Wiki do Caso Leandro Bossi

Extras Episódio 08

No episódio anterior, o Dr. Denis Lino comentou com Ivan Mizanzuk que é preciso tomar cuidado com o wishful thinking. Traduzido do inglês, esse termo significa algo como “pensamento desejoso”, e é sempre um risco existente em investigações criminais. É basicamente quando se quer muito acreditar em alguma coisa para que ela se encaixe na solução que está pensando.

Por anos, Ivan tomou o máximo de cuidado para evitar esse risco. E agora, no momento de conclusão dessa temporada, e de certa forma da trilogia que envolve Evandro, Altamira e Leandro Bossi, ele precisa retomar a sinceridade que deixou clara no episódio anterior e dizer que, apesar de todos os esforços, ainda há muitas lacunas a serem preenchidas sobre os crimes contra Sandra, Leandro e Evandro.

Ao mesmo tempo, tendo em vista que os assassinatos já estão prescritos e não serão mais investigados, Ivan se sente obrigado a fornecer uma hipótese mais aprofundada do que acredita que tenha acontecido. E ele se vê obrigado a fazer isso porque, a bem da verdade, por décadas esses crimes foram vistos pelo ângulo errado.

Nesse esforço, o que ele espera trazer é uma hipótese que tenta colocar esses casos de volta nos trilhos de onde nunca deveriam ter saído. E assim, quem sabe, todos podem ficar mais atentos a informações novas e relevantes que surjam no futuro.

Então, segundo Ivan, tratam-se de casos em que o assassino primeiramente abordou essas crianças com o interesse de abusá-las sexualmente e, em seguida, as mutilou com o intuito de dificultar a localização delas ou por algum ritual próprio.

No caso de Sandra, ele não foi tão longe. Mas, no de Leandro e Evandro, após três anos, o modus operandi e a assinatura teriam evoluído. E, pelas técnicas de cortes, o responsável pode ter tanto um conhecimento prévio de necrotério ou de caça e abate de animais.

Por se tratar de abuso contra menores, Ivan precisava entender melhor sobre esse tema. Por sorte, recebeu o contato de uma psicóloga, a Dra. Lígia Assis, de Curitiba, que atende em uma ONG chamada Fênix. Entre várias frentes, essa ONG é especializada justamente em trabalhar com autores de violência que podem ou não possuir o diagnóstico de pedofilia.

UM TEMPO PARA TAL PALAVRA

A Dra. Lígia Assis é psicóloga formada na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), possui especialização em Terapia Cognitivo Comportamental e faz atualmente Pós-Graduação em Psicologia Jurídica, também pela PUCPR.

Conversando com ela, Ivan queria entender melhor o que torna alguém um pedófilo, e qual a diferença desse tipo de classificação para um abusador sexual. Afinal, pelo pouco que Ivan sabia de pesquisas anteriores, pedofilia é um diagnóstico. A pessoa pode ter o desejo por menores de idade, mas nunca cometer nenhum abuso. O crime só ocorre quando essa pessoa visa satisfazer a sua vontade. Então, seguindo essa dúvida, a Dra. Lígia respondeu o seguinte:

Dra. Lígia: O pedófilo basicamente é uma pessoa que precisa ter recebido no diagnóstico o critério de pelo menos durante seis meses uma atração por crianças e principalmente crianças pré-púberes. Ou seja, crianças que não têm corpo desenvolvido, não têm pelos pubianos. Ele precisa também apresentar ou um sofrimento muito intenso para ele, ou um sofrimento muito intenso para essas crianças. O pedófilo também pode ser uma pessoa que não necessariamente tem um desejo estritamente por crianças, porque daí ele entra como pedófilo situacional, mas ele também pode ser o pedófilo preferencial, que no caso é atraído apenas por crianças. É uma condição de um transtorno parafílico que também pode ter outras comorbidades. Como a comorbidade do transtorno de personalidade antissocial e o transtorno sádico também.

De acordo com o manual MSD para profissionais de saúde:

Transtornos parafílicos são fantasias, impulsos ou comportamentos recorrentes, intensos e excitantes sexualmente que causam sofrimento ou incapacitação e que envolvem objetos inanimados, crianças ou outros adultos não consentidores, sofrimento ou humilhação de si mesmo ou do parceiro com potencial para causar dano.

Manual MSD para profissionais de saúde

Caso não tenha ficado muito claro na fala da Dra. Lígia, vale reforçar uma questão acerca do diagnóstico de pedofilia: de acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM 5, que é a versão mais atualizada, para que a pessoa seja diagnosticada com pedofilia, ela precisa se encaixar em alguns critérios diagnósticos. Entre eles, está o seguinte: apresentar, por um período de no mínimo seis meses, fantasias sexualmente excitantes, impulsos sexuais ou comportamentos intensos e recorrentes envolvendo atividade sexual com criança ou crianças pré-púberes.

Dra. Lígia: Então, para a gente poder diagnosticar um pedófilo, não necessariamente ele vai ter abusado de alguma criança. Tanto que na Fênix a gente já atendeu alguns casos de pessoas que chegaram falando que estavam sentindo o desejo por crianças, não tinham cometido abuso, e queriam realmente fazer o tratamento para não abusar de ninguém. Eles estavam “apenas”, bem entre aspas assim, consumindo pornografia infantil. Então, também tem esse consumo das pornografias infantis, que não necessariamente precisa ser uma nudez infantil direta. Pode ser também uma estimulação apenas da inocência da criança, digamos assim. O pedófilo é muito atraído por essa questão da inocência, por essa questão angelical da criança, e ele não considera muitas vezes, o pedófilo clássico, ele não vai considerar que está fazendo mal para a criança. Tem pedófilos que acreditam que é uma forma de amor e uma forma de carinho, e que a criança tem um consentimento e autonomia para dar consentimento. Então, isso também… Só que na literatura brasileira a gente tem uma dificuldade muito grande, não tem muitas pesquisas nisso.

Ivan: Então o perfil do pedófilo brasileiro, por exemplo, é uma coisa que não existe.

Dra. Lígia: Eu estou fazendo a minha pesquisa nisso e, assim, eu estou seguindo alguns autores (Antônio de Pádua Serafim, Fabiana Saffi), eu estou seguindo também a Luiza Rabick Zang, que é uma pesquisadora do Rio Grande do Sul. Mas, basicamente, não tem, porque é um assunto muito, muito, muito estigmatizado aqui no Brasil, e a gente quase não fala em pedofilia. Principalmente em tratamento da pedofilia. A Fênix inclusive é a única ONG aqui em Curitiba que eu sei que trabalha com os autores de violência, sejam eles diagnosticados com pedofilia ou não.

Ivan: E nesse sentido também, no cenário clássico, o pedófilo demonstra uma atração entre menino ou menina, ou não, essa distinção não faz sentido? Como é que funciona isso?

Dra. Lígia: Tem os três. Tem o que demonstra apenas por meninos, tem o que demonstra preferencialmente por meninas e tem o misto também, que daí é justamente não pelo órgão genital da criança, mas pela falta de características diferenciais. Então, questão de seios que não aparecem, a genital, a falta de pelos pubianos. Então, isso conta também. A gente tem esses três tipos de pedófilos.

Ivan: O que eu sei também é que geralmente há casos de abusos sexuais, a gigantesca maioria ocorre dentro do próprio círculo familiar. Um pai, um enteado, tio, alguma coisa assim, um padrasto, né? O que eu queria saber é nesses casos que não são de círculo familiar, quando é um externo. Como geralmente esse ofensor se aproxima da vítima?

Dra. Lígia: Nós temos vários tipos de ofensores. Então, a gente pode ter o ofensor sedutor, que começa a aliciar a criança, pode ser tanto pela internet ou presencialmente. O pedófilo geralmente tem um costume e a conexão com as crianças. Então, ele sabe conversar com a criança, sabe seduzir, sabe manipular aquela situação. Geralmente ele começa a mostrar pornografia adulta para poder trabalhar com a desinibição da criança, oferece doces, às vezes presentes, ou por vezes ele também funciona altamente com ameaça, principalmente se é uma pessoa estranha. Ele vai, pratica a violência, e nesse caso é uma violência no sentido violento da palavra, e ele inclusive pode ameaçar tanto os pais quanto a própria criança, porque é uma coisa muito importante e muito difícil de se dizer. Nem todo abuso sexual vai ser configurado na cabeça da criança como uma violência. Às vezes ela não entende que aquilo é uma violência, e isso é uma das coisas que mais se perpetua dentro da família também.

A maioria dos casos de abuso infantil ocorre dentro do círculo familiar. Mas Sandra, Leandro e Evandro não tinham nenhum parentesco, o que leva a eliminar essa possibilidade – pelo menos em uma questão estatística. E, por isso, Ivan precisava entender um pouco melhor sobre o perfil de um abusador externo.

Ivan: E daí, pelo o que você me falou já no início, como esse assunto não é muito pesquisado no Brasil, imagino que nós não temos estatísticas sobre isso. Por exemplo, pegar casos de abusos criminais contra crianças que ocorreram fora do seio familiar, quantos desses casos acontecem? Com que frequência? Qual é o perfil sedutor? Qual é o perfil violento? Isso nós não temos, essa estimativa, né?

Dra. Lígia: Essa estimativa é mais difícil de ter, mas eu acredito que, dentro do Fórum de Segurança Pública, a gente tem um levantamento sobre ofensores sexuais. Tem um levantamento inclusive sobre ofensores sexuais dentro e fora de casa, eu acredito que esse é o mais próximo que a gente vai conseguir. Porque realmente a pesquisa aqui está bem escassa, tanto da própria parafilia, quanto do tratamento, quanto até mesmo do entendimento do que é o pedófilo real; porque aqui no Brasil a gente confunde que qualquer tipo de abuso sexual infantil é feito por um pedófilo, que não é.

A Dra. Lígia passou os dados de 2023 do Fórum de Segurança Pública, a última amostragem levantada. De acordo com o levantamento, apenas 4,1% dos casos de estupro de vulnerável com registro de autoria são cometidos por pessoas desconhecidas. A maioria é cometida por pai ou padrasto, correspondendo a 44,4% dos casos, seguido por um conhecido da família, 18%. Em terceiro lugar, ficam tios ou avôs e avós, correspondendo a pouco mais de 7% dos casos.

Dados do Fórum de Segurança Pública (2023)

Por fim, a Dra. Lígia também pediu para incluir uma informação: a pedofilia é o transtorno parafílico, e não o crime. O crime de violência sexual contra crianças é o estupro de vulnerável. E isso entra naquela questão que ela mencionou, de que nem todo autor de violência infantil é pedófilo e nem todo pedófilo vai necessariamente cometer o crime.

Dra. Lígia: Inclusive, uma coisa que eu achei muito interessante no último episódio é que você falou daquele laudo, que eles descartaram a hipótese da Sandra e do Evandro estarem relacionados por conta do abuso. Só que, no meu trabalho, geralmente, quando eu pego um laudo de menino, o laudo do IML dá inconclusivo, porque é muito diferente um abuso vaginal de um abuso anal. Não necessariamente pode ser detectado, principalmente porque ele estava sem os órgãos. Exatamente isso que você falou, a gente não pode descartar essa questão do abuso. De forma nenhuma.

Ivan: Vamos dizer então, que a gente está falando de um ofensor. Existe um perfil médio assim, do tipo: homem, tantos anos, classe, faixa salarial, tipo de trabalho que tem? A gente tem um perfil assim, mais ou menos?

Dra. Lígia: Tem. Um perfil que eu, na verdade, utilizei uma pesquisa do Antonio de Pádua Serafim, que foi, na verdade, realizada em 2009. Não é tão recente, mas ele traz, por exemplo, pedófilos situacionais. Então, eles têm mais perfil antissocial, enquanto pedófilos preferenciais têm perfis mais sádicos. Também tem o tipo de pornografia que eles costumam acessar. Eu vou, inclusive, te passar essa pesquisa. E, principalmente, o que me chamou a atenção é que quando ele tem a comorbidade do transtorno antissocial, ele tem o maior prazer em descartar a vítima com a maior violência possível. Isso me chamou muita atenção. Então, a gente tem sim, geralmente, entre 35 anos… O desejo começa na puberdade. E, principalmente, o pedófilo que eu escrevi no e-mail, que é o pedófilo sádico, ele não costuma ser muito… Ele é bem solitário, ele costuma ser viajante. Então, ele se muda bastante de cidade e costuma agir sozinho também.

Artigo – Perfil psicológico e comportamental de agressores sexuais de crianças (autores: Antonio de Pádua Serafim, Fabiana Saffi, Sérgio Paulo Rigonatti, Ilana Casoy, Daniel Martins de Barros)

Ivan: Você fala 35 anos, por quê? 

Dra. Lígia: É a média. Uma coisa também, porque o pedófilo, na verdade, quanto mais velho ele fica, ele pode diminuir a intensidade dos abusos. Tanto por uma questão de impulso, quanto por uma questão de diminuição da testosterona também.

Ivan: E ele pode simplesmente parar um dia? Tipo, não tem mais interesse em fazer isso ou isso vai para a vida inteira?

Dra. Lígia: Depende. Depende se, por exemplo, ele fez um tratamento, depende se ele tomou algum tipo de medicação ou depende também se ele está num contexto… Por exemplo, a gente está falando de um pedófilo sádico. Ele encontrou uma mulher, ele se casou com ela, ela tem dois filhos. Ele bate nela. Então, ele está ali conseguindo utilizar de meios violentos. Ele consegue abusar desses filhos? Talvez ele não precise procurar fora, digamos assim. Ele pode estar naquele seio familiar, utilizando todos os seus desejos, sem que necessariamente precise ir atrás de outros. Ou também ele pode simplesmente diminuir, mas continuar o sadismo e continuar a maldade com outras esferas, com outros tipos de crime. Isso também a gente já viu em outros casos. Violência com animais ou até mesmo violência com outras características também.

Ivan: Mas a pessoa também pode, por exemplo, ser casada, ter filhos e ter essa vida dupla?

Dra. Lígia: Sim. Inclusive, tem um perfil de pedófilos que não abusam dos filhos. Os filhos são assim, como se fossem intocáveis, e daí eles abusam de outras crianças. Geralmente, esses pedófilos são sedutores, porque, com essa vida dupla, eles são geralmente os pais de família, bem-queridos, bem-queridos pela comunidade. 

Ivan: Você fala de alguns termos como o pedófilo sádico, o pedófilo sedutor. Ele pode ser sádico, sedutor? Quais são as categorias? Só para a gente entender. Como é que elas se misturam entre si?

Dra. Lígia: Essa é uma outra questão da própria literatura. Tem a questão do pedófilo clássico, o molestador e o abusador de crianças. O molestador sádico, o molestador sedutor, o molestador introvertido e também, hoje em dia, a gente está utilizando mais o termo ou “ofensor sexual” ou “autor de violência sexual” para não trazer tantos estigmas. Só que eu estou, inclusive, fazendo a minha pesquisa agora e cada fonte eu estou achando uma denominação diferente.

Ivan: Não é consenso?

Dra. Lígia: No Brasil, não. Não é consenso. Eu acredito que uma psicóloga também que você vai achar algumas questões sobre isso é a psicóloga Anna Salter. Ela é americana e trabalha, acho que há 27 anos, só com ofensores sexuais, inclusive pedófilos.

Ivan: Mas é importante fazer a distinção. A pessoa que é pedófila não é necessariamente ofensora sexual. Ela pode nunca ter cometido nenhum crime. Ela tem apenas o desejo, que nunca se consumiu. Eu quero saber, deixa eu colocar uma situação. É possível uma pessoa, por exemplo, ser casada, ter filhos e levar essa vida dupla? Quando está fora de casa, ele comete crimes contra crianças e nunca ninguém fica sabendo disso. Isso é possível? Existem casos registrados assim? Ou não?

Dra. Lígia: É possível. É possível e é muito possível. A gente pega muitos casos assim na Fênix. […] Me parece também muito, muito raro, porque um pedófilo já é raro, um pedófilo real, assim, que tem realmente o diagnóstico e a parafilia, ele já é raro. Agora, um pedófilo que consegue disfarçar esse nível e também com esse nível de violência, me parece bem, bem, bem difícil. Não me parece impossível, mas me parece difícil.

Ivan: Pelo menos na literatura, seria raro dentro das suas pesquisas, né?

Dra. Lígia: Até porque essa pessoa daria alguns indícios. Provavelmente ela ficaria muito perto de crianças, ela teria algum trabalho que envolvesse crianças, ela teria uma conexão muito grande com essas crianças.

Ivan: Teria alguns outros elementos em caso, por exemplo… De novo, estamos falando do padrão, do estereótipo desse caso que a gente está falando. A pessoa que fez isso, como seria, partindo do princípio que ela está casada e nunca abusou dos filhos, como é aquela vida familiar, no padrão, assim, como é a relação com a mulher, com os filhos. Como é que você, assim, dentro da sua experiência, das suas pesquisas, qual é o padrão de comportamento de um cara que teria um comportamento desse?

Dra. Lígia: Com a mulher e com os filhos, eu acredito que, como está dentro do seio familiar, ele vai ser um pouco mais agressivo também. Não sei se vai chegar a ser violento, porque também vai querer disfarçar, mas ele vai ser agressivo, vai ter algumas farpas de agressividade, digamos assim. E o que vai impulsionar ele a sair de casa e procurar essa criança vão ser gatilhos emocionais e estresse. Esse cara vai ser estressado por alguma coisa. Quando a gente fala estresse, não é o nosso estresse cotidiano, do dia a dia, é algum estresse muito forte, algum gatilho muito forte para ele, alguma situação, assim, muito intensa, que provavelmente pode ou não vir da família, pode ou não vir do trabalho, mas é mais provável que venha da família e que ele acabe descontando um pouco na família, mas que dissolva totalmente em uma criança aleatória, digamos assim, uma criança sensível.

Ivan: Sim. Como é a vida sexual de um pedófilo nesse padrão também? Ele pode ter uma vida sexual completamente normal com a esposa?

Dra. Lígia: Se for um pedófilo situacional, que é aquele que vai abusar por conta da situação, ou seja, a criança que ele consegue pegar com mais facilidade, por ela ser mais vulnerável e tudo mais, ele vai ter uma vida sexual com a esposa. Mas se for um preferencial, ele vai só usar o casamento como fachada, não vai ter. Ou, se tiver, vai ser algo muito forçado e bem pouco.

Ivan: Essa pessoa teria algum vício? Existe alguma comorbidade de vícios, por exemplo, de drogas, bebida, sei lá, alguma coisa assim?

Dra. Lígia: Pode ter. Pode ter uma comorbidade tanto de vício em pornografia quanto vício em drogas ou álcool também.

Ivan: Mas é uma coisa frequente assim, do tipo, de tantos casos, a gente vê que também existe aqui uma questão de abuso de substâncias ou não?

Dra. Lígia: Acho que não, porque também entra naquela questão do estresse, que ele vai procurar várias rotas de fuga para aliviar esse estresse.

Ivan: Existe alguma coisa que a gente vê na infância desses ofensores que é comum ou não? O que torna eles desse jeito é completamente aleatório e não tem nada na infância que levou para isso?

Dra. Lígia: Na verdade, a pedofilia é multifatorial, cultural, genético. Porque nem todo pedófilo sofreu abuso. Isso também é um mito muito grande. Às vezes ele não sofreu, mas ele pode ter sofrido uma violência física, negligência, geralmente falta de afeto, pais antissociais também, isso pode ocorrer. Então, assim, trauma também, não só no sentido trauma psicológico, mas no sentido trauma físico, como traumatismo cranioencefálico, algum acidente, isso também pode ser um perpetuador.

Na época em que Ivan teve essa conversa com a Dra. Lígia, havia acabado de lançar o episódio 4 dessa temporada, sobre o caso da Sandrinha. Nesse primeiro contato, ele não falou nada para ela do suspeito que tinha em mente. Então, todas as informações repassadas são provenientes de bases teóricas, do que ela pesquisa, estuda e trabalha. E tudo o que ela disse ajudou Ivan a olhar melhor para uma pessoa em específico: o terceiro investigado do caso Sandra.

