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Extras Episódio 08

No episódio anterior, o Projeto Humanos divulgou aquela que talvez seja a grande revelação de toda essa história. Uma informação que a família Rodrigues e os amigos de Ilo aparentemente não sabiam: no dia do desaparecimento, o caseiro da fazenda, Aleixo, viu o piloto chegar no aeroclube sozinho e decolar normalmente. Nada de estranho aconteceu naquele dia. 

Nas investigações que conduz, Ivan Mizanzuk, a princípio, tende a não confiar em testemunhas oculares. Por conta da pouca confiança que podemos ter na memória de um modo geral, o jornalista prefere olhar para documentações oficiais produzidas na época. Porém, neste caso, não há nenhuma disponível, o que o impede de utilizar esse recurso.

Mas existe um fator que possibilita tornar as lembranças mais confiáveis: quando algum detalhe ou uma preocupação específica marca o evento em questão. No caso de Aleixo, essa particularidade seria o carro de Ilo, a Belina. Afinal, o veículo foi mencionado todas as vezes que Marcelo Puhl falou com o ex-caseiro. 

Um relato como esse, tantos anos depois do ocorrido, está longe de ser uma pista ideal, mas é o que a equipe do podcast conseguiu descobrir de novo. E, ao menos para Ivan, o detalhe da Belina dá mais credibilidade para a narrativa. O jornalista acredita que, se algo incomum tivesse acontecido no dia do sumiço, como a chegada de pessoas desconhecidas ou gritos de ameaça, Aleixo lembraria. 

Como mencionado no terceiro episódio, eram três as principais teorias sobre o desaparecimento de Ilo. Sem um corpo ou destroços do avião, porém, é necessário pensar na hipótese mais provável a partir das informações disponíveis. Para isso, Ivan utilizará o mesmo método presente em trabalhos anteriores, que consiste em analisar os dados e recorrer à chamada Navalha de Ockham –  princípio de metodologia científica que postula que, em qualquer situação com várias explicações possíveis, a mais simples tende a ser a verdadeira.

Aqui, qualquer pessoa tem o direito de discordar de Ivan. Ele sabe que não é o dono da verdade. Mas, por ter investigado a história por um ano e meio, ele acha importante explicar qual teoria lhe parece fazer mais sentido.

Então, vamos às análises.

Uma das possibilidades mais comentadas em Foz do Iguaçu era a de fuga. As conversas da época indicavam que o motivo para Ilo sumir poderia ser o golpe no Banestado ou o envolvimento em uma quadrilha de tráfico de adubo. 

Ivan decidiu eliminar essa hipótese por dois motivos. Primeiro, quando partiu de Foz, o piloto convidou dois amigos para viajar com ele: Celso Maciel e Ari de Quadros. Segundo, em quase 40 anos, Ilo nunca entrou em contato com ninguém da família. E, sim, isso é relevante. Apesar de todos os problemas que poderia ter, a falta de comunicação não se encaixa no perfil dele, especialmente em relação aos filhos. Todas as pessoas com quem Ivan conversou foram unânimes em dizer isso. 

Outra teoria era a de sequestro. Como dito no episódio anterior, para o jornalista, essa era a que fazia mais sentido e que tinha maior fundamento, pelo menos com base nos dados da família e no material coletado por Castorino Augusto Rodrigues

Em Foz, no entanto, tudo mudou. Pelo menos para Ivan. Ele admite ter passado por um grande conflito interno, já que estava convencido do sequestro. Por fim, o jornalista decidiu analisar mais a fundo a hipótese de queda –  a primeira a surgir na época, e descartada apenas porque, até hoje, nenhum destroço foi encontrado. 

Seria essa ainda uma possibilidade? Para tirar essa dúvida, Ivan conversou com o empresário e consultor Lito Sousa, um dos especialistas em aviação mais conhecidos do Brasil. Ele participou do trailer desta temporada do podcast, emprestando a voz para simular comunicações de rádio do avião que Ilo utilizava em 1986.

CONDIÇÕES METEOROLÓGICAS

Após passar a reconsiderar a hipótese de queda, Ivan buscou informações sobre as condições meteorológicas do dia 27 de dezembro de 1986. Os dados disponíveis não eram dos mais precisos. Eles apontaram chuvas consideráveis no trajeto entre Foz e Curitiba, em ambas as cidades, e também em Guarapuava, que fica no meio do caminho. Não há registro, porém, da hora exata das precipitações.

Por ser dezembro, é possível dizer que eram chuvas de verão. Ou seja, chovia muito em um período curto de tempo. O ideal seria ter certeza dos horários dos temporais, mas, infelizmente, esses dados não foram encontrados. Ainda assim, as condições meteorológicas presentes nos registros não podem ser descartadas. 

Com isso em mente, Ivan perguntou a Lito sobre como a chuva poderia afetar um voo igual ao de Ilo, com o avião que ele usou. Segundo o especialista, a quantidade de água é um fator importante a ser considerado nesse contexto. Isso porque, dependendo do volume da precipitação, o piloto pode ter uma ideia da dimensão da célula de nuvem causadora do temporal.

“Como o voo era visual, em que você tem que manter contato visual com o solo o tempo todo ou com localizações no terreno, a chuva é um fenômeno que atrapalha. Não quer dizer que o avião não possa voar em condição de chuva, desde que ele tenha visibilidade. No entanto, uma chuva de volume maior vai afetar a visibilidade com certeza. Então, caso tenha ocorrido no voo dele um momento em que estava desaguando um grande volume de água, isso poderia ter causado um acidente”, explicou Lito. 

De acordo com o consultor, ao visualizar uma grande formação de nuvens à frente, o correto a fazer é dar meia volta e tentar escapar da falta de visibilidade. Mais uma vez, a recomendação contraria o suposto ensinamento que Ilo teria repassado à ex-companheira Cristina, sobre seguir para o litoral em caso de tempestade.

“Um dos aprendizados que eu tive quando estava tirando a minha carteira de piloto é que o bom comandante não é o que sai de situações difíceis, é o que não entra em situações difíceis. Então, não tem como você de repente ser surpreendido por uma tempestade. Você consegue enxergar à distância isso. E aí existe o componente do risco. Existe um fenômeno no ser humano que é: eu quero completar a missão, e a minha missão é chegar em Curitiba. E, se tiver um obstáculo na frente, você pode ter a tendência de ignorar o perigo que aquilo é, para cumprir a sua missão. Tivemos diversos acidentes aéreos na história causados por isso, pela tentativa de cumprir uma missão em um momento em que não era possível”, completou Lito.

