Extras Episódio 01

Curitiba. Setembro de 2024. O jornalista Ivan Mizanzuk leva a colega de trabalho Natalia Filippin para um passeio secreto. O destino é uma pequena via localizada no bairro Cajuru, com um nome que não parece chamar muito a atenção de quem passa por ali: Rua Castorino Augusto Rodrigues. Mas para quem está prestes a mergulhar nesta nova temporada do podcast Projeto Humanos, esse nome significa tudo.
Ao olhar para a placa, uma pergunta ronda a mente dos dois jornalistas: quantas histórias e segredos podem existir em um nome de rua?
Para entender como chegamos até aqui, é preciso voltar no tempo. Sejam bem-vindos à história do Piloto. E ela inicia com uma mensagem recebida por Ivan, enviada pela designer Vanessa Brudzinski, uma antiga colega de trabalho da época em que ambos eram professores em uma universidade em Curitiba.
Depois da produção do Caso Evandro, em 2018, Vanessa começou a ouvir o Projeto Humanos. E, a partir dali, passou anos pensando em contar uma história para Ivan. Nela, três homens de uma mesma família estão conectados, não só por laços de sangue, mas também por suas diferenças e muitas semelhanças: um avô, um pai e um filho. Vamos começar pelo filho, que também é neto.
Durante a década de 1990, quando tinha 17 anos, Vanessa conheceu Cassiano, um rapaz que morava perto da casa dela. Filho mais velho de uma mulher chamada Wanda, ele frequentava o mesmo colégio que Vanessa, o antigo Cefet, em Curitiba.
Ela cursava Desenho Industrial, e ele fazia Eletrônica. “Eu tinha lá os meus 17 anos, e eu estudava no Cefet. E, meu Deus do Céu, era a época em que os cabeludos eram o sucesso da meninada”, contou Vanessa em entrevista ao podcast. “Eu acho que eu já tinha olhado ele em algum momento, de longe. Chamava a atenção, um moreno, cabelão super comprido, olhos azuis… Pronto, era a sensação, eu já tinha passado o olho”.
Mas ambos se notaram pela primeira vez quando Vanessa andava de bicicleta pelo bairro e, no labirinto de ruas que separava a casa deles, o encontrou várias vezes pelo caminho. Mais tarde, no dia da matrícula no colégio, Cassiano a abordou e perguntou se não era ela a menina que o seguiu de bicicleta. Ela respondeu que sim e não, que pedalava pela vizinhança na ocasião, mas que não estava atrás dele. Foi assim que eles começaram a se esbarrar e a interagir de vez em quando. O namoro, no entanto, só aconteceu cinco anos depois.
Por serem do mesmo círculo social, antes mesmo do relacionamento entre eles, Vanessa e Cassiano tinham amizades em comum. Um dia, uma prima dela começou a se envolver com um rapaz que tocava na mesma banda que o irmão mais novo de Cassiano, Luciano. Foi a partir daí que Vanessa começou a ouvir os boatos em torno do pai dos garotos. “Nessa época, para a gente, [a história] era meio lenda urbana. Porque os meninos estavam naquela fase de rebeldia, e lógico que não ficariam chorando para os amigos [sobre a situação]”, explicou Vanessa.
Alguns anos depois, já no final da década de 1990, Vanessa e Cassiano passaram a se relacionar. Eles tinham por volta de 20 anos de idade. “A gente namorou por três anos, e os natais tinham uma aura… Na época do Natal, ele não queria saber disso, não queria festejar, e eu não sabia o porquê daquilo. Então, quando eu escutei o Caso Evandro, comecei a entender a cabeça deles [Cassiano e Luciano], nessa perspectiva”, disse Vanessa.
O podcast foi o empurrão para que Vanessa conversasse com Cassiano sobre a possibilidade de contar a história da família para Ivan e, quem sabe, torná-la pública por meio do Projeto Humanos.
Assim, pela primeira vez, Ivan entrou em contato com a misteriosa narrativa envolvendo Ilo Rodrigues, ex-marido de Wanda, pai de Cassiano e Luciano – e uma lenda urbana entre aqueles jovens de Curitiba.
