Wiki do Caso Leandro Bossi

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Em novembro de 2021, motivado pelo sucesso da série do Globoplay sobre a morte de Evandro, o canal “Operação Policial”, do YouTube, fez uma série de entrevistas com pessoas envolvidas no caso, algumas delas com familiares de Leandro Bossi.

Na época, ainda não havia saído o resultado do novo DNA da ossada, e João Bossi, o pai do menino, já havia falecido há alguns meses. Um dos entrevistados foi Ademir Bossi, o irmão mais velho de Leandro, que morava com ele e a mãe em Guaratuba, no litoral do Paraná, quando o garoto desapareceu. Quem fazia as perguntas era o apresentador Beto Ribeiro. Confira um trecho abaixo:

Beto Ribeiro: Em 2022, completam 30 anos do desaparecimento de Leandro. Leandro, então, ano que vem estará… Eu vou usar o verbo no presente porque a família acredita que ele esteja vivo, então ele ainda está presente. Leandro fará 37 anos. Um homem que pode estar andando por qualquer lugar do mundo, sem saber inclusive que ele é Leandro. Talvez ele esteja possivelmente até com outro nome, em outro país. Mas quem vai me contar os detalhes do desaparecimento de Leandro, que nós estamos respeitando o Leandro como única vítima e não sempre ligando ao caso Evandro, que é uma outra história, é uma outra vítima. O Leandro merece ter um programa só dele e merece falarmos somente dele. É impossível não passar pelo Evandro, mas o Leandro aqui nesse momento é a figura central da conversa. Ademir, muito obrigado pelo seu tempo. Ademir, você é o irmão mais velho do Leandro?

Ademir: Sim, sou irmão do Leandro. O mais velho sim.

Beto: Ademir, eu queria voltar com você lá atrás, para 1992, antes do desaparecimento do seu irmão.

A entrevista de Ademir é muito parecida com a que Ivan Mizanzuk havia feito com ele, inclusive com as mesmas confusões.

Ademir tem muita dificuldade para se lembrar das coisas. Ele mistura assuntos, datas, horas, polícias. Tudo isso parece ser o resultado de tantos anos de dúvidas e dores.

Beto: Deixa eu te perguntar uma coisa. Você tinha quantos anos quando o Leandro sumiu?

Ademir: Eu estava… Acho que na fase de 15 ou 16 anos, mais ou menos.

Beto: O Leandro…

Ademir: Pois não, senhor…

Beto: Não, não, pode falar, desculpa.

Ademir: É que eu estou… Acho que uns 15, 16 anos, mais ou menos. Eu estou com 45 anos agora.

Mas essa entrevista do Ademir mostrou uma coisa nova para Ivan, no momento em que o apresentador Beto Ribeiro demonstra uma enorme sensibilidade com ele, já no final da conversa.

Beto: Quando o Leandro sumiu, o que mudou na vida de vocês? A família se destruiu? A família se uniu?

Ademir: Se destruiu. A vida, infelizmente, destruiu… Porque se acontece um falecido, a gente vai, faz a condolência lá, faz lá. Beleza. Agora, se a gente não sabe se está comendo, se está com fome, se está usando droga, que nem essa cracolândia lá em São Paulo, a cracolândia… A gente não sabe se de repente… Vai que ele está ali dentro? A gente não sabe. Depois que está lá dentro, não é fácil para retirar. Se a gente souber onde que é… Não, é ele. Vamos lá. Botamos na clínica, vamos cuidar lá dele. Bebida, droga… Daí festa… Daí vai indo… Daí o cara já dá mais um, daí o outro já vai dar mais outro… “Não, mais um, pega, pega aí”. Aí já vende a televisão ali, já vende o sofá, já vende coisa, e vai indo, vai acabando. Foi o que destruiu a nossa família. Foi o que destruiu. Foi o que infelizmente destruiu a nossa família legal. E agora estamos tentando ver se antes de nós falecermos, eu e a minha mãe, antes de falecermos, Deus ajude que nós consigamos ver ele, pelo menos, para dar um oi…

Beto: O que você falaria… O que você vai falar para ele quando encontrar ele?

Ademir: Um abraço, um perdão… Desculpe… Desculpe tudo…

Beto: Desculpar… Desculpar o quê, Ademir?

Ademir: Ah, desculpar tudo o que aconteceu na nossa vida. Não queria… Pelo menos podia estar dentro de casa. Ó, tem o quartinho, podia arrumar aqui dentro, morar aqui dentro. Tem o alimento, tem tudo… Se quiser ficar na rua aí… E pedir perdão, que Deus abençoe, e que logo, logo, que Deus ajude a nossa vida aí que… Que ele apareça aí… Que ele apareça aí que… Para nós não esquecermos dele…

Entrevista de Ademir para o canal “Operação Policial”

Ademir faleceu três meses após essa entrevista, em fevereiro de 2022. Quatro meses depois, em junho, veio o resultado do novo exame de DNA, confirmando que a ossada encontrada em 1993 era de Leandro.

Ivan gostaria de poder perguntar para Ademir o que ele quis dizer com essa fala final. Por que ele queria pedir desculpas a Leandro? O que ele poderia ter feito? Será que ele sentia alguma culpa?

A FAMÍLIA

Durante a pesquisa, Ivan acredita que tenha encontrado uma resposta para essa dúvida. Para explicar isso, ele precisa contar um pouco sobre a história da família Bossi.

Em 1984, Paulina e João Bossi ainda eram casados. Leandro nasceu no dia 23 de fevereiro daquele ano. Era o terceiro filho do casal. A primeira filha morreu no parto. Ademir veio em seguida. Quando Leandro nasceu, Ademir tinha oito anos. Nessa época, João Bossi trabalhava com construções, como mestre de obras.

A família morava em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba. Mas, em algum momento, João e Paulina se separaram. João trabalhava na capital, onde havia mais oportunidades de trabalho na área em que atuava. Os filhos, Ademir e Leandro, continuaram morando com a mãe, Paulina.

E então, no final de 1987, João Bossi conheceu Roseli Steffen, com quem se casou.

Ivan entrevistou Roseli na mesma casa em que, anos antes, ele havia entrevistado João Bossi e Ademir. A jornalista Natalia Filippin, que trabalhou com Ivan nesta temporada, também estava presente na conversa.

Roseli: Eu conheci o João Bossi lá em Curitiba, quando eu levava a Cristiane na creche ali no Portão, em uma creche ali. E eu tinha conhecimento com uma senhora de idade que era muito minha amiga, que ela já é falecida há muitos anos. E aí ela disse que tinha uma pessoa para me apresentar, que queria me conhecer.

Ivan: A Cris já era nascida, então.

Roseli: A Cris era pequena, já era nascida.

Ivan: Era de outro casamento.

Roseli: De outro casamento. Eu tinha a Cristiane. Ela era pequena. Ela tem, do Leandro, três meses de diferença. A Cris é de novembro, 25 de novembro, e o Leandro é de 15 de fevereiro.

Ivan: 15 de fevereiro é quando ele desapareceu, né? Ele é de…

Roseli: 23 de fevereiro ele completa… Ele faz aniversário.

Ivan: Em que ano eles nasceram?

Roseli: Bom, a Cris vai fazer… Ela fez agora… Acho que é 38 ou 39 anos. Não sei a data direito…

Ivan: Em 83 que ela nasceu?

Roseli: É por aí, eu acho…

Ivan: 84…

Roseli: É. Não tenho de cabeça agora. É muita coisa, não consigo lembrar. Só sei que eu conheci ele, e daí a gente ficou… Se conheceu nessa… Ela fez um jantar para a gente… Daí eu conheci o João Bossi. E ele já estava separado da Paulina.

Ivan: Isso foi em que ano, que vocês se conheceram?

Roseli: Ah… A Neli tem… Bem antes da Neli nascer.

Neli Steffen Bossi foi a primeira filha do casal Roseli e João. Ela nasceu em novembro de 1988. Lucas Steffen Bossi, o segundo filho do casal, nasceu anos depois, em 1993, quando Leandro já estava desaparecido.

Roseli: […] A gente se gostou já no primeiro encontro. Aí aconteceu, né? Dali uns três meses eu engravidei dele, da Neli. Dali um tempo, ele trouxe o Leandro para eu conhecer. E ele era pequeno, era um guri muito lindo. Tinha o olho muito azul, era muito loiro, muito bonito. E nessa época ele vivia com a mãe dele e com o Ademir lá em São José dos Pinhais.

Ivan: Eles moravam em São José dos Pinhais nessa época?

Roseli: Em São José dos Pinhais. E o João trabalhava em Curitiba. Daí a gente se conheceu, foi morar junto. Eu tinha a Cristiane pequena e trabalhava em uma casa de família.

Quando Neli tinha oito meses de idade, em julho de 1989, a nova família se mudou para Guaratuba, já que havia mais oportunidade de trabalho para João no litoral.

Ivan: Quando vocês vieram, a Paulina já estava aqui?

Roseli: Já estava aqui. 

Ivan: Alguma chance, de repente, do João Bossi querer vir pra cá justamente porque os filhos estavam aqui? O Ademir e o Leandro?

Roseli: Não sei. Não sei a influência de nos trazer para cá, eu, a Neli e a Cris. Eu não conseguia casa lá em Curitiba. Eu tinha que sair da casa onde eu morava ali pertinho do Carrefour Champagnat. Eu morava ali e trabalhava no Portão, na Vila Izabel, por ali. A Cris ficava na creche no Portão, e eu vinha a pé da creche até a Vila Izabel, onde eu trabalhava em uma casa gigantesca que tinha 48 peças, a casa em que eu trabalhava. Eu trabalhava… Eu levava ela na creche a pé, deixava ela lá, vinha a pé e ia para o trabalho. Antes das cinco horas eu tinha que sair para ir pegar ela. Daí vinha a pé até onde eu morava também.

Ivan: Mas vocês não entenderam por que ele queria vir para Guaratuba? Você achou estranho?

Roseli: Não achamos casa. Daí quis vir para cá, porque aqui estava bom de trabalho naquela época, e estava construindo aquele sobrado lá. E aí colocamos toda a mudança em um caminhão e viemos embora.

Ivan: Vocês estavam morando ainda em Curitiba, e a Paulina com as crianças em São José dos Pinhais…

Roseli: Isso. Ela morava lá. Não conhecia ela. Eu vim passar a conhecer a Paulina aqui em Guaratuba.

Ivan: Como foi essa mudança de todo mundo de Curitiba para Guaratuba?