Quando o especialista fala sobre a “tendência de ignorar o perigo para cumprir a missão”, duas situações vêm à mente: a foto do avião de cabeça para baixo no voo que Ilo fez com Celso Maciel, e os relatos dos amigos do piloto sobre a falta de experiência e o gosto dele pela emoção. Para Ivan, seria a cara do Ilo pensar que conseguiria chegar em Curitiba, mesmo com condições meteorológicas desfavoráveis.

CORTE DE COMBUSTÍVEL

Durante a entrevista, Ivan também questionou Lito sobre a história do sobrevoo no Lago de Itaipu, contada por Cristina em detalhes no episódio anterior. Em resumo, de acordo com ela, o avião teria sofrido com o corte de combustível, e Ilo decidiu encurtar o passeio, para evitar problemas mais graves.

No modelo Beechcraft Sierra, utilizado pelo piloto na época, os tanques estão instalados em ambas as asas. Uma bomba, então, pressuriza o combustível, que segue para a frente da aeronave, até o motor. 

“Existe uma seletora de combustível, e você tem que trocar de tanque. Então, você normalmente vai voar 30 minutos consumindo de um tanque, aí troca para o outro para manter o combustível mais ou menos balanceado entre uma asa e outra”, explicou Lito. 

Sobre o evento narrado por Cristina, o especialista afirma que ela pode ter percebido a falha na aeronave, caso não houvesse gasolina suficiente para o voo. “Então, um lado esvaziaria o tanque, e ele ainda teria um pouco de combustível no outro lado. Ela pode ter visto, sentada ao lado dele, o piloto virando a seletora para o segundo tanque. E, quando acabou o combustível, aí realmente não tem o que fazer, a não ser planar o avião. Mas, assim, cortar o combustível por uma falha é meio difícil. Porque ele [avião] tem duas bombas. Tem uma no próprio tanque, que puxa o combustível, e tem outra no motor também, do que está funcionando. Então, eu acho que, com esse histórico de fazer coisas erradas, ele não estava com combustível suficiente para fazer o voo”, opinou. 

Somado a isso, ainda há a viagem que Ilo, Celso e um amigo chamado Adilton fizeram juntos no Natal de 1986, dois dias antes do desaparecimento. Na ocasião, o avião também teria apresentado problemas. 

Nesse ponto, Ivan questionou Lito se seria possível que a aeronave não estivesse em condições de voar para Curitiba, se nenhum conserto efetivo tivesse sido realizado. “É totalmente possível. […] O motor é como se fosse de carro, com carburador. Dependendo de como o carburador está ou não ajustado, ele pode falhar, e o motor desligar em voo, como desligaria em um carro. Se nada foi consertado e eles voltam para essa fazenda, e depois ele [Ilo] encontra o mecânico, que também não faz nada ou não troca alguma peça, é bem provável que tenha acontecido novamente o problema em voo. Então, aí, você imagina, né? Você tem alguns fatores que começam a se unir para que um acidente aconteça”.

NENHUMA PEÇA ENCONTRADA

Para relembrar os pontos mais importantes até agora: 

  • Aleixo viu Ilo decolar sozinho;
  • o avião apresentava problemas;
  • choveu muito naquele dia em vários pontos do trajeto;
  • Ilo era aventureiro e não seria um piloto experiente.

Ao usar a navalha de Ockham, essa hipótese começa a fazer mais sentido. Aqui, porém, vem a pergunta óbvia: se o avião realmente caiu, por que nenhuma peça foi encontrada em quase 40 anos? 

A rota entre Foz do Iguaçu e Curitiba é feita incontáveis vezes todos os dias. Na época, buscas foram realizadas por todo tipo de equipe profissional. Será ainda possível acreditar nessa hipótese, mesmo passado tanto tempo? 

Para Lito Sousa, sim. Ele pontua que, em caso de tempestade, é provável que Ilo tenha desviado do conhecido trajeto entre Foz e Curitiba. Nesse contexto, é difícil determinar para qual direção ele pode ter voado. 

“Quando você faz um desvio em um voo visual, sem estar em um espaço aéreo controlado e sem qualquer aviso, ninguém sabe o que você fez. Se, no momento do desvio, você está passando por cima de uma mata ou de um morro com matagal fechado, e acontece um problema, o avião vai cair fora da rota entre Foz do Iguaçu e Curitiba. […] Então, o fato de não ter sido encontrado após 40 anos, em uma rota muito movimentada, não significa que o avião estivesse lá. Porque a possibilidade do desvio é grande”. 

De acordo com o especialista, o mais provável nessa situação é que o piloto tenha diminuído a altitude para tentar escapar da falta de visibilidade. Com isso, ele pode ter se deparado com o terreno montanhoso logo na saída de Foz, que dificultaria a realização correta de um pouso de emergência. 

“Eu acho a tese do acidente muito mais plausível. Mesmo porque, na fazenda, depois que a testemunha vê ele entrar no avião sozinho, seria muito difícil alguém se aproximar da aeronave se movendo, com a hélice ligada, com o motor ligado, e tentar entrar nela assim”, falou Lito. 

Então, dentre todas as possibilidades, a da queda agora parece ser a mais provável. E essa conclusão teve como referência as informações levantadas com Cristina, Celso Maciel, Ari de Quadros e Aleixo – detalhes compartilhados com o podcast que nunca chegaram à família Rodrigues. E, se chegaram, foram repassados apenas a Castorino, pai de Ilo, que sempre manteve em segredo as apurações conduzidas na época.

De todas essas pessoas, Cristina é a única que teria conversado com Castorino. Logo, pode-se supor que ele também não soubesse de tudo isso. Ao ouvir o recado de Romeu Tuma, então diretor-geral da Polícia Federal (PF), somado aos frequentes casos de aviões roubados na década de 1980, o pai do piloto passou a crer na teoria de sequestro. 

No entanto, como o delegado Teófanis Afonso relatou no episódio 5, seria pouco provável que Tuma conhecesse a fundo as investigações da época, e que estivesse olhando de perto para o caso de Ilo. A princípio, essa seria uma suspeita da própria PF de Foz, que, por via das dúvidas, recomendou que Tuma desse o tal recado para Castorino. Ivan não tem certeza absoluta de que realmente foi isso que aconteceu. Mas, ao pensar em possibilidades, de acordo com as pesquisas, essa parece ser a melhor explicação para esses eventos.