TODOS OS ONTENS ILUMINARAM

Antes de entrar nesse tema, Ivan precisa dar alguns avisos. Essa pessoa de quem vai falar já está morta. Ela não tem possibilidade de se defender e se explicar. Ela tem familiares vivos, e Ivan conversou com alguns deles. Para preservar a memória dessa pessoa e também os familiares, ele vai usar pseudônimos.

Se Ivan quisesse fama e atenção, seria muito fácil publicar tudo e dizer que solucionou os casos. Mas a realidade é que ele só poderia dizer isso se encontrasse provas extraordinárias, como anotações, diários, ou até mesmo pedaços dos corpos ou roupas das três crianças. Ivan não conseguiu nada disso. 

É possível estar diante de uma pessoa inocente e que nem poderá passar o seu lado da história. Então, para não correr o risco de cometer mais uma injustiça nesses casos, Ivan vai proteger ao máximo as identidades de todas as fontes e dessa pessoa em questão. 

E Ivan pede essa prudência também para os ouvintes. Foi muito difícil para ele chegar até aqui e expor todas as informações que vai publicar. Isso envolveu negociações muito tensas, delicadas e, mesmo assim, ele chegou até um limite.

Ao final do episódio, Ivan vai falar sobre o que ainda é possível fazer para tentar obter mais respostas para essas questões. Mas todo cuidado é pouco. Então, para não correr nenhum risco, vai seguir o padrão do que fez no episódio 4: trocar todos os nomes do caso Sandra por pseudônimos, e avisar quando fizer isso. Os únicos que vai manter serão os da família de Sandra. Além disso, também não vai disponibilizar nenhuma parte do inquérito de Sandra na enciclopédia, visto que isso poderia expor essas pessoas.

Dito tudo isso, é preciso voltar para Fazenda Rio Grande, na região metropolitana de Curitiba, em junho de 1989, logo após o corpo de Sandra ter sido encontrado.

Sandra desapareceu em um domingo à noite, dia 4 de junho, após ter ido a uma festa junina na Escola Guisa, perto de casa. A última pessoa que a viu foi uma mulher chamada Cecília (pseudônimo). Ela teria avistado Sandra por volta das 20h nas escadarias do restaurante do Posto 22, na BR-116. Esse posto ficava entre a residência de Sandra e o colégio.

Na manhã do dia 12 de junho, uma segunda-feira, o corpo da menina foi encontrado em um terreno baldio cercado de mato. Esse terreno estava localizado entre a casa dela e o Posto 22. As investigações tiveram início logo em seguida.

Dois dias depois, em 14 de junho, um homem, que aqui será chamado de Vitor, prestou depoimento. Ele tinha 53 anos na época e era vizinho da família de Sandra, que morava com duas irmãs e a mãe em uma casa muito pobre, sem luz e sem água encanada.

O depoimento de Vitor tem uma série de passagens que julgavam uma suposta conduta sexual inadequada da mãe de Sandra, a dona Juvelina, assim como também das próprias meninas. Em seu relato, ele dava a entender que as garotas gostavam de se mostrar e se exibir para qualquer um na rua. Mas, em certa passagem, o Sr. Vitor dizia o seguinte:

O depoente, há uns 15 dias passados, avistou as duas meninas pequenas [sendo Sandra e uma das suas irmãs] em volta de um carro volks de cor azul, sendo que ali estava uma pessoa estranha. As meninas estavam debruçadas na janela do carro, e algumas vezes entravam no carro e davam um abraço na pessoa que estava dentro. Era uma pessoa de idade. Após isso, o depoente encontrou a mãe das meninas e a avisou sobre o ocorrido. A mãe respondeu ‘não, seu Vitor, elas estão ganhando um dinheirinho’.

Essa menção a um carro da marca Volkswagen de cor azul abriu uma nova linha de investigação. No dia seguinte, 15 de junho de 1989, a dona Juvelina, mãe de Sandra, prestou depoimento sobre o dia em que a filha desapareceu. 

Durante o relato, ela cita várias pessoas que poderiam ter alguma relação com o caso. E, então, aparentemente, em algum momento o Dr. Inácio Raymundo Pensin, delegado responsável, perguntou sobre o tal carro azul. E, pela primeira vez, aparece na história o homem que aqui será chamado de Pedro. Acompanhe um trecho da declaração de Juvelina:

Que a declarante ainda conhece um senhor ‘Pedro’, o qual falou que mora em Curitiba, e que chegou ali um dia e passou a conversar. Ele disse que tinha um terreno por ali em Fazenda Rio Grande e também um terreno na praia. Algumas vezes ele aparecia por ali. Ele tem um Volkswagen cor azul. Um dia, ele estava com as crianças conversando dentro do carro, e a declarante recolheu as crianças. Em outras oportunidades, num domingo antes do desaparecimento de Sandra, o Sr. ‘Pedro’ esteve ali e estava com as meninas conversando no carro. Nisso, o Sr. Vitor passou, viu a cena e veio avisar a declarante. A declarante não sabe direito seu endereço e o que realmente ele vinha fazer por ali. Na tarde de ontem, o Sr. ‘Pedro’ vinha vindo com o carro dele pela BR-116 e foi parando. A declarante falou para as filhas não darem bola. Ele parou o carro e veio conversar. A declarante lhe disse que não queria papo porque estava nervosa. Nisso, ele disse: “o que é isso, dona Juvelina, que a senhora está nervosa comigo? O que que houve?”. O Sr. ‘Pedro’ estava bastante nervoso e aparentava estar tremendo. A declarante prosseguiu sua caminhada até o supermercado e não viu mais ele. Este senhor deve ter uns 30 anos, mais ou menos.

Quando deu este depoimento, dona Juvelina tinha 46 anos. Na sua leitura, o Sr. Pedro teria por volta de 30 anos. Na verdade, ele tinha pouco mais de 40. Nesse mesmo dia 15 de junho, ou seja, três dias após o corpo de Sandra ter sido encontrado, a menina Márcia Cristina, de 14 anos, irmã de Sandra, também prestou um depoimento.

E aqui vale lembrar: Márcia era o nome da irmã e também da prima de Sandra, que era sua vizinha. Além de Márcia e a mãe Juvelina, Sandra morava com Maria Edileide, sua irmã mais nova.

No relato, Márcia Irmã conta sobre os encontros e desencontros que teve com Sandra no dia do desaparecimento, e que Ivan já explicou no episódio 4. Ela também diz que trabalhava como doméstica em Curitiba, e que estranhava quando voltava para casa do serviço e via que Sandra estava com dinheiro. Quando perguntava para ela de onde ela tinha conseguido, Sandra lhe dizia que tinha pedido para motoristas de caminhão. E então, em certo ponto, Márcia Irmã fala sobre o Sr. Pedro:

A respeito de um senhor de nome ‘Pedro’ e que tem um Volks azul, ele passou a frequentar ali por motivos que a depoente desconhece, e que faz mais de um mês que ele frequenta a casa da depoente. A depoente nunca saiu com ele de carro, mas conversou com ele na casa quando a mãe estava lá também. A depoente tem conhecimento que ele marcou um encontro com a prima Márcia, de 13 anos, e que ele falou que ela não ia se arrepender. Ia ganhar dinheiro, relógio, rádio, máquina de calcular, e que ele marcou de encontrar com ela para cima da casa da depoente. Isso foi depois do desaparecimento da irmã da depoente. A prima falou que ele ficou esperando ela lá, mas ela não foi encontrar com ele. Ainda a respeito do Sr. Pedro, outro dia, quando ele encontrou-se com a irmã menor Maria Edileide, ele ergueu a toca dela e disse ‘pois a coitada da menina estava com a cabeça igualzinha desta aqui’. A irmã falecida fazia poucos dias que havia cortado o cabelo, e que a depoente acha que o Sr. ‘Pedro’ não teria visto a irmã de cabeça raspada, o que lhe causa estranheza. Que na manhã de ontem, dia 14 de junho, quarta-feira, por volta de dez horas mais ou menos, a depoente seguia com a mãe pela estrada. Em sentido contrário vinha o carro do Sr. ‘Pedro’. Ele parou, mas a mãe da depoente não queria conversa. E então ele disse: “nossa, dona Juvelina, a senhora está tão nervosa. Eu só queria ajudar. Eu até levei vocês até a polícia para procurar a menina. Eu não queria fazer nada de mal a ela. Eu não faço mal nem a um cachorro”. Ele estava muito nervoso, e estava tremendo.

Como Ivan falou no episódio 4, a Márcia Irmã não quis dar entrevista. Por isso, ele não teve como fazer perguntas para ela sobre esse depoimento. Nesse mesmo dia 15 de junho de 1989, a Márcia Prima também foi ouvida. Na época, ela tinha 13 anos.

E, por sorte, graças à ajuda de Sueli, irmã mais velha de Sandra que concedeu entrevista a Ivan, a Márcia Prima aceitou conversar com ele. A Sueli estava junto, assim como outros parentes também. 

Márcia: Meu nome é Márcia Franco Celi, 47 anos. Minha relação com a Sandra? A gente era amiga, além de primas, né?

Ivan: Eu queria que você me falasse… Você é filha da Eva, correto?

Márcia: Sim.

Ivan: Eva era casada com…

Márcia: Juvino.

Ivan: Juvino. Ele é irmão…

Márcia: Da Juvelina. Ele era tio da Sandra, no caso.

Em junho de 1989, todas essas pessoas moravam no km 122 e meio da BR-116, em Fazenda Rio Grande. Em uma casa, viviam Juvelina e três filhas: Márcia, Sandra e Maria Edileide. Na residência ao lado, morava o irmão de Juvelina, o Sr. Jovino, que era casado com Eva. O casal tinha a Márcia como filha.

Ivan: Os teus pais já faleceram?

Márcia: Sim, os dois.

Ivan: Os dois já faleceram.

Márcia: Já.

Ivan: Quando faleceram?

Márcia: Meu pai faz… Hoje, 17 anos.

Ivan: 17 anos.

Márcia: E a mãe faz 15.

Ivan: Faz 15. Então já faz tempo.

Márcia: Faz tempo já.

Ivan: Tá. Naquela época que… 1989, no caso, o ano em que a Sandra faleceu, vocês moravam perto da Sandra?

Márcia: Sim. Nós morávamos bem perto, bem próximo.

Ivan: Perto como? Dividia…

Márcia: No mesmo terreno.

Ivan: No mesmo terreno.

Márcia: No mesmo terreno… A casinha deles, e para trás tinha a nossa.

Ivan: A Sueli estava me falando que na casa da Sandra morava a Juvelina, a Sandra, a Márcia, a Maria Edileide, e era uma casinha pequenininha. Moravam as quatro lá.

Márcia: Sim. As quatro. A nossa também era bem inferior, era bem pequena. Tipo, eu estava de passagem ali, que eu tinha acabado de vir de um trabalho, que eu era babá na época já. Fiquei um tempo ali. Achei que ia ficar ali. A mãe me matriculou numa escola, nem lembro o nome. Foi pouco tempo que eu fiquei ali. E aí dali a gente voltou para onde a gente já morava, né? Que é aqui no 26, um pouco mais… Mas a tia… Eu lembro que a tia continuou lá ainda.

Ivan: Pelo que dá para entender aqui pelos depoimentos que eu peguei do inquérito, dá a impressão de que vocês brincavam o tempo inteiro. Você, a Márcia, a Edileide e a Sandra. Vocês quatro.

Márcia: Nós quatro.

Ivan: Tinha mais alguém que fazia parte do grupinho?

Márcia: Não. Não. Era nós quatro só.

Ivan: Aham.

Márcia: Tinha meu irmão também, que era o mais novo também. Acho que ele chega a ser mais novo que a Edileide até. De vez em quando ele estava com a gente, mas era… A mãe nunca deixava. Ficava mais perto dela.

Ivan: Ficava mais perto dela. Aham. E o que vocês faziam, assim, de dia a dia, brincadeiras?

Márcia: Nossa, a gente brincava além de trabalhar, né? Porque a gente tinha que puxar água de longe… A gente brincava normal, de mãe-se-esconde, de descer os barrancos escorregando. Acabava com as roupas, a mãe ficava doida. Nadava quando ia lavar roupa no rio, essas coisas.

Ivan: Em qual rio vocês nadavam?

Márcia: Ali embaixo no Parque Verde… É?

Ivan: É quando atravessa a BR?

Márcia: Aham. Sabe a BR ali? Hoje já nem sei se tem mais, mas tinha um corregozinho bem… Tipo limpo… 

Ivan pegou um mapa da região e começou a fazer perguntas sobre os lugares ali em torno. Onde elas moravam exatamente, onde brincavam, onde pegavam água, e onde o corpo de Sandra foi encontrado. 

Márcia diz não se lembrar de ter ido até o local do corpo, mas sabia onde era. E, então, ele começou a perguntar mais sobre a rotina delas na época. Ele queria saber especialmente se Sandra estudava na escola Guisa.

Márcia: Eu não lembro. Não lembro. Sei que eu e a Márcia íamos participar dessa festa junina porque a gente estava matriculada na escola. A gente entrou, já logo ia ter a festa junina. Eu sim… Agora, a Márcia… Acho que já estudava lá. Porque a Márcia morava ali com a tia Juvelina, não sei quanto tempo elas permaneceram ali. Como te disse, eu estava de passagem, porque eu trabalhava. Eu vim e já logo fui de novo. Quando eu fui para o emprego, fiquei lá um mês, dois meses, a mãe já não morava mais ali. A mãe já tinha voltado para o patrão deles, que eles tinham um patrão ali na Fazenda Rio Grande, no 26, no caso… E a mãe já estava morando para cá.

Ivan: Tá.

Márcia: Aí, nessa época, a minha mãe também sofreu um acidente, quebrou a perna, daí ficou bem complicada a coisa…

Ivan: Aham, sim. A tua mãe estava com gesso nessa época também, né?

Márcia: Foi. Nós estávamos lavando roupa nesse rio, e não sei… Parece que alguém chamou ela do outro lado da BR. Eu não lembro direito. Aí ela foi atravessar, veio um carro e atropelou ela.

Ivan: E ela ficou com gesso na perna?

Márcia: Ficou. Ficou… Acho que uns 40 dias, dois meses, mais ou menos, não sei…

Ivan: Tá. Quando… Nessa época, então… Eu sei que, pelo depoimento, a Márcia, a tua prima, irmã da Sandra, diz que trabalhava em Curitiba como empregada. Você também trabalhava?

Márcia: Também trabalhava. Era eu que arrumava os empregos…

Ivan: Ah, vocês duas pegavam os mesmos ônibus?

Márcia: Não. A gente parava lá. A gente ficava lá.

Ivan: Ficava quanto tempo, assim?

Márcia: Eu vinha a cada 15 dias para a casa da mãe. Nessa época que aconteceu, eu estava estudando. Eu estava ali. Estava ali. Só que como eu não estava trabalhando, eu estava ali com a mãe. Aí já logo apareceu uma outra oportunidade de emprego, e eu fui. Daí eu não lembro quanto tempo… Eu não lembro nem o nome da escola, para você ter noção.

Ivan: É o Guisela. Chamavam de Guisa.

Márcia: É. Eu estudei pouco ali. Não sei se chegou a ser…

Ivan: Mas você chegou a estudar? Você chegou a ir para a aula?

Márcia: Cheguei a ir para a aula.

Ivan: Tá. Só que nem chegou a… Porque ia para Curitiba e ficava lá…

Márcia: Não. Naquela época, eu não lembro nem de matrícula. Porque, quando eu entrei na escola, eu entrei na escola com quase nove anos. Eu estava com oito anos e pouco, assim, mais ou menos. Meus irmãos iam, e acabaram me levando. A gente foi sozinho, a mãe não foi com nós. Hoje em dia você tem que ir, você tem que matricular o filho, tudo. Não, nós fomos por conta. A professora, essa nossa amiga, ela incentivou e a gente foi.

Ivan: Como era, assim, o dia a dia de vocês? Quando você estava aqui, não quando você estava em Curitiba trabalhando. Mas quando você estava por aqui. Como era?

Márcia: Nessa época, como eu te falei, eu não lembro muito porque não tinha um dia a dia, não tinha uma rotina. Tinha dia que você ia dormir seis da tarde porque não tinha energia elétrica. Tipo, seis da manhã você já estava acordada, porque criança… Sabe, né? Tem uma energia… A gente ficava brincando, ia catar pinhão, lavar roupa. A gente não ficava desocupada. Quando não estava fazendo os deveres da casa, catando lenha, era isso… A gente ia catar lenha, a gente ia catar pinhão, era assim. Só que eu e a minha mãe… Daí, a Márcia… A gente se juntava mais para brincar com a Sandra, assim, sabe? Eu ficava mais com a mãe.

Ivan: Como era a Sandra? Ela era divertida? Era brincalhona?

Márcia: Ela era. Ela era ciumenta. Ela queria… Tipo, queria que a gente estivesse disponível para ela, para a Márcia, para todo mundo, sabe? Mas, quando estava com ela, era só com ela. Acho que é mal de prima, né? Porque a Márcia tinha ciúme de mim… Um terror… Que esses dias eu fui para Santa Catarina e falei para ela que eu estava com medo de ir e ela me prender lá. Ela me prendia. Ela não queria que eu viesse embora mais. Porque eu não gostava de ficar lá. Até pelos acontecidos, né? Aí, quando eu ia passear, eles vinham me trazer, e ela chorava. Mas a Sandra… Assim, tipo, ela era muito… Ela era mais nova que a gente. Nós já estávamos mais… Nós não gostávamos de sair e levar ela, porque ela era menor. Era menor que a gente, na verdade. A única festa que a gente foi junto com a Márcia foi essa.

Ivan: Foi essa, né? A Sandra… Como ela era fisicamente? Se eu olhasse ela na rua, assim, o que eu veria? Como ela era?

Márcia: Loirinha, magrinha. Ela tinha umas pintinhas no rosto, na mão… Bem clarinha. Bem polaquinha.

Ivan: E ela era grandinha? Pequenininha?

Márcia: Miúda. Bem miúda. Não parecia que ela tinha a idade que tinha. Parecia que ela tinha bem menos.

Ivan: Ela tinha 11 anos…

Márcia: Parecia que tinha uns nove para 10, ela era bem magrinha.

Ivan: É. A Sueli estava me falando que ela teve uma doença que deixou ela bem miudinha…

Márcia: É. O que foi mesmo que ela teve, Sueli? Eu não lembro.

Sueli: Doença de míngua. 

Márcia: É, quando criança…

Ivan: E, nessa época, ela estava de cabelo raspado, né?

Márcia: Estava de cabelinho curto, né? Tinha piolho…

Ivan: Teve piolho, né? Estavam todas as meninas de cabelo raspado?

Márcia: Não, eu não.

Ivan: Você não. Parece que a Márcia estava, ou a Edileide…

Márcia: A Edilei… A Edilei e a Sandra, as duas mais novas.

Ivan: A Márcia não?

Márcia: A Márcia…

Ivan: A Márcia irmã…

Márcia: Ai meu Deus, a Márcia não. Ela não deixou a tia cortar, e acho que nós já estávamos mais grandinhas. Não deixava criar tanto, né?

Considerando como era a vida das meninas na época, Ivan queria saber se Márcia lembrava da festa junina do dia 4 de junho de 1989, quando Sandra desapareceu. Ela não se recordava de alguns detalhes, mas disse o seguinte: ela e Márcia Irmã, por serem muito amigas e de idades mais próximas, não queriam a companhia de Sandra e Maria Edileide, que eram menores.

Ivan: Tá. Então, vocês não queriam que a Sandra fosse para a festa porque vocês queriam curtir sozinhas?

Márcia: Sim. Acho que até pelo fato de ela estar careca, não sei… Porque ela não estava arrumada, porque ela estava suja, não se ajeitou para ir com nós. Eu acho que foi isso. A gente não queria levar ela. Essa é a verdade.