Vanessa não mencionou nessa entrevista, mas, na mensagem original que enviou para Ivan, ela trazia outras informações. Aparentemente, Ilo era piloto, e a família dele teria relação com a Votorantim, a gigantesca empresa criada há mais de 100 anos por José Ermírio de Moraes, um dos empresários mais poderosos e influentes do Brasil na época.
Tudo isso deixou Ivan curioso, e tomou a mente dele nos últimos meses. Só que o jornalista não conseguia encontrar nada sobre Ilo em pesquisas pela internet. Quando tinha alguma sorte, as informações eram escassas. Ele precisava ir atrás de mais dados. Assim, aproveitou que Cassiano estava em Curitiba, passando uns dias na casa da mãe, Wanda, e foi visitá-lo.
MUDANÇA PARA FOZ DO IGUAÇU
A casa de Wanda, localizada no bairro Bacacheri, em uma região bem tranquila de Curitiba, é típica de uma família de classe média. Ivan Mizanzuk bate palmas ali na frente, e um homem abre a porta para recebê-lo. Ele tem por volta de 50 anos, mas parece ser mais jovem. O cabelo comprido está amarrado, e ele usa óculos de lentes redondas. Além disso, carrega uma guitarra e pratica algumas frases musicais. É Cassiano, e ele convida Ivan para entrar.
Wanda aparece logo em seguida, perguntando se o convidado aceita café. Ivan diz que sim, e senta-se no sofá da sala, um cômodo com todas as características de que pertence a uma avó, mas com netos já crescidos. Como é para ser uma conversa informal, o jornalista coloca o gravador no meio da sala.
Durante o bate-papo, Ivan descobre que Wanda nasceu em 1947, um ano depois de Ilo, que é de 1946. Os dois se conheceram ainda adolescentes em Curitiba, pois Wanda estudava com uma das irmãs de Ilo no colégio.
Quando terminou o ensino médio, Ilo cursou Engenharia Agronômica na Universidade Federal do Paraná, e se formou em 1969. Em seguida, conseguiu um emprego em São Paulo, onde ficou por dois anos até voltar para a capital paranaense. Nesse meio tempo, o namoro de Ilo com Wanda teve idas e vindas. Mas, quando ele retornou para casa, os dois reataram e decidiram se casar, em 1971.
O casamento durou pouco mais de 10 anos. Nesse período, o casal teve dois filhos – aqueles que Vanessa, a colega de faculdade de Ivan, introduziu brevemente: Cassiano, nascido em 1974, e Luciano, nascido em 1977. Um dos motivos da separação envolve um evento fundamental para a história, uma mudança. Por volta de 1980, Ilo Rodrigues foi aprovado em um concurso público. Ele seria nomeado diretor da Delegacia Regional do Ministério da Agricultura, em uma das fronteiras mais complicadas do Brasil: Foz do Iguaçu, de onde é possível ir para o Paraguai e para a Argentina.
A travessia mais famosa é a do Paraguai, feita pela Ponte da Amizade, sobre o extenso Rio Paraná. Essa região é bastante conhecida pelos sacoleiros que passam pela ponte todos os dias, trazendo muambas das mais diversas, desde cigarro, perfumes, até eletrônicos. O Paraguai é um lugar muito visado nesse sentido, já que os produtos importados são geralmente mais baratos lá do que no Brasil.
E é claro também que, em uma área como essa, ocorre uma série de crimes até hoje – especialmente tráfico de drogas e armas. De acordo com o Censo de 2022, atualmente Foz do Iguaçu possui cerca de 285 mil habitantes, sendo a sétima maior cidade do Paraná. Em 1980, quando Ilo e família se mudaram para lá, Foz tinha pouco menos da metade disso, 136 mil moradores. Esses números seriam irrelevantes, não fosse o seguinte: 10 anos antes, em 1970, apenas 34 mil pessoas viviam em Foz. Ou seja, em uma década, a cidade ficou quatro vezes maior. Foi um crescimento gigantesco e descontrolado. E isso tinha um motivo: a construção da Usina de Itaipu.
