Na conversa com Cassiano, filho de Ilo Rodrigues, Ivan Mizanzuk queria entender como a ausência do pai afetou a vida dele. Afinal, ele tinha apenas 12 anos quando o piloto desapareceu, em 27 de dezembro de 1986.
De acordo com Cassiano, assim que a mãe, Wanda, recebeu a notícia do sumiço, ela levou os dois filhos para a casa dos tios, no Mato Grosso do Sul. “Nesse primeiro mês, que foi o choque, que tinha irmão chorando, pai chorando, avô chorando, pessoa saindo no jornal, notícia de televisão, a gente não estava aqui. Nós fomos bufferizados, né?”, contou ele em entrevista ao Projeto Humanos.
Bufferizar é um termo que Cassiano aprendeu e incorporou por conta do trabalho como pesquisador. Buffer pode ter significados diferentes conforme a área. Mas, para a eletricidade, é um circuito isolado usado para impedir que um alimentador influencie outro do mesmo tipo. Ou seja, na metáfora de Cassiano, é tentar isolar algo para não te afetar ainda mais.
“A gente ficou na casa dos meus tios lá, curtindo à beça. Era uma galera legal, tinha um disco do Titãs, Cabeça Dinossauro, fresquinho. Tinha um bando de hippie, uma moçada super nova, e fomos muito bem recebidos. É um tipo de buffer que nos isolou completamente. Quando a gente retornou, nos disseram ‘ó, seu pai não voltou mesmo, estamos procurando, mas pode ser que ele não volte’. E ficou nesse stand-by eterno”, completou.
Ele acredita que o evento também não foi tão traumático na época porque Wanda e Ilo já estavam separados há alguns anos, vivendo em cidades diferentes. Então, os filhos já não conviviam mais com o pai diariamente. “A mãe fez questão de isolar a gente disso. E depois só ficou aquele remanescente, aquela expectativa. O maior contato com isso acontecia quando a gente ia ver os avós, né? Os irmãos do meu pai às vezes nos viam e começavam a chorar. […] Eu acho que é um mecanismo de esconder a carga emocional e colocá-la no cantinho, deixá-la guardada lá, não mexer com isso”.
Quando comenta sobre o pai, Cassiano não se emociona. Fala com saudade, com um brilho nos olhos. Para Ivan, acostumado a ouvir pessoas contando histórias de desaparecimento, isso era novidade. E, de certa forma, a família toda era assim. O jornalista aprendeu mais tarde que, para eles, essa foi a solução, uma espécie de instinto de sobrevivência. Porque, apesar de tudo, a vida precisava continuar. E foi o que aconteceu.
Por outro lado, sempre que o assunto Ilo surgia, era carregado de alegria, de lembranças sobre as malandragens, sobre como ele era. Pouco se mencionava sobre o desaparecimento. O que mais marcava eram as aventuras, como relembrou Cassiano. “Se eu não me engano, ele é um dos fundadores do aeroclube de Foz. Muito na sombra do pai, porque acho que o meu avô foi um dos fundadores do aeroclube de Recife, quando eles moravam lá. Acho que o pai também fundou o clube de vela junto com uma galera. Então, ele tinha a galera do avião, tinha a galera da vela, tinha a galera de não sei o quê, ele tinha um monte de amigo”.
Segundo Cassiano, Ilo só não tinha paixão por carro porque isso era algo “muito normal para ele”. Ele não gostava de barco a motor, nem a remo, por exemplo. “Gostava de vela. Porque é o vento, é fazer o vento trabalhar para você. É muito louco isso. Porque exige um conhecimento náutico mais aplicado, você saber a direção do vento. Ele adorava explicar o ângulo do vento, da vela… Eu acho que ele queria desenvolver a navegação no oceano futuramente, porque queria ter um barco a vela maior. Ele falava muito nisso”.
Já em relação a outros interesses, Ilo integrava a Ordem Rosacruz, uma organização internacional de caráter místico-filosófico. “Acho que isso também foi um pouco da herança do pai, do vô Castor. Ainda tinha influência desse esoterismo barato dos anos 1960, 1970. […] Tanto é que eu tentei entrar na Rosacruz e parei na segunda apostila. Achei exagerado esse interesse no ocultismo”.