Roseli: Ele trabalhava naquela época lá no Coroados. Estava construindo um sobrado lá, e estava parado em uma casa aqui já no Eliane, por ali, no bairro Nereidas, sabe? […] A gente veio para cá, ele inventou de vir embora para a praia. Eu não queria. Me desfiz de tudo lá, saí do serviço, tirei a Cris da creche. Ela era pequena. A Cris era pequena na época, tem a mesma idade do Leandro.

Ivan: Se eu bem entendi, morava você, o seu João, a Neli e a Cris. Moravam na mesma casa.

Roseli: Isso.

Ivan: E daí morava em outra casa a Paulina, o Ademir e o Leandro.

Roseli: Isso. Lá para baixo assim, eu nem sabia onde era. Nunca soube, nunca fui para a banda onde eles moravam.

Ivan: Tá. Mas vocês se viam assim…

Roseli: Ela passou um dia nessa rua aqui. Eu aqui na mesa, e ela passou na rua assim com ele. Ela passou assim na rua… Ela é grande, enorme… Você conhece ela?

Ivan: Conheço, conheço.

Roseli: Uma cara feia que dava para você notar. E viu eu lá. E viu que eu estava com ele. Porque eu acho, Ivan, que ele tinha contato com ela, mas ele mentia, sabe?

Ivan: Você nunca chegou a perguntar isso para ele?

Roseli: Milhões de vezes, Ivan. Mas ele era muito… Sabe aquele ucraniano fechado? Ele dizia que não. Mas eu acho que, antes de me trazer para cá e ter eu lá em Curitiba, ele tinha algum contato com ela. Ele dizia que não, que ela não queria porque era muito religiosa e tudo. Aquela “santarada”, que ela tem santo até no teto da casa, por todas as paredes, tudo… É muito religiosa. Ela não gostava de viver no pecado, e casou-se com ele. O único homem foi ele, aquela história toda.

AS TRAGÉDIAS DE PAULINA

Ivan confirma que Paulina é realmente muito religiosa, e pôde perceber isso quando a visitou. Havia, de fato, vários santos e imagens cristãs espalhadas pela sala. Depois de João, Paulina nunca mais se casou. E, durante a conversa com Ivan, ela se referia a ele não como “ex-marido”, mas sim “marido”.

Ao que tudo indica, Paulina nunca aceitou muito bem a separação. Ela não tinha uma boa relação com Roseli, nem contato com os filhos do novo casal. São dois núcleos familiares separados que convergem na dor que foi o desaparecimento de Leandro.

Ivan: Mas ela já era fechada naquela época, né?

Roseli: Sabe por quê? Ela teve dois irmãos no sítio, lá no município de Colorado. Foram lá em cima na barroca, como se fosse aquele morro ali. Antes disso, mandaram a mãe fazer um belo de um churrasco, tinha uma comida muito boa, colocaram um belo terno… Um deles foi lá, comeu tudo, se vestiu e depois saiu. Se despediu do pai e da mãe, foi naquele lugar lá em cima, se jogou lá embaixo e morreu. Se jogou. Dois irmãos dela morreram assim. E ela já tem aquele trauma…

Ivan: Os dois se jogaram lá de cima? Os dois se suicidaram?

Roseli: O pai era alcoólatra. Tinha uma fábrica, uma serraria, lá nesse município. Colocaram tudo a perder. O João dizia que eles não tinham dinheiro quando morreram, que uma serraria que eles tinham… Que eles tinham tanta terra, tanta, tanta, tanta propriedade lá nesse município… Que eles não tinham dinheiro para fazer um caixão na hora da morte. O pai, a mãe, os irmãos, todos morreram. Ficou ela e a Vera. Ela só tem uma irmã viva. E tem um parente dela que tomou tudo o que eles tinham lá nesse sítio. Então, vem muita coisa para a Paulina. Os irmãos se matarem, o Leandro que sumiu, a separação dela com o João… Então, ela tem muita coisa na cabeça.

Ivan: Exatamente. Acho que ela não consegue lidar com situações muito estressantes. Eu acho que é isso.

Roseli: Ficou pior ainda, sabe? Perdeu o olho, teve essa doença, teve esse problema. Está viva, graças a Deus. Vai viver muitos e muitos anos, que eu desejo muita saúde para ela. Em nome de Jesus, desejo tudo de bom para ela… Eu fui ao velório do Ademir. Mas ela não nos aceita. O Lucas foi, abraçou ela, tudo. Ela aceitou. A Neli… Assim, ela nos rejeita, sabe? Logicamente, ela me rejeita… Mas as meninas ela rejeita…

Como Ivan reforçou no episódio anterior, ele não acredita que Paulina seja uma pessoa má, ou que tenha algum segredo escondido, como muitos desconfiaram em todos esses anos. 

A impressão dele é que Paulina não consegue lidar com situações muito estressantes. E, se analisar todo o histórico de tragédias pelas quais passou na vida, parece evidente que ela precisava de ajuda – que, infelizmente, não teve.

O ABUSO

Essa história toda já serve talvez para explicar algo injustificável, mas que pode ter uma explicação pelo contexto: a pouca atenção que o caso de Leandro recebeu em comparação com o de Evandro.

Apesar de ser de classe média baixa, Evandro fazia parte de uma família tradicional de Guaratuba. Um de seus membro, inclusive, chegou a ser prefeito da cidade na década de 70. Os pais do menino trabalhavam para o município. Logo, eles eram muito conhecidos, e isso gerou uma grande mobilização para procurá-lo assim que ele sumiu.

Esse não era o caso dos Bossi. Eles eram pobres e estavam na cidade há pouco tempo quando Leandro desapareceu. A polícia deveria ter olhado melhor para o caso dele. Só que, além de serem pessoas pouco conhecidas, havia outro problema entre os dois núcleos da família. E esse problema provavelmente começou em janeiro de 1991.

Nessa época, os dois núcleos familiares viviam em Guaratuba há pouco mais de um ano.

Ivan: Eu sei que você conviveu pouco com o Leandro, mas eu vejo foto dele e fico pensando que devia ser um capeta. Ele tem cara de ser menino capeta assim…

Roseli: Ele era. Ele era um guri muito esperto, inteligente. Cantava “as andorinhas voltaram”. Cantava muito. Falava muito em ‘R’, puxava muito o ‘R’. No tempo que eu convivi com ele, ele era muito inteligente, muito esperto. E ele ficava muito com outras crianças, eu acho, onde ela [Paulina] morava. Tanto que houve um fato, um dia, lá onde eu morava com o João e com a Cris pequena, e com a Neli… Ele estava assim… Não sei se o Lucas falou para você esse caso, que ele estava… Eu estranhei, daí eu perguntei para ele: “Leandro, o que está acontecendo com você?”. Ele disse: “ah, aqueles meninos lá me pegaram”. Aí quando o João veio de Curitiba, eu peguei e contei para ele.

Natalia: Do abuso…

Roseli: Do abuso que existiu entre o Leandro com esses piás, sabe?

No início do inquérito de Leandro, há um momento em que os policiais anexam parte de uma investigação anterior. Há apenas duas folhas: um termo de declarações prestado pelo menino e um laudo de exame de atos libidinosos.

Ambos os documentos datam de 31 de janeiro de 1991, pouco mais de um ano antes de ele desaparecer. E, ao que tudo indica, eles são referentes a um abuso sexual que Leandro sofreu.

Depoimento de Leandro sobre abuso sexual

No depoimento, Leandro, que tinha seis anos e 11 meses, dizia o seguinte:

Na presença de seu genitor, Sr. João Bossi, disse que há aproximadamente um mês encontrava-se na praia próximo de sua casa e três meninos, seus vizinhos, de nomes Júlio, neto de dona Olinda, Alexandre e outro que não lembra o nome, tiraram a sua calça e praticaram atos libidinosos. Que até a presente data não comunicou seus pais. Porém, como foi dito para dizer o que realmente ocorreu, sendo dito para sua mãe tudo detalhadamente como ocorreram os fatos. Que os meninos que praticaram os atos moram ainda nas proximidades da casa do informante. Que, após ter ocorrido esse fato, não foi mais perturbado pelos meninos citados. Observação: O informante afirma ser há 3 meses o ocorrido.

As datas não batem muito. Afinal, Roseli afirmou que notou que Leandro estava estranho, e ele lhe revelou o abuso. Em seguida, ela contou tudo para João Bossi, que levou a criança para a delegacia.

Como é apontado no início deste depoimento, Leandro estava com o pai. Essa história dá a entender que a violência em si teria ocorrido pouco antes de ele ter dito tudo para Roseli e João. Mas, no termo de declarações, o menino começa afirmando que isso aconteceu há um mês, e depois fala em três meses.

É importante ter em mente que se trata de uma criança de seis, quase sete anos. Portanto, não se pode esperar que ele dissesse informações tão específicas em um caso tão chocante.

Ivan nunca descobriu quem são esses meninos. No laudo de exame que acompanha esta folha no inquérito, a anotação do médico está cortada. É possível ler apenas o seguinte: “No exame físico atual não é possível saber[…]”, e corta. Ivan supõe que o médico concluiu que, pelo exame físico, não conseguiu constatar o abuso.

Ivan: Quem são esses piás?

Roseli: Não sei. Só o João sabia porque ele foi na delegacia na época. Eu só sei que era no lugar onde ela morava. Só ela pode falar isso.

Ivan: Então tinha alguns vizinhos…

Roseli: É. Uns piás onde eles moravam lá nas casas. Agora, eu não sei se é verdade. Porque ele não ia falar uma mentira, né? Ele estava evacuando assim direto, sabe? Estava praticamente uma pessoa aberta, sabe? Que não se segurava mais. Aí eu fui e perguntei para ele, sabe? “Por que está acontecendo isso com você?”. “Ah, aqueles guris lá me pegaram”. Só isso também.

Natalia: E ele mudou alguma atitude depois disso?

Roseli: Não, não mudou nada. Daí depois ele foi com a mãe, né? E o João chegou de Curitiba, eu contei para ele. O João ficou muito nervoso, pegou e falou com a Paulina, eu acho, não sei o que aconteceu. Foi na delegacia, os piás foram até presos na época. E eu não soube de mais nada também. Mas eu acho que não tem nada a ver com…

Ivan: Ele tinha noção do que tinha acontecido com ele?

Roseli: Não sei. Porque eu também só… Ele me falou isso e depois foi com ela e… Virou em nada…

Ivan: Mas ele ficou como se estivesse triste, chateado, mal, assim? Ou ele falou “não, não…”.

Roseli: Bem assim… Bem assim como se fosse… Acontecido nada, sabe?

Natalia: Não reclamava de dor, de nada? Incômodo?

