1 – O Bom de Briga [Piloto]

8 de março de 2015

Neste episódio piloto, Ivan Mizanzuk entrevista seu pai, Emerson Mizanzuk, sobre uma briga que ele teve quando era criança na cidade de Curitiba-PR.

Transcrição

Ivan (em off): Olá, pessoal, aqui é Ivan Mizanzuk, do Projeto Humanos. Histórias reais sobre pessoas reais. Este é o nosso programa piloto. Meu pai não sabe, mas ele é um ótimo contador de histórias. E as minhas prediletas são aquelas da infância dele. E como todo pai, a maior parte dessas histórias vem com aquele peso da nostalgia, que todo homem de 50 e tantos anos possui. Coisas do tipo “no meu tempo, a cidade era bem mais segura”, “sabia que seu tio deixava o carro destrancado na rua?”, enfim, você deve saber o que eu to falando. De tantas histórias que falam sobre uma época que tudo era mais simples, há uma que a gente dá muitas risadas nos jantares de família. Nela, meu pai ainda é criança e leva uma surra. Numa madeireira.

(FADE IN DE TRILHA SONORA EM BACKGROUND)

Ivan: Então, na verdade, eu vou te fazer uma pergunta… Eu vou te fazer, daqui a pouco, algumas perguntas da história da tua briga, lá do cepilho.

(UMA VOZ MASCULINA RI JUNTO COM IVAN)

Ivan (em off): Pra quem não sabe, cepilho são aquelas raspas de madeira que ficam depois que você corta ela.

(MAIS RISOS)

Ivan: Tá certo?

Pai do Ivan: Obrigado por colocar mais uma história vitoriosa na minha vida… (Ivan ri mais).

Ivan: Sempre bom…

Pai do Ivan (entre risos): Obrigado, viu…

Ivan (em off): Esse é meu pai, Emerson.

Emerson: Meu nome é Emerson, tenho 54 anos, casado, dois filhos.

Ivan (em off): Quando o meu pai tinha uns sete anos, meus avós se mudaram com ele e meu tio para uma vila aqui em Curitiba, chamada Caeté. Era uma rua com o mesmo nome, formada por trabalhadores, na década de 50, funcionários de madeireiras da região.

Ivan: Tinha muita criança lá na travessa?

Emerson: Então, esse era o legal, quando você… Eu sempre digo que…

Ivan (em off): Apenas um aviso. Essa gravação, que eu fiz com meu pai, foi feita por telefone. Por isso que vocês tão ouvindo esses cliques.

Emerson: Aquela turma da Caeté lembra muito a Turma da Mônica e do Cebolinha, né. Cada um com seus nomes, com suas histórias, com suas características. Eram muitas crianças, basicamente na mesma faixa de idade. Uma diferença, aí, de dois, três anos. E a gente fez uma turma muito, muito, muito legal mesmo. Tem boas lembranças.

Ivan (em off): E numa época em que não havia videogames ou internet, as brincadeiras na vila eram aquelas que você pode imaginar. Andar de bicicleta, bolinha de gude, empinar pipa, futebol… E, claro, brigas.

Ivan: Mas uma atividade que vocês tinha também era brigar, né? (Emerson ri)

Emerson: É verdade, é verdade, é verdade. Como todo bom moleque da época, a gente brigava (Ivan ri). Evidentemente que não era uma briga maldosa, que nem é hoje. Não tem faca, não tinha nada. Era briga de briga. Então, você tinha lá… De repente, você tava jogando bola, um encontro mais forte e… E a turma, você sabe, a turma de moleque, ao invés de aparar, eles iam brigar (Ivan ri). Ainda gritava “Pau! Pau! Pau!” Quer dizer, queriam brigar mesmo, né.

Ivan: Aham, sim.

Emerson: Eles queriam ver briga. Ninguém fazia nada pra separar. Só separava depois que a coisa tava bem feia.

Ivan (em off): E foi neste cenário de inocência e juventude, em que brigas faziam parte das brincadeiras de criança, que meu pai enfrentou um dos maiores desafios da sua vida, até então. E seu nome era Carlinhos.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Emerson: A gente chamava ele de Carlinhos Bom de Briga.

Ivan: Carlinhos Bom de Briga…

Emerson: é. Esse era o apelido dele.

Ivan: Mas ele tem… o nome dele era… esse apelido dele era bem dado, assim? Fazia jus ao apelido?