Ivan: E a Sandra queria…

Márcia: E ela queria ir com nós. Ela estava no direito de ir com a gente, né? Só que a gente…

Ivan: Eu vou… Eu entendo que já faz 30 e poucos anos, então é normal não lembrar de tudo, tá? Eu vou ler o seu depoimento, então, para você ver se alguma coisa…

Márcia: Volta. Boa…

Ivan: “Márcia Franco. Brasileira, solteira, com 13 anos de idade, natural de Mandirituba, estado do Paraná. Filha de Juvino. […] Que a depoente era prima da vítima Sandra. Que no domingo a depoente estava na festa do colégio Guisela, e que Sandra estava lá com a irmã pequena”. Com a Maria Edileide. Eu já vou explicar melhor isso, tá? Mas tem mais coisa. Que ela disse que estava com a Maria Edileide. “E que a pequena estava olhando na Márcia e na depoente”. Sempre que fala Márcia, é a irmã, tá? Porque é você que está falando aqui. Então, é a tua prima, a irmã da Sandra. “E que a pequena estava olhando na Márcia e na depoente, e que a Márcia foi falar com elas. E a Sandra brigou com a irmã pequena, que chorou, e a Sandra saiu correndo. Que a Márcia e a depoente trouxeram a pequena em casa, e que a depoente ficou em casa e não viu mais a Sandra”. É isso que você diz. Juntando outros depoimentos, o que eu entendo mais ou menos do que aconteceu foi o seguinte…

Márcia: Então foi isso. A gente voltou levar as duas…

Ivan: Não, levou só a Maria Edileide.

Márcia: Nós levamos as duas.

Ivan: Não… A Sandra… Vou dizer o que… Juntando outros depoimentos, o que eu tenho mais ou menos… O que eu entendi foi o seguinte: lá pelas 14h, mais ou menos, você… As Márcias estão na festa, tá? Mais ou menos… Estão aqui na festa. Daí, mais ou menos lá pelas… Entre 16h e 17h, chega a Sandra com a Maria Edileide. As duas chegam. A Sandra está com uma calça, um moletom, está de chinelo de dedo. Está bem frio, e ela está com uma touca cobrindo a cabeça, uma touca branca, cobrindo a cabeça. E diz que a Maria Edileide ficou olhando para a tua prima Márcia. Quando ficou olhando para ela, a tua prima Márcia foi lá falar com ela, e diz que a Sandra tinha brigado com a Maria Edileide. Não sei por qual motivo. Porque acho que a Maria Edileide queria voltar para casa e a Sandra queria ficar na festa. Nisso, a Sandra some, sai correndo para dentro da festa. E você e a Márcia trazem a Maria Edileide para casa.

Márcia: É verdade. Foi isso mesmo.

Ivan: Foi isso?

Márcia: Foi.

Ivan: Você lembra dessa briga da Maria Edileide com a Sandra? Você lembra o que elas estavam discutindo?

Márcia: Não. Eu não lembro…

Ivan: Por que a Sandra queria tanto…

Márcia: Eu só lembro que a Sandra sumiu no meio da festa. Agora, você falando, eu lembrei. Elas vieram atrás da gente. A gente deixou elas ficarem na festa. E, aí, eu não sei pelo quê… E a gente sempre juntas, né? Aí a gente pegou a Edileide para levar para casa, e a Sandra não quis ir para casa. A Sandra ficou ali. A gente foi, levou a Edileide e voltou para a festa, a gente já não viu ela.

Ivan: Tá. A Sandra… O que eu queria saber e eu não sei se você vai saber… Talvez a tua prima Márcia, irmã da Sueli, saiba… Mas por que a Maria Edileide e a Sandra brigaram, e por que a Sandra brigou com todo mundo? Isso você não vai lembrar, né? Porque, daí, olha só, vocês voltam para casa. Vocês voltam para casa pela BR.

Márcia: Aham.

Ivan: Tá você, a Márcia e a Maria Edileide. A Sandra está na festa. Nesse meio tempo, ocorre um desencontro. A Sandra está na festa e pede para um homem conhecido dela trazer ela até um certo ponto aqui. Ele traz ela até o 22, e ela diz: “daqui eu posso ir sozinha”. E daí ela volta para casa. Nisso, você diz que não vai mais para a festa e fica em casa. E a Márcia diz: “eu vou buscar a Sandra agora”. E ela sai em busca. Só que a Sandra chega em casa, a Márcia acabou de sair. Então, tudo dá a entender que a Sandra veio pelo mato… Porque a Márcia diz que saiu pelo acostamento, saiu pela principal. Daí a Sandra diz: “a Márcia está me procurando? Eu vou atrás dela”. E daí ela sai… E a Márcia volta para casa e não encontra…

No episódio 4, Ivan falou sobre Cecília, uma mulher que também era vizinha de Sandra. Esse não é o seu nome real e, na conversa com Márcia Prima, Ivan cita o nome verdadeiro. Por isso, ele será ocultado quando aparecer.

Cecília teria sido a última pessoa que viu Sandra viva. Em depoimento, prestado em 8 de julho de 1989, ela dizia que, por volta das 20h, avistou a garota sentada nas escadas do restaurante do Posto 22. Ela, então, chegou a perguntar o que a menina estava fazendo, mas Sandra não teria respondido nada.

Porém, existe um relatório da Polícia Civil datado de 4 de março de 1991, ou seja, quase dois anos após a morte de Sandra. Nesse relatório, os investigadores citam em certa parte o seguinte:

Uma tia da vítima informou que, naquela data, encontrou-se com a vítima num posto de gasolina e que conversou com a mesma. Ela teria lhe dito que não iria embora pois estava esperando um homem que iria levá-la para passear.

No inquérito de Sandra, não há depoimento de nenhuma tia nem ninguém que tenha dito algo parecido. O máximo que existe é o relato de Cecília.

Ivan: A última pessoa que viu a Sandra diz que viu ela sentada nas escadas do restaurante do 22, que é a [nome ocultado]. Não dá a entender… Mas dá a entender que seria a tia dela. Fala assim: “a tia”. Tem alguma chance da [nome ocultado] ser chamada de tia pela Sandra ou pela Márcia?

Márcia: Não.

Ivan: Não. Pode ter sido outra pessoa, então.

Márcia: A não ser que a tia Juvelina tivesse um relacionamento com algum irmão delas ali, né, no caso. Mas eu acho que não. Ou chamava por costume, eles chamavam todo mundo de tia. Eu era a Ma, prima.

Ivan: Diz que, isso lá pelas oito da noite, a Sandra está sentada na escada do restaurante 22. A [nome ocultado] diz para ela assim: “você não quer ir para casa?”, alguma coisa assim. Que a [nome ocultado] foi comprar cigarro, e daí ela diz: “não, eu estou esperando um homem”. É esse homem que a gente está tentando localizar. Se a [nome ocultado] estiver falando a verdade.

Márcia: Mas a [nome ocultado] não fala o nome dessa pessoa?

Ivan: Não. Diz que a Sandra não falou ou pelo menos ela não colocou para a gente. Só diz: “estou esperando um homem aqui, que diz que vem me buscar”. Não sei se a Sandra estava falando a verdade. Ela poderia estar mentindo? Falando tipo assim: “ah, estou esperando, vão vir me buscar, não me encha o saco”?

Márcia: Eu acho que sim. Ela não tinha nem corpo de menina, de moça, né, Sueli? Ela era muito… Não tinha condição… Nem nós…

Ivan: Mas isso não impedia os homens de ficar mexendo com vocês, né?

Márcia: A gente levava uma buzinada ou outra de caminhão na BR, mas não tinha amigos assim… Meu pai nunca foi de levar homem para dentro de casa.

Ivan: Não, isso eu sei.

Márcia: Tipo para… Tipo assim, amigo… Os amigos do meu pai eram lá do boteco, dali para lá. Não tinha…

Ivan: Os homens não mexiam com vocês, assim? Fora de buzinada?

Márcia: Não, não. Nada…

Sueli: Além de serem pequenas, eram feinhas…

Márcia: Feia ainda…

É possível, então, que Sandra estivesse na escadaria do restaurante do posto esperando alguém. Um homem. E tem uma coisa importante: ninguém daquele círculo familiar ou social tinha carro. O único carro que aparece é aquele Volkswagen azul – que, por sinal, era um Fusca. O Fusca azul do Sr. Pedro. 

Mas a única passagem do inquérito de Sandra que diz que ela esperava por um homem que a levaria para passear naquela noite é nesse relatório da Polícia Civil, produzido quase dois anos depois do caso. Esse documento foi escrito por dois investigadores: Ednam Baptista e Rogério Miranda de Mello. E Ivan conseguiu uma entrevista com o Dr. Rogério.

Dr. Rogério: Estou com 62 anos de idade e, na época, em 2012… De 1982 a 2012, fui investigador da Polícia Civil, me aposentei na primeira classe.

Na conversa com o Dr. Rogério, Ivan esclareceu algumas dúvidas sobre essa questão do relatório:

Ivan: E tem uma coisa no teu relatório, doutor, que eu acho que essa era a pergunta mais importante que eu queria fazer para o doutor hoje… Que, assim, tem no seu relatório… Diz que tem uma tia da Sandra que diz que chegou a encontrá-la na noite em que ela desapareceu, que ela encontrou…

Dr. Rogério: Na festa, na saída da festa… Acho que foi isso, né? É que eu não me lembro do relato dela… Se você puder…

Ivan: Eu vou ler exatamente o trecho, tá? Fala assim: “Já uma tia da vítima informou que naquela data encontrou-se com a vítima no posto de gasolina e que conversou com a mesma. E ela teria lhe dito que não iria embora pois estava esperando um homem que iria levá-la para passear”.

Dr. Rogério: Isso, exato. É o pátio do posto que eu te falei…

Ivan: Isso. Essa questão do posto… O único depoimento mais próximo disso que eu tenho é de uma mulher que é considerada a última que viu ela com vida, uma mulher chamada [nome ocultado], que não era tia biológica, mas parecia que morava ali perto… E criança chama todo mundo de tio…

Rogério: E todo mundo chamava de tia…

Ivan: Isso, exato. Essa [nome ocultado], no depoimento original dela, fala que viu a Sandra na escada do restaurante do posto. Chegou a falar com ela, mas ela não respondeu nada. E aqui no seu relatório diz que uma tia disse que viu ela no posto de gasolina, o que me leva a crer que foi a [nome ocultado], mas que disse que dessa vez ela respondeu que: “não, eu estou esperando um homem que vai me levar para passear”. O doutor lembra dessa tia falando isso?

Dr. Rogério: Sim. Eu lembro vagamente do fato. Eu só não sei te dizer se era parente consanguínea, mas acho que não, acho que é isso que você está falando mesmo. Porque a gente queria saber… Quando houve essa suspeita de que ela estaria no posto de gasolina e teria dito que estava esperando, a gente levantou a possibilidade de um caminhoneiro ter feito o crime. Mas o caminhoneiro teria seguido viagem e teria matado ela ali no local, e não teria levado… Para que o caminhoneiro vai pegar e vai levar a mão de alguém?

Ivan: Ou ia levar… Ou ia jogar na estrada, em outro estado…

Dr. Rogério: É, exato… E não mataria dentro do caminhão também, né?

Ivan: Aham.

Dr. Rogério: Entendeu? Ele mataria na beira da estrada, num lugar mais escondido e deixaria ali… Essa mulher falou que a Sandra estava no posto de gasolina e que estava esperando um homem. Só que ela não falou quem era o homem. Depois, eu acho que a gente tentou fazer uma acareação entre essa mulher… Não sei se está no inquérito isso… Com o vigilante…

Ivan citou esse vigilante no episódio 4, sobre ele ter sido o principal suspeito do caso Sandra na época, mas nunca chegou a ser acusado formalmente. No episódio 4, Ivan o chamou pelo pseudônimo de João Antônio.

Ivan: É, não tem, não tem acareação… Aham, sim…

Dr. Rogério: Não, né? Então…

Ivan: Não. Agora, o que acontece, aparentemente, é o seguinte: a Sandra, por algum motivo… Isso me chama a atenção também, que, a gente conversando com as parentes da Sandra hoje, elas dizem que a Sandra não era muito de brigar. Mas, naquele dia em específico, ela queria muito ficar na festa. A irmã mais nova, que tinha oito anos, disse que estava com frio e queria voltar para casa. Daí..

Dr. Rogério: E voltou sozinha.

Ivan: Daí… Aí é que tá. Na festa estava a outra irmã dela, a Márcia, e a prima, também Márcia. E as duas Márcias pegam a menor, a Maria Edileide, levam para casa, e a Sandra sai correndo, diz que não quer e faz um alvoroço lá. Daí, enquanto elas tão levando ela para casa, a Sandra chega para o vigilante, o [nome ocultado], e fala: “olha, eu briguei com a Márcia, a Márcia brigou comigo, me leva para casa, por favor”, uma coisa assim. Nisso, as três meninas voltam para casa. A Márcia, prima, decide ficar em casa, a Maria Edileide já queria ficar em casa mesmo… Daí a irmã Márcia fala: “ah, eu vou voltar para pegar a Sandra”. E elas se desencontram. Porque nisso a Sandra pede para o vigilante, o [nome ocultado], levar ela até um certo ponto. Ele diz que leva ela até o posto. A Sandra volta para casa, daí ela se desencontra da irmã Márcia. A Sandra chega em casa, a mãe fala: “a Márcia acabou de sair para ir atrás de você”. “Ah, então eu vou atrás da Márcia”. E daí elas se desencontram de novo, e nesse ponto é que a gente sabe que a Sandra fica no posto de gasolina parada, sentada, esperando alguma coisa, né?

Dr. Rogério: Por causa dessa situação da Sandra ter ficado na festa, que nós comentamos agora, é que nós achávamos o seguinte: que a Sandra já tinha marcado o encontro lá na festa. Só que a pessoa não quis sair da festa com a Sandra, e marcou de pegar ela no posto de gasolina.

Ivan: Entendi.

É nesse ponto que a questão do assassino ter um carro se torna uma hipótese importante. Não apenas porque ele teria que ser rápido nos deslocamentos, no momento do sequestro e da desova do corpo, mas principalmente por causa desse pedaço de informação de que Sandra estaria esperando alguém no posto de gasolina.

E, como falado anteriormente, ninguém tinha carro naquele círculo social. Isso era algo que também chamava a atenção do Dr. Rogério. Por isso, a história do Fusca azul passou a ficar mais relevante para ele. E chamava a atenção também como essas meninas poderiam estar sendo aliciadas. Meninas pobres, morando em condições precárias, com uma mãe que aparentemente não dava muita atenção e precisava de ajuda.

Dr. Rogério: Na verdade, eram mimos que os caras davam, entendeu? Porque ela recebia eles. Qualquer pessoa… Tinha um posto de gasolina, tinha um pátio que a mãe da Sandra ia lá, entendeu? Então, a gente… Não se pode chamar em termos de prostituição… As próprias meninas, se você conversasse na época… Hoje eu não me lembro mais qual delas… Se foi a prima ou se foi… Você falava assim: “mas, escute, você foi na festa junina? Você, para ir na festa junina, você foi como?”. “Ah, não, eu ia porque o fulano de tal pagava os docinhos, as paçoquinhas na festa”, sabe? Entendeu? Eles não davam dinheiro para elas. Os caras compravam chope, cerveja, bebida, entende? E, para essas meninas, Ivan, o cara chegar com um Fusca… Na época, por exemplo, tinha Monza, Chevette, Kadett… Você chegar com um Fusca… Porra, o cara tinha carro, sabe? Era uma coisa deslumbrante para essas meninas.

Ivan: Ninguém tinha carro ali, né? Com exceção desse suspeito, ninguém tinha carro, né?

Dr. Rogério: Exato. Tinha moto, sabe, aquelas motinhas velhas, que eu não me lembro… CG… Que é o CG bolinha, sabe? Mas ninguém era, assim, de posse, sabe?

O Sr. Pedro aparece primeiro na história por conta de um vizinho, Vitor, que disse que viu certa vez Sandra e outras meninas em torno do Fusca azul dele. Vitor afirmou que as garotas entravam no carro e abraçavam o homem. Quando ele foi avisar a mãe delas sobre isso, dona Juvelina disse que elas “só estavam ganhando um dinheirinho”.

Depois, em depoimento, Juvelina falou que esse tal de Pedro começou a frequentar a casa dela. Ela também dizia que ele morava em Curitiba e tinha um terreno na praia, e que não sabia o motivo pelo qual ele começou a visitá-la. 

Por fim, disse que, após o corpo de Sandra ser encontrado, Pedro tentou se aproximar dela de carro, mas ela se afastou. Ele começou a perguntar o motivo de ela estar nervosa com ele.

No mesmo dia em que Juvelina prestou depoimento, Márcia Irmã foi ouvida. De acordo com ela, o Sr. Pedro frequentava a casa há mais de um mês, e ela também não sabia o motivo. Márcia dizia que estranhava o fato de Pedro saber que Sandra estava com o cabelo raspado, visto que, de acordo com ela, ele provavelmente não a teria visto assim.

Márcia Irmã também relatou sobre o fato de o Sr. Pedro ter agido de forma estranha após o corpo de Sandra ter sido encontrado. E, por fim, disse que, após Sandra desaparecer, ele teria marcado um encontro com Márcia Prima – encontro esse que ela nunca foi.

As declarações de dona Juvelina e Márcia Irmã foram tomadas em 15 de junho de 1989. Nesse mesmo dia, Márcia Prima também prestou um depoimento.

Na conversa com ela, Ivan queria saber mais sobre esse depoimento – especialmente sobre a história do encontro que o Sr. Pedro tentou marcar com ela. Durante a entrevista, o nome verdadeiro dele foi citado. Então, aqui ele será ocultado.

Ivan: No dia 12/06, Dia dos Namorados, que encontram o corpo, é uma segunda-feira. Então, deixa eu ver… Segunda, terça, quarta… Segunda, domingo, sábado, sexta, quinta. Então, 12, 11, 10, 9, 8… Então, no dia 8 de junho, tem uma situação que é mais ou menos assim: a sua mãe recebe a visita de um cara que visitava a dona Juvelina direto, que tinha um Fusca azul. Esse cara se chamava [nome ocultado]. Ele tomava chimarrão com a dona Juvelina. Em específico, no dia 8 de junho, parece que a sua mãe, dona Eva, pede para ele levar ela para o hospital porque devia ser o único cara que tinha carro. Ninguém tinha carro ali, que vocês conheciam, né? Pede para levar ela para o hospital para tirar o gesso. Eles vão para o hospital, daí a mulher no hospital diz assim: “vai ter que vir na segunda-feira, pode ser?”. Daí ele fala: “eu posso ir bem cedinho, se for bem cedinho”. Esse cara volta para casa. Leva vocês de volta para casa. Você lembra de alguma coisa, de andar num Fusca azul ou alguma coisa assim?

Márcia: Meu Deus… Tem que fazer aquela retrospectiva lá da…

Ivan: Vamos ler aqui o que você fala dele, o que você chega a falar dele. “A respeito de um senhor de nome [nome ocultado], que a depoente o conhece porque ele vai sempre na casa da tia da depoente. Que na semana passada, uns quatro dias depois que a Sandra desapareceu…”. Esse dia aqui… Na quinta-feira, quatro dias depois que a Sandra desapareceu… “A depoente veio em Mandirituba com a mãe, que ia retirar o gesso. E quem trouxe no hospital foi o senhor [nome ocultado]. Que chegando de volta em casa, a mãe da depoente desceu, tendo a tia também descido”. A tia… Daí imagino que foi a dona Juvelina… “E que o senhor [nome ocultado] mandou a depoente esperar, e que a depoente ficou no carro dele. E que ele disse que, se a depoente saísse com ele, ele dava cinco cruzados novos, um relógio e uma calculadora, e que ele queria encontrar com a depoente perto do poço onde pegam água. E que, por volta de três e meia, quatro horas, ‘eu vou te esperar por lá’. E que a depoente disse que não ia e que ele disse que ia ficar esperando. A depoente foi para casa e saiu com o pai para fazer compras. Que voltaram do mercado, e que a depoente avistou o carro dele, que estava na BR-116. Ele ainda estava esperando a depoente. A depoente contou os fatos à tia, e ela disse que ia falar a ele se ele ia trabalhar ou ia esperar a depoente. Que a depoente não sabe se a tia falou com ele”. Ou seja, basicamente, a Juvelina disse que ia lá tirar satisfação com ele: “você vai trabalhar ou você vai ficar esperando aqui a Márcia? O que você está fazendo aqui?”.