Trabalhadores do Brasil inteiro foram para lá na época. E, quando a obra foi concluída, muitas dessas pessoas se viram sem emprego e perspectivas. A consequência disso já é bem conhecida: a cidade ficou extremamente violenta. Era para essa Foz do Iguaçu que o casal Wanda e Ilo, com os dois filhos, estavam prestes a se mudar. A função de Ilo como diretor no Ministério da Agricultura seria de comandar a fiscalização de uma série de produtos que atravessavam as fronteiras.
“Uma das razões pelas quais eu quis vir embora é porque eu me senti insegura lá. Eles viviam ameaçando o pessoal do Ministério. Tanto que tinha quem trabalhasse armado. Os paraguaios ameaçavam e matavam gente [para poderem passar ilesos pela fronteira]”, contou Wanda durante a primeira conversa com Ivan.
De acordo com ela, os fiscais, no geral, tinham medo dessa situação. Mas não o Ilo. “Ele confiava na lábia dele, era bom de conversa”, afirmou Cassiano. E Wanda completou: “ele era muito simpático, muito alegre. Sabe uma pessoa muito alegre? Muito legal, assim? Então, longe de qualquer suspeita”.
Diante desse cenário, temendo pela segurança dos filhos, Wanda decidiu voltar para Curitiba com os dois em 1982. Eles foram morar na mesma casa onde viviam antes da mudança – a casa onde ela mora até hoje. Já Ilo continuou em Foz. Pouco tempo depois, o casal se separou.
Os anos passaram. De vez em quando, Ilo ia para a capital visitar os filhos. Em outras ocasiões, os filhos viajavam para Foz. Como a maioria das pessoas que faziam essa rota, muitas dessas viagens eram realizadas de carro ou ônibus – um trajeto de mais de 700 quilômetros, que hoje em dia demora entre 9 e 10 horas. Na época, com estradas piores, podia levar um dia inteiro. Mas Ilo não era uma pessoa comum. Muitas vezes, o itinerário Curitiba-Foz era percorrido de avião. E Ilo era o piloto.
AVES E AVIÕES
Ilo era o terceiro de quatro filhos do casal Castorino e Gecy. O nome Castorino você já ouviu no começo deste episódio: é o mesmo da rua visitada por Ivan e Natalia. Ele era também aquela figura importante mencionada por Vanessa, que havia trabalhado na Votorantim por muitos anos. Não era de uma família rica, mas tinha excelentes condições financeiras. Castorino era apaixonado por várias coisas diferentes e de pouco acesso na época: fotografia, cinema, rádio amador e aviação.
Muitas dessas paixões foram ensinadas aos filhos quando eles ainda eram pequenos. Sem dúvidas, Ilo foi quem mais continuou o legado do pai. Em 1963, quando tinha apenas 17 anos, ele começou as aulas de aviação, e conseguiu o brevê um ano depois. Para quem não sabe, brevê é basicamente a carteira de habilitação de um piloto.
No futuro, Ivan descobrirá que Castorino pagou para que os filhos homens tirassem o brevê para que não precisassem prestar o serviço militar obrigatório – o que é algo bastante curioso, visto o perfil do patriarca da família. Mas, por ora, o jornalista tentava entender mais sobre a relação entre os Rodrigues e a aviação.
O primeiro contato mais próximo com o assunto é Cassiano, filho de Ilo e neto de Castorino. Cassiano não é piloto, nunca tirou o brevê. Ele é biólogo. Mas, de alguma forma, a aviação também parece fazer parte da identidade dele.
Como já mencionado anteriormente, a casa onde Ivan entrevistou Wanda e Cassiano fica no Bacacheri. Esse bairro é bem conhecido em Curitiba por um motivo específico: é onde fica um pequeno aeroporto, utilizado por pilotos particulares e empresas de táxi aéreo. Inclusive é por isso que, volta e meia, no meio das gravações, aparece um som ou outro de avião.
Segundo a família, a mudança para esse endereço não foi proposital, mas colaborou bastante com o hobby de Ilo e era uma fonte de alegria constante para as crianças. Cassiano lembra que o pai voou com diferentes modelos de aeronave, e o último deles foi um chamado Beechcraft.