Emerson: Fazia. Fazia, porque ele era filho de madeireiro e era bem encorpado pro padrão da época, né. Todo mundo tinha aquele tipo físico normal, mas ele era mais, assim, mais entroncadinho, porque ele ajudava os pais na madeireira. Carregar madeira, aquela coisa toda. E ele sempre foi mais forte do que os outros, né. E justamente por ele ser mais forte, cada vez que ele era intimado, ele brigava e sempre ganhava, né.

Ivan (em off): Meu pai tinha 10 anos. O Carlinhos, o bom de briga, 12. Era mais velho, mas isso não importava.

Emerson: A diferença, pra essa parte de idade, é uma diferença significativa. Mas não importa. A gente não pensava nesse tipo de coisa. Você queria brigar e pronto. A gente é de uma geração que você não levava desaforo pra casa, né. Então, se brigava, tinha que ganhar. E se reclamasse pro pai, ia lá e dizia assim, “vai lá e briga de novo.” (Ivan ri alto). Porque não tem nhem-nhem-nhem de chorar pra pai, mãe. Era uma cultura diferente, né.

Ivan (em off): Numa partida de futebol, os dois se encontraram. Meu pai era brigão. O Carlinhos… bom, o nome já diz tudo. Meu pai apanhou. Muito. E neste ambiente recheado de testosterona ainda em desenvolvimento, com um forte código moral regendo aqueles atores, meu pai manteve sua honra após seu confronto com aquele Hércules. Meus avós não souberam de nada. O assunto deveria ser tratado na rua. E segundo a tradição infinita de adolescentes que cometem besteiras, ele viu-se protagonista de um dos mais clássicos motivos que as narrativas humanas conhecem. Ele quis vingança.

(FADE IN E FADE OUT DA MÚSICA “EYE OF THE TIGER”)

Emerson: Aí, teve um dia que a gente se encontrou de novo, e começamos a trocar xingamentos. E eu falei, “não, porque eu apanhei, da próxima vez eu vou te bater.” Não sei o quê. Daí ele falou, “então, tá bom, vamos fazer o seguinte. Vamos lá em baixo, na madeireira, que lá você vai apanhar de novo.” Eu falei, “pois eu vou.” E daí (Ivan ri), foi toda a galera, né. Aquela turminha toda. Aí, beleza, eu me preparei, sabe, tipo de Filme. Rocky. Fiquei mexendo os meus braços, e tal. E todo mundo descendo. Todo mundo desceu lá pra baixo. Todo mundo…

(FADE IN E FADE OUT DA MÚSICA “EYE OF THE TIGER”)

Emerson: Daí, você descia a rua Caeté. Não é na travessa. A rua Caeté, que é a rua principal, onde hoje é o SEBRAE. Onde hoje é o SEBRAE.  E lá tinha um depósito, uma madeireira abandonada. E tinha bastante, assim, material. Madeiras no chão, e tal. E daí, fez aquela roda, né, da molecada, e eu comecei a brigar com ele.

(EFEITO SONORO DE CAMPAINHA EM RINGUE DE LUTA)

Ivan (em off): os dois gladiadores se encaram. Braços levantados em defesa e ataque. Qualquer movimento em falso será mortal. A turma em volta presenciando a história acontecer. É o dia mais emocionante na vida de muitos dos presentes.

(FADE IN E FADE OUT DA MÚSICA “EYE OF THE TIGER”)

Ivan (em off): É dado o primeiro soco. É do meu pai. Carlinhos, quase bocejando, mal sente…

(FADE IN E FADE OUT, AGORA EM SLOW MOTION,  DA MÚSICA “EYE OF THE TIGER”. AO FIM O ÁUDIO É DISTORCIDO PELA FALTA DE VELOCIDADE DA REPRODUÇÃO)