Márcia: Eu, falando?

Ivan: Você falando. E você não sabe se a Juvelina foi falar com ele, tirar satisfação. Mas isso aqui é você falando.

Márcia: Esse Fusca azul… Tipo assim, está começando a dar uns flashes assim… Mas eu não lembro de [nome ocultado]… Não lembro, meu Deus do Céu, 30 e poucos anos…

Ivan: “Que esclarece a depoente que na segunda-feira ainda o viu por ali…”. Foi o dia que foi tirar o gesso… “Mas que não mais falou com ele”. O [nome ocultado] tem uma versão diferente do que aconteceu. Eu, honestamente, acredito na senhora, no depoimento de você, criança…

Márcia: Aham.

O Sr. Pedro prestou depoimento no dia 20 de junho de 1989, ou seja, pouco mais de uma semana após o corpo de Sandra ter sido encontrado. Antes de entrar nesse relato, Ivan precisa retomar a linha do tempo.

Sandra sumiu no domingo à noite, dia 4 de junho. Na quinta-feira, dia 8, ela estava desaparecida há quatro dias. Na ocasião, Pedro passou pela cidade e levou a dona Eva, mãe de Márcia Prima, para o hospital. Ela estava com a perna engessada e naquele dia pretendia tirar o gesso. A filha, a Márcia Prima, foi junto.

No hospital, dona Eva foi informada que não poderia retirar o gesso naquele dia, e que teria que voltar na segunda-feira. Ela perguntou para o Sr. Pedro se ele poderia levá-la para o hospital novamente na próxima semana, e ele disse que sim, se fosse bem cedo. Eles voltaram para casa naquela quinta-feira.

Dona Eva entrou em casa, e o Sr. Pedro pediu para a Márcia Prima ficar no carro um pouco com ele. Nessa conversa, ele teria tentado marcar um encontro com ela, oferecendo em troca cinco cruzados novos, um relógio e uma calculadora. Márcia negou o convite, mas ainda assim o Sr. Pedro falou que ficaria esperando a menina no local sugerido, um poço.

Ainda de acordo com o depoimento, Márcia não foi. Ao voltar do mercado com o pai, viu que o carro do Sr. Pedro, o Fusca azul, estava lá perto. Contou, então, tudo para a dona Juvelina sobre o convite que havia recebido. E ela, a mãe de Sandra, falou para Márcia que tiraria satisfação com ele. Mas ela não sabe se Juvelina foi falar com ele mesmo.

Na manhã de segunda-feira bem cedo, o Sr. Pedro passou para buscar a dona Eva e levá-la ao hospital. Nesse mesmo dia, também de manhã, o corpo de Sandra apareceu no matagal perto de casa. No depoimento de Pedro, constam dois endereços: um em Fazenda Rio Grande e outro em Curitiba. Isso é porque ele havia morado em Fazenda nos últimos anos, sua empresa ainda era lá, mas ele já havia se mudado para Curitiba novamente.

E então, no dia 20 de junho, Pedro prestou depoimento.

Ivan: Mas eu vou ler, e é um depoimento bem ruim assim, tá? Mas que fala sobre essa questão toda que eu te falei, de ser… Parece que, assim, estava sempre… Tinha um monte de homem olhando para vocês o tempo inteiro.

Márcia: Meu Deus. Não sabia dessa.

Ivan: “Que, na segunda-feira, o corpo da menina foi encontrado. Mas, antes disso, na quinta-feira, o declarante trouxe uma tia da menina até o hospital para retirar um gesso e que, o médico não estando, a mulher pediu para o declarante se ele não poderia trazê-la na segunda-feira. Então, o declarante disse que, se fosse bem cedo, ele poderia trazer. E que, na segunda-feira bem cedo, o declarante trouxe a mulher para retirar o gesso”. Você lembra de ir para o hospital para tirar o gesso da sua mãe? Não… “Quando o declarante… E que, na volta, quando o declarante estava deixando a mulher em casa, a polícia já estava lá dizendo que haviam encontrado o corpo da vítima. Que o declarante esteve no local onde o corpo foi encontrado e viu o estado em que ficou o corpo. Que o declarante, no domingo em que a menina desapareceu, não esteve em Mandirituba, e que não costuma vir aos domingos para cá”. Ou seja, ele está negando que foi ele que sequestrou a Sandra. “Algumas vezes trabalha aos sábados até o meio-dia. E que a respeito de ter feito uma proposta para uma menina prima da vítima…”. Você… “Esclarece o declarante que na segunda-feira em que o declarante trouxe a mulher para retirar o gesso, a menina estava junto”.

No depoimento que prestou, Márcia Prima dizia que foi ao hospital com o Sr. Pedro e a mãe apenas na quinta-feira, dia em que ocorreu aquele convite. Ela não menciona ter ido ao hospital com ele na segunda-feira. Mas, de acordo com o relato do Sr. Pedro, isso teria ocorrido na segunda-feira, ou seja, na segunda ida ao hospital.

Ivan: “E a mesma estava vestindo uma saia bem curta, e que estava sentada no carro… Quando estava sentada no carro, mostrava a calcinha. Que no instante em que a mulher estava retirando o gesso, a menina permaneceu no carro. E que apanhou uma calculadora e passou a manusear. E que ela pediu a calculadora para o declarante. E este disse que poderia arrumar outra para ela porque usava aquela em seu serviço. Que, a partir daí, o declarante lhe fez uma proposta. Se ela queria sair com o declarante e se ela transava com alguém, tendo ela respondido que era neutra e que era comprometida, que ela nunca tinha saído com ninguém. Que o declarante lhe propôs… Se ela quisesse se encontrar com o declarante, ela que marcasse o lugar, mas que ela não quis, e o declarante não insistiu. Mas que o declarante lhe disse que, se ela quisesse sair com ele, lhe daria dinheiro. E que não passou disso. E que afirma que nunca encostou um dedo nela. Que o declarante é casado, tem dois filhos, uma menina com cinco anos e um guri com 13. E que o declarante tem uma indústria de artefatos de cimento na Fazenda Rio Grande, onde já residiu por seis anos”. É isso. Você não se lembra desse homem?

Márcia: Não mesmo.

Ivan: Tá.

Márcia: Se ele queria me dar dinheiro…

Ivan: Porque, olha, eu vou ser muito sincero aqui. Para mim, esse é o principal suspeito por vários motivos.

Márcia: Eu lembro que tinha esse Fusca, que a mãe foi tirar o gesso, mas eu não lembro nem de eu ter ido junto.

Ivan: Aham.

Márcia: Porque, se foram duas vezes, talvez eu tenha ido uma…

Ivan: E na outra não.

Márcia: E na outra não. Porque eu lembro da mãe chegando nesse Fusca. A mãe e a tia Juvelina, e os mais pequenos. O Márcio com a Edilei.

Ivan: Porque eu estou achando que… Tem coisas que me levam a ele. Primeiro, ele conhecia a Sandra. Ou seja, quando a Sandra diz: “eu estou esperando, que um homem vem aqui me buscar”, pode ser ele. Ele tinha carro. Tinha combinado com ela qualquer coisa assim. E isso me leva a… Por que a Sandra queria tanto ficar na festa? Por que ela briga tanto para ficar na festa? Era normal ela brigar daquele jeito?

Márcia: [faz que não]

Ivan: Ela queria muito ficar na festa.

Márcia: A gente brigava, mas era pouquinha coisa ali, não que ela… Que fosse assim dessa forma.

Ivan: De sair correndo, né?

Márcia: Se esconder de nós. Ela se escondeu da gente.

Ivan: Parecia que ela queria algum… Que ela tinha combinado alguma coisa escondida com alguém, entendeu? Daí ela está lá no posto esperando alguém vir buscar ela. Daí, olha só, esse cara… O que mais me pega é esse dia 12 aqui, segunda-feira, quando encontram o corpo. Porque, até então, a Sandra está desaparecida. Daí ele diz: “eu posso te levar…”. Ele fala para sua mãe, a Eva… Diz: “eu posso te levar para o hospital bem cedo, segunda-feira de manhã”. Ele sai, vem de Curitiba ou… Se ele morava em Fazenda Rio Grande, morava lá para cima, a gente não sabe direito. Mas ele vem, daí o que eu acho que acontece? Ele vem, deixa o corpo dela aqui, busca a sua tia e vai para o hospital. Quando está voltando, descobre que encontraram o corpo. E daí ele…

Márcia: E eu era a próxima vítima, então.

Ivan: Talvez. Talvez fosse.

Se ele for realmente o assassino de Sandra, pode ser também o assassino de Leandro e Evandro. E é aqui que, de acordo com Ivan, a hipótese das duas crianças que apresentou no episódio 3 passa a ser uma possibilidade mais relevante. Seria isso um padrão? Uma grande coincidência? Será que está entrando na falácia da Bola de Neve?

Como mostrou no início do episódio, na conversa com a Dra. Lígia, existe um tipo de pedófilo que é o sedutor. Ele dá presentes, se aproxima, tenta ganhar a confiança da criança para pegá-la. 

Esse pode ter sido o caso de Sandra. Pode ser o que aconteceria com Márcia Prima. E não é incomum também que ele tenha uma soberba grande, um perfil antissocial de se achar melhor do que os outros. De que nunca será capturado. Pode ser que na sua fantasia ele também achava necessidade de ter mais de uma criança com ele.

Então, Ivan se recorda de Leandro e Aramis, dos Irmãos França, de Evandro e dos garotos misteriosos. Talvez, Sandra e Márcia Prima se encaixem aí. E não é incomum que esse tipo de pessoa se aproxime da família como alguém que quer ajudar, que se demonstra muito prestativo. Abaixo, está um trecho do depoimento da Márcia Irmã, que pode ser relevante sob essa luz:

Que na manhã de ontem, dia 14 de junho, quarta-feira, por volta de dez horas mais ou menos, a depoente seguia com a mãe pela estrada. Em sentido contrário vinha o carro do Sr. ‘Pedro’. Ele parou, mas a mãe da depoente não queria conversa. E então ele disse: “nossa, dona Juvelina, a senhora está tão nervosa. Eu só queria ajudar. Eu até levei vocês até a polícia para procurar a menina. Eu não queria fazer nada de mal a ela. Eu não faço mal nem a um cachorro”. Ele estava muito nervoso, e estava tremendo.

Ou seja, de acordo com o depoimento de Márcia Irmã, o Sr. Pedro chegou a levar a dona Juvelina até a polícia quando Sandra desapareceu. Em depoimento, a dona Juvelina falava o seguinte sobre essa ocasião:

A declarante foi até o módulo e pediu ajuda para procurarem a menina. A declarante não procurou a Delegacia de Polícia porque não pôde vir.

Como se nota, dona Juvelina não cita que foi até o módulo da polícia com o Sr. Pedro. Assim, se o depoimento de Márcia Irmã está correto, foi provavelmente Pedro quem levou Juvelina até um posto da Polícia Militar – que teria um módulo naquela região. Mas ela não foi até uma delegacia da Polícia Civil para registrar um boletim de ocorrência do desaparecimento.

Será que isso foi intencional? Será que ele sabia que o certo seria levá-la até uma Delegacia da Polícia Civil? Será que falaram isso para ele lá? Ou será que ele também não sabia e, assim como Juvelina, achou que bastava ir até um módulo que “a polícia” correria atrás sozinha?

Essas perguntas, infelizmente, nunca terão respostas. Mas, já que Ivan está no caminho de ver como o Sr. Pedro parecia querer ajudar a família, outra suposição surge. E ela tem a ver com o dia em que o corpo foi encontrado.

Naquela segunda-feira de manhã, dia 12 de junho de 1989, bem cedinho, o Sr. Pedro apareceu na residência da tia Eva para levá-la ao hospital para que tirasse o gesso da perna. Ao voltar para casa, Eva foi informada que haviam encontrado um corpo que poderia ser de Sandra.

Infelizmente, Eva não prestou nenhum depoimento no inquérito, então não há maiores detalhes sobre como ela ficou sabendo disso. O que Ivan sabe é que quem fez o reconhecimento oficial do corpo de Sandra foi a irmã mais velha, Sueli, que já era casada na época e morava em outra casa.

Na entrevista que concedeu a Ivan, Sueli contou sobre esse dia.

Ivan: Como foi nesse dia? Como que… Você estava em casa?

Sueli: Estava. Estava de manhã em casa. A minha tia chegou e falou que tinham achado a Sandra morta.

Ivan: Qual tia?

Sueli: A tia Eva. Foi ela que veio na minha casa. Que era para eu estar indo lá reconhecer, que não tinham achado a mãe, que a mãe não estava em casa, né? Aí eu peguei o meu menino no colo e saí para ir reconhecer a minha irmã. Chegando lá, eu que… No caso, a tia Eva já tinha reconhecido… Eu que reconheci o corpo dela.

Ivan: No local, né?

Sueli: Aham.

Ivan: Como… Você consegue me dizer como foi chegar no local? Como vocês foram para lá? Vocês foram a pé?

Sueli: Ah, alguém trouxe a minha tia, daí eu fui junto, de carro.

Ivan: Foi de carro.

Sueli: Não me lembro. Não tenho lembrança se foi parente, não tenho lembrança de quem foi. Sei que me levaram e me trouxeram para casa…

Ivan: Que horas você chegou lá? Você lembra?

Sueli: Cedo. Era por volta… Acho que de umas nove, nove e pouco, que eu cheguei lá.

Ivan: Você lembra da Eva chegando lá também?

Sueli: Junto… Ela foi junto comigo.

Ivan: Foi junto com você.

Sueli: Foi.

Ivan: A Eva que te chamou?

Sueli: É, ela que veio me buscar, aham.

Ivan: Você sabe onde a Eva estava?

Sueli: Não. Não perguntei… Acho que estavam em casa e foram atrás dela, que era a mais próxima, né?

Reconstruindo a linha do tempo, Ivan sabe que Eva estava no hospital com o Sr. Pedro, tirando o gesso da perna.

Ivan: Você lembra em que carro você foi?

Sueli: Não me lembro.

Ivan: Estava a Márcia, a prima, junto no carro?

Sueli: Não.

Ivan: Não estava?

Sueli: Não.

Ivan: Tá. Você lembra se era um homem dirigindo?

Sueli: Era.

Ivan: Era um homem dirigindo.

Sueli: Era um homem.

Ivan: Deixa eu te mostrar uma foto… Essa foto é mais recente, tá? Mas de repente puxa alguma… Ele devia ser bem mais novo na época. Esse rosto te lembra alguma coisa?

Sueli: Pior que não.

Ivan: Não?

Sueli: Não lembro quem seja.

Ivan: Tudo bem, sem problema. Você lembra de uma história que a Eva estava com o braço engessado?

Ivan gravou essa entrevista com Sueli antes de conversar com a Márcia Prima. Foi a Márcia quem falou que ela estava na verdade com a perna engessada, e não o braço.

Sueli: Aham.

Ivan: E que ela estava tirando o gesso naquele dia? Vindo do hospital?

Sueli: Não me lembro se estava vindo do hospital.

Ivan: Mas você lembra que ela estava com gesso?

Sueli: É. Eles tinham comentado. Eu não vi, mas eles tinham comentado.

Ivan: Você não chegou a ver?

Sueli: Não. A mãe tinha comentado que ela estava com o gesso.

Ivan: Tá. Então, o que a gente sabe, tá? Eu vou te falar isso para ver se te lembra alguma coisa. Tinha um cara, esse que eu acabei de te mostrar a foto, que o nome dele é [nome ocultado]. Mas a sua mãe chamava ele de [nome ocultado]. Porque [nome ocultado], um nome estranho… Então chamava de [nome ocultado]. Ele tinha costume de tomar chimarrão com a sua mãe. A sua mãe tomava muito chimarrão?

Sueli: Tomava.

Ivan: Então, ele tinha costume de ir lá e de… Ele conhecia as meninas também. Conhecia principalmente a Sandra, a Márcia, a sua irmã…

Sueli: A prima…

Ivan: E a prima Márcia também. As três, ele conhecia. E ele passava ali para Mandirituba… Ele ia comprar cimento no Accioli, o antigo Accioli, que acho que agora é um condomínio no local, alguma coisa assim. E ele chegou a passar lá numa quinta-feira, parece. Ficou sabendo daí que, antes da Sandra aparecer, ela já tinha desaparecido… Daí ficaram falando… Daí falaram: “ah, a Sandra desapareceu”. Daí ele até tentou… Acho que levar ela, a sua mãe, para a polícia, alguma coisa assim. E, nisso, a Eva estava com o gesso e pediu: “você pode me levar para o hospital para eu tirar o gesso?”. Daí ele falou: “eu posso segunda-feira bem cedinho”. Segunda-feira bem cedinho, diz que pega a Eva, leva para o hospital e, quando estão voltando, ou quando ela entra no hospital, descobrem que encontraram o corpo. Então, a Eva estava com esse [nome ocultado], em princípio. E ele tinha um carro, ele tinha um Fusca azul. E esse Fusca azul volta… Vão até o local. Então, se veio alguém aqui te buscar, pode ter sido ele, não sei se foi. Mas ele diz que viu o corpo no local. A senhora não lembra desse homem? Não lembra de…

Sueli: Não lembro. Não lembro. Se eu falar que eu embarquei… E o carro era azul, também não lembro, né?

Ivan: Não lembra.

Sueli: Não lembro. E na hora, assim, você perde o chão, então você nem olha o que você está fazendo.

Ivan: E a sua prima não estava no carro também. Só estava a Eva, né?

Sueli: Não. Só veio a minha tia.

Ivan: Só veio a tia.

Sueli: Que eu me lembre, né? Numa dessas, estava junto, também não me lembro, né?

Ivan: Sim. Sim.

Sueli: Mas ele, eu nunca vi, como os outros… Se eu vi, não me lembro, né?

Ivan, então, começou a olhar as três fotos do local onde o corpo de Sandra foi encontrado. E na foto que mostra o terreno de forma mais ampla, no qual se vê ao fundo o Posto 22 e a BR-116, é possível notar alguns carros estacionados – provavelmente de repórteres e policiais. E lá, no meio, está um Fusca azul. Em outras palavras, é bem possível que o Sr. Pedro tenha ido buscar Sueli para ir até o local do corpo naquela manhã de segunda-feira.

Quando o Fusca azul passou a ser uma linha de investigação, o Sr. Pedro foi perguntado sobre o veículo. Em depoimento, ele confirmou que o Fusca era dele. E aqui entra um problema grave no inquérito de Sandra – apesar de ter sido uma investigação bem-feita para a época. Em algum momento, o Fusca do Sr. Pedro foi apreendido pela polícia para ser periciado. Mas no inquérito não tem o auto de apreensão do veículo, o que nos impede de saber qual a data exata do procedimento. Mas há o laudo da perícia, datado de 24 de julho de 1989. Nele, Ivan descobriu que o intuito da polícia era procurar por amostras de sangue. Em seguida, está escrito o seguinte:

Procedendo-se a um minucioso exame no referido veículo, foram observadas pequenas manchas (respingos), de coloração escura, dispersas externamente, na lataria, e uma mancha de coloração acastanhada, localizada na parte externa do vidro da porta esquerda, as quais foram coletadas e maceradas separadamente, em soro fisiológico. Com parte destes macerados, efetuou-se as reações habituais na pesquisa de sangue, obtendo-se resultados positivos somente para o macerado correspondente à mancha do vidro. A seguir, com o restante do macerado, procedeu-se a pesquisa de sangue humano das provas de Inibição de Aglutinação e Precipitação de Uhlenhuth, obtendo-se resultados positivos, iguais aos apresentados por sangue humano. Conclusão: Em face dos exames realizados, anteriormente relatados, os peritos concluem que a mancha coletada do vidro da porta esquerda do veículo em questão é constituída por sangue de natureza humana.

Ou seja, ao menos uma das manchas encontradas pela perícia no Fusca azul, localizada no vidro da porta do motorista, foi confirmada como sangue humano. E daí é importante lembrar que tudo isso ocorreu em 1989. Não havia exame de DNA. No máximo, dava para fazer um exame de tipagem sanguínea.