Roseli: Conforme o que ele falou para mim, eu senti que ele não tinha se sentido bem com isso daí. E eu perguntei por que estava acontecendo aquilo lá, o que estava acontecendo, e ele pegou e falou isso. Eu fiquei nervosa também, né? Fiquei preocupada, logicamente, é uma criança. Meu Deus. […] Daí a polícia foi nesses piás lá. Parece que foram presos de manhã, mas de tarde já foram liberados…

Ivan: Eram menores de idade, né?

Roseli: É. Não sei como é que foi…

Ivan: Tudo criança, tudo criança…

Roseli: Tudo criança, tudo criança com criança…

Ivan: Você ouvindo o Leandro falar isso, parecia que era uma criança que não tinha nem noção do que tinha acontecido com ela?

Roseli: Não. Acho que tinha noção, mas não pode se defender. E eram crianças maiores um pouco, e ele estava sozinho. Ele lá ficava sozinho. A Paulina saía e deixava ele, era acostumada a deixar, né? Não se preocupava, pois deixava ele ir lá no Coroados pegar consulta para ela… Na fila para ela ir consultar… E andava, diz que andava pelas ruas no centro…

Natalia: A senhora lembra de quando foi a última vez que o João viu o filho antes de ele desaparecer?

Roseli: Lembro. Ele estava pescando na frente de casa com o cestinho, e o Leandro nas costas. Ele tarrafeando lá na água, e a Paulina veio por trás assim, por trás de umas lanchonetes que tinha atrás da casa da doutora Silmara, em Guaratuba, lá no Eliane… Correu lá, pegou o Leandro, jogou o cesto, pegou ele e foi embora. Essa foi a última vez que…

Ivan: Nem deu tchau…

Roseli: Não. E daí o João correu lá, e eles esconderam o Leandro lá dentro dessa lanchonete, e pronto…

Natalia: Dias antes?

Roseli: Foi a última vez que o João viu ele na minha presença.

Ivan: Na sua presença. Então foi um ano e pouco antes…

Roseli: Foi. Daí ela pegou ele de lá da praia, que estava tarrafeando com o João. Ela pegou lá, ela foi lá, correu, jogou… Fez ele jogar o cesto lá com os peixinhos. E ele estava lá na água. Quando ele olhou para trás, ela estava correndo com o Leandro. Pegou e nem disse: “ó, vou levar o Leandro embora e pronto”, nada. Daí levou para esse bar, ele foi lá, já não viu mais ninguém, e se esconderam lá para dentro, e pronto. Foi aí, que eu me recordo isso…

De acordo com os relatos da família Bossi, quando Leandro desapareceu, ele já não via o pai há bastante tempo. Roseli fala em um ano e quatro meses, mas isso não é possível, pois no depoimento sobre o caso de abuso eles estavam juntos, e isso foi um ano e 15 dias antes.

O mais provável que tenha acontecido é o seguinte: após João ir para a delegacia com Leandro, ele e Paulina se desentenderam. Um dia, o menino estava pescando com o pai, a mãe chegou, levou o filho com ela, e acabou.

Lucas Bossi, irmão de Leandro, filho de João e Roseli, contou um pouco do que ouvia do pai sobre o caso Leandro.

Lucas: É. Eu perguntei muito sobre isso para o pai, né? […] O que ele me contava? Primeiro, que o pai odiava aquele delegado…

Ivan: O Gilberto.

Lucas: Aí eu perguntei “mas por quê?”. Nem sei quem era o delegado. Diz que o pai odiava. Eu acho que esse delegado tem muita responsabilidade sobre os períodos iniciais de tudo, sabe? Quem mais eu vou culpar? A própria pessoa que deveria estar ali. Eu preciso culpar alguém. Então, eu também culpo da mesma forma que o meu pai culpava. Porque… Acho que foi quatro anos antes, Ivan, que o Leandro foi abusado sexualmente, né?

Ivan: Foi um ano antes. Foi um ano antes.

Lucas: Um ano antes, olha aí. Um ano antes.

Ivan: Foi em janeiro de 91.

Lucas: Pois então, aconteceu isso. Não sei se a minha mãe te falou, mas foi ela que indagou o Leandro do porquê ele estava daquela forma.

Ivan: Sim.

Lucas: Porque o menino, coitadinho, se sujava, né?

Ivan: Aham.

Lucas: E aí a mãe perguntou para ele o que estava acontecendo. Ele todo sem jeito disse: “aqueles guris lá fizeram tal coisa”. Aí que a mãe avisou o pai, que avisou a Paulina. Para você ver como era assim um… É até difícil de eu falar isso, mas parece que o menino… Parece que eles eram negligentes com a criança, não cuidavam direito. Tem que dizer bem a verdade. Eu sou irmão dele, eu tenho que dizer o que eu sinto, sabe? E aí o pai… Parece que foi fazer um boletim, não sei, foi lá denunciar essa pessoa que fez isso com ele. Aí a minha pergunta para o meu pai foi: “tá, e não pode correr o risco de ser alguma coisa… Uma vingança? Isso não pode ter alguma relação com o desaparecimento do Leandro?”. Foi isso que veio na minha cabeça. Se foi um ano antes… O pai não foi lá mexer com delegacia para… Eu não sei se era um homem, se era um adolescente, se era uma criança. Eu não tive acesso a nada disso, sabe? Eu não tenho informação. Mas isso foi uma dúvida que ficou em mim, se pode existir alguma relação do abuso com o desaparecimento. Porque pode ter sido… Sei lá, né? A gente vê tanta coisa assim em filme, que foi uma… “Ah, ele fez aquilo comigo, agora ele vai ver”. Então foi uma bala trocada? Não sei.

Ivan: É. O que eu sei aqui, ó… Eu tenho aqui a declaração que o Leandro dá. Ele está acompanhado nesse momento do João Bossi. Ele tem seis anos de idade. E ele fala que há aproximadamente um mês… Ou seja, fazia um mês que tinha acontecido. Isso aqui é 31 de janeiro. Então a gente está falando de início de janeiro, final de dezembro.

Lucas: De 90?

Ivan: De 90. Isso. Início de 91, final de 90, início de 91, tá?

Lucas: Isso que me dói. Hoje eu tenho vontade de chorar de raiva. O menino tinha sido estuprado provavelmente, né? E aí ninguém faz nada. Ele ficou em silêncio, ninguém faz nada, e um ano depois ele some.

Ivan: Aham. E nunca correram atrás dos meninos. A gente não sabe nem o sobrenome…

Lucas: Assim, é normal, então? É isso que eu fico pensando, né? Se uma criança hoje sofre alguma coisa, eu chego na delegacia, eles só colhem o depoimento e tchau? Ai, isso me irrita.

Ivan: E uma das grandes tristezas que a gente vê é justamente de ter uma… Em outros casos que eu já vi de abuso sexual contra menores, principalmente nessa época, esse era meio que o procedimento, sabe?A gente está muito longe… A gente está muito atrás nessa época, década de 90, início da década de 90, de ter o Estatuto da Criança e do Adolescente, né? Quando se forma o ECA, daí que começa a se preocupar com isso.

Lucas: É. O que me deixa intrigado é isso, né? Tipo, o pai foi lá, fez a parte dele, fez o Boletim de Ocorrência. Eu não sei… O pai deveria ter procurado um advogado para fazer alguma coisa? Como que é?

Ivan: Não. Não devia ter feito nada. A polícia tinha que ter investigado. É isso. Já deveria ter feito isso na época, mas não se tinha nem consciência… Sabe aquele negócio tipo: “ah, criança? É moleque fazendo merda”, sabe? Não tem essa noção de que é um crime que aconteceu e que uma criança foi abusada… Essa é a melhor… Eu sei que é horrível essa resposta, mas é a melhor explicação que eu posso te dar. Nem se tinha noção da gravidade desse crime na época. Esse é o ponto.

Lucas: Aham. Isso eu perguntei para o pai, se ele sabia quem eram essas crianças, se ele podia dizer com certeza que não tinha relação… O que ele achava. Ele dizia: “não, não sei para onde foram, sumiram”. Alguma coisa assim. Ele fugiu dessa história também. Nunca falou muito sobre isso, né?

Ivan: Ele não sabia quem eram os meninos? Ou ele sabia?

Lucas: Eu acho que não sabia, ou se sabia… Ele deve saber quem eram os pais, esses que estão mencionados aí os nomes, certeza que deve saber. Eu acho que o pai teria ido atrás. Impossível não, impossível… Pelo menos não combina com o estilo que ele era naquela época.

Ivan tentou descobrir quem eram esses meninos, e se esse crime poderia ter alguma relação com a morte de Leandro, mas não conseguiu nada de substancial. E, por motivos que ficarão mais claros ao final da temporada, Ivan tende a achar que são tragédias isoladas. Ainda assim, esses traumas todos se somavam à família Bossi.

Lucas: Isso me revolta demais, essa questão. Por que daí o que acontece? O pai fez esse boletim por causa desse negócio, que aconteceu isso com o Leandro, ok. Passou o tempo. O Leandro desaparece. Aí volta meu pai de novo nessa delegacia. Olha, eu não sei se o que o meu pai me conta é verdade ou se está linkado realmente nessa mesma data, ou se ele pode estar se confundindo. O meu pai não tem o costume de… Nunca mentiu. Mas ele podia estar confundido datas e ocasiões. Mas ele me disse que quando chegou para fazer o Boletim de Ocorrência do Leandro, ele discutiu tanto com o delegado que quase saiu ameaçado de apanhar ali de outros policiais. Porque o delegado dava de dedo nele dizendo que ele era irresponsável. Que um ano antes o menino tinha sido abusado, e agora, naquele ano, o menino sumiu. “Agora o que é que tu quer aqui?”. Mais ou menos assim. O meu pai foi praticamente escorraçado no primeiro momento que ele pisou na delegacia.

Ivan: Sim. E tem também uma situação…

Lucas: Eu não sei se o meu pai já te disse isso.

Ivan: Não, não. Ele não me falou… Eu não me lembro, tá? Eu até tenho que dar uma olhada. Não me é estranha essa história.

Enquanto Ivan falava com Lucas, ele de fato não se lembrava se isso havia sido mencionado. Mas, ouvindo novamente a entrevista com João Bossi, feita em 2017, o jornalista confirmou a história sobre o conflito com o delegado na época do sumiço do Leandro, o doutor Gilberto Pereira da Silva.