CONVERSA COM ISA

Ao levar a possibilidade de queda mais a sério, Ivan olhou para algo que, à primeira vista, havia lhe passado batido, mas que agora ganhava destaque na história.

Durante a viagem à Foz do Iguaçu, ele, Natalia e Cassiano aproveitaram para ir também à Cascavel, que fica a cerca de duas horas de distância de lá. Quem mora na cidade é a irmã mais nova de Ilo, Isa, que recebeu a equipe do podcast em casa. Durante o encontro, também estava presente a filha dela, Wendy, prima de Cassiano.

Na ocasião, Ivan contou para ambas o que havia levantado até o momento. E, em seguida, entrou no assunto que considerava essencial para a história: a jornada de Ilo em busca do próprio passado, e a vontade dele de falar pessoalmente com Isa sobre a infância e o convívio com a família.

Segundo Isa, ela e Ilo já estavam anos sem qualquer tipo de contato, quando, em dezembro de 1986, poucos dias antes do desaparecimento, uma ligação a surpreendeu. Era o irmão, dizendo que precisava falar com ela sobre “coisas do passado”. “Eu me lembro do comentário que eu fiz, ‘eu não falo sobre o passado’. Falei isso para ele. ‘Você venha, venha aqui, fique uns dias com a gente’. Ele disse ‘eu estou indo pegar os meninos, então, na volta, passo na tua casa para conversar com você’. Eu disse ‘ok, tudo bem’. Essa foi a nossa conversa”, relatou Isa.

Para relembrar, Cristina, Cassiano e Wanda dizem não ter certeza do plano para aquele final de ano: se Ilo levaria ou não as crianças para Foz.

Isa parece ser a única que se recorda de um suposto combinado. Ilo buscaria os filhos em Curitiba, e, no caminho de volta para Foz, pararia para visitá-la. Na época, a irmã mais nova morava em Guarapuava, cidade localizada no meio do trajeto que o piloto pretendia fazer.

Nesse ponto, voltamos aos dias que antecederam o desaparecimento. Primeiro, há a última ligação que o piloto fez para Wanda, a ex-esposa. Nela, Ilo diz que passava por dificuldades e havia decidido se separar da atual companheira. Ao falar com Cristina, porém, Ivan descobriu que ela não sabia de nada disso.

Conhecendo Ilo, é possível supor que a tal separação sequer fosse verdade. Como Ivan descobriria mais tarde, quando se encontrava com Wanda, o piloto costumava suspirar e dizer que tinha saudade dos velhos tempos – antes da mudança para Foz, cidade que a ex-esposa considerava perigosa demais para criar os filhos. 

Como se tudo isso não bastasse, ainda entra em cena a tal Elzinha, com quem Ilo aparentemente havia planejado passar o Réveillon daquele ano. Não dá para saber se isso também é verdade. Mas, no mínimo, Ilo tinha uma agenda bem atarefada.

Na entrevista com Isa, Ivan tentou montar o quebra-cabeça dos dias anteriores ao sumiço, revisitando o que foi dito, o que aconteceu e até o trajeto da viagem. Aqui, ele lembrou de um comentário feito por Marcelo Puhl, atual responsável pela fazenda onde funcionava o aeroclube: a Serra de Guarapuava é um terreno bastante perigoso para aviões que voam em baixa altitude. 

De acordo com Isa, após o desaparecimento, a Aeronáutica teria realizado buscas por cerca de um mês na região de Guarapuava. “Eu sabia que estavam procurando o avião dele. […] Todos os dias, passavam helicópteros. Baixo, baixinho. Estavam procurando por destroços”, disse.

Mais uma vez, a família acha difícil acreditar que, caso o Beechcraft tenha caído, nenhuma peça tenha sido encontrada.

Uma explicação trazida por Ari de Quadros, também experiente em aviação, seria que, dependendo do jeito como a aeronave caiu, e com o crescimento da vegetação, a possibilidade de achar destroços diminuiria de maneira significativa. Ao mesmo tempo, há quem discorde dessa afirmação. 

CONVERSA COM INÁ

Após discutir todas as hipóteses, Ivan, Natalia e Cassiano se despediram de Isa. Agora, o próximo passo seria retomar a conversa com Iná, a irmã mais velha de Ilo, que já havia aberto tantas gavetas da família para Ivan, inclusive com as cartas trocadas entre os pais. 

Para retribuir a gentileza, o jornalista queria contar a ela tudo o que havia descoberto em Foz, como as falhas que o avião apresentou pouco antes da última viagem. Ao ouvir isso, Iná fez um comentário interessante. “Os carros do Ilo eram caindo aos pedaços. Ele só usava os lixos. Não era ligado nisso. […] Nesse sentido, não era machão. Porque os machos têm que ter um carro bom, marca boa, modelo bom. Ele não ligava. Por isso, eu acho que o avião dele também devia ser um caco, porque era o jeito dele”, disse. 

Ainda sobre um eventual acidente, Iná afirmou que, embora buscas tenham sido realizadas na época, a falta de destroços fez com que as equipes logo abandonassem a teoria de queda e partissem para a de fuga. Isso, com certeza, teve um impacto negativo nas investigações. 

“O capitão que comandou a Salvaero [Centro de Coordenação de Salvamento] falou para mim e para o Ivo que quem não quer ser achado nunca vai ser achado. Foi a frase que ele falou”, lembrou Iná.

Durante a conversa, Ivan contou para ela que Guarapuava passou a chamar a atenção dele por dois motivos: primeiro, as condições meteorológicas apontaram que chovia na região no dia do desaparecimento. Segundo, e mais importante, Ilo teria combinado de passar por lá para visitar Isa.

Ao ouvir as novidades trazidas de Foz, Iná se mostrou um pouco mais esperançosa com as pesquisas do podcast. “Quando você [Ivan] surgiu, eu falei ‘ai’. […] Até a minha filha disse ‘mãe, não se meta nisso’. Mas é sobre o Cassiano e o Luciano. Eles já sofreram demais na vida. […] Então, eu acho que os dois merecem saber, seja o que for. Porque é aquela coisa que está no ar, ninguém sabe de nada. Quanto mais você conversa, mais aparecem histórias diferentes, não é?”, questionou.