Mas, em um ofício datado de 24 de julho de 1995, o Instituto de Criminalística explica que não havia quantidade suficiente de sangue para fazer esse exame na época. Anos depois, em novembro de 1996, o Sr. Pedro foi chamado para ser ouvido novamente. Já haviam se passado mais de sete anos desde o assassinato de Sandra. Ele foi a única pessoa a prestar mais de um depoimento no inquérito.

Nesse segundo relato, o Sr. Pedro negou totalmente que tivesse feito uma proposta para Márcia Prima, entrando assim em contradição com o primeiro depoimento. Ele continuou negando que tivesse qualquer envolvimento com a morte e desaparecimento de Sandra, e também afirmou que não sabia dizer de quem seria o sangue encontrado no carro. De acordo com Pedro, poderia ser dele mesmo.

Por fim, ele disse que, no domingo em que Sandra desapareceu, estava na cidade de Garuva (SC), visitando um tio da esposa. Esse tio já havia falecido na época do segundo depoimento. Só que Garuva é do lado de Guaratuba.

O inquérito de Sandra para aí. Depois do segundo depoimento do Sr. Pedro, não há nada de novo. Muitos delegados passaram por ele, sem nenhum avanço. A investigação realmente só andou em dois momentos: com a primeira equipe, comandada pelo Dr. Inácio, e pela segunda equipe, comandada pelo delegado Fernando Vidolin. O Dr. Rogério, investigador da época, foi da equipe do Sr. Vidolin.

Dr. Rogério: Quando a gente pegou, que a gente assumiu, que o delegado já tinha ouvido ele, nós fomos buscar ele de volta, sabe? No endereço da casa dele. Deixa eu ver qual era o endereço, acho que era o endereço de Curitiba…

Ivan: Tá. Provavelmente no [local ocultado] ali, né?

Dr. Rogério: No [local ocultado], isso. E aí ele ficou… A gente levou para a delegacia e… Sabe? Dava aquela prensa, mas não… Porque foram encontradas gotas de sangue no carro. O carro era visto no local, tinha testemunhas que viram ele na casa da Sandra. Tinha testemunha que via ele entrando na casa da velha, entendeu? Com a velha… Então, a gente perguntava, sabe? E ele negava, negava, negava. A vontade era dar… Mas como… Por que a gente não usa de certos artifícios? Eu, pelo menos, sou contra porque, num crime de homicídio, se você der uma… Vamos supor, a palavra “tortura”… A pessoa confessa, entendeu? Ainda mais que você, num interrogatório, você vai… “Ah, porque você cortou a mão. Você cortou, você cortou”. Aí a pessoa… Sabe? O crime de homicídio é investigado de forma diferente. Ele tem que ser pego com provas, com testemunhas, com todo um processo de provas documentais para que você tenha a certeza de que não cometeu nenhum ato injusto, né?

Ivan: Sim, claro.

Dr. Rogério: Você fala mais ríspido, né? Mas a gente perguntava, aí ele falava assim: “não, eu passava lá porque eu tinha muita pena. A dona Juvelina…”. Ele não chamava… Ele chamava de Juva. Juvi, Juva, alguma coisa assim. “Ela era muito pobre, e eu ajudava, eu dava cesta…”. Na época não era cesta básica que ele usava, ele dava uma ajudinha… “Ah, mas qual foi a última vez que você viu a Sandra?”. “Eu vi a Sandra na casa dela quando eu fui lá na tal data”. Era uma data anterior, não me lembro, entendeu? E como ele não… E aí ele… Ah, impressão digital, colhe impressão digital, chama perícia, faz perícia. A gente mandou ele fazer um corpo de delito também no Instituto Médico Legal. Só não foi descrito porque não apresentou nenhuma… A gente achava que podia achar algum arranhado no corpo, nas costas, sabe? Infelizmente, quando acharam a Sandra, como ela não tinha as mãos, você não conseguia saber se tinha algum vestígio… E também a dificuldade do DNA, sabe?

Ivan: É…

Dr. Rogério: Hoje, por exemplo, se tivessem preservado talvez aquele sangue, segundo os peritos… Para você ter uma ideia, o laudo do Instituto de Criminalística ficou sumido um tempo, não estava no inquérito.

Ivan: Sim, sim. Ele demora, demora para entrar.

Dr. Rogério: É. Só foi aparecer por causa de uma cobrança de um promotor que fez, uma promotora…

Ivan: Mas, assim, nessas conversas que você… Você conversou com ele só uma vez ou foram várias vezes?

Dr. Rogério: Nós conversamos duas vezes com ele. Eu me lembro de duas vezes. E as duas vezes foram justamente por dúvidas com relação ao que ele nos falava. Ele dizia que era amigo da Juvelina, que ele só ia, passava só durante o dia, que ele nunca esteve à noite… E que vizinhos viram o carro andando pela região, as meninas falavam dele, entendeu? Mas ele… Por exemplo, ele não falava assim: “eu saí no dia, fiz isso, isso, isso, isso, isso, isso”. Ele contava só aquilo e parava. Daí a gente ia lá na menina, a menina falava assim: “não, o tio [nome ocultado] passava aqui”. O tio [nome ocultado], sabe? “Passou aqui na semana passada”. E ele não tinha nos falado. Aí nós… “Tá mentindo, cara? Qual é a tua?”. Entende? Só que, infelizmente, para nós, para mim, convicção pessoal, eu acho que foi ele.

Ivan: Sim. O doutor lembra o que ele fazia de trabalho? Qual era a ocupação dele, alguma coisa assim que levava a crer mais…?

Dr. Rogério: Rapaz do céu… Eu acho… Aí é que vem outro problema. Daí nós fomos conversar com o perito… Eu não sei, eu não me lembro se foi o Chico Louco, que era o médico legista…

O “Chico Louco” que o Dr. Rogério se refere é o Dr. Francisco Moraes e Silva, com quem Ivan conversou no episódio 6. “Chico Louco” é o apelido dele – que ele detesta, por sinal.

Ivan: Aham. O médico que fez o exame na Sandra não foi o Chico, tá? Foi o… Mas eu sei que vocês conversaram com ele, né, para pegar outra… Aham…

Dr. Rogério: Por que nós fomos? Porque a gente era… O Vidolin era amigo do Chico, e o Rasera era amigo do Chico.

Rasera é o investigador Delcio Augusto Rasera. Ele fazia parte da equipe de investigação do delegado Fernando Vidolin, junto com o Dr. Rogério.

Dr. Rogério: Eu não tinha muita ligação com ele não, mas a gente queria uma explicação dos cortes que foram feitos na face e o corte das mãos. Por quê? Porque a junta… O cara que corta uma junta… Ou ele é muito bom na faca como açougueiro ou ele é um médico com conhecimentos técnicos do corpo humano.

Ivan: Sim…

Dr. Rogério: Entende? Porque, para você cortar na junta, como a Sandra teve os cortes das mãos… E nós não encontramos nenhum vestígio no local, de mãos. Porque é impossível que um cachorro… Se ela tivesse ficado jogada há muito tempo no local, você podia justificar… Se o perito chegasse e dissesse: “não, ela está aqui nesse local há uns cinco dias”. Aí poderia justificar que a mão foi cortada, abandonada no local, e um animal pudesse ter levado, entendeu?

Ivan: Sim, sim. Tanto que foi a primeira impressão da irmã dela. Ela me falou: “ah, eu achei que um cachorro tinha comido a mão dela, uma coisa assim”.

Dr. Rogério: É isso, é isso. Mas os cortes foram precisos.

Ivan: É. Tanto que tem… No inquérito, tem o laudo da necropsia que foi feita, só que eu achei muito interessante que vocês anexaram também o rascunho. Porque no rascunho tem a impressão do médico que está fazendo a análise, e ele fala aqui uma análise que eu achei… Ele até escreve assim: “não bater”, para não colocar no documento final.

Dr. Rogério: Isso, isso, exatamente.

Ivan: Mas que ele fala…

Dr. Rogério: Ele coloca que era para não fazer o laudo oficial com aquilo.

Ivan: Isso. Mas ele fala: “a incisão…”. Eu estou até com ele aberto aqui. “A incisão bimastoideana do couro cabeludo com rebatimento e exérese da pele, a incisão em V na altura do manúbrio esternal, a retirada das glândulas salivares e o arrancamento das mãos foram, ao que parece, realizados por pessoa afeita ou pelo menos informada em relação a procedimentos médicos legais, pelas características das incisões”, né? É isso aí…

Dr. Rogério: Por causa disso que nós fomos falar com o Chico.

Ivan: Sim, sim. Para pegar uma opinião dele.

Dr. Rogério: E um detalhe… O globo ocular dela foi tirado também, eu acho que foi, né?

Ivan: Foi, foi, foi…

Dr. Rogério: Foi destacada a pele e o globo ocular… Como que é…? A carótida… Carótida não… Não é carótida… Essa parte da garganta aqui…

Ivan: Aham. Sim, sim, sim.

Dr. Rogério: Foi destacado…

Ivan: É.

Dr. Rogério: Então, a gente foi falar com o Chico por causa disso.

Ivan: Para saber quem teria conhecimento de fazer isso, basicamente.

Dr. Rogério: É, exatamente. Então, como… Aí a gente analisava… Por exemplo, os cortes da junta poderiam ser um bom… Você pega um bom açougueiro, que tenha um bom conhecimento de faca, e uma faca muito afiada, né?

Nessa conversa, o Dr. Rogério falou que essa pista do conhecimento dos cortes os levou a uma busca por médicos da região. Esse esforço não aparece registrado no inquérito, mas faz todo o sentido que ele tenha ocorrido. Não encontraram nada.

Ivan: Ele foi o principal suspeito do doutor?

Dr. Rogério: Foi. Foi para nós, para mim, para o Ednam e para o Vidolin. Eu ainda… A gente… Não teve como o Instituto Médico Legal e o Instituto de Criminalística determinarem por conta da falta do DNA, sabe? Mas nós encontramos dentro do carro…

Como Ivan disse no episódio 4, o primeiro delegado do caso, o Dr. Inácio, não quis dar entrevista. Mas Ivan conversou bastante com ele nesses últimos meses. E, em uma dessas conversas, ele falou o mesmo que o Dr. Rogério Mello: Pedro era também o seu principal suspeito. Nas palavras dele, esse homem parecia ser uma pessoa muito fria, especialmente quando dizia coisas tão pesadas como a tentativa de marcar um encontro sexual com Márcia Prima.

Diga-se de passagem, foi o Dr. Inácio quem tomou aquele depoimento do Sr. Pedro. Claro, isso tudo são impressões pessoais, mas é interessante observar como elas batem em duas equipes diferentes de investigação. E tem mais uma coisa que liga as duas equipes: a frustração. Sentimento esse que o Dr. Rogério teve em duas ocasiões: em um caso de estupro e morte de uma mulher no litoral do Paraná e no assassinato de Sandra.

Ivan: Foi muito frustrante não chegarem na autoria desse caso?

Dr. Rogério: Bastante.

Ivan: É um dos mais [frustrantes] da sua carreira, assim?

Dr. Rogério: É. O Vidolin… A gente sempre conversava, porque uma das coisas que a gente queria era achar o autor, né? Por causa da violência, da forma, tudo o que pode se passar na cabeça de um ser humano para tomar esse tipo de atitude, de fazer… No caso da turista da praia, para mim, ao meu ver, foi um ato de um tarado sexual, que pode ter acontecido de ela ter concordado ter relações na praia… E o cara, num ato de descontrole, matou e violentou, e largou… No caso da Sandra, não. É como você diz, é um cara que gosta de matar, entendeu? Então, fica complicado. Mas foi muito frustrante sim. Eu gostaria que… Sabe? Eu gostaria que um policial chegasse hoje e botasse no jornal assim: “conseguimos localizar o autor… Ou descobrir… O autor morreu de câncer, era o primeiro suspeito”, como vocês fizeram com relação ao menino desaparecido. Tinha um menino que estava desaparecido, não tinha dono… Aí vocês acharam o dono, o dono do corpo, entendeu?

Aqui, o Dr. Rogério Mello se refere ao menino que é o motivo dessa temporada existir – Leandro Bossi.

Eles estão falando do caso Sandra, então é importante explicar o óbvio: se havia tantos indícios assim, e tanta convicção por parte de alguns policiais, por que o Sr. Pedro nunca foi acusado de nada? Apesar de ter sido investigado, ele não era o principal suspeito no início.

Como Ivan disse no episódio 4, o principal suspeito da polícia na época, especialmente da segunda equipe de investigação, comandada pelo Dr. Fernando Vidolin, era o vigia João Antônio (pseudônimo). Ele tinha um histórico recente de estupro no interior do Paraná e estava em Fazenda Rio Grande há pouco tempo. Ele tinha um histórico de problemas mentais. Ele foi visto saindo da festa junina com Sandra naquele domingo.

A polícia seguiu essa trilha por muito tempo e tentou montar uma acusação contra ele. Mas isso nunca avançou. O Dr. Delcio Rasera, um dos investigadores da época, chegou a contar para Ivan que o vigia era o seu principal suspeito, mas que nunca conseguiu levantar nada contra ele de sólido.

No fim, a conclusão das investigações contra o Sr. João Antônio está contida no relatório que o Dr. Rogério Mello redigiu em abril de 1991:

Este elemento sofre das faculdades mentais, como é constatado nos documentos já anexados no inquérito. Ao conversarmos com o mesmo, notamos que o próprio não se omite dos atos e crimes cometidos em sua vida no passado, os quais relata sem titubear. Mas quando se toca no caso Sandrinha, o mesmo nos conta que encontrou-se com a vítima até 100 metros do local onde foi localizado o corpo, isso por volta das 19 horas. Ao conversarmos com duas pessoas, as mesmas afirmaram que, naquele dia, viram o Sr. João Antônio e seu pai completamente embriagados, bem distantes do local, isto por volta das 20 horas. Já uma tia da vítima informou que, naquela data, encontrou-se com a vítima num posto de gasolina e que conversou com a mesma. E ela teria lhe dito que não iria embora pois estava esperando um homem que iria levá-la para passear. Então, deduz-se que esta pessoa iria apanhá-la de carro e que era conhecido da vítima. Estes fatos ocorreram em 4 de junho de 1989, e o corpo da vítima foi localizado em 12 de junho de 1989, tendo ficado desaparecido por oito dias. Conversando com o médico legista, nos foi informado que da localização do corpo até a hora provável da morte decorreu de 4 a 5 dias, sendo com isso possível concluir que a vítima foi sequestrada e mantida em cativeiro por aproximadamente três dias. Procedemos investigações no sentido de certificarmos que o ‘Sr. João Antônio’, nos dias que se sucederam ao desaparecimento da vítima continuou a trabalhar com seu pai normalmente, inclusive posando em casa, no sítio de seu patrão. Quando da localização do corpo da vítima, foi constatado pelos peritos que compareceram no local que o corpo da vítima teria sido depositado naquele local naquela madrugada do dia 12 de junho de 1989, não sendo encontrado no exame de local marcas de sangue e nem de veículo (sulcos de pneu), pois a estrada de chão mais próxima se localiza a uns 70 metros do local.

O relatório segue afirmando que o caso é de difícil solução, que seriam necessárias mais diligências e tempo para resolvê-lo. Ele também afirma o óbvio: que o crime só poderia ser solucionado se fossem achadas as mãos amputadas, os cabelos e a máscara facial. Essa é a materialidade que faltava para se acusar alguém. Nada disso nunca foi encontrado. E então, no último parágrafo, há mais uma informação importante:

Os peritos consultados foram unânimes em afirmar que os atos de barbarismo praticados com a vítima foram realizados por pessoa ou pessoas que possuem conhecimento em descarnamento, pois os cortes eram precisos e retilíneos, e as partes extraídas foram retiradas com conhecimento, possivelmente, de profissionais.

Com tudo isso em mente, Ivan percebeu que só podia fazer uma coisa: tentar levantar o que fosse possível sobre o Sr. Pedro.

UMA SOMBRA ERRANTE

Para os mais curiosos, Ivan já adianta que não existe nada online que seja relevante sobre o Sr. Pedro. Ele não teve nenhuma passagem pela polícia. Nunca sofreu nenhum processo, tampouco foi acusado de algo. Nunca apareceu em nenhuma matéria de jornal, pelo menos até onde conseguiu levantar. Não existe nada de importante sobre ele em bancos de dados como Jusbrasil e coisas do tipo. Ele é uma pessoa absolutamente comum, sem levantar nenhuma suspeita.

Como foi dito no início do episódio, Pedro já é falecido. E aqui Ivan precisa tomar o dobro de cuidado para não expor nenhuma informação que possa tornar a identidade dele pública. E Ivan só vai falar as coisas que levantou porque sabe que, se não for ele, alguém fará isso no futuro. Então, acha importante deixar registrado o que conseguiu descobrir.

Para obter essas informações, Ivan precisou falar com vários familiares. Nenhum deles quis dar entrevista gravada, em respeito aos filhos do Sr. Pedro. Ivan não vai nomear nem descrever nenhum desses familiares, e vai se referenciar a eles apenas dessa forma genérica: “família” ou “familiares”.

Nenhum deles tinha documentos, fotos, cartas ou qualquer coisa que pudesse ajudar a montar com exatidão essa linha do tempo da história da sua vida. Ivan só pode contar com as suas memórias – o que é sempre um risco por conta de imprecisões. Mas, nesse caso, não havia outra alternativa. Suas lembranças são os únicos materiais que possui.

A história do Sr. Pedro é a seguinte: ele nasceu no interior de Santa Catarina na década de 1940. Tinha quatro irmãos, e ele era o mais velho de todos. Eles moravam em fazendas nas quais o pai trabalhava. Viviam do que plantavam e do que criavam. Nesses lugares, geralmente tinham permissão para criar seus próprios animais, como porcos, galinhas, patos, marrecos, cabritos, etc.

O pai do Sr. Pedro costumava criar muitos porcos. Quando queriam comer carne, abatiam os animais. Nenhum familiar conseguiu confirmar se o Sr. Pedro ajudava o pai nessa tarefa – mas isso não seria incomum, visto que o filho mais velho ajudar o pai a descarnar animais é algo normal no interior.

Na década de 60, quando tinha por volta de 18 anos, o Sr. Pedro se mudou para Curitiba. Pouco tempo depois, seus pais e irmãos foram atrás. No início, ele teve alguns empregos de serviços gerais, tais como vendedor de loja, garçom, e por aí vai. Um familiar relatou que, nessa época, o Sr. Pedro chegou a ameaçar um parente de morte por uma gravidez não-planejada. Muitos anos depois, ele teria se arrependido do ato e pedido perdão a esse parente.

Durante a década de 70, a vida do Sr. Pedro deu uma guinada. Ele passou a comprar terrenos e trabalhar com construção, sendo pedreiro e depois mestre de obras. Conheceu uma mulher, casou-se com ela e tiveram um filho – o primeiro do casal. Nesse período, ele também abriu uma empresa de representação comercial. 

Ivan e Natalia tentaram vários caminhos para descobrir mais informações sobre a empresa. Foram na Junta Comercial e na Prefeitura de Curitiba. Mas, considerando o quão antiga ela era, não havia nada de relevante. Apesar desse empreendimento, o ofício principal de Pedro sempre foi a construção.

Nos anos que se seguiram, ele comprou vários terrenos. Construía uma casa, morava lá um tempo e vendia em seguida. Aparentemente, fez um bom dinheiro com esses negócios. 

Oito anos após o nascimento do primeiro filho, o casal teve uma filha. Os dois são seus únicos filhos. Durante esse período, mudaram de casa várias vezes. Provavelmente, para residências que ele mesmo construía ou reformava. Todas em uma mesma região de Curitiba, perto da saída para Fazenda Rio Grande. Na época, era uma área barata, então em princípio não há nada de anormal nessa questão.

Mas isso incomodava a esposa dele. Ela não entendia o motivo de tantas mudanças. O casamento deles não era dos mais tranquilos, ao que tudo indica. Apesar disso, o núcleo familiar do Sr. Pedro com a esposa e os dois filhos parecia ser mais isolado que o resto da família dele.

