade, a gente tá errada. E eu não consigo enxergar isso. Assim como eu não consigo enxergar por que homossexuais não podem algumas coisas, também, não podem casar. Eu não consigo enxergar o erro. Qual é o erro? A pessoa é assim. A mulher, ela é mulher. O homossexual é homossexual. Eles não fizeram essa escolha antes de nascer. Só são assim. E daí, vem alguém, vem pra você, aponta na sua cara e fala que você não pode fazer isso porque é errado, porque não pode e você não tem esse direito. E eu tenho um nojo absurdo disso. Eu sofri… Eu já tive um relacionamento no qual a pessoa não me deixava usar a roupa que eu queria. No começo, era só uma saia, ou só uma coisa. Quando eu vi, ele tinha total controle sobre o meu guarda-roupa. Eu comprava a roupa pensando  no que ele ia… O que ele ia aceitar ou não aceitar. Por que? Quem tem direitos… Quem é dono do meu próprio corpo? Eu. Só eu sou dona do meu corpo. Só eu tenho direito de fazer o que eu quero com ele. Se eu quiser me tatuar inteira, me entupir de piercing, o problema é meu. Ninguém pode falar pra mim que eu não posso fazer isso. O melhor foi muitas meninas vierem falar comigo falando que faziam isso também, e que não tinha nada de errado o que eu fiz, e que não era pra eu me sentir culpada.

Ivan: Você teve um apoio, também, então…

Mariana: Tive muito apoio. Muito. Muitas meninas, namoradas, vieram falar que faziam. “Eu faço isso com meu namorado também. E não tem nada de errado o que você fez. A menina que tem problema”, não sei o quê… Todo mundo ficou do meu lado. Ninguém, jamais… A não ser minha mãe. Ninguém, jamais, acha que eu fiz algo errado. Porque eu não fiz mesmo.

Ivan: Isso é bacana de dizer, assim, porque significa que a gente já tá lidando com um grupo de pessoas que já começa a ver assim, ok, não tem problema…

Mariana: Pessoas que são minhas amigas. Pessoas que já não tinham muita simpatia por mim, com certeza, interpretaram…

Ivan: Mas nenhuma veio falar com você?

Mariana: Não. Teve um caso, de uma menina que falou de mim pra alguém que eu conhecia, e essa menina não gostava de mim…

Ivan: O que ela falou?

Mariana: Falou que eu era uma vadia, que ridícula, coisa de puta… E diz que ela foi descascada. Falaram pra ela, “não, ela tava falando coisa com o namorado dela, você tá falando isso porque você não tem namorado”. (ambos riem). E ficou por isso. Aposto que  agora, se ela tem namorado (ela fala entre risos), aposto que ela faz isso. Aposto (ela ri).

Ivan: Mas, quando fala assim, que ela faz isso porque não tem namorado, você não acha que isso pode soar, também, um pouco machista?

Mariana: É. É machista mesmo, é verdade. Meu deus do céu, a gente vive num mundo machista…

Ivan: Tipo, mal comida…

Mariana: Mal comida, é… Mal comida, sofrida (ela solta um riso)…

Ivan: Invejosa…

Mariana: Invejosa, exatamente.

Ivan (em off): Haveria, então, um grande caminho a ser traçado para que mulheres consigam uma maior liberdade social, tendo o direito de fazer o que bem entender, indo além daquilo que lhes impõem através das convenções. Se você acredita nisso, você pode contribuir de uma maneira bem simples, não aceite fotos íntimas que não foram enviadas para você, e tampouco as espalhe. Ao compartilhar a foto de uma estranha, você pode estar contribuindo para destruir a vida dela. Portanto, cuidado.

Ivan: Se você, hoje, pudesse conversar com a Mariana naquele tempo, você ainda… Antes de tudo acontecer. Mas você ainda diria pra ela, “olha, curta o Skype…”?

Mariana: Sim.

Ivan: você não diria que é pra ela…

Mariana: Não. Não.

Ivan: Certo. E se você pudesse conversar com a Mariana após o caso, o que você falaria pra ela?

Mariana: Vai dar tudo certo. O mundo não vai acabar. E você vai ficar bem, alguma hora, vai se ocupar. Toda vez que acontece uma coisa ruim na minha vida… Sempre… Nem tudo é flores. Sempre que acontece uma coisa ruim, eu só penso que daqui dois meses eu vou tá sofrendo, provavelmente, por outra coisa. Talvez menos, talvez mais. Mas eu vou tá bem. Vou ter meus pais, eu vou tá trabalhando, eu vou tá na faculdade, eu vou tá cheia de coisa pra fazer. A não ser que alguma coisa muito pior aconteça e reverta a situação, vai dar tudo bem. Vai dar tudo certo.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (em off): Esse episódio do Projeto Humanos foi possível graças à ajuda dos patrões do Anticast, que contribuem mensalmente para que nossos programas continuem acontecendo. Obrigado, também, ao Thiago Hansen, que me ajudou com algumas questões pontuais. A trilha sonora utilizada é de Kevin Macleod, do site incompetech.com; e os efeitos sonoros, do site freesound.org; até o próximo encontro.

(FADE IN E FADE OUT DA TRILHA SONORA)

 

FIM

(Transcrito por Sidney Andrade; Revisado por Jean Carlos Oliveira Santos)