CONVERSA COM CRISTINA

À medida em que se aprofundou na história do piloto desaparecido, Ivan se pegou refletindo sobre a trajetória de vida dele. Ainda bebê, Ilo sobreviveu a várias tentativas de interromper a vinda dele ao mundo. Quando criança, enfrentou uma série de problemas de saúde. Mas nada disso o impediu de tornar-se alguém singular, do tipo que marca a memória das pessoas. 

Cristina chegou a dizer que Ilo desapareceu porque era tão único que não poderia existir de verdade – alguém difícil de encontrar na vida real. E, assim, como uma pessoa que desde o início parecia destinada a não nascer, Ilo teve uma jornada breve, com um desfecho trágico, sumindo aos 40 anos de idade.

A própria Cristina carrega a culpa de ter revelado o paradeiro de Ilo para dois homens misteriosos que falavam castelhano. Após a viagem para Foz, Ivan sentiu que era importante compartilhar com ela o que havia descoberto lá. Então, um dia, já de volta à Curitiba, o jornalista ligou para a ex-companheira do piloto. 

Na ocasião, ele detalhou a busca de Ilo por autoconhecimento, descrita pelas irmãs, Isa e Iná, e contou sobre as circunstâncias do nascimento do piloto, envolvendo as tentativas de aborto de Gecy – fato que Cristina não sabia. 

Além disso, Ivan explicou a ela o que Iná havia dito sobre a visão dos pais, Castorino e Gecy, acerca dos filhos: em sentido figurado, os herdeiros “comiam o resto que caía da mesa”. Ou seja, quem importava dentro do núcleo familiar e tinha tudo de melhor era apenas o casal. E foi isso que Iná comentou com Ilo quando ele a procurou para falar sobre o passado. 

Segundo a irmã mais velha, parecia que o piloto queria entender por que os pais eram desse jeito, e como isso influenciou a vida dele. Para Iná, Ilo também sentia que faltava amor na casa dos Rodrigues e, ao mesmo tempo, se via mais pressionado do que os demais irmãos – justamente por ser  superprotegido. E ele não gostava disso. 

“Eu tenho a impressão que ele sentia como pressão e não como proteção. […] Era em cima… Ilo, Ilo, Ilo, Ilo, o tempo inteiro. […] Mas ele estava encucado com alguma coisa. […] Eu imagino que ele estava fazendo terapia e começou… Porque eu fiz seis anos de terapia. Quando você começa a mexer com terapia, é um tumulto, revira muito. Aquilo deve ter revirado, deve ter eclodido lembranças de infância, de adolescência. Aí, tem que trabalhar em cima disso”, afirmou Iná

De volta ao diálogo com Cristina, após toda essa explanação, Ivan perguntou se, em alguma ocasião, Ilo se abriu com ela sobre a relação dele com os pais. “A nossa conversa se circunscrevia mais à questão financeira, sabe? Assim, ele tinha uma crítica em relação ao pai por ter sido uma pessoa sovina. Por ter sido uma pessoa que era muito mesquinha com dinheiro. Era mais nesse sentido. […] A minha lembrança era essa, de uma certa mágoa por conta dos pais, especialmente pelo pai ter sido uma pessoa mesquinha com dinheiro”, respondeu. 

Novamente, aqui entra a questão do dinheiro. Essa era a camada mais superficial – a única que Ilo aparentemente mostrava para Cristina, escondendo as demais. Essa era a camada que fazia Ilo expressar a vontade de deixar uma boa vida aos filhos, de mostrar que eles eram amados. No fundo dela, havia a falta de compreensão sobre o complicado relacionamento que tinha com os pais. 

Olhando para isso com cuidado, Ivan tinha como objetivo entender como estava a cabeça de Ilo na época do desaparecimento. Como ele se enxergava, e como via em específico a relação com o próprio pai. Mas, acima de tudo, o jornalista queria descobrir por que o piloto sofria com tantas dúvidas justamente naquele momento da vida. 

E Ivan tinha uma suspeita, com a qual se identificou imediatamente: a tal crise da meia-idade. Afinal, Ilo tinha 40 anos quando desapareceu, idade parecida com a do jornalista, que hoje tem 41. 

Juntando todos os fatores, a busca por autoconhecimento, as conversas com as irmãs, e o comportamento de Ilo, para Cristina, a desconfiança de Ivan sobre a crise parece fazer sentido.

Além de discutir sobre as questões psicológicas que afligiam o piloto, um assunto imprescindível que Ivan queria abordar com Cristina era o testemunho de Aleixo – o ex-caseiro que viu Ilo decolar sozinho. Isso porque ela sempre carregou a culpa de ter revelado o paradeiro do piloto para dois homens que a visitaram no dia do desaparecimento.

“Eu vou ter que ruminar isso por um bom tempo. Me vem uma sensação de alívio, mas, ao mesmo tempo, querendo discordar. Sabe como? A culpa está tão estabelecida, que eu ainda quero justificar os caras ali e tal”, disse Cristina.

Ao pensar um pouco sobre as novas informações trazidas por Ivan, porém, pela primeira vez, a ex-companheira colocou em dúvida a possibilidade daqueles homens terem sequestrado Ilo. “Para chegar em Santa Terezinha, esses caras tinham que ter voado. Tinham que ter voado. Na fazenda, eu nunca tive coragem de ir. […] Mas, quando você a descreveu, eu fiquei imaginando. Eles teriam que ter chegado lá voando, e não poderiam ter feito nada sub-reptício, ajeitado, espreitado. Eles tinham que chegar e atacar, e não teriam tido condições de fazer isso”.

Nesse momento da entrevista, uma lembrança dos dias anteriores ao sumiço surgiu clara na mente de Cristina: Ilo preocupado, falando ao telefone, andando de um lado para o outro e fazendo de tudo para que a então companheira não ouvisse a ligação. Para ela, é bem provável que ele estivesse conversando com um mecânico de carro sobre os problemas do Beechcraft.  