Além de tudo isso, o piloto também era entusiasta da fotografia, hobby não muito comum nos anos 1980 – já que câmera e filme costumavam custar caro. Na caixa que Wanda emprestou a Ivan, porém, havia centenas de fotos, algumas da década de 50, 60 e 70. Claro, isso só era possível graças à ótima situação financeira da família Rodrigues. Castorino também amava fotografia. E, assim como tantas outras paixões do pai, Ilo deu continuidade a esse legado. “Ele adorava aprender a fazer as coisas. A arte de fotografar, ele tinha alguns livros sobre fotografia… E computador, gostava de computador. Nesse período, isso era muito raro. Em 1980, ele já tinha o Apple IIc, o top de linha na época”, relatou Cassiano.
“Ele também comprou para a gente um Atari. O primeiro Atari aqui da rua, talvez do bairro, era o nosso, vinha todo mundo jogar aqui. […] É interessante, eu não lembrava disso, agora que eu lembrei. Ele tinha essa empolgação com a tecnologia e tal”, completou.
Mas nem só de câmeras, computadores e videogames vivia Ilo. Ele também gostava de papel e caneta, e tinha diferentes agendas para registrar o cotidiano e marcar compromissos com amigos e sócios. Na caixa de Wanda, Ivan teve acesso a um desses cadernos, datado de 1981. Nele, havia centenas de contatos e cartões de visita. A maioria de pilotos, mecânicos e membros de aeroclubes. Já de cara, é possível identificar as paixões que movimentavam a vida dele.
Também na caixa, estava a caderneta de voo de Ilo – documento onde pilotos precisam registrar todas as horas voadas. A partir desse documento, Ivan descobriu que Ilo tirou o brevê em 1964 e, aparentemente, só voltou a voar (pelo menos oficialmente) 17 anos depois, justamente em 1981, ano da agenda em questão. A impressão é que ele queria correr atrás do tempo perdido.
No futuro, em uma conversa particular não gravada, Cassiano dirá a Ivan que o pai tinha um lema: “com Ilo não tem grilo”. Ele falava isso para os filhos enquanto fazia algo irresponsável, como contornar uma situação difícil usando apenas a conversa mole, um sorriso sob o volumoso bigode e seus 1,67 metros de altura.
Ao mesmo tempo em que era um pai curioso, leve, divertido e inteligente, também sabia ser autoritário em certa medida. Aos filhos, exigia ser tratado como “senhor”, outra característica que herdou de Castorino.
Um mês depois dessa conversa com Cassiano, quando Ivan encontrou a família Rodrigues, ele percebeu que não tinha como compreender a história de Ilo sem saber quem era Castorino – a fonte de muitas de suas paixões.
ASCENSÃO DE CASTORINO
Castorino e Gecy tiveram quatro filhos. Iná é a primeira, nascida em 1939. Em seguida, veio Ivo, em 1940. Ilo nasceu alguns anos depois, em 1946. E a caçula é Isa, nascida em 1947.
Vocês devem ter notado os nomes curtos, de apenas três letras. Nomes dados para que os filhos não tivessem apelidos. Esse era o tipo de controle que Castorino buscava exercer na vida das pessoas, especialmente as mais próximas. Para bom entendedor, essa informação já bastaria para se ter uma ideia da personalidade do patriarca da família. Mas havia mais coisas a serem descobertas.
Durante a reunião com os parentes de Ilo, já mencionada no episódio passado, Iná explicou a Ivan todo o histórico familiar. Tanto Castorino quanto Gecy vieram de famílias muito pobres. Ele nasceu em Sorocaba em 1913, como o último de 13 filhos de um casal humilde. O pai era funcionário da prefeitura, trabalhava como jardineiro, e tinha dificuldade em sustentar a casa.
“Ele [Castorino] comentava que, quando a vaca estava gorda, eles descascavam o queijo, comiam e guardavam a casca. Quando a vaca estava magra, eles comiam a casca do queijo. Ele contava sempre isso e não era brincando”, relatou Iná.
Segundo ela, quem realmente criou Castorino foi uma irmã mais velha, chamada Olinda, que tinha 17 anos quando ele nasceu. Ela o mimava bastante e tentava satisfazer todas as vontades dele.
Já Gecy era a sétima de oito filhos de imigrantes italianos, de origem igualmente humilde. Nenhum dos dois tinha mais do que o terceiro ano do primário. Apesar disso, Castorino era muito inteligente e estudioso, e tinha como maior objetivo crescer na vida. “E cresceu. Já depois de casado, ele fez faculdade à distância, na época, por correspondência. Fez curso de Química”, disse Iná.