“Eu acho que a gente voou uma vez só nesse avião. Mas a gente via o pai chegando. ‘Olha lá o avião do pai!’, mostrava para a galera na rua. E aí uma vez ele levou a gente, eu e meu irmão, para dar uma passeada em cima de Curitiba”, relembrou Cassiano.
Além de ser passageiro nas idas e vindas de Ilo, Cassiano também tinha muito interesse nos ensinamentos do pai sobre aviação. Muita coisa que ele aprendeu lá na infância ainda o acompanha até hoje. “Voar é sensacional, e não é todo mundo que gosta. Mas eu consigo reconhecer alguns aviões pelo som. E eu acho que essa paixão contribuiu um pouco para o meu interesse pelas aves. Depois, as aves me levaram a desenvolver mais ainda essa parte da acuidade sonora, para identificar passarinho pelo som. Uma coisa mexe com a outra”, explicou Cassiano.
Foi assim que Ivan descobriu a paixão do filho de Ilo pelos pássaros. E lembra quando o jornalista chegou à casa dele e o encontrou com uma guitarra nas mãos? Na adolescência, Cassiano se apaixonou por música e começou a estudar guitarra. Por anos, frequentou, como aluno, o Conservatório de Música Popular de Curitiba. Mas, quando chegou o vestibular, escolheu fazer Biologia.
Cassiano fez a graduação na Universidade Federal do Paraná, e mestrado na Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia. Já o doutorado em Biogeografia foi realizado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), em Manaus, onde morava há 13 anos.
Atualmente, Cassiano trabalha no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), como analista ambiental, em um município chamado São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas – a cerca de mil quilômetros de Manaus.
Ele vai à Curitiba poucas vezes por ano para visitar a família, e foi assim que Ivan começou a desenrolar essa história. Hoje, Cassiano já não lida mais com estudo de pássaros e aves. Mas, como ele mesmo disse, há certas coisas que, depois que você aprende, nunca mais esquece. Os campos harmônicos musicais. O canto dos pássaros. Os pássaros que voam como o pai dele voava.
E, em poucos minutos de conversa, é fácil perceber em Cassiano o mesmo gosto pela aventura que Ilo tinha. O filho parecia ter herdado esse fascínio por se deslocar entre cidades, algo que o pai desenvolveu e que, como vamos descobrir mais tarde, teve início com o avô. E o motivo principal para Ivan ter se interessado por essa história aparece logo no início de uma das entrevistas com Cassiano, quando pediu para ele falar sobre o pai.
“Ilo Rodrigues, meu pai, foi um cara que eu conheci até os meus 12 anos de idade. E cresci junto, e convivemos até mais ou menos uns 10 anos. Eu aprendi a andar de bicicleta com ele, a falar sobre aviões e carros. Ele me ensinou os primeiros passos, junto com a minha mãe, de como ser um ser humano. E nos separamos no momento em que ele desapareceu, quando eu tinha 12 anos de idade”, relatou.
O DESAPARECIMENTO
Era dezembro de 1986, perto do Natal. Nessa época, Ilo e Wanda já não estavam juntos há quatro anos – após um processo de separação judicial, o que é diferente do divórcio que conhecemos hoje. Cada um seguiu a sua vida, e Ilo havia iniciado um novo relacionamento em Foz do Iguaçu com uma mulher chamada Tereza Cristina.
Wanda se lembra que, um pouco antes do dia 24, Ilo ligou para ela e avisou que não buscaria os filhos para as celebrações natalinas, porque “as coisas em Foz não estavam muito bem”. Ele não teria dado mais detalhes sobre o que isso significava exatamente. De acordo com ela, o cancelamento de planos não a surpreendeu, porque Ilo já era conhecido por ser bastante imprevisível. Na ocasião, no entanto, Wanda mal sabia que essa seria a última conversa que teria com o ex-marido.
