Wiki do Caso Leandro Bossi

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Desde 2015, o jornalista Ivan Mizanzuk vem investigando uma série de casos que envolvem mortes e desaparecimentos de crianças no estado do Paraná na década de 1990. Em 2018, ele lançou a quarta temporada do podcast Projeto Humanos, intitulada “O Caso Evandro”, com parte da extensa pesquisa que realizou na época. Essa temporada se estendeu até 2020 e, no ano seguinte, estreou na Globoplay uma série audiovisual feita com base no podcast. A série, dirigida por Aly Muritiba e Michelle Chevrand, e produzida pela Glaz Entretenimento, aumentou a repercussão desse trabalho.

Também em 2021, Ivan Mizanzuk lançou um livro sobre o caso. E, em 2022, foi ao ar a quinta temporada do Projeto Humanos, “Altamira”, que é, de certa forma, uma continuação do Caso Evandro. Como ambas as temporadas são longas, com mais de 30 episódios cada, esta pequena série inicial fará um resumo do que é mais importante para entender toda essa história. Esta é, então, a primeira parte do Prelúdio ao Caso Leandro Bossi, uma minissérie de cinco episódios que introduz a sexta temporada do podcast. 

OS MENINOS DESAPARECIDOS

Desde 2015, Ivan está à procura de um assassino – ou assassinos, ou assassina. Tudo o que se sabe é o seguinte: em 1992, duas crianças desapareceram na cidade de Guaratuba, no litoral do Paraná. Leandro Bossi sumiu no dia 15 de fevereiro. Ele era loiro, tinha olhos claros e estava prestes a completar oito anos de idade. Seus pais eram pobres. João Bossi era pescador e Paulina Bossi trabalhava como camareira em um hotel. A polícia nunca investigou o caso a fundo. Houve muita negligência por parte das autoridades. 

Dois meses depois, em 6 de abril de 1992, Evandro Ramos Caetano desapareceu. Assim como Leandro, ele era loiro e tinha olhos claros. Mas era um pouco mais novo, com seis anos e meio de idade. Os pais de Evandro pertenciam à classe média baixa, e ambos atuavam como funcionários da prefeitura. Na década de 70, inclusive, um membro da família havia sido prefeito da cidade. 

Em 1992, aconteciam as eleições municipais. Como os Caetano eram mais conhecidos, o desaparecimento de Evandro teve certa repercussão na imprensa e contou com buscas de populares. Logo que o menino sumiu, o então prefeito de Guaratuba, Aldo Abagge, pediu para o delegado geral da Polícia Civil do Paraná a ajuda do Grupo Tigre – equipe de elite inspirada na SWAT americana, especializada em casos de sequestro. 

Evandro desapareceu numa segunda-feira e, no dia seguinte, o Tigre chegou na cidade. Em 11 de abril de 1992, no sábado, o corpo do menino foi encontrado com uma série de mutilações: ele estava escalpelado, sem as mãos e os dedos dos pés, com o ventre aberto e as costelas serradas. Também não possuía nenhum dos órgãos internos. O corpo estava em estado avançado de putrefação, o que impedia a perícia de fazer exames mais precisos. 

Devido à coloração rosada dos dentes e a uma área de putrefação mais adiantada no pescoço, a conclusão dos legistas foi de que Evandro teria sido morto por asfixia mecânica, enquanto as outras lesões seriam pós-morte.

Laudo de levantamento de local – Caso Evandro

Laudo de necropsia – Caso Evandro

O Grupo Tigre investigou o crime por três meses, sem conseguir levantar nada de muito concreto. Então, no início de julho de 1992, o caso se transformou. Um parente do menino, chamado Diógenes Caetano dos Santos Filho, engenheiro e ex-policial civil, começou a fazer uma investigação por conta própria. Ele passou a suspeitar que a família do prefeito tinha algo a ver com a morte de Evandro. Diógenes acreditava que o garoto teria sido morto em um ritual de “magia negra”.