João: É muito complicado porque na época eu pescava em alto-mar e já era separado da mãe dele. E, quando voltei, eu soube da história. Fui reformular a queixa no delegado, o delegado queria me prender, porque eu era um pai irresponsável. Mas eu não posso cuidar só dos filhos em casa, sentado. Eu tinha que trazer a comida para eles, o leite para eles. E o delegado, infelizmente, o doutor Gilberto, é um crápula, um sem-vergonha. Não tenho medo de dizer isso. Com os olhos… Um pimentão de maconha… Queria me prender porque eu era um pai irresponsável. Meu Deus, eu estava há dois dias em alto-mar, pescando, sem saber o que é uma cama, para poder trazer sustento para a família. E era irresponsável. Então, infelizmente, hoje um vagabundo na rua é muito mais gente do que um pai de família que nem eu sou. Infelizmente. Até teve várias policiais femininas naquela época… “Seu João, não discute com o delegado. Pega e caia fora, vai embora”. E não porque não sei o quê… E ele queria me prender. Aí eu achei que era desaforo um delegado ‘maconhado’ me prender, chamei ele para o braço. Eu chamei. Na época eu tinha um pouquinho mais de força, eu chamei.

Ivan: Isso foi tudo no mesmo dia?

João: Tudo no mesmo dia. Aí ele só falou assim: “João, para começar, você é irresponsável, você abandonou o teu filho”. Mas, espera aí, se eu ficar sentado do lado do meu filho, ele vai comer o quê? Sempre falei isso. O que um filho meu vai comer se eu não trabalhar? Aí, graças a Deus, falei com o secretário de segurança daquela época, o doutor Moacir Favetti. Na época, era o secretário. O delegado foi para Cascavel, para o lugar que ele merecia. Ali já apanhou… Deram um sumiço nele, não sei. E eu tô aqui. Só que a minha resposta ainda não veio. Eu estou aguardando a minha resposta. Não importa o governo que assumiu o Estado, eu quero a minha resposta. São 25 anos. Não são 25 dias. Pelo amor de Deus, isso aí é falta de vergonha na cara, promover delegados e mais delegados, e a coisa fica do mesmo jeito. Envolveram a minha situação junto com a do Ramos Caetano. Eu não tenho nada com aquela história. O meu filho desapareceu 53 dias antes. Eu falava e ninguém dava bola, falava… “Não, depois nós vamos ver”. Até que no dia do sumiço do Evandro é que o pessoal conseguiu acordar. Suspeitaram que eu vendi o meu filho por 29 mil dólares. Eu exigi da polícia, do Tigre, para ir em toda Santa Catarina, onde mora a minha família, de ponta-cabeça… Não acharam nada… E eu, por falta de advogado, pedi indenização do Estado, uma calúnia em cima de mim e eu não consegui nada. E eu merecia. Eu merecia. Já sofrendo, acusado… Por que não me prenderam? Porque não tinham cacife, não tinham vergonha na cara, sabendo que iam prender um pai inocente.

Ivan tentou localizar o doutor Gilberto para que ele pudesse contar o seu lado da história, mas não o encontrou.

O fato de Paulina e João Bossi estarem aparentemente brigados naquela época, sendo Leandro o motivo do conflito entre os dois, provavelmente levou o delegado Gilberto a supor o que é mais comum em situações desse tipo: um dos pais deveria ser o responsável pelo sumiço do menino. Isso, infelizmente, acontece com frequência em casos de crianças desaparecidas. Os pais brigam, e um deles leva o filho consigo para outro lugar.

Talvez acreditassem que João ou Paulina teriam levado Leandro escondido para algum parente em Curitiba, ou até mesmo para outra cidade no Paraná. E essa é uma possível explicação para não terem investigado direito o caso nos primeiros dias após o menino desaparecer.

Ivan: Acho que tem algum relatório… Eu não vou lembrar agora exatamente qual, tá? Mas um comentário que é mais ou menos assim: quando o Leandro desapareceu, o seu João Bossi e a Paulina estavam separados e estavam meio que brigados. O João não estava vendo o Leandro já fazia um ano, né? E uma das desconfianças desse delegado, só para melhorar aqui a compreensão da época, era: “ah, ele desapareceu, deve ter sido alguma briga entre os pais”. Então, por exemplo, sei lá, a Paulina está querendo esconder o Leandro do João, sabe? Então, isso não é uma justificativa, mas é mais uma explicação do porquê o delegado nem correu atrás. Fora também que era alta temporada, que não pôde dar atenção para isso. As histórias, as justificativas que dão, que são injustificáveis. O fato é que não foi investigado e deveria ter sido. Esse é o ponto principal, né? Tanto é que depois o Evandro desaparece também e é outra situação. Porque a família Caetano é bem conhecida na cidade, a família Bossi não era conhecida. Eram funcionários da prefeitura, então tem toda uma mobilização, e daí o Leandro começa a aparecer como: “ah, antes desse Evandro teve outra criança que desapareceu também. O nome dele era Leandro”. Então é assim que o Leandro aparece. Não saiu uma notinha sobre o Leandro na época. Isso é outra coisa que nos deixa desesperados, assim.

Lucas: Pois é. Então, essa relação entre o meu pai e a Paulina, isso realmente ocorreu, sempre foi muito horrível assim, né? Por quê? Separaram… Até quem fez a separação foi a Anésia, né?

Anésia Edith Kowalski era a juíza de Guaratuba na época dos casos Leandro e Evandro. Ela foi bastante mencionada na temporada do caso Evandro, pois foi uma das personagens principais dessa história.

Lucas: E aí ela não quis pensão. Não quis pensão porque ela não queria mais vínculo, né? Ela queria ficar com o Leandro e não queria mais que o Leandro visse o meu pai. É assim que o meu pai confirmou e que a minha mãe falava para mim no tempo que rolava ali o podcast, que aí eu comecei a perguntar sobre isso. “Tá, mas como assim?”. É que a Paulina ia trabalhar, às vezes ela deixava ele com o Ademir. O Ademir às vezes também não queria ficar junto com o guri, e simplesmente largavam o Leandro lá em casa. Lá em casa com a minha mãe e às vezes com o meu pai. E a Paulina não gostava desse vai e vem. Tanto que teve vários momentos que eles discutiam, né? Até com a minha mãe. Não sei bem como é, isso aí elas devem saber explicar. Aí eu perguntei para o meu pai o que ele recorda do último dia quando viu o Leandro. O pai disse assim: ele estava pescando. O Leandro adorava pescar. O pai estava jogando tarrafa na frente da minha casa ali em Guaratuba. Eles estavam pescando. O pai estava com a tarrafa, com a água na altura do peito, que você tem que entrar mais para jogar a tarrafa na praia. Então, ele estava com a água na altura do peito, e o Leandro estava na areia com o cesto de peixe. A Paulina chega de carro com alguém, porque ela não tinha carro. Ela chega de carro, chama o Leandro. O Leandro joga o cesto, entra no carro e sai. É isso que o meu pai me relatou.

Ivan: Essa foi a última vez que ele viu o Leandro.

Lucas: É. Essa foi a última vez. O meu pai não sabia me dizer quanto tempo depois o menino desapareceu. Só que a mãe diz que fazia um ano e quatro meses que ela não via o Leandro.

Ivan: Um ano e quatro meses não tem como ser. Porque aqui temos esse depoimento do dia 31 de janeiro de 91, que foi um ano e 15 dias antes de ele desaparecer. Então, não foi um ano e quatro meses…

Lucas: Não foi tudo isso.

Ivan: Não foi tudo isso, né? E ele tá com o João Bossi na delegacia. Mas não sei, né? Assim, a Paulina… É difícil conversar com ela, ela ainda não aceitou dar entrevista, tudo. Eu ouvindo assim e conhecendo como casais funcionam, a impressão que eu tenho é que ela tinha muito ciúmes da tua mãe, ela não aceitava o divórcio. Não queria o Leandro perto da sua mãe. Então ela usava o Leandro… “Não quero o meu filho perto desse pessoal”. Então ia lá e pegava, daí acabava… É a famosa alienação parental, uma situação assim, de usar o filho para brigar com o ex. A Paulina mora em condições muito precárias, o Ademir era um adolescente também, que estava com a vida dele. E daí tem essa história, que é essa discussão do dia do desaparecimento. Eu tenho uma impressão… Eu até estava vendo uma entrevista que o Ademir deu lá para o canal Investigação Policial, se eu bem me lembro. Acho que é a última entrevista que o Ademir deu sobre o caso antes de falecer. Tem uma hora que o jornalista pergunta para ele: “o dia que você encontrar o Leandro de novo…”. Ainda não tinha DNA, nem nada. “O dia que você encontrar o Leandro, o que você vai falar para ele?”. Daí o Ademir começa a chorar e fala assim: “eu vou pedir desculpa”. Ele fala várias coisas assim… “Eu vou pedir desculpa”. E o jornalista não entendeu direito por que pedir desculpa. Mas, ouvindo a sua mãe, conhecendo melhor como era aquela época e tudo, dá para ver que o Ademir não tinha muita paciência para cuidar de uma criança também, de seis, sete anos.

Lucas: Não, não. Ele era… Não, não… Exatamente. O que eu ouvi sempre vindo da mãe… A mãe que acabava falando isso, o pai nunca falou sobre isso, que o Ademir era muito ruim para o Leandro. É como a mãe sempre falou. Ela deve ter te dito isso dessa mesma forma, que ele era muito ruim, que batia no Leandro, enfim… Aquela coisa de irmão mais velho, né? Que não quer o mais novo incomodando, essas coisas. Então, naquela época, eu entendi mesmo que essas desculpas estejam relacionadas a isso, né? Aquela ruindade do irmão mais velho, que podia ter cuidado melhor. Podiam ter sido dois irmãos mais próximos assim, né? Eu não sei como era essa relação para eu dizer… Nunca vivi isso…

Ivan começou este episódio falando sobre a entrevista de Ademir para o canal “Operação Policial”, no YouTube. Nessa conversa com Lucas, o jornalista acredita ter entendido o motivo de Ademir dizer que queria dar um abraço e pedir desculpas para Leandro quando o reencontrasse.

Ele não tem culpa disso. Não foi ele que sequestrou e matou Leandro. Mas Ademir muito provavelmente se sentia culpado por não ter cuidado mais do irmão.

Ivan: Você chegou a conversar com o Ademir sobre o caso?

Lucas: Nunca. Nunca. Nunca… Nunca, assim… E queria, queria muito. Mas não tive a oportunidade.

Ivan: Não tinha muita intimidade com o Ademir também, né?

Lucas: De chegar e falar sobre isso, não. Nesses últimos tempos, o Ademir também estava esquisito assim, sabe? Estava muito debilitado também, de saúde. Parece uma coisa assim, que as pessoas vão perdendo a sensatez das palavras, não sabem mais formular nem frases, né? É complicado. A entrevista do Ademir até fica meio confusa às vezes, ele não falava nada com nada. Foi complicado. Então, eu nunca pude… Mas era mais sobre isso, né? Que ele realmente nunca teve um vínculo muito bom ali, pelo que eu vejo. Mas ele foi o grande parceiro do pai quando o Leandro desapareceu. O Ademir, nossa, um adolescente, mas ficou ali do lado do pai ajudando em tudo. Não sei como isso deve ter sido também traumático.