Conversando com parentes, Ivan ouviu várias vezes frases do tipo: “ele se achava melhor do que a gente”, “ele não convivia muito conosco”, “nós não sabemos muita coisa dele porque ele sempre foi mais isolado”. Em algum momento da década de 80, o Sr. Pedro se mudou com esposa e filhos para um terreno em Fazenda Rio Grande. Era uma área grande, e ali acabaram morando os pais de Pedro e pelo menos um irmão com a sua família.

Nesse terreno também funcionava uma pequena fábrica de artefatos de cimento. Pelo o que Ivan pôde levantar, Pedro trabalhava praticamente sozinho nesse lugar, que era quase artesanal. Ali, produzia itens como palanques de cimento e lajes. Ou seja, materiais que tinham a ver com o seu ofício de sempre, que era a construção.

Além dessa fábrica, ele também chegou a ter um pequeno mercado. Paralelo a isso, o Sr. Pedro tinha um terreno com uma casa que ele mesmo construiu em Itapoá, uma praia em Santa Catarina. Era sua praia predileta. Ivan não conseguiu encontrar registro sobre esse imóvel, mas vários familiares confirmaram que ele possuía uma residência naquela cidade durante esse período.

Itapoá fica a cerca de 30 minutos do centro de Guaratuba. E, se partir de Fazenda Rio Grande em direção à Itapoá, é preciso passar pelos arredores de Guaratuba.

Após viver em Fazenda Rio Grande por alguns anos, no final da década 80, o Sr. Pedro adquiriu uma nova casa em Curitiba, na mesma região onde morou anos antes. Quando prestou depoimento no caso Sandra, em junho de 1989, ele forneceu dois endereços: um em Curitiba e outro em Fazenda Rio Grande. Além disso, informou que, como profissão, tinha uma fábrica de artefatos de cimento.

De acordo com alguns familiares, também em junho de 1989, o Sr. Pedro chegou a expulsar os pais do terreno onde ele morava. O irmão já havia saído ou estava para sair. Pelas informações que Ivan possui, teria sido algo rápido: um dia ele chegou, disse que havia vendido o terreno e que eles tinham que sair de lá logo. Ivan não conseguiu verificar se isso aconteceu antes ou depois do caso Sandra. Mas a informação de que teria ocorrido exatamente no mês de junho de 1989 lhe pareceu bastante confiável.

Dois anos depois, em 1991, o Sr. Pedro arranjou um emprego como fiscal de obras em uma empresa de casas pré-fabricadas de Curitiba. Ele ficou nesse trabalho até 1993. Essa companhia atendia boa parte do Paraná, especialmente na região de Curitiba e na divisa com Santa Catarina.

Por trabalhar com pré-fabricação, a empresa era conhecida por conseguir montar uma casa em cerca de três a cinco dias. E isso era perfeito para municípios menores onde as pessoas tinham o costume de comprar um terreno e ir apenas de vez em quando. Uma dessas cidades era Guaratuba.

Durante as apurações, Ivan teve a oportunidade de conversar com um homem chamado Lúcio Moura. Em 1992, durante a prefeitura de Aldo Abagge, o Dr. Lúcio era secretário de Urbanismo de Guaratuba. Ivan perguntou a ele se essa empresa onde o Sr. Pedro trabalhava realizava construções na cidade. E ele disse que não apenas ela atuava lá, como fazia uma propaganda forte no município. Era o tipo de empreendimento que atendia perfeitamente as necessidades de veranistas que pretendiam ir para lá de vez em quando em uma casa própria, sem pagar muito pela construção.

Ao saber disso, Ivan e Natalia tentaram contato com pessoas que estão na Secretaria de Urbanismo hoje. Eles queriam checar se havia alguma documentação da época que mostrasse quais foram as casas construídas pela empresa em 1992. Ninguém conseguiu localizar nada. Isso não significa que não exista – pode só ser que informações estejam perdidas em alguma caixa no arquivo morto da prefeitura. Pode ser também que tenham sido destruídas. Não há como saber.

Ivan chegou a entrar em contato com a empresa em questão e caiu no mesmo problema – registros antigos demais, nada mais deve existir. Ele e Natalia tentaram descobrir se existia alguma nota fiscal emitida por essa empresa nos arquivos da Prefeitura de Curitiba, também sem sucesso. Como sempre, tudo muito antigo.

Mas uma pessoa antiga dessa empresa confirmou o mesmo que o antigo secretário de Urbanismo de Guaratuba: no início da década de 90, eles fizeram muitas construções por lá. O ponto aqui é: é provável que o Sr. Pedro, enquanto trabalhava para essa empresa, tenha ido para Guaratuba no ano de 1992 para fiscalizar alguma obra. Pode ter feito um bate-e-volta, ido e voltado no mesmo dia para Curitiba. Pode ser que tenha ficado lá por alguns dias, acompanhando toda a construção. Não há como saber.

E Ivan deixa bem claro que, apesar de existir a chance de ele ter estado lá, não encontrou nenhuma prova. Nada. Ele não consegue colocar Pedro em Guaratuba em fevereiro e abril de 1992.

Nessas horas, Ivan começa a ficar preocupado com a qualidade do seu trabalho. Investigando esses casos por tantos anos, ele já cansou de ver os perigos existentes quando se olha muito para um potencial suspeito. Tudo começa a parecer estranho. Ele corre o risco de ficar enviesado demais. Se ele partir do suspeito para solucionar um caso, passa a achar indícios em todos os lados. É por isso que reforça, mais uma vez, que tentou por meses encontrar qualquer prova e não encontrou.

E mesmo que encontrasse, Ivan sabe que isso não seria o suficiente. A bem da verdade é que esses casos só serão solucionados se um dia encontrarem provas irrefutáveis. As mãos das crianças, pedaços de roupas, anotações, um diário secreto, fotografias, vídeos, qualquer coisa. Nada disso deve existir mais, se é que algum dia existiu. Criminalmente, não existe nada contra o Sr. Pedro. E, até o último segundo da produção desse podcast, Ivan tenta se manter afastado, isento, entendendo que ele pode ser só mais uma vítima de uma suspeita infundada. Mais uma nessa longa lista.

Só que as coisas que soam esquisitas parecem se acumular. Especialmente quando se olha para o círculo familiar mais próximo. Assim que o Sr. Pedro apareceu em investigações, Ivan e Natalia localizaram a viúva dele – que, obviamente, não terá o nome revelado aqui.

Um dia, Natalia foi até a casa dela para tentar um contato. A partir do momento que a jornalista começou a explicar o motivo da visita, a viúva se espantou. Ela nunca tinha ouvido falar sobre o falecido marido ter sido investigado pelo assassinato de uma menina em Fazenda Rio Grande, em 1989. Mas, ao ser informada sobre isso, a viúva falou o seguinte: “eu não duvido”.

Na conversa com a Natalia, a viúva passou a relatar que Pedro não era um bom marido para ela. Ficou óbvio que era um casamento com muitos problemas. A viúva dizia que era dependente dele, tanto psicológica como financeiramente. Disse que apanhava do marido. Que ele bebia muito, passava dias fora de casa sem dar explicação. Que ele tinha uma vida secreta. Que não tinham relações sexuais. Que, em todas as casas onde moraram, sempre tinha um quarto que ele não deixava ninguém entrar, onde havia pastas e documentos.

Ela disse que, após a morte de Pedro, chegou a descobrir que ele teve uma arma. Descobriu isso por conta de uma nota fiscal, segundo ela. Ela também falou que eles se mudaram inúmeras vezes. Mas não moravam de aluguel, eram casas próprias. Ela não entendia o motivo de tantas mudanças.

Aqui, é importante dizer que é bem evidente que Natalia estava ouvindo uma mulher que não tinha uma lembrança boa do falecido marido. Logo, fica difícil ter certeza se ela está falando de coisas que realmente se lembra ou se está sendo guiada pela emoção. Ivan não quer desmerecer o relato dela, porém, tratam-se de crimes muito violentos sem provas definitivas. Por isso, todo cuidado é pouco. O fato de ele ser um marido ruim não significa que era um assassino de crianças.

Sobre os abusos, a viúva também falou que, em uma ocasião, apanhou tanto que o filho interveio e ameaçou o pai. Disse que ele nunca mais deveria encostar o dedo nela, pois senão eles teriam problemas. Já sobre o caso Sandra em si, ela comentou que nunca havia ouvido falar nada, que o marido nunca lhe contou nada. Mas ela narrou que, certa vez, Pedro chegou em casa dizendo que havia ajudado uma jovem que tinha sido estuprada e abandonada na BR-116. De acordo com a viúva, ele afirmava isso como se estivesse se vangloriando, do tipo: “olha como eu sou um cara legal”. No entanto, ela não sabia de mais detalhes.

Se for verdadeira, essa história chama a atenção. Afinal, Sandra morava na BR-116. Ao falar da infância do falecido marido, a viúva mencionou que ele veio do interior. E que, quando jovem, tinha o costume de descarnar animais, mas que não fazia isso desde que se mudou para Curitiba – ou seja, desde a década de 60. Ela também afirmou que Pedro ia com frequência para Guaratuba na época em que trabalhou para aquela empresa de casas pré-fabricadas. Mas ela falou para a Natalia que ele fazia algo envolvendo pallets de madeira, o que, conforme foi apurado, não é verdade. Ele era fiscal de obras.

Por fim, a viúva também disse que lembrava do marido ter tido um Fusca azul. Mas, curiosamente, ela dizia que o veículo seria da época em que o seu primeiro filho ainda era bebê. O estranho disso é que o filho havia nascido na década de 70, e o caso Sandra ocorreu no final da década de 80. As datas não estavam batendo. Nesse primeiro contato com Natalia, a viúva foi muito atenciosa. Conversaram por quase uma hora no portão da casa. Trocaram telefones e combinaram de se falar novamente. Ela disse que precisava conversar com os filhos antes.

A partir daí, Ivan também entrou em contato com eles, especialmente com a filha. A viúva nunca conversou com ele. Ainda assim, Ivan chegou a entregar pessoalmente para eles uma pasta com alguns documentos do inquérito de Sandra, para que entendessem do que se tratava. Ele fez isso porque já fazia meses desde o primeiro contato com a Natalia, e ainda não havia conseguido combinar uma data para conversar.

No começo, mãe e filha respondiam, especialmente à Natalia. A viúva falou que conversaram com o filho, e ele chegou a duvidar da história. “Mas o pai não tinha Fusca azul nessa época”, ele teria dito. Ivan recomendou que elas entrassem em contato com algum advogado, para que tivessem alguma orientação. E se colocou à disposição para tirar qualquer dúvida que surgisse.

Até que um dia, de repente, elas pararam de responder de vez. Foram meses de mensagens não respondidas e telefonemas não atendidos. Ivan afirma que poucas vezes na vida se sentiu tão mal, mas era necessário insistir. Era importante que eles falassem.

Certa noite, no desespero, Natalia foi até as casas da filha e do filho. O filho não estava, então ela foi ao endereço da filha. O porteiro disse que ela não estava. No dia seguinte, Ivan e Natalia receberam uma mensagem. Era de uma advogada, representando a viúva, a filha e o filho. A advogada pedia para que eles parassem as tentativas de contato.

Ivan agradeceu a mensagem e explicou toda a situação. Pediu para que eles reconsiderassem falar, que concedessem uma entrevista; e que inclusive aceitaria assinar um contrato estipulando alguns termos para suas seguranças. Termos como não revelar nenhuma informação que pudesse levar à identificação do Sr. Pedro e de seus familiares, e também de que suas vozes seriam modificadas quando a conversa fosse ao ar. A advogada disse que ia conversar com eles sobre isso.

Pouco tempo depois, ela retornou dizendo que a família estava disposta a ajudar, a esclarecer qualquer dúvida, especialmente pensando nas famílias das vítimas. Mas eles tinham muito medo de serem expostos. Por isso, foi reforçado que seriam dadas todas as garantias que quisessem. Foram semanas de negociação, até que chegaram a um acordo.

Combinaram um dia e horário em que todos pudessem conversar e fizeram uma reunião online. Neste encontro, a viúva preferiu não participar. Ela tem problemas sérios de saúde e não queria se indispor. De qualquer forma, antes da conversa, Ivan enviou uma longa lista de perguntas para que eles pudessem repassar com ela antes da gravação. E foi assim que pode conversar com os filhos do Sr. Pedro.

Por motivos que já foram explicados, as vozes dos entrevistados estarão alteradas. Todos os nomes citados serão ocultados.

As duas advogadas deles estiveram na conversa. Elas não falaram em nenhum momento da reunião, mas estavam lá para dar maior segurança para eles e tirar qualquer dúvida eventual – o que acabou não sendo necessário.

Para que não haja nenhuma falsa impressão, Ivan quer deixar claro que tanto o filho quanto a filha são pessoas de classe média, trabalhadoras. Não são ricos, nada disso. Têm suas próprias famílias, e esse é mais um motivo para preservá-los.

Durante o texto, os nomes dos dois entrevistados foram substituídos por “Filho” e “Filha”, assim como o da esposa do Sr. Pedro está como “Viúva”. 

Ivan: Eu acho que gostaria de pelo menos começar essa conversa aqui tentando tirar dúvidas de vocês, antes de entrar nas minhas. Porque eu imagino que vocês têm muitas dúvidas, devem estar perdidos, sei lá. Então, qualquer dúvida que vocês tiverem, que eu puder responder, eu gostaria de começar por aí, já para a gente poder ter uma conversa tranquila. Então, [Filha], [Filho], se quiserem falar qualquer coisa…

Filho: [Filha], tem alguma dúvida?

Filha: Eu acho que… Na verdade, até tenho, mas não sei nem como falar, assim, porque é uma situação bem complicada, né? Como o próprio Ivan falou, realmente nos pegou de muita surpresa. Então, acho que a gente só realmente quer responder aqui o que a gente sabe e, enfim, acabar logo com tudo isso.

Ivan: Sim. Eu também quero deixar claro que eu acho que o mais importante dessa conversa é que eu possa tirar qualquer dúvida que vocês tiverem, para justamente eliminar qualquer suspeita em cima do pai de vocês, tá? Porque, Deus me livre… A gente acabou de passar por uma revisão criminal, de pessoas que foram acusadas injustamente, 30 anos em cima disso, famílias que foram destruídas. Eu não quero fazer isso com ninguém, tá? Então, obviamente, tudo o que eu quero é poder cortar o nome dele aqui de qualquer suspeita que a gente tenha, certo? Tem coisas… Eu preciso ser muito franco com vocês. Tem coisas que me fazem olhar para o pai de vocês como um suspeito muito forte e tem coisas que eu digo: “não, espera aí, não está encaixando”. E eu vou ter o maior prazer em explicar tudo para vocês nessas questões, tá? Eu sei que é difícil, tá? Você pode fazer as perguntas que quiser, assim… Com as palavras que você achar melhor. Se quiser me xingar também, tranquilo, tá? Faça do jeito que você achar melhor, tá?

Filho: Eu só gostaria de saber… Tem alguém… Tem mais pessoas envolvidas nesse caso da Sandra?

Ivan: Tá. Então, vamos lá. O caso da Sandra teve três suspeitos, tá?

Nesse momento, Ivan explicou para eles tudo sobre os outros suspeitos, o João Antônio e o Edson, que mencionou no episódio 4. E também citou as coisas que chamam a atenção sobre o pai deles, além de relatar como era precário o cenário todo em torno do caso Sandra, especialmente na questão da sexualização das meninas.

Ivan: O que torna o [nome ocultado] um suspeito forte nesse caso são duas coisas: primeiro… Isso eu estou falando ao meu ver e conversando com delegados da época, investigadores da época também. Primeiro, o fato do… Quem fez isso provavelmente tinha carro. E não apenas tinha carro, foi encontrado sangue no Fusca do seu [nome ocultado], que foi inclusive… Ele admitia que era dele, em depoimento e tal. Outra coisa é que o corpo da Sandra aparece exatamente quando ele está na cidade, quando ele está ali naquela região. Então, tem uma história de… A Sandra desapareceu no dia 4 de junho, num domingo. O corpo dela só vai aparecer numa segunda-feira, dia 12 de junho. E é bem o momento em que ele falou que ia levar a tia da Sandra para o hospital de manhã cedo. Então, de manhã cedo, ele chega lá na cidade para levar a tia da Sandra para o hospital, e o corpo da Sandra aparece. Daí tem essa questão também do que ele fala em depoimento sobre a prima da Sandra, a Márcia, que vocês devem ter lido, que eu passei para vocês, tudo… Tirar tudo para vocês, de dúvidas. Mas é isso de suspeito. Significa que é uma dessas três pessoas? Não. Pode ser alguém que nunca apareceu. Pode ser alguém que a gente não tenha ideia. Isso aqui é importante, tá? Esses três casos, o Leandro, o Evandro e a Sandra… A Sandra é a peça nova. Porque, aparentemente, foi a mesma pessoa que matou os três, pelo modus operandi, pela assinatura. Então, tem várias questões ali que nos levam a crer que foi a mesma pessoa. Tinha um suspeito em Guaratuba, por exemplo, que era o principal suspeito do caso Evandro antes das prisões daquelas pessoas e tal. Esse cara morava em Araucária em 89, na época da Sandra. Araucária é ali do lado de Fazenda Rio Grande. Então, sabe, também não limita… Só que tem uma questão: esse cara não tinha carro. Então, isso tira um pouco também da nossa suspeita em cima dele. Mas é isso. Eu estou falando isso para vocês, assim, para dizer que isso é o que a gente sabe. E tem coisas que se perderam no tempo e que nunca vamos saber.

Filho: Primeira coisa, foi comprovado esse sangue, de quem era?

Ivan: Não. Não tinha exame de DNA na época. A mancha de sangue era muito pequena, e o que existia na época era fazer exame de RH para ver se era… Tipagem de sangue, na verdade. Se a vítima, vamos dizer, é B positivo, deu B positivo e tal… Não deu para fazer isso. Simplesmente é uma mancha de sangue no carro, é isso.

Filho: Então isso não quer dizer nada.

Ivan: Não quer dizer nada. Sim.

Filho: Pode descartar isso fora, então?

Ivan: Aham.

Filho: Certo?

Ivan: Certo.

Filho: Ok. Segunda coisa, carro. Por mais que você não tenha, você consegue emprestar de alguém, você consegue dar um jeito de arrumar um carro. Então, quem não tinha carro ou tinha carro também não quer dizer nada.

Ivan: Aham.

Filho: Porque carro você não tem agora e, em dez minutos, empresta de alguém, você tem um carro. Esse é o meu ponto de vista.

Ivan: Aham.

Filho: Enfim, são algumas coisas aí que eu queria colocar. Pode continuar.

Ivan: Não, da dúvida que eu tinha para você… Da dúvida que você levantou, [Filho], é isso, tá? Eu não sei se tem mais alguma outra questão que você gostaria de falar…

Filho: Não, é que eu estou tentando entender algumas coisas porque a gente era muito pequeno na época. Também não tem tanta informação assim, a gente não sabe de muita coisa. Mas eu não… Porque eu sei o pai que eu tinha, entendeu? Por isso que eu digo… Mas pode continuar, Ivan.

Ivan: Então vamos lá, gente. Eu vou começar com algumas perguntas aqui, então, assim, do que eu posso… Do que pode me ajudar a esclarecer outras questões. E daí qualquer dúvida que vocês tiverem também de porquê a pergunta é importante e tal, eu tenho o maior prazer em trazer mais detalhes. Tá. Então, eu queria saber primeiro quando, de que ano a que ano, vocês, mas principalmente o seu [nome ocultado] morou na década de 80 em Fazenda Rio Grande, que na época era Mandirituba. Vocês sabem me explicar mais ou menos essa linha do tempo?

Filha: Não, eu não… A gente até conversou sobre isso, mas a gente não lembra exatamente esse período exato do ano, sabe? A gente não se recorda.

Ivan: Tá. [Filho], você, que era mais velho, não lembra também, né?

Filho: Não, porque… Vamos supor que fosse o quê? Em 86, eu tinha quanto…? Eu tinha quatro, oito anos, nove anos. Era muito pequeno.

Filha: Eu tinha dois anos, né?