Há poucos meses, havia se mudado para Guaratuba um pai de santo chamado Osvaldo Marcineiro. Ele era próximo de uma das filhas do prefeito, chamada Beatriz Abagge. Diógenes repassava essas informações para o Grupo Tigre, mas elas não iam adiante. A própria delegada da época afirmou que as histórias vindas dele mais atrapalhavam do que ajudavam. 

Frustrado, Diógenes compartilhou as suas suspeitas com o Ministério Público do Paraná (MPPR). A partir daí, uma equipe de policiais militares, o Grupo Águia, foi enviada para Guaratuba para resolver o caso. Em poucos dias, os PMs prenderam sete pessoas, entre elas o pai de santo, a filha e a esposa do prefeito. Alguns deles confessaram o assassinato de Evandro, que teria acontecido durante um ritual macabro. Os sete foram presos, acusados e julgados. Enquanto alguns foram absolvidos, outros acabaram condenados. Um deles, Vicente de Paula Ferreira, morreu em 2011, enquanto estava preso. 

Foi com base nessas informações que Ivan Mizanzuk começou o trabalho de pesquisa e investigação que resultou na quarta temporada do Projeto Humanos, “O Caso Evandro”.

TORTURA

Várias coisas incomodavam Ivan nessa história. A principal delas era o fato dos acusados serem chamados pela imprensa de “bruxos”, “satanistas”, “praticantes de magia negra”, e por aí vai. Dois deles, Osvaldo e Vicente, faziam parte de religiões de matriz africana. Já Celina Abagge, a esposa do prefeito, era conhecida na cidade por ser católica fervorosa. Nenhum deles era satanista ou algo do tipo, seja lá o que isso signifique. A história construída pelo Grupo Águia não fazia sentido.

As próprias confissões eram estranhas. Osvaldo Marcineiro, por exemplo, disse em certa ocasião que teria retirado os órgãos genitais de Evandro. Mas o menino não estava emasculado. Outra contradição tinha a ver com a afirmação dos acusados de que eles teriam cortado o pescoço da criança. Já na época, o médico legista falou repetidas vezes que o corpo não apresentava nenhum corte nessa região. Ou seja, as confissões, especialmente as gravadas em fitas de áudio e vídeo pela PM, não condiziam com o estado em que Evandro foi encontrado.

Pouco tempo depois de admitirem o crime, os suspeitos passaram a dizer que tinham sido torturados e que, na verdade, eram inocentes. Enquanto isso, a PM do Paraná negava essa versão.

Em 2015, Ivan Mizanzuk começou a pesquisar essa história. Ele entrevistou os envolvidos e mergulhou nos autos do processo. Após três anos de muito trabalho, finalmente a temporada foi ao ar. No início de 2020, no episódio 25, ele revelou algo que a PM havia escondido de todo mundo: as fitas gravadas durante as sessões de tortura dos suspeitos, sem edições. 

Nas gravações, obtidas de uma fonte anônima, é possível ouvir Osvaldo Marcineiro assustado, ofegante, com dor. Em certo momento, ele diz que matou o menino sozinho, enforcando-o com um cinto.

Em seguida, os policiais perguntam para Osvaldo quem escolheu e sequestrou a criança. Ao responder que teria agido sozinho, os interrogadores insistem que ele não conhecia Evandro e o induzem a citar a filha do prefeito. Assim, ele passa a dizer que estava com Beatriz Abagge na ocasião do crime. Depois, Osvaldo inclui na cena Celina Abagge e Vicente de Paula. 

Mas, até então, o pai de santo dizia que Evandro havia sido morto no matagal onde foi encontrado. Os policiais sabiam que isso não era verdade, pois a perícia já tinha descartado essa possibilidade. Além disso, o assassinato foi mais violento do que a primeira versão dada por Osvaldo. É nesse ponto que os PMs o questionam como ele fazia o corte de frango para trabalhos espirituais. A clara intenção da polícia era ligar essa prática ao modo como a criança havia sido morta.