Em um primeiro momento, ao não receber mais notícias dele, ela não se preocupou. Aventureiro e espontâneo do jeito que era, ele poderia ter ido a algum lugar e esquecido de avisar a família. Afinal, essa não havia sido a primeira vez que ele teria sumido por alguns dias.
O cenário começou a mudar quando, um tempo depois, um funcionário do Ministério da Agricultura entrou em contato, perguntando se Wanda sabia do paradeiro de Ilo, e ela respondeu que não.
O caso apareceu pela primeira vez no jornal O Diário de Foz do Iguaçu, de 3 de janeiro de 1987, com a manchete: “Agrônomo aviador continua desaparecido”. Leia abaixo:
O diretor da Delegacia Regional do Ministério da Agricultura em Foz do Iguaçu, Ilo Rodrigues, está desaparecido juntamente com seu avião PT IVO (um Beechcraft) desde o dia 27 de Dezembro, quando decolou da pista do Aeroclube local com destino ao aeródromo do Bacacheri, auxiliar do Aeroporto Afonso Pena de Curitiba. A FAB, Força Aérea Brasileira, através de equipes especializadas de salvamento, informa estar mantendo três aeronaves – dois Bandeirantes e um Helicóptero – na operação de buscas. Até o momento de fechamento desta edição, às 23 horas, não havia notícias do paradeiro de Ilo. Tereza Cristina, sua esposa, já busca outro tipo de ajuda.
O desaparecimento de uma pessoa é sempre angustiante. E a sensação é de que, na década de 1980, isso era ainda pior, pois as formas de se procurar por alguém eram limitadas. Não havia celulares, por exemplo. E, no caso dos aviões particulares daquele período, não existiam equipamentos de rastreamento como hoje. Boa parte da comunicação era feita por rádio.
Como relata a reportagem acima, Ilo decolou de Foz do Iguaçu para Curitiba no dia 27 de dezembro. O avião dele não ficava no aeroporto da cidade, onde teria algum tipo de monitoramento. A aeronave era mantida, na verdade, no aeroclube de Foz, entidade que Ilo ajudou a fundar. Era ainda um grupo pequeno, e a sede naquela época estava localizada em uma fazenda.
No hangar, havia apenas dois aviões – um de Ilo e outro do próprio aeroclube. E foi então que, com o passar do tempo, e com a falta de pistas, as histórias e mistérios em torno de Ilo Rodrigues foram aumentando exponencialmente.
“Você nem imagina o que deu esse desaparecimento. O Ilo foi acusado de contrabandista, de ladrão. Sumiram com todas as provas possíveis de que ele pudesse ser uma pessoa decente. Foi muito chocante para nós”, comentou Wanda.
Como Castorino, pai de Ilo, era diretor da Votorantim no Sul do Brasil, ele tinha muitos contatos. Um deles era Romeu Tuma, figura conhecida da história da polícia e da política brasileira. Ele foi senador da República por dois mandatos, e faleceu em 2010. Mas, para essa história, o que importa é o período entre 1986 e 1992, quando Tuma foi diretor-geral da Polícia Federal (PF). Segundo Wanda, ele também teria participado das investigações que se seguiram.
Ivan buscou informações sobre Ilo no banco de dados de pessoas desaparecidas no Paraná, que conta com ocorrências antigas em aberto, mas não encontrou nada.
Há anos, ele estuda casos de pessoas desaparecidas. Se tem uma coisa que o jornalista aprendeu, é que, em um caso desse tipo, a Polícia Federal só se envolve em situações muito especiais. E, mesmo quando elas ocorrem, o diretor da PF em pessoa raramente atua. Porém, Wanda falou que, por algum motivo, o caso do desaparecimento de Ilo chegou até a diretoria da Polícia Federal.
E Ivan só queria entender o porquê. A cada nova palavra que ouvia, ele sentia que entrava em uma história grande demais e que, por motivos que não eram claros, foi esquecida ou escondida.
Um passo de cada vez. Por enquanto, Ivan precisava entender mais sobre todos os envolvidos. E, quanto mais informações recebia, mais impressionado ficava. Como, por exemplo, no momento em que perguntou se Ilo poderia ter realizado algum tipo de contrabando – afinal, ter um avião particular em Foz do Iguaçu na década de 1980 poderia ser útil para transportar grandes quantidades de carga sem correr muitos riscos.