A partir daí, Ivan faz o seguinte exercício de imaginação sobre o que pode ter acontecido:

  1. No dia 25 de dezembro de 1986, Ilo, Celso e Adilton viajaram juntos no Beechcraft até o aeroporto de Foz, com o objetivo de abastecer a aeronave. O avião apresentou problemas, mas o piloto conseguiu retornar para o aeroclube de Santa Terezinha.
  2. Ilo passou o dia seguinte em busca de um mecânico que pudesse ajudá-lo a consertar o Beechcraft. Essa teria sido a ocasião que Cristina o viu falando ao telefone.
  3. No dia 27 de manhã, ele e o mecânico – que seria especialista em carro – foram juntos ao aeroclube. Não se sabe se algum tipo de conserto foi feito. Fato é que Ilo se sentiu confiante o suficiente para seguir com o plano de viajar para Curitiba, o que fez após o almoço.
  4. Durante o trajeto, ele se deparou com um temporal, enquanto o avião voltou a dar problema. Sem conseguir realizar um pouso de emergência, a aeronave pode ter sofrido uma queda. Aqui, um dos locais possíveis para o acidente é Guarapuava, já que Ilo tinha combinado de visitar a irmã na cidade durante a viagem à capital.

A SERRA DA ESPERANÇA

Um ponto forte dessa teoria é a Serra da Esperança, cadeia de montanhas localizada na região de Guarapuava – um local pouquíssimo habitado e tomado por floresta.

De acordo com a cientista ambiental Alline Hlatki, que trabalha na região, a serra possui um pouco mais de 206 hectares, o que equivale a cerca de 20 quilômetros quadrados, e se estende por 10 municípios. Apesar de ser uma área de proteção ambiental, existem pessoas que moram por lá.

Na opinião da cientista, na hipótese de um avião ter caído na serra há 40 anos, moradores poderiam ter visto o acidente, dependendo da região onde ele ocorreu. É importante pontuar que, na época, a vegetação era bem mais densa do que é hoje.

Já mencionada neste episódio, aqui vale relembrar a explicação de Ari de Quadros: se cair de bico, o avião acaba encoberto pelas copas das árvores, e ninguém consegue encontrá-lo. Com o tempo, a vegetação cresce ao redor, o que dificulta ainda mais o trabalho de resgate.

O empresário Marcelo Puhl também falou algo parecido. Segundo ele, a Serra da Esperança é uma região perigosa, devido ao alto risco de acidente e do nível de dificuldade nas buscas.

Outra questão a se considerar é a seguinte: ninguém está procurando por Ilo há 40 anos. Aviões e helicópteros podem até passar por ali, mas sem um olhar atento. 

Por fim, além da mata densa, o local é repleto de cânions. Existe a possibilidade de que o avião tenha caído em algum deles. 

Mesmo com todos esses fatores, a cientista ambiental Alline Hlatki acredita que, em 40 anos, algo teria sido encontrado, já que moradores e trabalhadores frequentam a região.

Ivan admite não ser especialista no assunto e reforça que a opinião dele não precisa ser levada a sério. Mas, toda vez que o jornalista vê fotos da Serra da Esperança, ele acha difícil acreditar que o local foi explorado por completo nas últimas décadas. Afinal, é uma área grande, com vários pontos de mata densa e lugares muito altos ou muito baixos.

Mas, novamente, estamos lidando com possibilidades. Essa é só uma delas. 

Para o especialista em aviação Lito Sousa, o Beechcraft pode sim ter caído em uma área de serra e nunca ter sido encontrado. De acordo com ele, existem outros casos assim no Paraná, especialmente na região próxima de Curitiba e litoral, de aeronaves que sumiram e nunca mais apareceram.

“A gente teve um acidente recente em que um avião desse tipo [do Ilo] sumiu, e fizeram buscas, não encontraram nada durante dias. E aí descobriram o local porque o relógio do piloto possuía GPS. Era um GPS da Garmin, que é um GPS de aviação. Consultando a Garmin, eles conseguiram pegar a última localização do relógio, e a equipe de resgate chegou e encontrou [o avião]. Mas, em buscas visuais, não tinha sido encontrado nada. E também foi desvio de tempo ruim”, relatou Lito.

Ainda assim, existem outros cenários possíveis, segundo Lito. Por qualquer problema que teve, Ilo pode ter desviado do trajeto conhecido. Por isso, não dá para saber exatamente onde teria batido. Ou, então, ele pode ter caído em uma área de água e afundado, como o extenso Rio Iguaçu, que praticamente margeia a rota de Foz até Curitiba, além de todos os afluentes. 

Pode ter sido em qualquer lugar. Talvez, só o tempo mostrará onde Ilo foi parar.

VOLTA À CRISTINA

A hipótese mais provável sempre esteve ali, presente desde o início. E, depois de Ivan explicar tudo isso para Cristina, ela retomou o assunto sobre a relação com Ilo. 

“Ele passava, para mim, ser muito mais feliz do que era, muito mais seguro do que era. E muito mais conhecedor de aviação, que é o tópico que a gente está falando, do que era. Ele precisava me passar, sei lá, segurança. Até porque eu era uma mulher muito forte, do ponto de vista profissional, que é o que ele conhecia, né? Muito nova, com uma carreira bem-sucedida. Então, ele também tinha que ser uma pessoa especial”, disse ela.

Falando com Cristina, Ivan pensou em como ela conviveu com Ilo por apenas dois anos, enquanto o desaparecimento já se estendia por quase quatro décadas da vida dela. Essa história deixou marcas únicas em cada pessoa envolvida, mas, na ex-companheira, ficou especialmente o peso da culpa. 

A culpa é um sentimento complexo que nasce quando alguém acredita ter cometido um erro — seja consigo mesmo ou com os outros — e sente-se responsável por ele. Mais que isso, a culpa se comporta como uma peça de roupa manchada que, por mais que se tente limpar, permanece suja. 

Mesmo quando Ivan contou à Cristina que a queda era a possibilidade mais plausível, ela ainda teve dificuldade de enxergar a história por esse ângulo. “Você falou, e é como se não tivesse falado nada, emocionalmente. Sabe como? O Fusca continua lá. Os caras continuam lá. E eu nunca devia ter dito, por mais óbvio que possa parecer que os caras nem chegariam a tempo no aeroclube. Porque, pela narrativa, ele chegou e já saiu. Nem a obviedade do tempo me convence. Mas a terapia vai convencer”, afirmou ela. 

Como o jornalista disse anteriormente, uma história, da vida real ou da ficção, é feita de momentos muitas vezes não muito claros para quem está envolvido emocionalmente. Até mesmo detalhes óbvios podem passar despercebidos. Exemplo disso é que, aparentemente, na época, ninguém da família procurou saber quem estava no aeroclube quando Ilo decolou.