Ivan: É, imagino. E esse é um lado que não aparece, né? Ele nunca foi ouvido. O Ademir nunca deu depoimento. Mas se foi isso mesmo que você me fala, através da tua mãe, que ela me falou também, desse relacionamento complicado, eu não consigo nem imaginar a culpa que ele sente também… De tipo “pô, eu podia ter cuidado melhor do Leandro”, e tal, e acontece tudo isso. Dá para ver que ele… É foda. Porque a gente sabe como irmão é, briga mesmo, ainda mais quando a diferença de idade é tão grande.

Lucas: Fala e faz coisas que obviamente não falaria se soubesse que qualquer coisa pudesse acontecer… Jamais…

Ivan: Exato. É terrível.

ALGUÉM VIU LEANDRO?

Retornando para 15 de fevereiro de 1992, o dia que Leandro desapareceu, o comentário sempre foi de que ele estaria no show do cantor Moraes Moreira, mas não há nenhuma testemunha que afirme isso no inquérito.

Havia a história de Aramis Cândido de Castro, o amiguinho de Leandro que supostamente teria visto ele no show. Havia também a história de que Aramis teria desaparecido naquele dia 15 de fevereiro durante o evento, mas voltou para casa horas depois.

E também tinha a história que Lucas Bossi relatou, de uma mulher que o contatou falando que conhecia outra mulher, que seria jovem na época que Leandro sumiu e que morava perto dele. Essa jovem teria visto Leandro no dia que ele desapareceu. Ele estaria bem arrumado. Ela, então, perguntou: “para onde você vai todo arrumadinho?”. E ele teria respondido: “eu vou para o show”.

Ivan conversou com a mulher mencionada por Lucas. Mas, para evitar exposições, ele preferiu manter a identidade dela em segredo, pois há uma contradição nessa história.

Durante a conversa, em 2023, a mulher que entrou em contato com Lucas disse para Ivan que a tal jovem que lhe contou essa história já havia falecido em um acidente. E ela afirmou que nunca falou nada sobre Leandro estar “arrumadinho” ou que ele teria respondido que iria para o show à noite.

Ivan contou para Lucas que a mulher não havia confirmado a história que ele havia lhe relatado. Lucas respondeu que tinha certeza que ela falou isso, que ele não teria motivo para mentir.  E não teria mesmo. Já essa mulher pode ter se sentido assustada ao falar com Ivan e não queria expor a conhecida, que teoricamente estaria morta, e por isso contou outra história para ele.

Ivan não sabe dizer qual é a versão verdadeira. Mas, para ele, faz sentido que alguém tenha visto Leandro arrumado saindo de casa. Afinal, conforme o depoimento de Paulina, ele voltou para casa para trocar de roupa.

Mas e o que aconteceu depois? Ninguém sabe. Quem talvez soubesse seria o amigo dele da época, o Aramis, que já é falecido. De acordo com João Bossi, depois daquela noite, Aramis teria passado a falar para algumas pessoas a seguinte frase: “todo mundo se safou, só o Leandro se fodeu”. Então, Ivan começou a pesquisar o que tinha em mãos para verificar essa história.

João Bossi e Roseli Steffen eram amigos do casal Inês de Souza Castro e Antônio Carlos de Castro, pais de Aramis. Antônio era conhecido em Guaratuba como “Vinagre”. 

De acordo com João e Roseli, sempre que eles tentavam tocar no assunto com Inês e Vinagre, estes desconversavam. Nunca explicaram exatamente o que teria acontecido com Aramis no show, o que ele teria visto, se ele realmente disse aquilo que João relatava.

A única coisa que há dessa história de Aramis é uma matéria publicada no extinto Jornal Hora H, de Curitiba, no final de junho de 1996. Nessa matéria, feita pela jornalista Vânia Mara Welte, está escrito o seguinte:

Cinco crianças desapareceram naquele dia em Guaratuba. João Bossi conta que na mesma noite que seu filho Leandro desapareceu do show do cantor Moraes Moreira – conforme o relato de algumas pessoas – outras quatro crianças também sumiram. Entre elas estava o filho de um casal de amigos deles, o pequeno Aramis, também com cerca de sete anos de idade na época. Mas durante a madrugada, todas as crianças voltaram para casa. Aramis foi devolvido aos pais por policiais militares durante aquela madrugada mesmo.

Mas o que intriga a família Bossi é o que Aramis fala até hoje às crianças sobre aquela noite: “Todos conseguiram se safar, só Leandro se ferrou”. Além disto, quando eles procuraram o menino para saber detalhes sobre o tempo em que as crianças ficaram desaparecidas, os pais dele disseram que o tinham mandado passar uma temporada com parentes em Ponta Grossa. “Foi só para ele não falar sobre o assunto”, desconfiam.

Para conferir a história, o Hora H procurou localizar a família de Aramis. Encontrou-a durante a noite, sob muita chuva.

Numa casa simples de madeira, pela janela, atendeu o pai de Aramis, Antônio Carlos. Ele disse que a mulher, Inês, estava fora, em Curitiba, e Aramis estava na rua. “Como sempre”, desabafou, antes de negar o desaparecimento de qualquer filho. Ao ser perguntado sobre o sumiço passageiro de Aramis e outras três crianças, na mesma noite em que desapareceu Leandro Bossi, o homem negou. “Meus filhos nunca desapareceram”, declarou, sendo imediatamente desmentido por um garotinho que enfiou a cabeça no canto da mesma janela. “Desapareceu sim, foi o meu irmão Aramis”, afirmou, tendo a cabecinha empurrada para dentro pelas mãos do pai. “Sai daqui, moleque”, advertiu.

Mas o pequeno queria falar e saiu para fora, debaixo de chuva, enquanto o pai tossia, pigarreava e gaguejava, tentando se explicar. Mesmo contra a vontade do pai, o pequeno respondeu às perguntas que lhe foram feitas. Disse ter dez anos e se chamar Tiago. Falou também sobre o desaparecimento temporário de Aramis e das outras crianças. “Meu irmão sumiu sim, mas minha mãe não gosta que a gente fale disso”, avisou.

Matéria do Jornal Hora H – “5 crianças desapareceram naquele dia em Guaratuba” (junho de 1996)

Dois anos após a publicação dessa matéria, o delegado Harry Carlos Herbert, do Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas (Sicride), em 1998, chamou o pai de Aramis para prestar um depoimento.

O delegado Harry foi um dos que mais trabalhou no caso Leandro Bossi, mesmo passados tantos anos após o desaparecimento. Ele foi o investigador que mais tomou depoimentos nesse inquérito.

No depoimento, o pai de Aramis, Antônio Carlos de Castro, falou o seguinte:

Que seu filho Aramis comentou com o declarante que na noite em que ocorreu o show do Moraes Moreira, na praia de Guaratuba, no ano de 1992, na temporada, provavelmente no mês de fevereiro, estava passeando com sua mãe (esposa do declarante) quando escapou da mão de sua genitora e perdeu-se no meio da multidão. Que desse fato houve registro por parte da sua esposa Dona Inês junto a policiais da operação praias e corpo de bombeiros. Que Aramis comentou que procurou uma viatura da polícia militar para que o levassem em casa, pois ele estava perdido, e quando falou que seu pai era o “Vinagre”, um dos policiais militares da viatura conhecia o declarante, então levou Aramis para casa.

Que o declarante, no dia do desaparecimento de seu filho, largou de seu turno como condutor, no ferry boat, por volta de 1 hora da manhã e, quando chegou, seu filho Aramis já estava em casa dormindo. Que muito tempo depois, questionado, Aramis falou que, enquanto estava perdido, viu no meio da multidão seu colega de brincadeiras Leandro Bossi.

Que o declarante só veio a conhecer os genitores de Leandro Bossi após os acontecimentos que envolveram seu desaparecimento. Que João Bossi conheceu após a separação dele e da ex-esposa, Paulina Bossi, que a mãe de Leandro ele só conheceu posteriormente, quando Aramis falou que aquela senhora era a mãe do Leandro que tinha sumido. Que conhecia pessoalmente apenas o Leandro de vista, pois ele de vez em quando brincava com o Aramis.

Que certa vez foram duas repórteres na casa do declarante em Guaratuba, uma morena e outra loira, fizeram várias perguntas sobre o desaparecimento do Aramis. Que depois viu um jornalzinho lá em Guaratuba, jornal este que era de Curitiba, que continha uma matéria com o que o declarante havia dito, mas não estava correta a matéria, pois tinha muita coisa distorcida.

Que o declarante, em data de hoje, antes de vir a esta delegacia, questionou a seu filho o que ele realmente sabia do Leandro no dia do show, tendo seu filho confirmado que o havia visto no meio da multidão que assistia ao show do Moraes Moreira, não sabendo mais nada a respeito do desaparecimento.

O declarante só sabe o que declarou até agora, e acerca dos fatos não tem a mínima ideia do que pode ter acontecido com o pequeno Leandro.

Depoimento de Antônio Carlos de Castro (1998)

Ou seja, o pai de Aramis confirmou a história de que o filho teria visto Leandro no show, e também afirmou que o filho havia sumido por algumas horas naquela noite. O que ele não menciona é que mais crianças teriam sumido.

A matéria do Jornal Hora H fala de cinco crianças que sumiram: Leandro, Aramis e mais três. Ivan nunca conseguiu confirmar se esses outros três realmente existiram.

Alguns meses depois do depoimento de Vinagre, o próprio Aramis prestou um depoimento. Na época ele tinha 14 anos, e estava acompanhado da mãe Inês. Em seu curto depoimento, ele dizia o seguinte:

O declarante lembra-se do menino Leandro Bossi, mas afirma que não o conhecia bem, apenas de vista, pois o declarante passava muitas vezes nas proximidades do Hotel VillaReal, onde a mãe de Leandro trabalhava. O declarante confirma que na noite em que ocorreu o show de Moraes Moreira encontrava-se passeando com sua mãe e acabou por perder-se na multidão. Porém, não pode afirmar o declarante se avistou Leandro Bossi durante aquela noite. Somente que viu Leandro ao lado do Hotel VillaReal sozinho, mas não chegou a conversar com Leandro.

Depoimento de Aramis Cândido de Castro (1999)

Então, é uma série de impasses. A história que João Bossi ouviu era uma. A história que Vinagre contou era outra. E a história do próprio Aramis é uma terceira. Uma hora Aramis e Leandro são amigos, outra hora são só conhecidos. Uma hora ele viu Leandro no show, outra hora não o encontrou no show, mas teria visto ele no Hotel VillaReal, que era perto do evento. Mas ele diz que não viu à noite, então pode ser que tenha visto durante o dia.