Filho: Eu só queria brincar, nessa época, eu não sabia muito… Não queria saber onde meu pai estava, a minha mãe… Sempre estavam junto com a gente, então não… Não lembrava dessas coisas…

Ivan: Você lembra dessa época, de Fazenda Rio Grande? Você, [Filho], em específico? Lembra de morar lá?

Filho: Eu lembro de morar lá, mas eu lembro de pouca coisa.

Ivan: Aham. Tá. Moravam só vocês quatro?

Filho: É. Eu, a mãe, a [Filha] e o pai, né?

Ivan: Aham. Vocês não moravam, por exemplo, com os seus avós também? Ou tios moravam perto?

Filho: É. O pai tinha… Teve um mercado lá numa época, né? E o meu vô e a minha vó moravam na casa do fundo, num outro terreno do lado. Moraram durante um pouco período e depois vieram embora para Curitiba de volta. Isso eu me recordo, assim, vagamente.

Ivan: Então, vamos lá. Qual a distância dos avós de vocês, desse terreno de fundo? Era no terreno que vocês moravam, e eles moravam nos fundos? Ou não, eram os irmãos…

Filho: Um terreno do lado do outro.

Ivan: Um terreno do lado do outro. Então moravam vocês num terreno, no terreno do lado eram os tios e os avós. Era isso?

Filho: É. Meu tio, minha avó e o meu avô.

Ivan: Qual é o tio que morava lá?

Filho: O irmão do meu pai.

Ivan: Tá. Você lembra, mais ou menos, qual foi a época que… Como foi essa história dos seus avós voltarem para Curitiba?

Filho: Não, não.

Filha: É. Até conversei com a mãe também, ela não… Ela comentou que… Acho que eles talvez voltaram para… Vieram para Curitiba para cuidar da saúde, alguma coisa assim, mas… É isso que ela lembra.

Ivan: Nunca houve uma história de… Por exemplo, que ele expulsou os avós falando que precisava… Que ele expulsou os pais porque precisava do terreno de volta porque tinha acabado de vender, alguma coisa assim?

Filha: Não sabemos de nada.

Filho: Que eu lembre, não.

Ivan: Tá. Eu vou falar para vocês uma informação que chegou a mim, e eu não posso divulgar a fonte também. Mas o que eu recebi, e eu queria ver se vocês sabem de alguma coisa disso, é que um dos irmãos do seu [nome ocultado] se casou exatamente nessa época, maio, junho de 89. E que foi exatamente nessa época que o [nome ocultado] teria expulsado os próprios pais do terreno, falando que eles tinham que sair de lá logo porque tinha vendido o terreno, alguma história assim. E que daí, assim, os avós tiveram que ir embora e conseguiram outro lugar em Curitiba de favor, outro terreno da família também, para morar. Essa história, vocês nunca ouviram?

Filho: Não lembro de ter ouvido isso não.

Filha: Não.

Essa história de que o Sr. Pedro teria expulsado os pais do terreno teria acontecido bem na época do caso Sandrinha. Ivan ouviu isso de um familiar do suspeito, mas os filhos – e aparentemente a viúva – não sabiam de nenhum detalhe do ocorrido. 

Falando de histórias da família, Ivan recebeu a informação de que, aparentemente, em uma época que não dá para precisar, o Sr. Pedro passava por Fazenda Rio Grande com a esposa. E, ao transitar pela região conhecida como Parque Verde, teria dito para ela algo do tipo: “eu tenho uma prima que mora por aqui”. 

Só que a fonte dessa história garantiu que não havia nenhum familiar por lá. Ou melhor, que nunca ouviu falar de nenhum parente morando no Parque Verde, em Fazenda Rio Grande. E essa afirmação era esquisita vindo especialmente do Sr. Pedro, já que, de acordo com o que várias pessoas relataram, ele não era do tipo que tinha aproximação com familiares. Isso chamou a atenção de Ivan porque o Parque Verde era a região onde Sandra morava com a mãe e as irmãs.

Ivan: Vocês já ouviram alguma história, ou principalmente a mãe de vocês, sobre ele ter uma prima que morava ali na região do Parque Verde?

Filho: Não. Assim, nunca conheci ninguém… Eu sei que o pai tinha muito parente perdido por aí, mas eu não me recordo.

Ivan: Tá. Você chegou a perguntar isso para a sua mãe também, [Filha]? Se de repente…

Filha: Ela… É… Aí não sei se é Parque Verde ou não. Sei que ele comentava que tinha uma prima ali na região da… Acho que é da BR, alguma coisa assim, mas nunca chegou a conhecer. Só quando passava por ali, ele falava: “ah, eu tenho uma parente aqui”. Mas muito vago, assim. Mas nunca deu muito detalhe, e a minha mãe nunca conheceu também, e muito menos a gente.

Ivan: E você tem ideia de que época ele falava que tinha essa prima lá?

Filha: Não, não sei a época. Não sei.

Ivan: Se foi recente, se foi muito tempo atrás, não…?

Filha: Eu acho que não faz muito tempo atrás, pelo o que a minha mãe falou. Não faz muito tempo atrás.

Ivan: Tá ok. Por que eu pergunto isso? Porque a família da Sandra morava exatamente ali pertinho do Parque Verde, só que do outro lado da BR, tá? Então, assim, essa história de que teria uma prima que mora lá me chamou a atenção, que talvez pudesse ser uma referência à mãe da Sandra, a dona Juvelina. Talvez tivessem alguma relação, eu não sei. Então… Eu acho que daí eu já queria até perguntar isso para vocês, tá? Porque o [Filho] falou justamente: “olha, eu conheço o pai que eu tinha”. Tudo bem. Em algum momento da vida ele falou sobre esse caso para vocês?

Filho: Não.

Filha: Não. Nunca.

Ivan: Como… Eu preciso saber desse lado de vocês, tá? Eu queria saber muito do [Filho], principalmente. Como isso caiu para você, [Filho]? Quando você leu… Não sei se você leu os documentos que eu passei, tudo…

Filho: Eu li. Eu li. Tenho certeza de que não tem nada a ver com o meu pai. Eu acho que deve estar acontecendo alguma coisa errada aí, uma informação… Porque é muito fácil as pessoas falarem, né? Provar que é difícil. Porque, que nem eu te falei, eu conheço o pai que eu tenho. Hoje eu ainda estava me lembrando que eu tenho que fazer uma coisa que eu aprendi com ele… Entendeu? Preciso mexer num negócio aqui na minha casa, que eu aprendi com ele. Então, o meu pai não… Não tem nada a ver com isso.

Ivan: Por que… Conhecendo o pai de vocês, por que ele não falou nada disso para nenhum de vocês? Eu entendo que vocês eram crianças, mas, por exemplo, para a mãe de vocês.

Filho: Mas por que você acha que ele tinha que falar para a gente? Se é uma coisa que talvez não aconteceu?

Ivan: Tá, eu não sei. Eu vou falar do meu lado. Se eu sou chamado para dar um depoimento porque querem saber o que eu fiz em relação a um caso, eu contaria para a minha esposa, entende? Eu contaria para o meu filho, se ele fosse mais velho. Eu. Eu gostaria de saber… Eu não sei. Por isso que eu gostaria de entender se de repente ele era um cara mais reservado, se ele não gostava de falar dos outros. Eu gostaria de entender melhor isso. Sem julgamento. É só porque realmente eu preciso entender… Para a gente poder entender como ele era.

Filho: O meu pai era quietão, era na dele. Não ficava falando muita coisa mesmo, para a gente. Era sempre quietão.

Filha: Ele era mais durão assim, né?

Filho: É. Mais reservadão, entendeu? É o pessoal… O homem de antigamente era assim, não é que nem hoje que o pessoal conversa, fala e… Entendeu? Era mais quietão, era o jeitão dele. Conversava pouco com a gente, era o jeitão dele.

Ivan: Mas era comum ele falar coisas para você… Não falar coisas e depois vocês descobrirem por terceiros, coisas importantes? Ou não?

Filho: Não. Na verdade, foi uma coisa inédita que aconteceu, isso aí, porque… Uma coisa fora do comum isso aí que aconteceu. Nós estamos tentando entender, porque não tem nada…

Ivan: Você quer que eu explique como ele chega a ser um suspeito? Não sei se vocês conseguiram entender isso pelo inquérito.

Filho: Pelo que a gente leu lá, parece que ele foi na época lá… Sei lá…

Filha: Estava indo na casa dessa senhora, dessa mulher, enfim. É isso que a gente não entende ainda, né?

Ivan: Tá, eu vou explicar para vocês, porque até eu gostaria também que você… Foi uma das perguntas que eu fiz ali para vocês no documento, se essa é uma atitude que era normal do pai de vocês. Então, tudo começa com o depoimento de um…

[…]

Aqui, Ivan contou toda a história que já explicou neste episódio. Do vizinho Vitor, que viu as meninas em um Fusca azul. Que o Sr. Pedro dava presentes para as meninas. Da ida ao hospital. Da proposta que ele teria feito para a Márcia Prima, que ele confirmava no primeiro depoimento. De que o Sr. Pedro admitiu para a polícia que o Fusca azul era realmente dele, e que nesse carro foi achada uma mancha de sangue humano. Do álibi que ele deu sete anos depois, em 1996, falando que naquele domingo estava visitando um tio da esposa em Garuva. E que, nesse segundo depoimento, ele negou ter feito qualquer proposta para a Márcia Prima.

Ivan: Então, assim… De novo, isso não significa nada. Todas as pessoas são inocentes, obviamente. O princípio da inocência é o que rege aqui tudo. Mas isso é uma coisa que chama a atenção de qualquer investigador. O cara, sete anos depois, estar dando um álibi pra uma coisa de sete anos antes com tantos detalhes. Por que não deu em 89? Então, é assim que ele entra no caso, tá? É desse jeito. Relatos de vizinhos falando de um Fusca azul, o Fusca azul sendo olhado, e ele admitindo que realmente se aproximou da dona Juvelina, da Sandra, e tentou levar a Márcia para sair com ele. Isso é o depoimento dele. E depois esse depoimento de 96… Então, tem coisas esquisitas. Então, assim, primeira coisa que eu vou perguntar para vocês nesse sentido: essa história toda que eu falei faz algum sentido, do que vocês conhecem dele?

Filho: Não.

Filha: Não, não faz nenhum sentido.

Filho: E, outra, esse Fusca azul era do meu pai na época? Você investigou isso, né?

Ivan: Eu investiguei. No depoimento, ele diz que é, e o carro em si não está no nome dele. Estava no nome de um cara que já era falecido em 89. Mas, no depoimento, ele fala que é.

Filho: É? Que estranho, porque eu também não me lembro desse carro. E se o carro não estava no nome dele… Então, também não entendi isso aí… Não me recordo desse carro.

O motivo de chegarem ao Sr. Pedro na investigação foi o Fusca azul. Em depoimento, ele falava que o carro era dele. O Fusca foi periciado, ocasião em que a mancha de sangue humano acabou sendo encontrada. Só que, após Ivan saber da discussão na família sobre o Sr. Pedro possuir ou não um Fusca azul nessa época, em 1989, ele conseguiu puxar a ficha do veículo – que já não está mais em circulação. E lá consta que, anos antes, esse carro havia sido comprado por outra pessoa de Mandirituba.

Em 1989, essa pessoa já havia falecido. Em outras palavras: o Sr. Pedro ia para a casa de Sandra com um carro que não estava no seu nome, mas sim no nome de alguém já morto. Mas, em depoimento, ele admitiu que o veículo era dele. E a família nunca soube da existência desse Fusca azul.

Filha: E outra, esse sangue que encontraram, chegaram a perguntar para ele do que era esse sangue?

Ivan: Então, perguntaram para ele em 96, só no segundo depoimento. E, nesse segundo depoimento, ele diz que não sabe de quem era, mas que podia ser até dele.

Filho: Isso eu acredito que sim. Porque o meu pai, como sempre construiu, sempre estava mexendo com as coisas, o meu pai sempre vivia ralado…

Filha: Machucado, é.

Filho: É. Sempre as mãos dele… Era mão de pessoa que trabalhava, sabe? Então, ele sempre tinha um raladinho, sempre tinha um machucado no pé, nas mãos. O meu pai quase não usava sapato, sempre chinelo. Então, assim…

Filha: Sempre trabalhando…

Filho: É, sempre trabalhando. Essa é a visão que eu tenho dele, na verdade.

Ivan: Aham. Então, vocês conheceram o dono desse Fusca, que eu citei o nome para vocês ali?

Filho: Não faço ideia de quem é.

Filha: Não.

Ivan: O tal do [nome ocultado]? Nunca ouviram falar?

Filho: Não faço ideia de quem é.

Ivan: Pelo o que eu pude levantar, era um cara que era bem conhecido. É uma família bem conhecida em Fazenda Rio Grande, tem até nome de rua com eles, teve vereador… Morreu ali na década de 80. Em 89 já era falecido. Mas… E os filhos dele, infelizmente, morreram também. Não pôde me explicar como foi essa história. O que eu acredito que aconteceu, para ele falar que o carro era dele, em depoimento, eu imagino que ele deve ter feito negócio, que comprou esse carro e não colocou no nome dele, assim como casa também, que ele pode ter comprado em 88, 89, e só anos depois colocam no nome dele. Mas, assim, isso era um costume dele? Comprar um carro e demorar para colocar no nome dele? Alguma coisa assim ou não?

Filho: Mas aí é que tá, eu não me recordo desse carro. O que eu me recordo na época, que o pai tinha em Fazenda Rio Grande, o pai tinha um Fiat 147. E ele chegou a ter uma Kombi branca na época lá. Mas, Fusca, eu não me lembro.

Ivan: Em 89, você tinha quantos anos, [Filho]?

Filho: Eu tinha… Deixa eu ver… 84… Sei lá, devia ter uns 12 anos, por aí.

Ivan: Tá. Ou seja, talvez lembrasse de um Fusca azul que tivesse…

Filho: Sim, exato.

Ivan: Perguntaram para a sua mãe se ela lembra de um Fusca azul, alguma coisa assim?

Filha: Ela não lembra. Ela não lembra. Ele já teve um Fusca, mas esse Fusca até era… Esse Fusca, até eu lembro… Mas eu era um pouquinho já maior, já estava em Curitiba há um bom tempo, então eu ainda até lembro dele, mas não desse aí, enfim… O meu pai teve bastante carro, né?

Ivan: É, 89…

Filho: Foi até a primeira coisa que eu achei estranho na época, de falar desse Fusca azul, porque eu não me lembrava dele. Falei: “nossa, mas meu pai teve Fusca azul?”. Não me lembrava desse carro.

Ivan: [Filho], então me ajuda a entender. Por que ele falou que o Fusca era dele nesse depoimento? O que você acha que aconteceu?

Filho: Poxa, eu não sei te dizer por quê… Eu não me recordo desse carro. Esse carro, eu não me lembro de ele ter tido. Só não consigo te ajudar nisso porque… Não lembro mesmo. É…

Ivan: Eu vou jogar aqui uma coisa que eu tenho que falar, e daí vocês me falam o quão absurdo é o que eu estou falando ou não. Mas existe alguma chance de ele ter escondido alguma coisa de vocês? Por exemplo, um carro?

Filho: Mas não tem… Onde ele ia esconder um carro da gente? A gente só morava lá na época. Não tem como.

Ivan: Mas vocês acompanhavam… Ele ficava, por exemplo, tempo fora de casa? Vocês sabiam tudo o que ele estava fazendo o tempo inteiro? Eu entendo, vocês são filhos, eu sei que é difícil falar isso. Mas eu preciso fazer as perguntas difíceis, tá? Para que vocês me digam: “olha…”. Eu sei que vocês são filhos, eu sei que tudo fica complicado a partir dali, e eu não quero ser indelicado. Desculpa até se eu estou sendo. Mas eu sei que o meu pai tem uma vida que eu não conheço. Eu amo o meu pai. Acho que seria impossível ele cometer qualquer crime. Eu ficaria tão em choque quanto vocês. Mas, ao mesmo tempo, eu diria assim: tá, mas eu não acompanho o meu pai o tempo inteiro, ainda mais quando eu era criança, então eu não sei o que pode ter acontecido. Pode ser que o meu pai tenha tido uma vida que eu não conheço. Então, hábitos que a gente está olhando… Por exemplo, fazia viagens de ficar muito tempo fora de casa, saía de casa sem explicar para onde estava indo, isso acontecia na vida de vocês?

Filho: Eu não me recordo dessas coisas.

Filha: Pelo que a minha mãe falava…

Filho: Eu sei que ele trabalhava bastante…

Filha: É, ele trabalhava bastante. Ele não ficava, assim, tantos dias fora de casa não. E ela geralmente sabia onde ele estava.

E claro, nessa hora, Ivan e Natalia se espantaram. Afinal, a conversa que a jornalista teve com a viúva, naquele primeiro encontro, foi muito chocante. Ela havia dito que Pedro passava dias fora de casa sem dar nenhuma explicação, e que não se intrometia muito porque tinha medo. Mas a história que os filhos contavam era outra.

Ivan: Tá. Vocês devem saber que a Natalia falou com a [viúva] um tempo atrás, né? Foi o primeiro contato que a gente teve. Natalia, você quer falar um resumo, assim, do que a [viúva] falou? É que, assim, eu não quero transformar isso aqui num ‘casos de família’. As coisas que vocês estão nos falando não estão batendo com algumas coisas que a [viúva] falou. Então, acho que é importante vocês saberem e poderem passar para a gente…

Natalia: Até seria bom conversar com ela mesmo porque eu entendo que ela também já tem uma certa idade e talvez possa ter se confundido. Porque eu cheguei na casa dela e eu bati palma…

Filha: Quase matou ela do coração, na verdade…

Natalia: Desculpa, inclusive…

Filha: Podia ter dado até um troço ali naquela hora, né?

Natalia: É… E ela foi supersimpática, até agradeço. Depois, se puder passar para ela, porque ela foi bem solícita, assim. Na hora que eu bati palma, eu comecei a falar pelo portão mesmo, ela de dentro de casa. Daí quando eu falei do Fusca, ela falou que… “Não, então espera que eu vou abrir o portão”. Que daí ela falou que realmente batia a história do Fusca, que ele tinha um Fusca azul. Que ela não tinha a mínima ideia da história, nem da situação do sangue, nem de nada disso. Daí eu apresentei a situação para ela. Aí ela acabou falando assim… Até peço desculpa, assim, se ela acabou não falando para vocês dessa forma. Mas para mim ela… Levou um susto tão grande, que para mim ela falou assim: “eu não duvido. Porque ele nunca foi um homem de caráter, porque ele tinha uma vida oculta. Ele tinha vários endereços. Ele passava a maior parte do tempo fora de casa”. Ela falou a situação do mercado ali que vocês tinham, e que ela que tocava, na verdade, porque ele mal aparecia. Que ele tinha uma vida promíscua, que ele bebia bastante, que ela tem praticamente certeza de que ele traía ela porque eles não tinham mais relações. Então, assim, nessa primeira conversa, ela falou bastante. E eu saí dali assustada porque eu esperava ou “não, eu não vou falar nada”, ou “não, o meu marido é inocente, imagina, ele jamais faria isso”. E eu saí dali assim… É estranho, porque a gente tinha a história, a versão que está no inquérito, e daí eu fui ouvir a esposa dele e ela me falou isso. Então, assim, foi isso que, na verdade, fez a gente querer saber mesmo se essa é a verdade, até que ponto vocês sabiam da história. Se vocês sabiam de uma parte ou se ele realmente escondia alguma coisa. Outra coisa que ela apontou foi que em cada endereço que eles tiveram… Ela falou que se mudavam bastante, ficavam pouco em cada casa, por exemplo. E que, nessas casas, geralmente tinha um espaço que só ele poderia entrar, que tinha pastas e alguma coisa… Tanto que depois que ele faleceu, você, a [Filha] e ela foram dar uma olhada nesses papéis, o que ele poderia ter ali, e daí acabaram encontrando até um registro de arma…

Filha: Registro de arma?

Natalia: É.

Ivan: Nota fiscal de uma arma. Foi o que ela falou.