Na verdade, o próprio fato do piloto guardar o avião lá já era motivo de discussão entre ele e Cristina. “Que era um lugar abandonado, eu sabia. Tanto que eu brigava com ele, eu dizia ‘mas por que deixar o avião nesse lugar tão ermo?’. E ele falava que era para economizar, para deixar o avião mais protegido. […] Era uma discussão forte nossa, por conta daquela ideia de eu chamar ele de sovina. […] E aí bateu forte para ele de repente se perceber parecido com o pai. Ele não se enxergava parecido com o pai. E uma das coisas que eu pude demonstrar para ele é que ele era mesquinho. Não precisava economizar dinheiro com isso”, contou.

SOBRE PAIS E FILHOS

Ivan abriu esta temporada do podcast com duas informações. Primeiro, essa era uma história de um avô, um pai e um filho, entrelaçados por suas semelhanças e diferenças. Segundo, o caso havia chegado até ele por meio da colega de trabalho Vanessa Brudzinski.

Mas há uma parte importante que o jornalista omitiu. Após três anos de namoro, o relacionamento entre Vanessa e Cassiano terminou. Ele começou a fazer mestrado porque queria seguir carreira como pesquisador – o que de fato conseguiu. Ela, por sua vez, trabalhava e estava no fim da pós-graduação. 

Nessa época, no início dos anos 2000, ambos começaram a ter ideias diferentes sobre o futuro. Enquanto Vanessa tinha vontade de discutir os próximos passos do namoro e definir de vez se finalmente morariam juntos ou terminariam, Cassiano fazia o máximo para evitar esse tipo de conversa. 

Isso porque ele estava completamente focado no mestrado, que acabou lhe rendendo muita dor de cabeça por conta de problemas com o então orientador. No fim, Cassiano não conseguiu o título na Universidade Federal do Paraná e precisou partir para um novo mestrado, desta vez na Bahia.

No meio desse furação, das incertezas sobre a carreira e de um namoro vai-e-volta, Vanessa engravidou. “Quando eu olhava para mim e para os meus desejos, a minha história de vida, era uma felicidade, porque eu sempre me vi mãe. […] Para mim, ser mãe fazia parte do meu eu”, disse ela em entrevista ao podcast.

Munida desse sentimento, Vanessa decidiu continuar com a gravidez. Cassiano aceitou, mas disse que não teria como participar de todo o processo, pois já estava de mudança para a Bahia, onde voltaria a estudar. Nesse contexto, nasceu Ana, a filha dos dois, em 2003.

Da parte da família de Cassiano, Wanda sempre fez questão de estar presente na vida de Vanessa e da neta, servindo como uma importante rede de apoio.

Por outro lado, Cassiano seguiu o caminho que sempre lhe atraiu, os estudos e uma carreira como pesquisador. Ele decidiu viver grandes aventuras pelo mundo, assim como o pai e o avô.

Ivan se perguntava se essa atitude poderia ter algo a ver com a ausência de Ilo na vida dele. O assunto surgiu no meio de uma conversa entre os dois.

“Eu não consigo bater o martelo. Eu já pensei em todas as possibilidades. Eu creio que seja possível. […] Pode haver um componente de sinergia nisso, um traço de personalidade, e a perda do pai… […] E o engraçado, cara, é que você vai olhar no mapa astral, a gente tem a mesma marca lá. Os três, meu pai, eu e ela. Saturno na casa não sei das quantas. Problemas com o pai. Eu não sou muito da astrologia, mas essas coincidências me matam. Hoje em dia, eu tenho uma relação muito boa com a Ana, na medida do possível, de muito respeito, do pouco tempo que a gente passa junto. A gente se curte, é muito parecido, né? Coitada. E ela herdou esse mesmo traço, essa independência, essa curiosidade”, disse Cassiano.

Na época dessa conversa, Ana havia conseguido uma bolsa de intercâmbio na Argentina, onde ficou por seis meses. Ela estuda Direito na Universidade Federal do Paraná, um dos cursos mais disputados da instituição. 

Ana é mais uma das fortes mulheres que amarram a história de Castorino, Ilo e Cassiano. Ela faz parte de um novo capítulo dessa narrativa, como uma neta que só conheceu o avô biológico por meio de relatos que ouviu quando já não era mais criança.

“Até os meus 10 anos, eu fui criada pelo segundo marido da minha avó [Wanda], que é o Ayrton. […] Ele faleceu, já vai fazer 11 anos. Mas, durante a minha infância inteira, ele era o meu avô. Eu acho que descobri que ele não era o meu avô biológico muito tempo depois. […] Para mim, isso foi um choque. Então, quando eu era criança, eu nunca tinha me interessado muito pelo Ilo. Porque eu já tinha um avô”, explicou Ana em entrevista ao podcast. 

Só mais tarde, ela passou a ouvir as histórias de Wanda sobre Ilo, o piloto que desapareceu misteriosamente. E a ausência parece ser um fator constante na vida dela, marcada também pela distância que sempre teve do pai, Cassiano.

“Logo que eu nasci, meu pai se mudou para a Bahia para fazer mestrado lá. Então, eu nunca fui muito próxima do meu pai, na verdade. Eu fui criada a vida inteira pela minha mãe, e sempre vi o meu pai uma vez por ano. Sempre na época do meu aniversário, no final do ano, é quando eu vejo o meu pai. A gente está bem e tudo mais, mas não é uma relação muito próxima. Eu acho que nunca foi”, afirmou.

Durante a conversa, Ivan também questionou Ana sobre o espírito aventureiro tão presente na família do pai dela, a ideia de não ter amarras, de não hesitar em se jogar no mundo. O jornalista queria saber se ela também se vê assim, ou se é completamente diferente dos Rodrigues.

“É engraçado, que é um pouco dos dois. Eu quero muito ter filhos. Eu gosto de ter compromisso, eu gosto de namorar, eu gosto de ter alguém comigo. Mas eu gosto muito de viajar. […] Eu queria muito morar fora, passar uns anos fora, ou ter um emprego em que tivesse essa possibilidade, de passar um tempo sem essas amarras também. […] Não sei, eu tento. É muito difícil. Eu me esforço muito para não ser igual ao meu pai, mas é um pouco difícil. Eu acho que não faria igual ele, de deixar a família. Mas eu gostei muito da experiência morando fora, é algo que eu faria também”, completou.

Não foi só um pouco do espírito aventureiro que Ana herdou do pai. Assim como Cassiano, ela também tem o sobrenome Gatto – que só voltou à família justamente porque Ilo fez questão de incluir na certidão dos filhos. “Eu gosto muito do meu sobrenome. Eu gosto de Gatto. Prefiro [Gatto] do que Rodrigues. É uma coisa mais incomum”, disse Ana.