E a tal da história de que ele teria dito que “todo mundo se deu bem, só o Leandro se fodeu”? Aramis não cita isso no depoimento. Mas no inquérito que a Polícia Federal fez do caso Leandro Bossi, no ano de 2004, há um relatório que diz o seguinte:

Informamos que Aramis Cândido está preso no centro de triagem da Polícia Civil, e o mesmo informou que jamais falou a frase “nós se saímos bem e o Leandro se fodeu” – nem para o Sr. João Bossi, nem para qualquer outra pessoa.

Informe da PF sobre Aramis (2004)

Qual é a verdade? O que aconteceu exatamente com Aramis naquela noite? Será que essa história tem alguma relação com o desaparecimento de Leandro?

Aramis já morreu. Então, Ivan foi atrás dos pais dele. No início de 2023, ele visitou Inês e Vinagre. Foi atendido por ela, que informou que o marido estava de cama e não poderia atender. Ela se recusou a dar entrevista, mas contou o que lembrava.

Inês disse que era a primeira vez que acontecia um show daquele tamanho na cidade, e que eles não estavam acostumados a grandes eventos. Foi a primeira vez que foram a um show de verdade. Chegaram na Praia Central por volta de 21h.

Ela afirmou que estava com Aramis e mais dois filhos também pequenos. Em certo momento, Inês sentiu um puxão. Quando notou, era Aramis que havia sumido na multidão. Ela procurou pelo menino por um tempo, mas não o encontrou. Ela voltou para casa desesperada. O marido ainda estava trabalhando no ferry boat. Por volta de 23h, a polícia levou Aramis para casa.

Ao chegar, o garoto teria dito para ela que algumas pessoas teriam tentado levar ele dali, e por isso ele se escondeu embaixo do palco, entre madeiras, até se sentir seguro para ir embora. Ele teria escapado sozinho.

Por fim, Inês confirmou que Aramis e Leandro se conheciam, mas também disse que o filho nunca falou que viu Leandro naquela noite.

Ivan tentou uma entrevista com o outro filho dela, Tiago – o menino mencionado na matéria do Jornal Hora H, em 1996. Após meses de idas e vindas, ele também se recusou a falar.

Então, os fatos são os seguintes: primeiro, ninguém pode afirmar que viu Leandro no show. O último relato é de Paulina Bossi falando que mandou o menino voltar para casa do hotel às 9h30 daquele sábado, dia 15 de fevereiro. Sendo assim, é possível que Leandro tenha sumido bem antes do show acontecer.

Outro fato é que, aparentemente, pelo menos mais uma criança desapareceu naquele dia: Aramis. Pode ser que ele tenha apenas se perdido de Inês, o que não seria estranho de acontecer com uma mãe que não está acostumada a ir em grandes shows e está tentando cuidar de três filhos pequenos ao mesmo tempo.

Contudo, Inês contou que Aramis teria dito que tentaram levá-lo, e que ele conseguiu fugir e se esconder. Se a memória dela for boa e realmente foi isso que aconteceu, essa pode ser uma informação relevante. Em uma pequena cidade onde não há histórico de crianças desaparecendo, muito menos sendo sequestradas, isso parece ser uma coincidência muito grande.

Então, pode ser que aqui tenha uma informação nova, que nunca foi levada a sério. Pode ser que o assassino de Leandro talvez buscasse mais vítimas naquele dia. Acima de tudo isso, o que Ivan acha mais esquisito é que nunca apareceu ninguém que disse ter visto Leandro naquele dia. O mais próximo disso foi a jovem misteriosa mencionada por uma mulher que contatou Lucas – e que não pode confirmar a história.

RELAÇÃO DE ADEMIR E LEANDRO

Na conversa com Roseli, neste ano de 2023, a esposa de João Bossi e madrasta de Leandro relatou um pouco do que sabia sobre a convivência de Ademir com o irmão.

Roseli: Eu só tenho a dizer o seguinte… Não sei de onde eu ouvi isso, mas diziam que quem morava lá junto… Diz que era assim onde eles moravam nessa época, era o lugar onde moravam mais pessoas… Que o Ademir chegava e mandava o Leandro para a rua para ele poder dormir. E era bem ruim para o Ademir… Para o Leandro. E era bem ruim. Ele mandava o guri ir para a rua. E aí ele ficava para a rua, andando, brincando, pedindo, decerto… Não sei fazendo o quê. A Paulina lá trabalhando, não podia ir com nós… Que estava disposto a cuidar dele. Eu não trabalhava fora, podia muito bem cuidar dele direto. Criei os meus, custava criar ele também? Então, ela deixava à toa, deixava à toa… E o Ademir era ruim para ele. Batia, surrava, tocava… Só que ele nunca falava isso para a gente. “Pai, eu surro o Leandro”. Mas o João sabia que o Ademir era ruim. O Ademir era bem agressivo, sempre foi bem estranho, sabe?

Ivan: O Ademir falou isso alguma vez para vocês?

Roseli: Ele não falava nada. A gente sabia por… Assim, falavam que o Ademir sempre era ruim assim, não era bom para o Leandro…

Ivan: Não tinha muita paciência.

Roseli: Não. Não, queria dormir e mandava o Leandro para a rua, só isso. Um dia, há muitos anos, não sei quem, não me lembro também… Falaram isso para mim, que o Ademir era muito ruim para o Leandro. Mas só que eu não consigo lembrar quem foi. Eram pessoas próximas lá, que moravam lá perto.

Ivan: Mas fazia todo sentido o Leandro chegar em casa, o Ademir estar em casa e mandar ele para a rua…

Roseli: Manda ir para a rua…

Ivan: Manda para a rua, que eu quero dormir.

Roseli: Vá embora, que eu não quero você aqui, que eu preciso dormir.

Na entrevista com Lucas Bossi, Ivan também debateu sobre a possibilidade de, no dia do desaparecimento, Ademir ter pedido para Leandro sair de casa para ele conseguir dormir. E, depois disso, o garoto nunca mais foi visto.

Ivan: Então, o Leandro chega. Vamos imaginar a situação, o que seria uma típica manhã de sábado. Era um sábado de alta temporada, né? Todo mundo trabalhando que nem louco, vai ter show do Moraes Moreira. Parece que ia ter show do Trem da Alegria também, que era outro conjunto famoso da época, infantil. Chega o Leandro, vai trocar de roupa. Eles viviam em uma meia-água, então é uma casinha bem pequena. Começa a atrapalhar o Ademir, o Ademir manda o Leandro ir embora: “sai de casa”. E o Leandro sai. E daí a gente não sabe onde o Leandro passa aquele dia inteiro. Isso me chamava sempre a atenção. Do tipo: tá, mas ninguém viu ele durante o dia? Ninguém?

Lucas: É inacreditável…

Ivan: Sabe? Como assim ninguém? Porque, assim, uma coisa é dizer que ninguém viu… Depois da prisão, todo mundo acha que é assassinado, não sei o quê. Mas ninguém viu. Então, eu tenho a forte impressão, Lucas, que o Leandro some já de manhã, que ele não está no show do Moraes Moreira. E isso eu me baseio no seguinte: quem conta a história do Moraes Moreira no inquérito… Não sei o que aconteceu de verdade, mas no inquérito, tem aquele momento que aparece o Vinagre falando, que era um condutor de ferry boat, que era o pai do Aramis, né? Que o Aramis já faleceu… Mas o Vinagre dá um depoimento dizendo assim: “o meu filho Aramis desapareceu na noite do show do Moraes Moreira, chegou em casa de madrugada com a Polícia Militar, e anos depois ele disse que o Leandro estava no show também”. E daí que vem a famosa história do João Bossi sempre falar que… E o Ademir também falar… Que naquela noite todo mundo se deu bem, só o Leandro se fodeu. Isso você já deve ter ouvido também deles direto. É uma história que eu sempre ouvi.

Lucas: Exato. É impossível não ter alguém que conhecia ele, nenhum adulto que… Eu também fico intrigado com tudo isso. E eu te pergunto, aproveito que a gente falou sobre isso e te pergunto: existe algum outro adulto que afirma ter visto o Leandro no show do Moraes Moreira?

Ivan: Não, ninguém. Ninguém.

Lucas: Nenhuma outra pessoa?

Ivan: Não. O que existe era uma história de que o Leandro teria sido visto no show e teria inclusive subido no palco para uma apresentação de palhaços. E que daí correram atrás desses palhaços, não encontraram nada. Não sei, acho muito estranho também porque… Tá, quem viu? Quem viu ele no palco? Ah, uma criança loirinha subiu no palco. Tá, pode ter sido qualquer criança, sabe? Então, a gente não sabe quem viu.

Lucas: É. E, assim, hoje… Por exemplo, eu vivi ali no Cabaraquara de 2000 a 2015, por aí. Então, assim, se eu ia para uma festa no centro da cidade, uma ou outra pessoa eu conhecia. Agora imagine em 90. Qualquer adulto que estivesse curtindo o show do Moraes Moreira, sem ser turista, que fosse morador, ia reconhecer o Leandro, eu acho…

Ivan: Sim.

Lucas: Eu acho muito improvável assim, sabe? E ia achar estranho o Leandro sozinho, a não ser que… Já devia ir direto sozinho mesmo, né? Ai, é que assim… Às vezes para mim é difícil entender… Porque ele era muito jovem para andar sozinho, ainda mais de noite. Eu não consigo entender isso, sabe? Não consigo entender. Para mim é difícil. Eu não consigo digerir essa informação de que o Leandro teria essa autonomia. Vamos imaginar que isso existiu, que o Leandro esteve… Você estava fazendo ali a reconstituição para mim de como foi o dia dele. Tá, ele foi pra casa, se trocou, o Ademir mandou ele ir embora, sair. Onde o Leandro almoçou?

Ivan: É.

Lucas: Gente, o show é de noite. Isso teria sido de manhã. Em nenhum outro momento a Paulina ou o Ademir veem ele o dia inteiro. É inadmissível para mim.

Ivan: Vamos imaginar que algum amigo ou pai pegou o Leandro para almoçar. “Não, vem comer aqui”. Ou ele pediu comida. Alguém estaria falando: “não, aquele menino estava aqui, o Leandro. Ele comeu lá em casa”. Não tem nada.

Lucas: Ninguém fala, né?