Ainda jovem, Castorino foi trabalhar em uma fábrica de cimento na cidade de Votorantim, no interior de São Paulo, próximo à Sorocaba. Todo dia, ia de trem e levava a marmita preparada por Gecy. Passava o dia lá e voltava para casa à tarde, quando tinha tempo de estudar química.
No horário de almoço do trabalho, enquanto os funcionários saíam para comer, Castorino entrava no laboratório da fábrica para fazer os experimentos que aprendia nos livros. Certa vez, porém, ele cometeu um erro e um dos vidros usados na experiência estourou. Como consequência, foi chamado na sala da diretoria. Ele logo pensou que seria demitido, mas, para a surpresa de todos, aconteceu o oposto: o gerente aprovou a iniciativa do subordinado em se aventurar pelos tubos de ensaio, e lhe ofereceu o cargo de assistente de laboratório.
“E ele sabia fazer política. O seu Castorino sabia aparecer. Aí ele apareceu, apareceu, e foi convidado para ser gerente na fábrica de cimento em Pernambuco, que estava afundando na época”, contou Iná. Ela tinha dois anos de idade, e Ivo, um, quando a família se mudou para o Nordeste do Brasil, onde permaneceram por 13 anos.
“A fábrica progrediu porque ele sabia administrar. Mais tarde, tinha outra nova aqui no Sul, também afundando. Aí convidaram o meu pai para vir para cá novamente, como diretor. Foi assim que ele fez carreira. Naquela época, [o dono] era o velho Ermírio de Moraes. O papai lambia o chão onde o velho passava. Adorava o velho, e o velho também. Depois, ao longo do tempo, no Paraná, cada fábrica que surgia, eles botavam o seu Castorino. Ele chegou a ser diretor de cinco delas no Sul todo, já morando em Curitiba”.
De acordo com Iná, o pai se aposentou enquanto ainda estava neste cargo. “Foi uma aposentadoria forçada. Ele não queria. Ele só vivia daquilo. A família era um apêndice na vida dele, porque o negócio dele era o Grupo Votorantim”, desabafou.
O Grupo Votorantim e os inúmeros hobbies, como a aviação. Castorino sempre gostou de aviões, desde quando era jovem e morava em Sorocaba. “Ele trabalhava feito um louco, juntava dinheiro e, no final de semana, ia para São Paulo fazer o curso para tirar o brevê. Depois, em Pernambuco, ele comprou o primeiro avião. Era um Cessna, como eu digo, o fusquinha da aviação. Mas nós viajamos bastante com ele, e meu pai fazia táxi aéreo durante a semana lá, porque as estradas eram muito ruins. […] Ele ganhou dinheiro com isso, e vendeu [o avião] quando nós viemos para cá, tempos depois. Aí, ele já ia direto nos aeroclubes. Chegou a ter outro aqui também, do mesmo estilo. Um aviãozinho muquifa, mas a gente viajava muito para Sorocaba com ele”, comentou Iná.
E essa atividade, Castorino fez questão de repassar aos filhos – mas só aos homens. Segundo Iná, ele fez Ivo e Ilo tirarem o brevê, a carteira de habilitação de piloto, para que não precisassem servir ao Exército. “Menos as mulheres, porque mulher não é ninguém. Nunca nem passou pela cabeça dele me perguntar ‘você quer tirar o brevê?’ Eu também, nem passou pela minha cabeça pedir”.
Para Ivan, a personalidade de Castorino não parecia encaixar com essa nova informação. Na visão dele, seria óbvio que alguém tão rígido fizesse questão que os filhos passassem pelo serviço militar. Iná acredita que a ideia do brevê poderia estar associada à vaidade. “Eu acho que era orgulho. ‘Filho meu não vai vestir aquele uniforme de soldado, né? Não vai ser milico, soldadinho. Se precisar ir em uma guerra, vai de piloto’”.
Ainda sobre esse assunto, Iná adiciona que Castorino chegou a lutar na Revolução Constitucionalista de 1932, levante armado protagonizado pelo estado de São Paulo, insatisfeito com o governo centralizador de Getúlio Vargas.
Outra curiosidade é que, durante a tensão que se espalhou pelo mundo durante a Guerra Fria, o patriarca da família Rodrigues sempre demonstrou total aversão ao comunismo. “E qualquer um podia ser comunista, sabe? Tinha mais isso, qualquer um podia ser. Se não concordasse com as ideias dele, era comunista”, falou Iná.