Mais adiante, o pai de santo passa a dizer que, junto com Beatriz, Celina e De Paula, matou Evandro com uma série de cortes. Por fim, ele afirma que o grupo levou partes do corpo para a serraria do prefeito. Ou seja, a história agora não cita que a morte teria ocorrido no matagal.

A primeira parte da sessão de tortura de Osvaldo deve ter durado 12 horas, no mínimo. Depois disso, Celina e Beatriz foram presas e também passaram por um interrogatório violento. Assim como o pai de santo, confessaram o que os policiais queriam, em meio às agressões. Em um trecho da fita descoberta por Ivan, é possível ouvir Beatriz dizendo que “está inventando tudo”. Logo em seguida, ela é repreendida pelos policiais.

Essas gravações foram publicadas pelo Projeto Humanos em março de 2020. Houve alguma repercussão na imprensa, mas naquela mesma semana a Organização Mundial de Saúde classificou a Covid-19 como uma pandemia. Com isso, os jornais passaram a falar de assuntos mais urgentes. 

Pouco mais de um ano depois, em 2021, estreou na Globoplay a série do Caso Evandro, baseada neste podcast. As novas fitas foram reveladas no 7º episódio, e a repercussão foi muito maior. Um dos telespectadores da série foi o então secretário de Justiça do Paraná, Ney Leprevost. Em julho, em uma coletiva de imprensa, ele anunciou que abriria um grupo de trabalho para averiguar as irregularidades do caso.

“Os sete acusados alegam que houve tortura. Apareceram fitas novas. Eu acredito nas fitas. Entendo que a Secretaria de Justiça deve lutar pelos direitos humanos da maneira que pode. Não podemos conduzir investigação. Só a polícia pode fazer isso. Mas podemos elencar todos os erros para que eles não se repitam”, disse o secretário na ocasião.

GRUPO DE TRABALHO

O Grupo de Trabalho sobre o Caso Evandro ocorreu no segundo semestre de 2021. Na época, Ivan Mizanzuk participou da iniciativa, com um relato espontâneo sobre a pesquisa e investigação que conduziu. Nas reuniões seguintes, também falaram advogados, representantes de religiões de matriz africana, jornalistas, delegados e familiares de Leandro Bossi. Nenhum membro da família de Evandro quis participar. Apesar disso, quem assumiu o papel de falar por eles foi o doutor Paulo Markowicz, promotor responsável pelas acusações contra os réus nos últimos júris.

O relatório final do Grupo de Trabalho do Caso Evandro, produzido em dezembro de 2021, elencou uma série de recomendações sobre como o Estado pode investigar denúncias de tortura e agilizar o trabalho nos casos de pessoas desaparecidas. No início de 2022, o Estado do Paraná emitiu cartas com pedidos de desculpas para várias pessoas. Entre elas, os acusados que foram torturados e membros das famílias de Leandro e Evandro.

Sobre esses pedidos de desculpas, especialmente os enviados aos acusados, o Ministério Público do Paraná se pronunciou por meio de nota pública. Um trecho dela diz o seguinte: 

A respeito das recentes manifestações públicas relacionadas ao relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho ‘Caso Evandro – Apontamentos para o Futuro’, o Ministério Público do Paraná esclarece que não foram identificados, no referido documento, elementos probatórios que evidenciassem a prática de qualquer ilicitude por parte dos integrantes da Instituição que atuaram na persecução penal que conduziu à condenação de alguns dos réus indicados na denúncia criminal.

Nota pública – MPPR

Em entrevista ao G1 Paraná, Beatriz Abagge, uma das acusadas, considerou o pedido de desculpas um marco histórico. “O MP precisa parar de agir como acusador, ele tem que agir como defensor do povo, de nós. Afinal de contas, a prova da tortura está aí para todos verem”, afirmou. 