Ivan: Ninguém. Não tem nenhuma informação disso. O Leandro some e só aparece no show. Isso para mim é muito estranho. Então, de novo, você foi certeiro nessa: onde ele almoçou? Ele não foi no banheiro durante o dia, né? Nada…

Lucas: É. Tipo assim, tá, ele morava ali, podia ser uma casa simples, mas é impossível não ter uma vizinha ou um vizinho que não viu. Então, confirmando o que você falou, talvez ele nem tenha… Ele tenha sumido de manhã mesmo. Isso é uma coisa muito mal explicada, que isso para mim… Não entra na minha cabeça. De manhã a Paulina mandou ele para casa, e só de madrugada eles vão perceber que o menino some? O menino tem sete anos, sabe? Isso me intriga a ponto de… De ser bem complicado perguntar isso… Por isso que eu nunca perguntei para o Ademir, sabe? Olha, pensando bem, devia ter perguntado mesmo.

Ivan: É, mas assim…

Lucas: Porque isso me intriga.

Ivan: Intriga, mas ao mesmo tempo lembrar… O que eles falariam? Naquela época era assim mesmo, as crianças andavam soltas, ninguém se preocupava. E, assim, hoje, se você for para Guaratuba, você vai ver criança super jovem andando por aí também sozinha, tá? Então, cidade pequena… Até eu falando com o delegado de lá e perguntando: “mas tem crime contra criança aqui?”. Ele disse assim: “olha, Ivan, alguns anos atrás tinha muito crime de violência sexual contra meninas, principalmente no Cubatão, que é mais longe e tal”. Ali tem outra cultura familiar também de tradições que são criminosas, né? De tipo, o pai tirar a virgindade da filha. Então, isso tinha, mas hoje em dia não tem mais. “Então, assim, desaparecimento, morte de criança não tem aqui”. Ele disse assim: “crime em Guaratuba é briga de vizinho e tráfico de drogas, sabe?”. Coisa pequena…

Lucas: Agora você toca em um ponto. Agora você toca em um ponto, tá? Isso não existe mais. Esse serial killer parou ou morreu.

Ivan: Ou mudou de cidade. Mudou de cidade. Eu acho mais provável que tenha mudado de cidade. Não acho que esteja lá ainda. Mas acho que a gente pode tentar puxar algum rastro dele. Alguma coisa tem que ter. Alguém sabe de alguma coisa. Isso que eu sempre falo. Alguém sabe de alguma coisa. Talvez não saiba o que sabe. Não perceba a importância do que sabe.

CASA DA PAULINA

Na falta de maiores informações, Ivan começou a se questionar uma coisa muito básica: afinal de contas, onde era a casa de Paulina em 1992?

No inquérito de Leandro, o endereço que aparece lá é vago: Avenida Paraná, sem número. A Avenida Paraná, que corta praticamente a cidade inteira, é uma das maiores de Guaratuba.

Na época, ela era uma estrada de terra, e muito provavelmente a maior parte das casas não tinha número mesmo. Ivan chegou a perguntar para a própria Paulina se ela lembrava onde morava, mas ela não soube dizer. Mesmo que a levasse para Guaratuba para tentar encontrar a casa, isso provavelmente não seria muito eficaz, pois Paulina mora em Curitiba há mais de 20 anos, e Guaratuba mudou muito.

Para tornar a situação mais complicada, Paulina também afirmou que eles se mudavam muito, pois eram pobres e estavam sempre com dificuldades. Mas ela disse se lembrar que havia um mercadinho perto de casa, cujo dono era um japonês, e que ela costumava ir lá.

Não há muitos japoneses em Guaratuba. Donos de mercadinho então, muito menos. E isso deveria ser tudo ali perto da Avenida Paraná. Essas eram algumas pistas.

Outra pista um pouco mais precisa, Ivan encontrou nos autos do caso Evandro, em um dos anexos com relatórios do Grupo Tigre, da Polícia Civil – a equipe responsável pelas investigações iniciais do desaparecimento do menino. Nesse anexo, há um papel cheio de anotações escritas à mão. Em uma delas, aparece o seguinte:

15 de fevereiro De 1992

Leandro Bossi

Mãe: Paulina Rudy Bossi

Pai: João Bossi

8 Anos

Loiro

Olhos Verdes

Avenida Paraná – sem número

Perto da Associação dos Fiscais

Colônia Vila Esperança

Anotação do Grupo Tigre sobre endereço de Paulina

A Associação dos Fiscais é um local bem conhecido em Guaratuba. Ela é bem grande, e ocupa uma quadra inteira. Uma das ruas que passam por ela é a Avenida Paraná. Então, em 1992, aquela era a referência.

Com isso em mãos, Ivan e a jornalista Natalia Filippin, que o acompanhou nessas investigações, começaram a percorrer toda a região, conversando com moradores antigos, buscando informações sobre um mercado que teria um dono japonês na década de 1990. Isso foi em uma das idas até Guaratuba, no início de 2023.

E eles encontraram o provável local do mercado. O estabelecimento não existe mais, e o dono se mudou para outra cidade no interior do Paraná. Mas, com isso, eles já conseguiram marcar o ponto no mapa. Nesse mesmo mapa, delimitaram uma área circular que ia da Colônia dos Fiscais até o antigo mercado do japonês, e estabeleceram a seguinte hipótese: Paulina deveria morar nesta região.

Meses se passaram, Ivan e Natalia visitaram Guaratuba mais algumas vezes para apurações. Em uma delas, conversaram com algumas pessoas na Associação dos Fiscais, que sugeriram que eles procurassem uma mulher chamada Antônia Borges, uma das moradoras mais antigas da região.

Eles seguiram as instruções e encontraram a dona Antônia, ou “Tonha”, como é mais conhecida. Em 1992, naquele mesmo imóvel onde mora até hoje, ela tinha um bar, o “Bar da Tonha”. É um local bem conhecido na região, especialmente pelas festas que ela faz com as crianças todo mês de outubro.

Dona Antônia é um patrimônio desconhecido de Guaratuba. E ela lembra bem de Leandro. Eles eram vizinhos. A casa dela, de fato, ficava bem próxima da área que Ivan e Natalia haviam delimitado no mapa de Guaratuba.

Antônia: O meu nome é Maria Antônia Borges. Eu tenho 75 anos e moro aqui há 50 e poucos anos já…

Ivan: A senhora é uma das moradoras, então, mais antigas…

Antônia: Mais antiga daqui é eu… Eu e essa quadra inteirinha aqui é dos antigos, né? Que nós viemos de lá da praia, que tiraram nós de lá e botaram para cá, e a gente está aqui até hoje.

Ivan: Mudaram vocês de lá por…

Antônia: É, lá da beira da praia. A Marinha tirou porque precisava, e daí o prefeito deu aqui o terreno para nós, e daí nós estamos aqui até hoje. Teve uns que já venderam e se mandaram, outros já morreram, mas nós estamos aqui ainda.

Ivan: Sim. A senhora, em 92, morava do lado do Leandro…

Antônia: É aqui mesmo, né?

Ivan: É aqui mesmo. Naquela casa ali atrás que a senhora falou, né?

Antônia: Isso, aham.

Ivan: Eu lembro que…

Antônia: É do lado da minha, né?

Ivan: Do lado da sua. E eles estavam há pouco tempo morando aqui, né?

Antônia: É, fazia pouco tempo sim…

Ivan: Pouco tempo, tá. Que ele desapareceu em fevereiro de 92, então ele deve ter se mudado para cá quando, assim? A senhora lembra?

Antônia: Ah, eu acho que já fazia um ano, um ano e pouquinho, que eles estavam aqui já.

Ivan: Tá. E era uma família bem pobre, bem simples, né?

Antônia: Simples, aham. Eles eram simples mesmo.

Ivan: Sim. Como era? A senhora tinha um bar naquela época?

Antônia: Tinha. Tinha o bar aqui. Daí as crianças vinham brincar junto com os meus, tudo. O Leandro brincava bastante aqui com as crianças. E assim a gente deixava, porque toda vida… Depois também fazia aquele sopão, ele vinha aqui. Dia de festa também, eles comiam bolo, essas coisaradas aqui com nós, né? Então, era uma criança muito querida, que a gente sentiu muito… Com a família também, que sofreu com isso aí, né? Porque foi um baque para todo mundo aqui em Guaratuba.

Ivan: Sim. Mas me fala um pouquinho… Que a gente tem muita curiosidade de saber como ele era como criança mesmo. Ele era divertido, era capeta?

Antônia: Não, ele era… Ele era conversador, ele brincava, ele ria. Ele vivia toda a vida feliz, assim, alegre, brincando. Nunca estava triste, assim, toda vida. Era respeitador. Chegava aqui, brincava. A gente falava as coisas para ele, e ele só dava risada. Era assim.

Ivan: Lembra de alguma história dele, assim? Alguma coisa que te lembra… Que ele fez?

Antônia: Assim, não me lembro muito…

Ivan: O que ele gostava de fazer?

Antônia: Ah, ele gostava de estar jogando bafo com as crianças, bola, soltar, jogar […], essas bolinhas que jogam. Era isso que ele fazia na frente do meu bar aqui.

Ivan: Brincava com os seus filhos também.

Antônia: Brincava com os filhos, com os filhos de vizinhos, porque aqui era cheio, então todo mundo se juntava, a criançada, e ele brincava. Ele era muito querido. Os pais dele também são muito… As pessoas bem… Assim, não eram pessoas ruins, nada. O pai dele vinha sempre conversar comigo aqui, a mãe dele passava e conversava comigo…

Ivan: Sim. É que o pai não morava aqui. O pai morava em outro lugar.

Antônia: É. Mas ele…

Ivan: Mas ele vinha para cá.

Antônia: É. Eu não sei se era pai ou era tio dele. Eu sei que… Ou ele morava aqui e depois foi embora, não sei. Não sei também. Assim, que a gente convivia, via ele…

Ivan: Sim, sim, sim. Quem morava, que a gente sabe, era a Paulina, a mãe; o Ademir, que era o filho mais velho, tinha uns 16 anos; e o Leandro, que tinha uns oito.

Antônia: É. O Ademir sempre vinha aqui buscar o irmão, que estava brincando, e a mãe queria falar com ele. “E vá lá, que tu deixou ele ficar jogado, não sei o quê…”. E lá ia, então…

Ivan: Aham, sim.

Antônia: Mas ele era muito divertido.

Por meio da Dona Antônia, Ivan e Natalia conheceram um pouco mais da rotina de Leandro. Enquanto a mãe e o irmão trabalhavam, Leandro passava o dia no Bar da Tonha. Brincava com os filhos dela, jogava bafo na mesa de sinuca.

De acordo com os jornalistas, a melhor parte de conversar com a dona Antônia foi justamente poder acessar uma imagem diferente de Leandro. De uma criança que, apesar de toda a história trágica, se divertia, tinha suas brincadeiras, era querido pelos vizinhos.