O FILHO “REBELDE”
E, então, anos depois, vem o Ilo, uma pessoa muito mais tranquila. Ele parecia ser o oposto do pai, ao mesmo tempo em que havia algumas margens de contato. Porém, no plano geral, é notável na família que eles eram vistos como pessoas bem diferentes. Toda vez que o assunto era Castorino, o clima parecia ficar pesado. Já com Ilo, as histórias eram sempre mais leves, geralmente sobre alguma malandragem que ele havia cometido quando jovem. Como a vez que ele falsificou a assinatura do boletim escolar. Quando voltava para casa fora do horário combinado. Ou a famosa história envolvendo os carros do pai.
“Os filhos homens não aprenderam a dirigir, isso o pai não deixou. Ele só deixou avião, carro não. Ele dizia assim: ‘quando você trabalhar e ganhar dinheiro, você compra o seu carro’. […] A cada dois anos, ele trocava de carro. ‘Eu não troco pneu, eu troco o carro’, dizia. Olha como era arrogante! Aí, comprou um novo e começou a achar que o automóvel comia muita gasolina”, contou Iná. “Anos depois, a gente soube que o Ilo, com dois ou três amigos, abria a garagem de noite. O pai era muito metódico e dormia bem cedo. Então, eles empurravam o carro para a rua, lá ligavam o veículo e saíam aprontar as bandalheiras deles. Na volta, da rua, o empurravam de novo para dentro”.
Além disso, Ilo tinha um truque: ele sabia como deixar o carro sem parecer que tinha consumido tanta gasolina. “Não sei como ele fazia. Devia ter alguma inclinação na garagem, então o pai nunca descobriu que de noite estava de um jeito e de manhã de outro. Depois, trocou de carro porque comia muita gasolina, mas era o Ilo que usava”, completou a irmã mais velha do piloto, rindo.
Conhecendo pouco a pouco a personalidade de Castorino, é perceptível que essa atitude de Ilo exigia coragem. Mesmo que fosse apenas ignorância juvenil, não seria qualquer um que arriscaria causar a fúria de um pai tão rígido. Mas Ivan descobriu que havia um motivo para Ilo se sentir ousado o suficiente para desafiar a autoridade paterna. E ele tem origem antes mesmo do piloto nascer.
Quando a família ainda morava em Pernambuco, Gecy teria realizado uma série de abortos. De acordo com Iná, tanto a mãe quanto o pai não faziam questão de esconder que não queriam ter mais filhos. Usando sua vasta lista de contatos, Castorino encontrou em Recife um médico maçom, que auxiliava o casal quando necessário.
“Até que uma hora o médico falou assim: ‘não faço mais [abortos], meu irmão. Não posso fazer mais, o corpo dela não aguenta’. Aí, ele dizendo que não fazia mais, ela engravidou do Ilo. A mãe tomou tudo quanto foi chá, tudo quanto foi coisa que as comadres parteiras ensinaram. Ela fez de tudo para perder o filho, mas não perdeu”, explicou Iná.
No fim da gravidez, Gecy contraiu malária, doença infecciosa transmitida por mosquitos e causada por protozoários parasitários. Como o remédio disponível na época era muito forte e poderia matar o bebê, ela decidiu não se medicar. Ilo, então, nasceu com a doença. E a saúde frágil do menino se estendeu por grande parte da primeira infância. Aos dois anos de idade, Ilo sofreu pleurisia, uma inflamação da pleura, membrana que envolve os pulmões e reveste a cavidade torácica. Como consequência, precisou passar muito tempo no hospital e se submeter a tratamentos dolorosos, bem diferentes dos atuais. “Ilo foi um menino muito doente. Aí os dois tinham uma consciência pesadíssima, e o criaram com mimo. Ele era o único mimado”, revelou Iná.
Um ano depois do nascimento de Ilo, em 1947, Gecy ficou grávida novamente e deu à luz a Isa, a caçula. Dessa vez, ela não teria tentado abortar. “Depois da Isa, ela engravidou de novo. Era parideira. […] Só que eles marcaram uma laqueadura, mesmo sabendo da gravidez. Depois da cirurgia, o médico disse ‘você não me contou que estava grávida, e esse bebê não vai vingar, vai morrer’. Aí, ele nasceu prematuro e durou quatro ou cinco horas. Era o Edu. Depois, ela ficou esterilizada”.
Aqui é importante lembrar que abortar era completamente contra a lei. Mesmo assim, segundo Iná, Gecy parecia não se importar em falar abertamente sobre o assunto. “Ela tinha orgulho, ela tinha orgulho de dizer que fez aborto”, disse.