De acordo com a ex-mulher e o filho do piloto, além de buscar aparelhos de videocassete do Paraguai para os amigos, ele também falava em outro tipo de atividade que faria com o avião: buscar ouro no garimpo, para abastecer uma loja de semijoias que havia inaugurado em Foz.
“Ele era um doidão. O cara era chefe do Ministério no posto federal, né? Pô, Ganhava super bem, e ainda ficava fazendo essas pequenas pilantragens. E era empreendedor. Comprava terrenos, comprava não sei o quê… A mãe fala que ele não sossegava. […] Ele aplicava [dinheiro] o tempo inteiro e fazia sócios”, contou Cassiano.
De acordo com Wanda, como era bem de vida, o pai de Ilo o ajudava financeiramente – mesmo com a fama de “pão-duro” entre os familiares, como relembrou Cassiano.
Ivan ouviu com frequência que Ilo seria um cara curioso e malandro. Pouco antes de desaparecer, ele havia iniciado um comércio de bijuterias junto com um sócio em Foz do Iguaçu. E estava animado com o empreendimento.
Quando ia para Curitiba, levava algumas peças para serem vendidas por lá. Essa empresa iniciou os trabalhos na mesma época em que Ilo comprou, pela primeira vez, um avião que seria só seu. Até então, todas as aeronaves que ele pilotava eram em sociedade ou do aeroclube do qual fazia parte e ajudou a fundar em Foz. Em 1986, Ilo realizou o sonho de ter um avião só dele.
Essas duas coisas juntas mostram uma característica forte na personalidade dele: Ilo era um cara com muitos contatos. Tinha sociedades e combinados com bastante gente. Alguns desses acordos eram formais, outros nem tanto. E isso ajudou a aumentar o mistério em torno do desaparecimento.
Ninguém sabia exatamente todos os rolos em que Ilo estava metido, já que ele transitava entre diversos círculos sociais – cada um com um objetivo diferente. E é provável que nem ele conseguisse listar tudo o que planejava. Era aeroclube, aviões, funções do trabalho, semijoias, videocassete para amigo, rádio amador, clube de vela, investimentos em ações, terrenos… Boa parte disso tudo só foi descoberta pela família depois que ele sumiu. No processo de tentar organizar a vida de quem desapareceu, muita coisa surgiu.
Para Cassiano, o que motivava o pai era o perigo, a aventura. “É muito mais fácil você contratar um piloto para ir buscar ouro e dar lá 10% para o cara, e pronto. Você não vai correr risco nenhum. Mesmo tendo avião. Não, ele gostava de pilotar, de ir fazer o corre, como a gente diria. E aí ele vivia perigosamente também no serviço público. Porque ele tratava dos negócios no horário do expediente. Ele saía, largava a mesa dele e ia resolver um negócio com o sócio. […] Ele usava um pouco desse prestígio que tinha como chefe da unidade para fazer as coisas dele. Aquela mistura do público-privado”, disse.
Aos poucos, Ivan percebeu que partes da história permaneceram com a família em Curitiba, enquanto outras ficaram em Foz do Iguaçu. Wanda não tinha contato com a nova companheira do piloto, Tereza Cristina. Como descobriu mais tarde, elas nunca conversaram, nem mesmo depois do desaparecimento. Além disso, após o ocorrido, Wanda se ocupou em proteger os filhos. E foi o que fez.
Em resumo, em 1986, Ilo combinou de passar o Natal em Curitiba com os filhos, ou que iria buscá-los para levá-los à Foz – ninguém lembra bem ao certo qual foi o acordo. Poucos dias antes, ele ligou para Wanda e avisou que estava com alguns problemas. Por isso, precisava cancelar os planos. O piloto nunca explicou que contratempos seriam esses.
Essa mudança não surpreendeu Wanda. Ilo era conhecido por ser enrolado. Em uma conversa posterior, ela se refere a ele como irresponsável. “Nada mais Ilo Rodrigues do que cancelar um compromisso com a família de última hora”, afirmou.