Ivan em off): Segura o braço do meu pai. Os espectadores estão perplexos. A luta do século acaba em segundos, quando o bom de briga imobiliza meu pai. É o fim de um sonho.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Emerson: Daí, só que dessa vez (ele solta um riso), ele falou o seguinte… ele me pegou, pegou com as duas pernas, segurou meus dois braços, eu por baixo, assim. E ele falou assim, “bom, além de apanhar, agora você vai aprender a ser mais educado” (Ivan ri). “Vai comer cepilho.” Então, eu tava deitado em cima do cepilho. Ele, com as duas pernas em cima dos meus braços abertos, assim. E daí, falou assim, “come cepilho!” Daí ele pegava cepilho e botava na minha boca (Ivan ri). E eu cuspia. Eu.. apanhei, né. Mas ele não bateu muito, assim, sabe. Ele era muito mais forte, sabe. Da primeira vez, a gente brigou um pouco mais forte. Mas dessa vez, ele me dominou muito rápido e me fez comer lá. Eu não engoli, mas ele botou um pouco de cepilho na minha boca (Ivan ri). Eu cuspi. E digo… Aí, foi embora. Aí, eu tava louco pra brigar com ele de novo, sabe. Porque a gente é dessa… Mas aí, a gente também tem a ideia de que não precisa ser burro, também, né. Pode ser teimoso, não precisa ser burro. Então, se eu brigasse com ele, ia apanhar de novo (Ivan ri). Daí, a gente nunca mais brigou.

(FADE IN E FADE OUT DA TRILHA SONORA)

Ivan (em off): Eu não sei dizer exatamente os motivos pelos quais eu sou tão fascinado por essa história do meu pai. Talvez seja aquele sadismo de filho, que adora descobrir que seu primeiro herói também é humano. Talvez, seja simplesmente por ela ser divertida, ao vermos um relato de um menino que acha que é Davi, mas  descobre que é só mais um diante de Golias. De qualquer forma, meu pai, aparentemente, adora contar essa história. Eu não sei dizer quantas vezes já ouvi, em jantares com família e amigos. Talvez haja alguma lição para ser aprendida aí. E ah.

Ivan: Mas e você e o Carlinhos nunca mais se encontraram, depois dessa briga. Não citavam o assunto? Não ficava um clima estranho?

Emerson: Não, não! É como eu te disse. Ele, me contando já na fase da adolescência, muito rapidamente, batemos um papinho rápido. Não existia mágoa. Nunca existiu mágoa. Provavelmente, depois… Porque tinha um detalhe, ele não fazia, assim, parte de todo dia, do nosso cotidiano, porque, justamente, ele já trabalhava com o pai dele. Naquela época, não era feio criança trabalhar com os pais. Hoje tudo é proibido, não sei o quê, né. Ele não, ele já trabalhava com os pais. Então, ele tinha, sim, uma rotina um pouco diferente da nossa. Mas ele era, assim, um rapaz trabalhador. Nunca, nunca teve problema nenhum. A gente nunca… Uma vez só, na adolescência, depois a gente se encontrou. Mas, depois, desgraçadamente, acho que um ou dois anos depois de eu ter me encontrado com ele, veio a notícia que ele havia se acidentado, e que havia morrido. E sempre… Ah, sempre fica aquela coisa, né. Um jovem, quando morre assim, é muito triste, né.

Ivan: Como e quando que ele morreu? Você tem ideia da data? Quantos anos ele tinha?

Emerson: Não. Não sei. Provavelmente é 75, 76… Eu tinha uns 14 anos, ele devia ter uns 16. Ou talvez ele tinha 17… Eu não tenho certeza… (ele hesita) Não tenho certeza, não vou falar aqui, porque eu não sei. Eu sei que morreu muito jovem. Muito jovem.

Ivan: Mas morreu do quê, mesmo?

Emerson: Acidente de moto.

Ivan: Acidente de moto. Você não soube muitos detalhes do que aconteceu?

Emerson: Não. Eu não soube… Na verdade, é… Sabe, né, você tá com essa idade, essas coisas parece que a gente meio que evita, né. Soube. Teve outras… Infelizmente teve outras mortes na (ele hesita) nossa… Na nossa turma, né. E não se fala muito… Eu prefiro falar da vida.

Ivan: Daquela turminha de amigos que você teve da Caeté, também, você disse que alguns outros morreram. Você sabe quantos, mais ou menos? Sabe dizer?

Emerson: Do meu contato, direto meu, fora o Carlinhos, teve mais um, que eu prefiro não citar nomes, né. Questão de família, tudo. E teve um, dois… Sei que foi dois… Uma, uma situação um pouco mais trágica… Aliás, as outras situações. Uma foi por acidente, que morreram  eu acho que três pessoas… (ele hesita) Um mais ligado a mim, e outro não. Outro já é de uma geração um pouco mais tarde, quando eu saí dali. Também já eram adolescentes quando morreram. E outro também, é… Numa situação trágica, mas individual.