Castorino também compartilhava da mesma “aversão” às crianças pequenas que a esposa. Durante a reunião da família Rodrigues, gravada para o podcast, Wanda, a ex-mulher de Ilo, relembrou uma história antiga contada por Iná: ainda recém-nascida, ela já teria sofrido com a agressividade do pai.
“Ela [Gecy] comentava isso. Disse que eu berrava sem parar, e ele pegou a mamadeira, destampou e jogou [o leite ‘goela a baixo’]. Ele tinha tendência para a violência”, comentou Iná.
Como em toda família, havia assuntos discutidos em voz alta e outros que eram empurrados para debaixo do tapete. Foi então que, voltando a falar sobre Ilo, Iná começou a narrar uma das últimas conversas que teve com o irmão, pouco antes do desaparecimento. Acompanhe um trecho do diálogo abaixo:
Iná: Eu não sei se você sabia que ele [Ilo] estava fazendo psicoterapia.
Ivan: Não.
[…]
Iná: Nós tínhamos muito a conversar sobre família. Aí ele chegava lá em casa, perguntava algumas coisas. Ele é oito anos mais novo que eu. Eu sou a mais velha, então muita coisa eu sabia, porque ele era bebê ou pequenininho, né? Até que, um dia, não sei o que eu comentei, e ele disse assim: “mas o psicólogo… Já estou indo lá não sei quanto tempo, ele não me falou nada disso”. Eu disse: “escuta, o psicólogo está te conhecendo agora, eu te conheço desde o minuto que você nasceu. Então, eu sei de coisas que o psicólogo não sabe, claro”. Agora, eu nunca perguntei quem era o psicólogo. Era lá em Foz que ele fazia psicoterapia.
Cátia: Você lembra de alguma conversa, pai, que você teve com a Cristina depois que o tio desapareceu?
Aqui quem fala é Cátia, filha de Ivo, um dos quatro herdeiros do casal Castorino e Gecy, e sobrinha de Ilo. Ela pergunta para ele sobre Cristina, a companheira do piloto na época em que ele sumiu, em dezembro de 1986.
Ivo: Não.
Cátia: Nada? Não lembra de nada que você tenha conversado com ela? Porque você conversou algumas vezes com ela, né? Se você lembrar de alguma coisa, é importante…
Ivo: Não… Confirmando o que ele está dizendo. A Cristina disse que o Ilo, na véspera, teria feito o seguinte comentário: “para onde eu vou, eu não sei se voltarei”. Isso fica bem claro que é algo ilegal, algo…
Iná: Estava no ar…
Ivo: Estava no ar…
Nesse diálogo, Ivan conseguiu entender como a família interpretava o recado de Romeu Tuma a Castorino, dado após o desaparecimento de Ilo. Para eles, havia uma forte suspeita de que o piloto estivesse envolvido em alguma atividade ilegal. E talvez esse fosse o motivo do sumiço.
Para Ivan, apenas uma pessoa poderia saber tudo em detalhes: Castorino, o pai controlador, que por remorso fazia vista grossa às malandragens de Ilo. O homem que foi até o diretor da Polícia Federal para falar sobre o desaparecimento e, anos depois, produziu um dossiê com todas as informações do caso. Mas agora, à medida que Ivan conhecia mais essa figura, ele percebia que as coisas não seriam tão simples assim.
De acordo com a família, Castorino manteve tudo em segredo: as pessoas com quem conversou, as investigações que fez, se conseguiu ou não descobrir alguma coisa. Mesmo que alguém o questionasse sobre o assunto, ele não abria a boca.
“Ele era um ditador. E era sobre isso que o Ilo vinha me consultar quando estava fazendo psicoterapia. Sobre o jeito do pai, e como ela [Gecy] era submissa. […] Era ditador, era o jeito dele. Quando ele dizia não, era não, e o mundo podia desabar”, descreveu Iná.
Já Ilo, depois de tudo o que vivenciou com o pai, queria ser o oposto de Castorino. De acordo com Wanda, ele também deixou isso claro na última conversa que os dois tiveram por telefone, antes do desaparecimento. “Ele comentou que estava cortando o cordão umbilical. Disse que não vinha para cá, que não fazia questão de vir, porque estava cortando o cordão umbilical. Isso ele me falou”.
Após o sumiço do filho, Castorino tomou a frente da situação. Além de acionar contatos políticos, contratou um renomado advogado em Foz do Iguaçu para tocar o caso por ele, o doutor Álvaro Albuquerque.