A partir dessa conversa, Ivan entendeu como a filha de Vanessa e Cassiano se vê nessa história. Juntos, eles encontraram algumas coincidências curiosas entre as gerações, mas também várias diferenças. 

No fim, nós somos as somas e subtrações de tudo o que nos rodeia. 

BLOQUEIO EMOCIONAL

Durante esta temporada, o irmão de Cassiano, Luciano, foi mencionado diversas vezes. No entanto, por ser mais reservado, ele não quis participar do podcast e, por isso, não apareceu. 

Até mesmo Cassiano, que topou contar a história do pai, às vezes parecia não se abrir tanto. Durante as entrevistas em Foz, por exemplo, Ivan notou que ele passava muito tempo quieto, mais ouvindo do que perguntando. 

Em uma última conversa com Wanda, o jornalista mencionou isso. Para a mãe dos dois, esse tipo de comportamento pode ser fruto de um bloqueio emocional. Ou, quem sabe, de uma característica herdada do pai, que também evitava falar sobre a vida pessoal com familiares e amigos.

Nesse contexto, Wanda levantou um ponto completamente inédito para Ivan. Aqui, já fica o aviso de gatilho, pois ela falou sobre a possibilidade de Ilo ter tirado a própria vida.

De acordo com Wanda, dependendo da situação, talvez ele fosse capaz de fazer algo nesse sentido. Isso porque, quando o piloto visitava os filhos em Curitiba, ele aparentava estar infeliz com a separação, e fazia comentários sobre como sentia falta da vida antes da mudança para Foz do Iguaçu.

“A gente tinha uma proximidade muito louca, e de confiança. Ele confiava em mim como eu confiava nele, nas nossas coisas de casal, de família. Eu acho que a gente se separou mais pelas circunstâncias de eu vir para cá para os meninos poderem estudar. […] Então, a gente tinha essas coisas boas, nossas. Eu acho que ele estava muito perdido. Porque a Iná deve confirmar, e a Isa também. O seu Castor falava para mim ‘como é que está o teu filho mais velho?’. Ele sempre falava assim. Eu cuidava dele como um filho, às vezes”, relatou Wanda

Na visão dela, seria possível que Ilo estivesse em um estado de depressão profunda, sem deixar transparecer e sem comentar com ninguém.

ÚLTIMAS ANÁLISES

Por fim, para encerrar essa história, Ivan precisava ter uma última conversa com Cassiano. Nela, o jornalista apresentou para ele a conclusão sobre o acidente. E, como esperado, ele não acreditou muito nessa hipótese. 

“Que fugiu, não fugiu. Mas eu acho que é pouco provável que ele tenha caído também. Porque são 40 anos. Eu sou um cara que vive na floresta. Eu sei que não tem um metro quadrado de qualquer floresta que não tenha sido percorrido. A gente acha que é uma floresta fechada, mas não, está cheio de gente lá dentro. Principalmente caçador. E não tem um metro quadrado do Parque Nacional do Iguaçu que não tenha caçador”, afirmou Cassiano.

O jornalista, então, relatou o que Lito Sousa explicou para ele, sobre os casos de aviões que caíram em região de mata e não foram encontrados até hoje. Ele também pontuou que existe a chance de Ilo ter desviado da rota Curitiba-Foz, o que aumenta significativamente a área de busca para além do Parque Nacional do Iguaçu.

Mesmo assim, Cassiano ainda acha difícil acreditar que, em caso de queda, nunca nenhum destroço tenha sido encontrado. A não ser, claro, que o avião tenha caído em um rio ou no mar e afundado.

Independente disso, o maior interesse de Ivan nessa última conversa com o filho de Ilo era entender se a experiência com o podcast mudou alguma coisa para ele. 

A resposta de Cassiano foi a seguinte: 

“A minha vida mudou muito, e tem tudo a ver com a pergunta que você me fez agora. Por quê? Porque não deixa de ser uma cutucada na ferida, né? E essa cutucada na ferida, de um assunto tão importante, como o desaparecimento do pai, tirou um pouco dessa sensação de afastamento, por razões óbvias. A gente tem que falar sobre isso, tem que colocar a família para falar sobre isso. E o que aconteceu foi realmente um afastamento de tudo, de qualquer questão relativa ao meu pai, à família dele, ao desaparecimento, e uma forma de negação do que aconteceu. E é claro, isso traz um certo conforto, mas, por outro lado, traz uma inquietude constante, crônica, aquela sensação de que tem alguma coisa que não está resolvida. E esse tempo, esse período, essas conversas com os tios, as tias, com os amigos do pai; essa nossa tentativa de reconstruir os últimos passos, os últimos momentos; isso tudo fez aflorar vários sentimentos que estavam recolhidos. Também, 40 anos depois, praticamente, eles não alteram tanto o meu emocional ainda, mas trazem alguns sentimentos importantes com relação à necessidade de voltar a falar com a família, de escutar as velhas histórias. De ver como é importante que todos tenham colocado as suas angústias, as suas lembranças, para fora, uma espécie de uma catarse familiar. […] Não deixa de ser uma última oportunidade de fazer uma homenagem também a essas figuras fortes, tanto o meu pai, quanto o meu avô, minha avó e a família toda envolvida. E nada melhor do que muita clareza, toda a verdade possível, todos os fatos possíveis que possam ser levantados, que assim o sejam, e que configurem uma história bacana, que poderá ser escutada pelos futuros descendentes. […] E isso traz um pouco de conforto, isso de fato traz um pouco de conforto, apesar de não mudar essencialmente o fato de que o meu pai desapareceu e da gente ainda não saber o que aconteceu com ele”.

A reflexão de Cassiano vai além. Para ele, em relação às heranças geracionais, existem os componentes genéticos, de comportamento, reações e formas de agir e de ver o mundo; e também os aprendizados repassados pela família, por meio da criação. Segundo o filho do piloto, mesmo convivendo com o pai por apenas 12 anos, essa forte conexão entre eles é totalmente visível.