É difícil mensurar o quanto o desaparecimento de um pai pode afetar um filho, principalmente na infância. Cassiano confessa que a ausência de Ilo sempre o marcou. “Eu sinto falta dele. Hoje muito menos. Mas quando eu estava no Colégio Militar, eu tinha algumas fantasias, né? ‘Ah, meu pai vai descer de um helicóptero e me tirar do meio dessa formatura – desfile semanal dos alunos – escrota, nesse sol com os milicos. Esse sonho me acompanhou durante anos e foi esmaecendo com o tempo”, concluiu.
Pouco antes do fim da entrevista, Wanda entregou para Ivan uma enorme caixa cheia de documentos. Todos eram relacionados à vida e ao desaparecimento de Ilo Rodrigues. Eram as primeiras pistas materiais que o Projeto Humanos seguiria para tentar entender melhor essa história. Entre os papeis, um se destacava: um dossiê de 132 páginas feito pelo próprio Castorino, pai do Ilo, datado de 1989, três anos depois do desaparecimento do filho.
À primeira vista, Ivan ficou impressionado com os detalhes da documentação. Era evidente a dedicação com que Castorino criou o dossiê, incluindo todos os dados possíveis para guiar quem tivesse interesse em descobrir o que aconteceu com Ilo.
Lá, o jornalista teve acesso ao currículo do piloto, informações sobre o avião dele, cartas que Castorino escreveu sobre o desaparecimento do filho e matérias de jornal. Era um ótimo começo.
Na caixa, havia também outras coisas. Coisas que ele deixou para trás. Coisas que Wanda e família tiveram que lidar. Muitas só foram descobertas depois que Ilo desapareceu. Wanda já estava separada e tinha dois filhos para cuidar. Assim, não acompanhou de perto os esforços do ex-sogro em investigar o que ocorreu de fato.
Castorino faleceu em 1993, então seria impossível contar com as lembranças dele. Tudo o que ele deixou de registro foi o dossiê. Mas, anteriormente, mencionamos que Ilo era o terceiro de quatro filhos do casal Castorino e Gecy. E, para a nossa sorte, o irmão e as duas irmãs dele estão vivos. Wanda auxiliou Ivan a entrar em contato com eles. Era o próximo passo óbvio: ouvir suas histórias.
REUNIÃO EM FAMÍLIA
Cerca de um mês depois das conversas iniciais com Wanda e Cassiano, Ivan finalmente conseguiu encontrar uma boa parte da família Rodrigues. A reunião foi na casa de Wanda, que convidou todos para um café da tarde. Cassiano já não estava mais em Curitiba. Havia retornado para Manaus e preparava a mudança para a cidade de São Gabriel da Cachoeira.
Entre os convidados, estava Iná Rodrigues Ribeiro, irmã mais velha de Ilo. Depois dela, veio Ivo – que estava presente, mas devido à idade avançada e problemas de saúde, tinha muita dificuldade em se comunicar. Quem o ajudou na ocasião foi a sobrinha, Isinha, filha de Iná.
Castorino e Gecy tiveram quatro filhos na seguinte ordem: Iná, Ivo, Ilo e Isa. Os nomes são assim mesmo, bem curtos. E a história por trás deles será revelada no futuro. Por ora, é preciso adiantar que a filha mais nova, Isa, não mora em Curitiba, e por isso não pôde participar desse encontro. Isa também é o nome da filha de Iná – aquela que ajudou Ivo na reunião. Para diferenciá-las, ela é chamada de Isinha.
Naquela tarde, a casa de Wanda estava cheia. Parentes que não se viam há muito tempo se reuniam para falar sobre o maior mistério da família: o desaparecimento de Ilo Rodrigues. E faziam isso perante um completo estranho – no caso, Ivan.
O encontro teve seus momentos caóticos: enquanto Ivan ouvia segredos quase sussurrados, xícaras de café eram servidas. Mas, então, em certo momento, Isinha, sobrinha de Ilo, pediu a palavra. Dessa vez, ela contou com o auxílio de Ivo para relembrar alguns detalhes. Detalhes sobre o que Castorino, o pai do piloto, teria feito logo após o desaparecimento.