Na ausência de Ilo, o patriarca da família organizou as finanças do filho e buscou listar todas as posses dele. Fez isso com a ajuda de Ivo, que o acompanhou em várias dessas situações.
Castorino chegou até a pagar o empréstimo que Ilo havia feito para comprar o avião Beechcraft. Ele também conversou várias vezes com Cristina, a nova companheira de Ilo – que, de acordo com Iná, era muito querida tanto por ele quanto por Gecy.
Enquanto fazia tudo isso, deixou a família em Curitiba no escuro. Não contava nada sobre o caso para ninguém. Não havia possibilidade de conversa. Agora, quase 40 anos depois, a família tenta juntar as peças de uma história que nunca entendeu direito. O que quer que Castorino tenha descoberto sobre o desaparecimento do filho, fez questão de não dividir com ninguém. Nem mesmo com Ivo, que o auxiliou em diversas ocasiões.
AS PRIMEIRAS PEÇAS DO QUEBRA-CABEÇA
Para relembrar, sabemos que, no fim do ano de 1986, Ilo combinou que passaria o Natal em Curitiba com a ex-esposa Wanda e os dois filhos pequenos. Na última hora, porém, ele ligou e cancelou a visita. Então, em 27 de dezembro, decolou com o avião que havia comprado e nunca mais foi visto.
Na primeira conversa com Wanda e Cassiano, Ivan já começou a obter mais detalhes sobre o dia do desaparecimento. Afinal, como Castorino deixou a família no escuro, qualquer pedaço de informação seria importante. Foi então que o jornalista ouviu pela primeira vez a história do carro de Ilo.
“Acharam o carro estacionado onde ele saiu com o avião. Com a chave na ignição, né? Como se ele tivesse saído às pressas, e deixou várias coisas dentro do carro, coisas pessoais”, comentou Wanda na ocasião.
Nessa entrevista, Cassiano mencionou a existência de um inquérito criado para investigar o desaparecimento de Ilo. Ivan já tinha percebido que o documento havia sido citado em matérias da época.
O jornalista chegou a ir atrás dos delegados mencionados nas reportagens, mas todos já haviam falecido. O jeito seria correr atrás da melhor fonte possível: o próprio inquérito. Pelo tempo que passou, tudo indicava que ele estaria arquivado em Foz do Iguaçu.
O que Ivan esperava encontrar na documentação seria o básico de um caso de desaparecimento: depoimentos de pessoas que viram o piloto pela última vez, informações pessoais e relatórios. Mas, então, em certo momento da conversa com Cassiano e Wanda, uma revelação intrigou o jornalista: nenhum dos dois jamais foi procurado pela polícia.
Wanda era mãe dos dois filhos menores de Ilo. Seria esperado que, em um caso como esse, a delegacia responsável pela investigação entrasse em contato de tempos em tempos, perguntando por notícias. Ainda mais se tratando de um filho de Castorino, figura bastante conhecida na cidade.
A explicação mais óbvia aqui seria de que o caso não teria gerado comoção e pressão o suficiente na polícia para que investigassem de forma séria – algo que, infelizmente, é bastante comum. Só que o sumiço de Ilo chamou a atenção. Ele era, afinal, um importante funcionário público de um órgão federal em Foz do Iguaçu. Houve cobertura de imprensa. Houve certa articulação política por parte de Castorino. Houve pressão para que a investigação andasse. Então, por que Wanda nunca foi contatada pelos investigadores? Isso teria acontecido também com outros membros da família?
Ivo, irmão mais velho de Ilo, chegou a acompanhar o pai nas buscas pelo piloto, e disse não se recordar de nenhum depoimento prestado por Castorino para a polícia.
A família em Curitiba só tinha pedaços de uma parte da história. A mais importante, talvez, estivesse em Foz. E, então, entra na narrativa a figura de Tereza Cristina, a mulher com quem Ilo tinha um relacionamento quando sumiu. Será que ela deu algum depoimento? Os Rodrigues não sabiam responder essa pergunta. Isso porque eles jamais tiveram contato com Cristina após o ocorrido.
“O que eu sei é que, no meu último contato com o Ilo, ele disse ‘eu não vou buscar as crianças para o Natal porque eu e a Cristina estamos nos separando. Eu não vou colocá-la para fora, eu vou esperar, porque eu não acho justo. Mas nós não temos mais nada’. Eu acho que eu sou a única pessoa para quem ele ligou e justificou por que não vinha para cá”, disse Wanda ao podcast.