“Desde a minha cara, a cor do meu olho, o jeito de sorrir, como todo mundo fala, até algumas coisas em relação à postura, em relação à vida, né? Esse lado meio aventureiro, meio inquieto. E é legal reconhecer isso. Isso é uma coisa que já me trouxe muitos problemas na vida, mas eu gosto. Eu acho algo romanticamente aceitável ter que lidar com esses desafios, de trazer essa bagagem da inquietação. […] E, nesses dias, eu venho pensando muito sobre isso também. E tenho coisas para resolver agora com a minha filha. Eu tenho uma filha, e ela se criou longe de mim. Eu quero tentar reatar os laços, tentar fortalecer mais essa relação. E eu tenho certa dificuldade, talvez por conta de tudo isso com o meu pai. Eu tenho certa dificuldade de expor sentimentos, de lidar com essas coisas, de lidar com paternidade, lidar com família. Isso tudo sempre entrou no pacote do afastamento. […] Eu espero que isso seja um aprendizado agora, nesse momento que eu vivo. Eu já tenho mudado bastante”, afirmou.

Depois de um ano e meio de pesquisas, entrevistas e discussões de hipóteses, Cassiano diz que ainda não tem uma opinião completamente formada sobre o que aconteceu com o pai. 

“Qualquer opção é possível, apesar de eu ter a certeza interna de que meu pai não fugiu, nem nada. Mas eu não consigo bater o martelo e ter uma opinião formada a respeito do destino dele, onde estão seus restos mortais. Eu tenho certeza que ele morreu. Isso é uma das poucas coisas que eu tenho certa segurança para falar. E, como eu disse, não muda nada, porque permanece a admiração, o respeito. Eu reconheço muito do que sou hoje, no que era o meu velho. Eu trago coisas comigo, até hoje, que eu aprendi com ele”, concluiu.

Se essa fosse uma ficção, Ivan a terminaria da seguinte forma: 

Primeiro, ele não teria falado muito sobre a Serra da Esperança em Guarapuava, mas sim deixado isso como um detalhe curioso em algum ponto da história, apenas uma possibilidade dentre tantas.

Então, avançaríamos uns 50, 60 anos. Uma pessoa qualquer entra em uma região de mata na serra. No final, veríamos somente o pedaço de uma fuselagem e, nele, leríamos PT-IVO. Seria um final satisfatório – e incrivelmente poético, por tudo isso ocorrer em um lugar que carrega “Esperança” no nome. 

Mas como Ivan sempre diz: a vida só faz sentido na ficção. Na vida real, somos falhos, contraditórios, e grande parte das ações que tomamos e eventos que vivemos não possuem nenhum significado mais profundo. 

Mas, um dia, algo inusitado acontece. Algo curioso para alguns, mas doloroso para você. E, então, chega um jornalista e diz que quer contar a sua história, sobre aquela época, aquelas pessoas, aquela dor. Sobre o pior momento da sua vida. 

Como esse jornalista vai retratar você? Será no seu melhor momento? Ou no pior? Quem você é de verdade? Como os leitores ou ouvintes te interpretarão?

Quem era Castorino Augusto Rodrigues? Seria o descendente de indígenas que veio do nada e se tornou um dos funcionários mais importantes de uma das maiores empresas do Brasil? Seria o marido amoroso que escrevia longas cartas de amor para a esposa? Seria o autodidata curioso que descobria de tudo um pouco? Ou seria o pai controlador? O avô que nunca ajudou os netos? O agente secreto do exército? O apoiador da ditadura? O pai que definhou e morreu por não ter uma resposta sobre o que ocorreu com o filho? 

Quem era Ilo? 

Quem é Cassiano

Quem será Ana? 

É provável que muitos ouvintes do Projeto Humanos tenham chegado até aqui por meio das investigações de Ivan sobre casos criminais, que começaram na história de Evandro. 

O jornalista tem consciência, porém, de que a sétima temporada é diferente – e isso foi proposital. Por muito tempo, ele abria todos os episódios do podcast com a frase “histórias reais sobre pessoas reais”. Apesar desse lema nunca ter fugido da proposta do trabalho de Ivan, há uma sensação de que ele acabava sendo ofuscado pelos fatores criminais.

No fundo, o jornalista sempre se interessou por histórias de pessoas. E a do piloto desaparecido é uma história familiar disfarçada de investigação criminal.  

Ivan nunca nutriu grandes esperanças de descobrir o que aconteceu com Ilo Rodrigues. Mas, ao olhar a caixa de Wanda naquele primeiro encontro, ele não conseguiu resistir. A curiosidade ganhou. E, à medida que os meses foram passando, ele criou um tipo de carinho por Ilo. 

Nós começamos essa história acreditando que o piloto estava envolvido em grandes trambiques e, por isso, fugiu. Depois, temos certeza que ele foi sequestrado, em um contexto muito particular da história brasileira. Por fim, percebemos que o mais provável era o que estava na nossa frente o tempo todo. Pelo menos, essa foi a percepção de Ivan. E esse pêndulo de crenças é fascinante. 

Ao entrar em contato com as pessoas que conheceram Ilo, Ivan se encantou cada vez mais por elas, com todas as suas camadas, feitas de defeitos, virtudes, complexidades e, principalmente, contradições.

Ele diz que, quando aceitamos que é isso que nos faz humanos, é difícil não se emocionar de alguma forma ao olhar uma rua que leva o nome de um personagem que estudou há meses. Perceber que aquela pessoa das cartas e das histórias foi real. Que aquela rua existe. Não precisa ser uma emoção boa. Não precisa ser ruim. Pode ser só algo que não dá para explicar direito. 

Afinal, o nome desse podcast é Projeto Humanos. E, quando esse personagem gigante na cabeça do jornalista tem uma rua com duas quadras, é difícil não achar que ele merecia mais. Não por ser uma pessoa boa, não por ser uma pessoa ruim. Mas simplesmente por ser a pessoa presente nos pensamentos dele há tanto tempo. 

Castorino gostava de nomear os filhos com três letras para que não lhe dessem apelidos. Dizia para a esposa Gecy como ela deveria escrever o próprio nome. Tinha orgulho do sobrenome Gatto. Mudou o próprio nome para que fosse melhor reconhecido. É evidente que se preocupava com nomes. E, após a morte, ganhou uma rua com o seu. 

Mas nunca conseguiu nomear o que exatamente aconteceu com o filho Ilo – que, por sinal, virou nome de hangar na pista de um amigo. 

Então, qual a importância de um nome? 

Que nome damos para o que não sabemos? 

Quem lembrará dos nossos nomes? 

No futuro, quem lembrará do piloto que sumiu em dezembro de 1986?