Ivan (em off): Essa parte da história sempre me tira do chão. Eu não sei dizer por que, mas apago da memória, todas as vezes, a parte que o Carlinhos morre em um acidente de moto, anos depois. Na minha memória, ele é muito, muito vivo. Mas, no fim das contas, ele não tem perfil no Facebook, não há registros dele na internet, não é possível sequer encontrar fotos dele por aí. A sua ausência é uma presença constante na minha memória. E se, por um lado, meu pai comparava sua turma de amigos de infância à Turma da Mônica, é muito estranho imaginar o Cebolinha enfrentando a situação de morte do Cascão. Ou que a turma da rua descobre que a Magali se suicidou. Parece colocar em xeque toda a inocência que aquele tempo de ouro da infância quer preservar na memória. Os problemas da vida adulta, a finitude, essas coisas batem às nossas portas sem pedir licença. Nos sentimos pequenos, frágeis.

Ivan: Quando você pensa em todas essas mortes de amigos de infância, que morreram jovens, inclusive, como é que você se sente?

Emerson: Ah, é muito esquisito. É uma sensação muito, muito esquisita. Não porque… Ah, claro, você tem aquele choque da época, né. Você tem aquele susto, né. Mas você simplesmente… Na verdade, você se coloca, porque hoje eu sou o seu pai, né. E a gente se coloca no lugar dos pais, na época que eu conhecia todos eles, né. Então você se coloca, você se imagina, né… Do sofrimento, da inversão da natureza, né. É a pior tragédia que pode existir na vida de uma pessoa, é a inversão da ordem natural das coisas, né. Então, eu lembro… foi muito, muito difícil, assim, pra essas famílias, né. Tem… Ah, teve até mais um, que já era mais velhinho também, que morreu também de acidente de carro. Irmão de um amigo meu que, esse sim, era da gente, mas sempre… Eu me lembro que a família dele nunca mais foi a mesma. Principalmente a mãe, né. Nunca mais foi a mesma pessoa. Uma pessoa, assim, que nunca mais teve a sua normalidade total. Aquilo mexe muito, né. Então, fica a coisa, assim, mais de se colocar no lugar dos pais, sabe.

Ivan (em off): Se pudesse voltar no tempo, meu pai disse que não mudaria nada. As brigas entre as crianças, a rua, tinham um contexto diferente das de hoje, segundo ele. Nosso referencial de violência mudou de 40 anos pra cá. E se você pensar sobre isso, faz sentido. Até há poucos séculos, países matavam publicamente seus ofensores. Praças públicas lotadas de espectadores para o suplício. Hoje, sequer conseguimos imaginar, no mundo civilizado. Hoje, meu pai é radicalmente contra qualquer tipo de briga, seja entre adultos ou crianças. E desses relatos apreende-se que as brigas eram muito como rituais de passagem, faziam parte do crescimento de uma criança que estava a descobrir o mundo. Pelo menos, é essa a impressão que histórias como as do meu pai passam. Os referenciais de violência são outros atualmente. Às vezes, piores. Às vezes, mais lúdicos. Diferentes. E se há alguma lição a ser aprendida aqui, talvez seja essa. O mundo muda, nós mudamos. Com socos, carinhos, ou restos de madeira. Pessoas estão sempre nascendo e morrendo. Especialmente, nós mesmos. Em minha memória, o Carlinhos que eu nunca conheci ainda ajuda seu pai na madeireira familiar, ainda tenta ensinar ao meu pai uma lição, fazendo-o comer cepilho. Para mim, ele está mais forte do que nunca, brincando na rua, jogando futebol, e mantendo a honra de seu apelido. Carlinhos ainda se mete em pancadarias. Apesar de bom de briga, perdeu para o único adversário que ninguém vence. A própria vida.

(FADE IN E FADE OUT DE TRILHA SONORA)

Ivan (em off): você acabou de ouvir o episódio piloto do Projeto Humanos. Histórias reais com pessoas reais. A história de hoje foi sobre o meu pai, Emerson Mizanzuk, e sua briga com o Carlinhos Bom de Briga. A trilha sonora do programa de hoje foi composta pela música “Eye of the Tiger”, da banda Survivor; a música “O Despertar”, de Felipe Ayres; e outras disponíveis na biblioteca do “Logic Pro X”. Se você gostou do projeto, não deixe de comentar, para descobrirmos se isso aqui tem futuro. Eu sou Ivan Mizanzuk e vou ficando por aqui. Nos vemos num próximo programa.

(FADE IN E FADE OUT DA TRILHA SONORA)

FIM

(Transcrito por Sidney Andrade; Revisado por Jean Carlos Oliveira Santos)