Pouco depois da mãe de Cassiano revelar essa fofoca, Iná, irmã mais velha de Ilo, complementou com outra. E a sensação que Ivan tinha é de que, pela primeira vez em quase 40 anos, aquela família conversava junto sobre o caso, tentando juntar pedaços de informações.
De acordo com Iná, lá pelo começo dos anos 2000, ela encontrou em uma feira de livros uma mulher de nome Elza, a quem ela chamava de Elzinha. Ela era filha de um químico que trabalhava na fábrica da Votorantim em Rio Branco do Sul, região metropolitana de Curitiba – na época em que Castorino atuava lá como diretor.
Todo final de semana, Castorino levava a família para Rio Branco, em confraternizações onde os funcionários da fábrica podiam levar seus familiares. A criançada, então, se encontrava e brincava junto. Foi assim que Ilo e Elza se conheceram.
Décadas depois, no encontro na feira de livros, Elzinha contou para Iná que sempre foi apaixonada por Ilo. “Ela me disse assim: ‘você sabia que eu estava namorando o Ilo, e ele me deu um vestido social lindo de presente para o Réveillon [de 1986]?’. […] Ele reservou uma mesa para o baile de Réveillon em algum lugar. E, no dia 27, desapareceu. Não sei se ela já sabia ou não. Mas, no dia 31, ela se vestiu, se arrumou, se maquiou e ficou esperando por ele, para o Réveillon”, relembrou Iná. Nessa época, Elzinha morava em Curitiba.
Segundo a família, Ilo nunca comentou com ninguém sobre passar o fim de 1986 com Elza, ou sobre o possível relacionamento que tinha com ela. Para recordar, nesta época, ele estava separado de Wanda e namorava Cristina há cerca de dois anos. E essa é outra característica que sempre vem à tona quando o assunto é Ilo: ele era “mulherengo”.
Até aqui, Iná e Wanda falavam das informações que chegaram em Curitiba. Mas o que se passava em Foz do Iguaçu naquela época? Cristina parecia cada vez mais ser uma peça central para responder a essa questão. Afinal, foi ela quem conviveu com Ilo naquele período – e a família do piloto parecia não conhecê-la muito bem.
Mas, a essa altura, Ivan já sabia de uma coisa curiosa: ela odiava ser chamada de Tereza Cristina, o nome pelo qual a família Rodrigues a identificava. Ela preferia ser chamada apenas de Cristina.
Ivan sabia disso porque, antes da reunião com os Rodrigues, teve uma conversa com ela por telefone. Na ocasião, Cristina se mostrou bastante reticente em relação a essa história, devido ao que havia acontecido. Ela lhe revelou poucas informações e disse que só daria mais detalhes pessoalmente.
Os primeiros relatos dela para Ivan davam conta de que, quando o sumiço de Ilo apareceu no jornal, o nome de Cristina também ficou em evidência. Em pouco tempo, ela passou a receber ameaças por telefone. Com medo, então, pediu proteção à Polícia Federal, que permaneceu na casa dela por alguns dias.
Ao ouvir essa história durante a reunião em família, Wanda comentou que havia uma gaveta cheia de ouro na residência de Ilo. Aparentemente, esses objetos estavam ligados ao tal negócio de semijoias que ele montava em Foz pouco antes do sumiço – sobre o qual teria dito que gostaria de buscar ouro em garimpo com seu novo avião.
No meio da conversa sobre as posses de Ilo, Cátia, filha de Ivo, repetiu uma informação que Ivan já tinha ouvido antes: o piloto mandava para Wanda e os filhos todo o salário que recebia do Ministério da Agricultura. Então, como ele teria condição de comprar um avião ou terrenos, de fazer investimentos e abrir negócios?
Ok, Castorino tinha muito dinheiro. Mas todos da família foram taxativos em dizer que ele era pão-duro e não ajudava ninguém. No máximo, dava uma boa quantia de presente para os filhos apenas no Natal. Fora isso, não importava a situação, nem se estivessem passando algum tipo de necessidade. Ele não abria o bolso de jeito nenhum. De onde, afinal, vinha o dinheiro de Ilo?
Cristina, assim como outros envolvidos no caso, também não foi chamada para prestar depoimento. E isso também intrigava Ivan. Parecia haver aqui um padrão esquisito, ou no mínimo incomum.