Acompanhe parte do diálogo abaixo:
Isinha: Em 1986, eu tinha 25 anos, quando o tio [Ilo] desapareceu. O que mais me marcou na época foi o seguinte: em algum momento, o meu avô Castorino recorreu ao doutor José Ermírio de Moraes, que era o patrão dele, da vida inteira, para falar com o Romeu Tuma. Era a época do governo Sarney.
Ivo: Aí tem uma outra jogada envolvida, dos maçons. O Tuma é maçom.
Isinha: E o vovô era maçom, né?
Ivo: Os irmãozinhos, então, empurraram o meu pai, empurraram em cima do Tuma.
Isinha: E ele foi falar com o Romeu Tuma. O tio Ivo está dizendo que foram para Porto Alegre, eu não sei, não estava junto. Ele foi falar com o Romeu Tuma e expôs o caso do desaparecimento do meu tio. E o Romeu Tuma, então, disse que ia resolver, e ele voltou para casa. O que eu me lembro bem foi o que aconteceu, que me envolvia, um mês depois.
Segundo Isinha, tudo indica que Castorino procurou Romeu Tuma pouco tempo após o desaparecimento, no começo de 1987. Ela diz se lembrar bem porque estava grávida na época.
Nessa conversa, de acordo com o relato, Tuma teria descrito o nome, idade e rotina das três netas de Castorino, com riqueza de detalhes.
Isinha: […] E aí disse para ele assim: “seu Castorino, do mesmo jeito que eu sei dessa história [da rotina da família], quem não deve saber também sabe”. Então, a Polícia Federal, a resposta que o Romeu Tuma tem para ele é: “pare imediatamente com qualquer investigação, porque a sua família corre risco, e o senhor não investigue mais”.
Aí meu avô teria dito: “mas eu não posso parar, meu filho está desaparecido”. O Tuma respondeu: “mas o senhor tem netas e bisnetos envolvidos, e as coisas que aconteceram são muito graves”. E aí Castorino teria perguntado se Tuma sabia o que era. Ele disse: “a Polícia Federal sabe, mas o senhor não vai saber. Quanto menos o senhor souber, mais segurança para o senhor”. O meu avô chegou em casa, nos reuniu aqui em Curitiba e contou isso. E eu me lembro porque o meu marido ficou apavorado, o Ademir. Meu marido, Ademir, nunca se envolveu com nada da família assim, né? Mas ficou muito preocupado. Imagina a mulher grávida, saindo do trabalho, o cara vai lá e descreve? Descreveu as meninas, as três netas. E aí o meu avô parou toda a investigação. Saiu do caso.
O que Ivan sabia até então era o seguinte: após o Natal de 1986, o piloto Ilo Rodrigues, de 41 anos, diretor da Delegacia Regional do Ministério da Agricultura em Foz do Iguaçu, desapareceu. O pai, Castorino, morreu sem ter respostas, mas deixou muitas pistas para trás.
Enquanto era vivo, ele tinha contatos poderosos – tanto pelo prestígio da época em que trabalhou na Votorantim, quanto pela participação na Maçonaria. Esses contatos o auxiliaram a falar diretamente com Romeu Tuma, diretor-geral da Polícia Federal.
E, agora, ouvindo a família, Ivan descobria que o próprio Tuma teria dito para Castorino se afastar dessa história, pois havia muita gente perigosa envolvida. Mas o que ele queria dizer com isso? E por que, mesmo com esse conselho, ele elaborou aquele dossiê de 1989?
Na caixa que Wanda entregou a Ivan, a mesma que continha a documentação produzida por Castorino, ele encontraria peças de uma história que se tornaria ainda mais confusa. Não demoraria muito para o jornalista aprender que o conselho de Tuma seria bem mais complicado de entender do que ele imaginava – e que Castorino era um homem de muitos mistérios. A investigação só estava começando. E, naquela reunião de família, Ivan descobriria que um nome de rua pode sim conter vários segredos.