Matéria do G1 – Caso Evandro: ‘Marco histórico’, diz Beatriz Abagge sobre carta do Governo do Paraná com pedido de perdão por ‘torturas’

Em outras palavras, há uma questão jurídica aqui. O Estado do Paraná, na figura da Secretaria de Justiça, reconheceu a prática da tortura e pediu desculpas aos acusados. Mas a Secretaria não faz parte do poder judiciário, responsável pela condenação de Beatriz e de outros acusados. Logo, o pedido de desculpas é muito mais simbólico do que efetivo. O Ministério Público, por sua vez, negou as acusações de tortura e afirmou que o processo ocorreu dentro da legalidade. 

Para além desse impasse, há outro problema. A família de Evandro não acredita na inocência dos acusados. Por isso, eles não aceitaram o pedido de desculpas do Estado. Isso ficou claro quando Diógenes Caetano dos Santos Filhos concedeu uma entrevista ao portal aRede, de Ponta Grossa, em 25 de janeiro de 2022. Na ocasião, ele disse que o secretário Ney Leprevost envergonhou o Paraná ao tentar desfazer o trabalho da justiça e do Ministério Público.

Entrevista de Diógenes Caetano ao portal aRede 

REVISÃO CRIMINAL

Apesar disso, o pedido de desculpas deu maior força para que os acusados pedissem a revisão criminal do processo no final de 2021, após meses de preparo e estudo. Quem entrou com a ação no Tribunal de Justiça do Paraná foi o escritório do doutor Antonio Figueiredo Basto. Ele representou todos os condenados que ainda estão vivos: Osvaldo Marcineiro, Davi dos Santos Soares e Beatriz Abagge

Nesse pedido, os advogados anexaram um laudo pericial com a análise das novas fitas descobertas pelo Projeto Humanos. Eles requisitaram que o documento fosse realizado pela mesma pessoa que havia analisado a fita oficial do processo em 1999, a pedido do Ministério Público. Na conclusão, o perito Antônio Morant Braid afirmou que as novas fitas são autênticas. 

Então, mais de um ano depois, o pedido de revisão criminal começou a andar. Figueiredo Basto e equipe queriam que os recursos de Osvaldo, Davi e Beatriz fossem julgados juntos na 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná. Mas o TJ decidiu pela divisão dos casos em dois grupos: o de Beatriz seria um, o de Osvaldo e Davi seria outro. 

Em 16 de março de 2023, ocorreu o primeiro julgamento, o de Beatriz. E, em mais um revés para a equipe de Basto, a análise do recurso aconteceu na 2ª Câmara. Na ocasião, o pedido de revisão criminal foi negado por três votos a dois. A maioria dos desembargadores entendeu que as novas fitas não poderiam ser aceitas como prova antes de passarem por uma comprovação judicial. Ou seja, eles não aceitaram a perícia feita a pedido de Basto, mesmo que o perito responsável já tivesse atuado pela acusação anos antes. 

Cinco meses depois, em 25 de agosto de 2023, chegou a vez do julgamento da revisão criminal de Osvaldo Marcineiro e Davi dos Santos Soares. Agora, ele ocorreria na 1ª Câmara, como os advogados pediram originalmente para todos. No voto, o relator, o desembargador Miguel Kfouri Neto, reforçou a mesma opinião da maioria no julgamento de Beatriz, meses antes. 

Só que o relator foi voto vencido. Por três a dois, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná aceitou que as fitas poderiam ser usadas como provas para a revisão criminal. 

Quando a maioria de votos ficou estabelecida, o desembargador Adalberto Jorge Xisto Pereira levantou o seguinte ponto: não fazia sentido julgar apenas a revisão de Osvaldo e Davi, se o caso de Beatriz era o mesmo. Por causa disso, os desembargadores decidiram adiar o julgamento para avaliar como a revisão avançaria, e também se o pedido de Beatriz seria incluído nessa sessão. 

O novo julgamento do TJ do Paraná deverá ocorrer em novembro deste ano. Mas uma coisa já é fato: as novas fitas mudaram o entendimento de todo o caso. E elas também são importantes para compreendermos o caso Leandro Bossi, e todas as negligências presentes nessa história.