Foi um dos raros momentos em que Ivan deixou de ver Leandro apenas como uma vítima de um crime horrível e pôde vislumbrar algum momento de felicidade que ele teve em vida.

Ivan: A senhora falou sobre o dia do show. O que a senhora lembra desse dia?

Antônia: Ah, eu lembro, assim, que ele falou: “hoje eu vou para praia, vou lá ver o show”. Daí a turma que estava aqui disse: “ah, nós também vamos, nós também vamos com a minha mãe, o meu pai”.

Ivan: A senhora lembra que horas foi isso, do dia?

Antônia: Ah, era de tarde, mais ou menos. Eu estava aqui atendendo no bar, e eles estavam aí, brincando, daí ele falou… Acho que era umas cinco horas, mais ou menos, cinco e pouco da tarde. Porque eles estavam brincando, aí ele falou isso…

Ivan: A senhora abria o bar aos sábados?

Antônia: Abria.

Ivan: E ele ficava aqui durante o dia?

Antônia: Ele brincava aí com a criançada, tinha bastante criança, né? Então a criançada… Era o que mais brincava, era na rua, jogando vôlei. Às vezes eles montavam rede aqui no meio, porque não tinha aquela folia de carro, né? Aí montava uma rede ali, eles iam jogar vôlei. O meu sobrinho vinha lá de Curitiba, daí jogava vôlei com as crianças, ensinava a criançada a jogar vôlei. E era bonito de ver assim, sabe?

Ivan: Eu pergunto isso porque, naquele sábado de manhã, o Leandro volta para casa depois que a Paulina mandou ele voltar para trocar de roupa. Ele troca de roupa, e a gente não sabe o que acontece depois.

Antônia: Pois é, aqui ele não veio também depois. Ele veio mais cedo. Ele estava brincando cedo aí. Aí o irmão… Parece que chamou ele, ele foi. Mas eu depois não vi… Só…

Ivan: Naquele sábado de manhã, a senhora pode ter visto ele?

Antônia: Eu não me lembro bem, assim, se ele estava aqui…

Ivan: É que a gente supõe que ele chegou em casa lá por umas dez, dez e meia…

Antônia: Da noite?

Ivan: Da manhã.

Antônia: Ah, da manhã. Não, isso eu não…

Ivan: Daí ele deve ter vindo para cá depois…

Antônia: Eu não me lembro se era sábado. Eu sei que juntava a criançada tudo aí, e eles estavam brincando. Sempre brincavam assim, né?

Ivan: Sábado de manhã, o seu bar já estava aberto?

Antônia: Eu sempre abria de manhã. Mas não me lembro se ele estava por aqui sábado de manhã.

Ivan: Mas é possível que ele tenha passado por aqui no sábado? Vou perguntar para a senhora se é possível. Ele sai de casa com a roupinha nova dele, chega aqui. Vocês perguntam o que ele vai fazer, daí ele diz: “eu vou para o show de noite”. Faz sentido essa história?

Antônia: Isso aí… Eu não me lembro. Eu me lembro de ele falar… Acho que foi em uma sexta-feira que ele estava falando que ele ia na festa…

Ivan: Ah, pode ser no dia anterior ele falando “eu vou no show”.

Antônia: Brincando aqui na mesa de bafo, de coisarada aí… Ele falava que ele também ia no show.

Ivan: Tá, tá. Faz sentido.

Os jornalistas tentaram contato com os filhos da dona Antônia, mas nenhum respondeu os recados. Provavelmente, eles têm receio de falar, visto tantas histórias absurdas que ouviram ao passar dos anos. Isso é algo muito comum neste caso: quem realmente sabe de algo, ou pode saber de algo, evita falar sobre isso.

A esperança de Ivan era que talvez algum dos filhos ou parentes da dona Antônia fosse uma das pessoas que tivessem visto Leandro naquele sábado durante o dia. De repente, uma delas é quem teria comentado que ele estava bem arrumado.

Ainda assim, o encontro com a dona Antônia foi útil. Com ela, os jornalistas conseguiram descobrir a provável localização da casa de Paulina, Ademir e Leandro naquela época. O que faz Ivan crer que essa informação é confiável são momentos como esse:

Natalia: E a senhora lembra como foi a comoção após o desaparecimento do Leandro? Como foi que a Paulina agia, assim? Falava com a senhora?

Antônia: Ela não falava muito, assim, sabe?

Natália: Ela é quietinha.

Antônia: Ela não era muito, assim, de falar. Só que quando ela passava aqui, a gente perguntava, né? Que ela vivia triste, chorando. A gente perguntava se achou, se tinha aparecido. Daí ela dizia que não…

Essa questão da dona Antônia lembrar que Paulina não falava muito faz Ivan acreditar que ela realmente a conhecia. 

A localização da casa bate com a proximidade da Colônia dos Fiscais, da Avenida Paraná e do antigo mercadinho do japonês. Todos esses lugares são estimativas, mas é o melhor que encontraram.

SEMELHANÇA GEOGRÁFICA 

A antiga casa de Paulina em 1992 fica a 700 metros da Colônia dos Fiscais, o que dá umas duas ou três quadras. Era o ponto de referência mais conhecido da região naquela época.

Desta casa até o Hotel VillaReal a pé, gasta-se uns 30 minutos – o que bate com a informação do tempo que Paulina levava para chegar até o trabalho. E tudo isso é relevante porque Ivan queria montar um mapa de Guaratuba com todos os locais de eventos importantes, especialmente partindo da hipótese de que os casos de Leandro e Evandro podem estar conectados.

Entre os locais marcados no mapa estão: a casa de Leandro; o Hotel VillaReal; a casa de Evandro; a escola Olga Silveira – onde a mãe de Evandro trabalhava, e também o local de onde Evandro saiu para ir para casa e nunca mais voltou; o matagal onde seus corpos foram encontrados; e por aí vai.

Mapa Guaratuba 1985

Mapa Guaratuba 2001

*Imagens de satélite da região extraídas do Google Earth. Não há imagem de 1992. A mais antiga é de 1985, que está com resolução muito baixa. A próxima que existe é de 2001, com melhor resolução. Disponibilizamos as duas para se ter uma ideia de como era uma região pouco desenvolvida em 1992 – diferente de hoje (2023), onde podemos ver muitas casas pelas áreas.

Quando Ivan olhou para todos esses lugares marcados, levou um susto. No episódio 01, ele mencionou que o matagal onde os corpos foram encontrados ficava entre a Rua Engenheiro Beltrão e a Rua das Araucárias, que é popularmente conhecida como “Rua das Palmeiras”.

Esse nome, “Rua das Palmeiras”, é sempre citado quando pessoas da região são questionadas sobre onde o corpo de Evandro foi encontrado. No caso da ossada de Leandro, Leocádio Miranda, o primeiro adulto a ir para o local, disse também que chegou até lá dirigindo pela Rua das Palmeiras e entrando na mata pelo lado do passageiro.

Ivan: Então você subiu ali a Rua das Araucárias. Você parou, desceu do carro, do seu lado de motorista, e já foi para o lado do passageiro? Foi assim?

Leocádio: É. Era do lado do passageiro.

Ivan: Do lado do passageiro. Então era do lado direito.

Leocádio: Era do lado direito, era do lado direito. Ficava do lado direito.

Ivan: Então você parou o carro já na altura onde estava o corpo…

Leocádio: Isso. Parei na altura. Se não me engano, o piá tinha a referência de uma palmeira, se eu não me engano, próximo… Ele tinha uma referência já. Se não me engano, tinha um coqueiro, né? Uns falam palmeira, outros falam coqueiro…

Isso tudo foi revelador para Ivan porque, ao olhar todos os pontos no mapa, é possível notar duas coisas muito importantes, que aparentemente nunca foram levadas em consideração.

Primeiro, que a área onde Evandro foi visto pela última vez, em torno da sua casa e da escola Olga Silveira, era relativamente próxima de onde se sabe que Leandro esteve pela última vez – a sua casa. A escola Olga Silveira fica exatamente na mesma rua da Colônia dos Fiscais, a umas quatro quadras de distância.

Então, é possível que o assassino de Evandro e Leandro rondasse aquela região em busca de vítimas. Além da semelhança física entre os dois garotos, aparentemente existia mais uma semelhança: a geográfica.

A tal Rua das Palmeiras, uma referência tão importante para os dois casos, também chama a atenção. Isso porque ela começa exatamente na Escola Olga Silveira.

Para Ivan, isso está longe de ser uma coincidência, pois há indícios de um modo de agir: uma área de caça, uma rota e um ponto de desova de vítimas. E isso reforça uma crença que muitas pessoas têm nesses casos: quem matou esses meninos conhecia muito bem a cidade.

Ivan começou, então, a olhar para a Escola Olga Silveira e rever as anotações sobre o caso Evandro. Foi quando se lembrou de mais um fato intrigante em torno da escola. 

Nos autos do caso Evandro, há partes de um inquérito de uma denúncia de dois irmãos, menores de idade. No documento, eles falam que, poucos dias antes de Evandro desaparecer em abril de 1992, foram perseguidos por um homem perto da Escola Olga Silveira. Um suspeito chegou a ser preso, mas nada foi levantado contra ele.

Denúncia dos irmãos França

Portanto, em uma mesma área, em uma cidade pequena, no período de dois meses, houve pelo menos três ocorrências envolvendo crianças sumindo ou com tentativa de sequestro. Mas as coincidências não param aí.

Em 15 de fevereiro de 1992, Leandro Bossi desaparece. É provável que ele tenha sido sequestrado ainda de manhã, perto de sua casa, já que não há nenhuma testemunha que confirme que ele esteve no show do Moraes Moreira. 

Além disso, seu amiguinho da época, Aramis, também chegou a sumir por algumas horas, isso durante o show na Praia Central, que fica mais afastada dessa área em torno da Escola Olga Silveira.

Quase dois meses depois, em data incerta, dois irmãos estão passando pela escola e dizem terem sido perseguidos por um homem do qual tiveram que fugir.

Em 6 de abril de 1992, Evandro Ramos Caetano é sequestrado. O caso foi contaminado por uma série de histerias coletivas e histórias sem fundamento sobre seita satânica, sacrifício e bruxas.

Ao olhar para algumas testemunhas ignoradas na época do caso Evandro, é possível perceber o seguinte: pelo menos duas delas indicavam que Evandro teria sido sequestrado ou estado em cativeiro com outras crianças. 

Então, as vítimas citadas são: Leandro e Aramis, os dois irmãos em torno da Escola Olga Silveira, Evandro e outras crianças. Seria coincidência? Histeria coletiva? Ou seria outro padrão nunca olhado com atenção? É o que Ivan abordará no próximo episódio.