Isinha, filha de Iná, acredita ter uma explicação para isso. Foi ela quem, no episódio anterior, contou a história sobre o conselho de Romeu Tuma a Castorino. Para a sobrinha de Ilo, o fato de ninguém ter sido ouvido pela polícia tinha a ver com a mensagem de Tuma, alertando para que todos se afastassem do caso. Esse trecho do encontro dos Rodrigues mostra bem isso:
Ivo: […] O que eu acho mais preocupante é a ordem de raciocínio do Ministério da Aeronáutica. A primeira possibilidade que eles acham é contrabando de armas. Por isso que o Exército ficou todo ouriçado, e a Aeronáutica também, porque essa nossa fronteira sempre foi instável, muito instável. Então, para eles, a maior possibilidade era o contrabando de armas e de ouro, mas o ouro não era o primeiro item. A grande preocupação deles eram as armas.
Ivan: Aham. O que faria todo o sentido, é uma área onde passa muita arma. […] Mas eles nunca encontraram nada de armas nas posses do Ilo?
Ivo: Não. Que eu saiba, não.
Ivan: Era só a suspeita?
Ivo: Sim.
Iná: Tudo é suspeita. Tudo. Não tem nada de concreto.
Ivan: Que vocês saibam, né?
Isinha: Como eu estava falando, como o vô era grão-mestre maçom aqui de Curitiba e ele era funcionário direto do doutor José Ermírio por 40 anos…
Iná: 42 anos…
Isinha: Eles devem ter pulado toda essa etapa. Tipo, não quero polícia. Vai falar direto com…
Ivo: Na ocasião, o Aranha estava como ministro da Agricultura. E, numa das últimas vezes que eu falei com ele, que eu perguntei também, ele disse que não sabia nada de extra… Nada fora dos padrões e tal…
Isinha: Eu acho que nós estávamos no governo Sarney. Eu acho que foi pulada toda essa etapa, sabe? Começa mais para cima. “Não foi nada, meu filho já vai aparecer”. Para não ter escândalo. Então, sai todo mundo daqui, já começa no ministro, no delegado da polícia. Ficou sem a base.
No caos que foi a conversa com a família, o que mais incomodava Ivan era o fato de que aparentemente ninguém havia conversado com a polícia.
Aqui é importante entender onde estava o avião do Ilo na época. O piloto era um dos fundadores do Aeroclube de Foz de Iguaçu. A maioria dos sócios deixava as aeronaves no aeroporto da cidade. Só que o aeroclube tinha uma sede própria, localizada na fazenda de um amigo dos associados. A vantagem de manter o avião lá era simples: era muito mais barato. Já a desvantagem é que não havia qualquer fiscalização ou segurança. Mas se você estivesse metido em atividades ilegais, isso talvez pudesse ser uma coisa boa.
Esse é um dos fatos que chamou a atenção de investigadores e jornalistas da época. Para dar um exemplo, certa vez, Ivan conversou com uma pessoa que conhecia bem a Foz do Iguaçu dos anos 1980. Sabia quanto a cidade podia ser perigosa e corrupta.
Quando o jornalista explicou o cargo que Ilo tinha no Ministério da Agricultura, a resposta foi: “esse era um cargo muito alto. No mínimo, seria cheio de tentações para enriquecer com atividades ilegais”. Às vezes, essas tentações eram voluntárias. Outras vezes, forçadas.
A função de Ilo, basicamente, era a de liberar as cargas agrícolas na fronteira. E isso poderia colocá-lo em perigo, ainda mais somado ao fato dele ter um avião.
Poderia Ilo ter feito parte de atividades ilegais porque quis? Ou poderia até ter se envolvido com gente perigosa de forma voluntária e sofrido as consequências?
De novo, o recado de Romeu Tuma a Castorino passou pela cabeça de Ivan. E, pela primeira vez desde que começou a trabalhar com histórias de crimes reais, ele teve medo de estar se metendo onde não devia. De certa forma, sentia que o conselho de Tuma servia também para ele.
Mas o jornalista havia feito uma promessa à família. Ele queria ver até onde essa história ia levá-lo. No meio de tantas dúvidas, ele só tinha um caminho a seguir: ir atrás do inquérito do desaparecimento de Ilo Rodrigues.
Vendo as matérias da imprensa da época e todas as hipóteses criadas sobre o motivo do piloto ter sumido, a curiosidade sobre o caso só aumentava. Foi através do dossiê montado por Castorino que Ivan teve acesso a essas narrativas. Agora, finalmente, chegava a hora de revelá-las ao mundo – assim como as informações sobre a busca pelo inquérito. E Ivan precisa confessar que, durante as pesquisas, não esperava encontrar o que encontrou.