Natalia: E é isso, assim. O resumo, basicamente, era esse. E daí tudo o que a gente perguntava, assim, sobre representante comercial, que ela diz que ele foi, ou quando trabalhou na [nome da empresa ocultado]… Até a gente gostaria de perguntar depois sobre essas questões de trabalho. Enfim, ela falou que não sabia muito onde ele estava, o que ele fazia. Mas, por exemplo, quando a gente perguntou sobre Garuva, ele ia muito para Garuva. Perguntava sobre Guaratuba… Ah, ele ia para Guaratuba também, assim. Pode ser uma coincidência? Com certeza. Pode ser que às vezes ele só foi um pouco ruim para ela e não para o resto do mundo? Também. Então, por isso que a gente até pede desculpa e, quando eu falei com ela, eu também falei: “desculpa te dar esse susto, não era a intenção”. Mas a gente jamais imaginou que alguém não pudesse contar uma coisa tão grave para a própria família. É como o Ivan falou, assim, eu acho que cada um tem um jeito de tratar certos assuntos, mas é algo que geralmente você expressa para alguém que você ama, que você tem confiança, né? E a gente estava esperando outra resposta dela, mas, enfim…

Filho: Pois é. A mãe, na verdade, não conhece muito carro, né?

Natalia: É, mas endereço sim, né? Assim…

Filho: Endereço do quê?

Natalia: Ela sabe onde morou durante toda a vida.

Filho: Não, isso sim, mas já vamos chegar lá. Sobre o carro, veja bem, o carro… Ela não sabe o que é um Fusca, Brasília, não entende muito de carro. Não sei. Que nem eu falei, eu não me recordo desse carro. E olha que eu gosto de carro. Conheço vários carros que o meu pai teve. Eu não me lembro desse Fusca.

Natalia: Que é bem característico, né? Sim…

Filho: Hã?

Natalia: Ninguém esquece um Fusca azul, assim, né? É um carro que chama a atenção…

Filho: Exato. Exatamente. Entendeu? Eu não me lembro desse carro. E eu lembro de todos os carros que o pai teve. Entendeu? E, desse carro, eu não me lembro.

Natalia: Outra questão que ela apontou até, assim, de relação a amizades, que ele não fazia amizade muito porque… Pelo que vocês falaram, que ele era um cara reservado, que ele tinha a vida dele, era mais quieto. Daí, o que levantou para nós, assim, é que ele tinha uma amizade com essa família em questão, tipo, tanto de oferecer uma carona, por exemplo. Daí a gente queria entender, na verdade, de onde pode ter surgido essa amizade, por que ele se aproximou dessa família…

Filha: Não fazemos ideia. Estamos tão surpresos quanto vocês. Não fazemos ideia.

Filho: Não tem nem como a gente saber disso.

Filha: Não tem nem como.

Natalia: Sim. Não, a gente entende.

Filha: Talvez, pela minha mãe ter falado… Que você falou aí, que você ficou surpresa da forma como ela falou, realmente, eles não tiveram um casamento muito fácil. Meu pai, como eu falei, era uma pessoa mais rígida, mais dura e tal. Mas, assim como muitos, milhares de casamentos aí afora, não foi aquele casamento de amor, amor e amor. E, realmente, ela tem um sentimento de dor, assim. Então, quando você vai falar dele, dependendo do momento que você fala, ela está ali muito dolorida, então talvez você chegou bem naquele momento e ela falou aquelas questões ali. E é isso. É o que eu posso tirar disso que você está me falando.

Ivan: Tá. Inclusive, sobre esse Fusca, ela chegou a falar que… “Ah, eu lembro que o Fusca, a gente teve quando o [Filho] era bem pequeno”. Ou seja, teria que ser muito tempo antes. Não seria em 89, então…

Filho: Exato.

Ivan: Então, isso já me… Foi isso já que me deu o alerta do tipo: eu estou achando que eles nem sabiam desse Fusca. Porque é isso, eu tenho a [viúva] falando que o Fusca… Em algum momento teve um Fusca, quando o [Filho] era bem pequeno. O [Filho] não lembra desse Fusca. O Fusca não está no nome dele, mas no depoimento ele diz que o Fusca é dele. Eu não sei o que tirar disso. Entende? Vocês acham que ele mentiu em depoimento? O que pode ter acontecido? Alguma explicação aqui para a gente…

Filho: Não tem como explicar…

Filha: Não tem como a gente dar essa explicação…

Filho: É só ele que podia explicar isso.

Filha: Pelo amor de Deus…

Ivan: Sim, ele não tem como se defender agora. Sim, exato. Eu entendo.

Filho: Entendeu? Não tem explicação isso.

Natalia: E de forma alguma a gente quer acusar…

Filho: São informações muito desencontradas que eu estou vendo, na verdade. Mas eu não consigo, sabe? Eu não consigo entender isso.

Seguindo nessa linha de que os filhos estavam contando uma história diferente da mãe, Ivan decidiu perguntar sobre a empresa onde Pedro trabalhou entre 1991 e 1993, que fazia casas pré-fabricadas.

Para a Natalia, a viúva havia dito que ele ia para Guaratuba com frequência, e que fazia algo relacionado a pallets de madeira. Mas, após o contato com a empresa, Ivan verificou que ele era na verdade fiscal de obras, e que provavelmente essa história de pallets não fazia sentido.

Ivan: O que ele fazia? “Ah, ele trabalhou para [nome da empresa ocultado] fazendo pallets de madeira em Guaratuba. Trabalhando com pallets de madeira em Guaratuba”. Sabe me explicar como era isso? O que acontecia? Se ele ia para Guaratuba…

Filho: Pelo pouco que eu me lembro dessa situação, o pai trabalhou na [nome da empresa ocultado] sim, mas ele mexia com as obras da [nome da empresa ocultado]. Eles vendiam casas…

Filha: Aquelas casas, né?

Filho: Pré-fabricadas, isso.

Filha: Isso, casas pré-fabricadas, não pallets…

Filho: Não tem nada a ver com pallet…

Filha: Acho que talvez na hora que ela falou…

Filho: Ele mexia com as obras dessas casas pré-fabricadas. Mas também não tem nada a ver com Guaratuba. Pelo que eu sei, eram casas aqui em Curitiba e região metropolitana.

Ivan: Nunca foi para outros estados, por exemplo?

Filho: Olha, eu não me lembro disso aí, de ele ter ido para outros estados. Eu sei que ele fazia… Eu não sei se ele vistoriava ou ele comandava essas obras, eu sei que ele sempre tinha que estar nessas obras, indo visitar. Não sei se levava material, é algo assim que ele fazia lá. Mas eram casas pré-fabricadas em Curitiba.

Ivan: Tá. E você… Só em Curitiba? Vocês não têm noção de outra localidade que ele tenha… Ele não viajava a trabalho para isso?

Filho: Não recordo disso. Eu lembro que ele sempre estava por aqui, vendo essas obras de casa, isso eu lembro. E eram casas, não tem nada a ver com pallet.

Ivan: Aham. Tá.

Filho: Até porque [nome da empresa ocultado] não fez pallet, eu sei que eram casas…

Ivan: É, eu sempre achei esquisito também essa parte dos pallets, assim, não encaixava. Mas uma coisa que a gente conseguiu levantar é que a [nome da empresa ocultado] de fato tinha construções em Guaratuba naquela época. Então, que faria sentido ele, por ser mestre de obras, estar acompanhando alguma construção por lá, alguma coisa assim. Mas não sei, né? Mais detalhes sobre isso… Vocês não sabem também o que ele fazia e em quais obras ele trabalhou, né?

Filho: Não, não, não. Isso era coisa profissional, né? Daí a gente não tinha acesso, não fazia ideia.

Ivan: Aham, sim. Talvez se tiver alguma sorte, de repente, por algum evento, saberia… Mas ok. Você não tinha costume de ir com ele para as obras também, [Filho]? Para ver alguma obra? Não da [nome da empresa ocultado], necessariamente. Mas alguma outra obra que ele fez? Ajudar ele, alguma coisa assim? Lá em Itaiópolis, nada?

Filho: Não, não.

Ivan: Itapoá, perdão. Itapoá.

Filho: Não. A única coisa que eu recordo, na época, é que ele usava uma Fiorino branca, a picape da [nome da empresa ocultado], que era o que ele usava para carregar ferramentas, para ir visitar as obras. Então, é isso que eu lembro. Que até ele vinha para casa com essa caminhonetinha e ia trabalhar com ela só…

Ivan: Aham, numa Fiorino, né?

Filho: Uma Fiorino branca, é. Picape.

Ivan: Que era da própria [nome da empresa ocultado]?

Filho: Da [nome da empresa ocultado].

Ivan: Ele usava carro do trabalho, então?

Filho: É. Isso eu lembro porque eu até ficava ouvindo rádio dentro dela, quando ele guardava aqui na casa, né? É o que eu me recordo.

Na conversa com essa empresa, Ivan quis levantar mais informações sobre o tipo de carro utilizado pelos fiscais de obras. Uma fonte que trabalhava lá nessa época disse que não se lembrava de nenhum fiscal usando Fiorino Picape, mas sim pequenos caminhões, especificamente Agrale e Ford F-4000. Esses veículos possuíam carrocerias de madeira abertas, com aproximadamente 40 cm de altura. Eles eram usados para levar materiais para as obras, e também transportar sobras de construções.

E esse era o motivo pelo qual, no episódio passado, Ivan citou a dúvida que tinha sobre o relato do menino misterioso para Eli Gonçalves da Silva. O garoto teria dito que havia sido preso por um carroceiro. Automaticamente se pensa em carroça com cavalo. Mas e se fosse um veículo como esses da empresa de construção? Não há como saber.

Ivan: Algum momento, vocês chegaram a ir, ou ele a falar que passava ali perto da Colônia dos Fiscais de Guaratuba? Se ele fazia alguma obra lá? Alguma coisa assim?

Filha: Não.

Ivan: Colônia de Férias dos Fiscais?

Filho: Não faço nem ideia de onde fica isso.

Ivan: Ele chegou a trabalhar em alguma construção ali em Guaratuba ou região no final da década de 80, início de 90? Não que vocês saibam…

Filho: Eu… Eu acho que não. Tenho quase certeza que não porque… Até, na verdade, eu… Vocês vinculam tanto o nome dele para Guaratuba e ele quase nunca… Nunca ouvi falar que ele foi para lá. Ficar indo para Guaratuba, indo para Guaratuba, entendeu? É uma região que… Eu lembro que a gente quase não ia, porque ia para Itapoá, ia e voltava com a gente. Eu, a mãe, a [Filha], a gente sempre estava na casa de Itapoá, isso eu lembrava. Agora, para o lado de Guaratuba, foi uma região que a gente até… Na verdade, ele não gostava de Guaratuba. Adorava Itapoá, gostava de Itapoá, mas não… Um lugar que ele quase não… A gente sabia que não ia. Não tinha… Essa região não diz nada para a gente, entendeu?

Ivan: Entendo. Em algum momento, ele chegou a citar para vocês alguma coisa sobre aqueles crimes de Guaratuba? O caso do Leandro e o caso Evandro, que foi chamado de “As Bruxas de Guaratuba”? Nunca falou nada, assim? Tipo assim: “olha…”.

Filha: Isso a gente sabe pela televisão só, mas não… Dele, nunca.

Ivan: Nunca.

Filha: Nunca.

Ivan: Tá. Nunca falou que conhecia a família de algum dos meninos, nada?

Filha: Não.

Ivan: Também nunca comentou do caso, em geral, né?

Filha: Não, não.

No segundo depoimento que prestou em 1996, o Sr. Pedro disse que, na noite de domingo em que Sandra desapareceu, ele estava visitando um tio da esposa em Garuva, que fica do lado de Guaratuba, no estado de Santa Catarina. 

Ivan: A mãe de vocês tinha aquele parente em Garuva em 89? Tinha?

Filho: Só que acho que não é Garuva, eu acho que é mais para a frente lá. Pelo pouco que eu lembro.

Filha: É, a mãe tem bastante parente em Santa Catarina.

Filho: É, tem.

Ivan: Mas não em Garuva, em específico? É isso que eu queria…

Filho: Eu acho que ele é mais para perto de Joinville do que para Garuva.

Ivan: Tá ok. Que é onde a sua mãe tem mais parentes, por ali?

Filho: Isso, exatamente como a minha irmã falou…

Ivan: Aham. E o seu [nome ocultado] veio de Itaiópolis, correto?

Filho: Sim.

Ivan: Vocês chegaram a visitar lá, como era também, para ver como era a cidade de onde ele veio, tudo? Vocês, como família, já foram para lá? Nunca?

Filho: Não.

Filha: Itaiópolis, não.

Ivan: Tá. Aquela região, Itaiópolis, Mafra, Colorado, nunca passaram por ali, assim, como família? Para ele mostrar: “eu cresci aqui”?

Filha: Em Mafra só. Só em Mafra, que a gente tinha uns amigos ali, só.

Ivan: Aham. Quando vocês eram pequenos, assim, que vocês foram?

Filha: Sim.

Ivan: Tá. Mas não conheceram ninguém, assim, daquela época, nem nada desse jeito, né? Que tenha sido…

Filha: Não.

Durante as investigações, foi muito difícil descobrir quais foram as profissões do Sr. Pedro. E Ivan tinha essa dúvida por causa das impressões repassadas pelo Dr. Sami, de que o assassino poderia ter alguma experiência em IML ou necrotério.

Ivan: Eu sei que ele era mestre de obras, representante comercial. O que mais ele fez da vida?

Filho: Que eu lembre, foi isso.

Filha: Era isso, né? Basicamente…

Ivan: Vocês sabem sobre ele ter sido vendedor na [nome da empresa ocultado], por exemplo? Quando veio para Curitiba?

Filho: É, sim. É que… Entra dentro do representante comercial…

Ivan: Ah, tá, tá, tá. Sim. Mas, vamos lá, vendedor da [nome da empresa ocultado]… Se não me engano, ele foi garçom em algum momento também. Trabalhou em algum restaurante, alguma coisa assim?

Filha: Acho que sim, aham.

Ivan: Tá. Em algum momento… Isso aqui é uma coisa bem importante para a gente. Em algum momento ele trabalhou com alguma coisa ligada a funerárias, IML, assistente… Alguma coisa assim?

Filha: Não, não.

Filho: Nunca. Nossa Senhora.

Ivan: Tá. Por que eu estou perguntando isso? Porque isso é uma coisa que para mim é o que mais afasta o pai de vocês de qualquer suspeita desses casos, tá? Que é: tudo indica que as vítimas… O Leandro, a gente não tem como saber porque foi esqueletizado. Mas o Evandro e a Sandra tinham cortes que são característicos de IML ou de alguém que trabalha com funerárias, enfim.

Filha: Por isso as perguntas ali, né?

Ivan: Por isso a pergunta. Isso, tá? Porque se vocês me falassem: “não, ele trabalhou numa funerária por um tempo”, eu já ia ficar assustado. Mas isso é uma questão, só para deixar vocês tranquilos, que eu não posso ignorar, né? Eu não quero construir um culpado aqui do nada, tá? Só precisava realmente saber se… Porque eu tinha ouvido uma história também, por exemplo… Que essa história que ele teria ido para Garuva no dia 4 de junho de 89 para visitar um tio, o tio nem estaria vivo nessa época, em 89, ou nem morava em Garuva. Então, daí eu achava… Eu queria saber se vocês visitavam ele com frequência, se você lembra… Se vocês lembram desse tio…

Filha: Sim. A gente visitava os parentes da mãe pelo menos uma vez ao ano. Isso… Eu acho que até eu lembro mais do que o [Filho], que o [Filho] já era um pouco maiorzinho. Chegou uma época que ele nem acompanhava mais a gente. Mas eu acompanhei algumas viagens com os meus pais, eu era bem companheira deles, e a gente visitava bastante esses parentes, assim.

Ivan: Aham. E vocês visitavam quando? Com que frequência, assim? Era nas férias só?

Filha: É. Uma vez ao ano. Agora, não tinha uma época muito específica, assim. Não tinha uma época muito específica.

Ivan: É. Eu pergunto mais por questão de rotina, entender a rotina das famílias é importante. Por exemplo, se falasse assim: “ah, não, todo domingo a gente ia para o litoral para visitar parentes”. É uma rotina. Então, a gente saberia que em 89, naquele domingo, não teria como ele estar por lá, né?

Filha: O pai gostava muito de viajar, né? Ele gostava muito de viajar. E eu lembro até que ele ficava bravo porque eu fazia catequese no sábado, e às vezes não podia faltar a catequese, e daí eu não podia viajar. Então, isso eu lembro bem, assim. Aí a gente visitava ali os parentes da mãe, ia no final de semana, voltava, ou quando tinha feriado, alguma coisa assim…

Ivan: Tá. E ele… Tinha alguma rotina de domingo, domingo à noite, principalmente, que vocês seguiam?

Filha: Eu lembro que ele sempre estava em casa com a gente no final de semana. Dificilmente ele não estava, assim. Muito difícil.

Ivan: Dificilmente estava numa obra ou num trabalho?

Filha: Não. Final de semana, ele não trabalhava, assim. Muito raramente num sábado de manhã, mas era, assim, bem raro mesmo.

Filho: Até porque uma das coisas que ele mais adorava fazer para a gente era assar carne. Então, todo domingo quase, tinha carne assada aqui em casa. Então…

Filha: É. Maionese da mãe e carne assada.

Filho: É. Quase todo domingo tinha isso. Era o que ele adorava fazer para a gente.

Ivan: E de noite? Como era a rotina de noite de vocês? É que, assim, na minha família, por exemplo, a gente ficava assistindo Faustão e videocassetada, sabe? Então…

Filha: Ah, sim, isso também…

Filho: A gente assistia Fantástico…

Filha: Fantástico…

Filho: Todo domingo à noite.

Filha: Sai de Baixo, uma época ali… Sai de Baixo era bem… Ratinho à noite, dia de semana, assistia o Ratinho. Muito tempo assisti o Ratinho.

Ivan: Perfeito. Vocês lembram se… Vocês não lembram de ele viajar a trabalho e ficar dias fora, então? Isso aí vocês não se recordam? É que o meu pai era representante comercial. Meu pai foi representante comercial por muito tempo, então, daí eu lembro, assim, do meu pai viajar segunda e voltar sexta, porque foi lá para, sei lá, interior…

Filha: Aham. Ficava a semana toda fora.

Ivan: É. Nunca teve esse…

Filha: Mas o pai… Ele até às vezes viajava, mas eram, assim, viagens bem rápidas, e retornava… Pelo menos é o que eu lembro, assim. Não sei se o [Filho] lembra de alguma outra coisa.

Filho: É. Eu lembro vagamente disso aí, que era coisa rápida, porque…

Filha: Era coisa de bate… Bate-e-volta, assim, né?

Ivan: Mesmo dia? Vai e volta no mesmo dia?

Filha: Isso.

Ivan: Tá. Para quais cidades ele fazia trabalhos assim?

Filha: Ah, isso daí eu também não lembro.

Ivan: Não vai saber.

Filho: Não…

Ivan: Para ser bate-e-volta, tem que ser coisa próxima, né? Teria que ser…

Filha: É, tem que ser mais próximo, né?

Ivan: Aham. Vocês não lembram de, em algum momento, ele ter ido para o norte do Paraná? Londrina, Maringá?

Filha: Não.

Ivan: Na época da [nome da empresa ocultado]?

Filha: Não.

Ivan: Não?

Filho: Não.

Ivan: Nunca falou nada disso, né? Vocês chegaram a perguntar para a mãe de vocês sobre isso? Sobre ele ter ido para o norte, alguma coisa?

Filha: Perguntei. Ela disse que não, que não, que não…

Ivan fez essa pergunta pelo seguinte: em datas muito próximas entre os desaparecimentos de Leandro e Evandro em Guaratuba, três crianças sumiram no norte do Paraná, em Londrina e Maringá.

São locais distantes, mas os desaparecimentos dessas crianças, especialmente nessas cidades, são muito incomuns. E há uma chance de o assassino de Evandro e Leandro também estar por trás desses casos.

Para Ivan, as fontes da empresa de construção disseram que acham difícil que tivesse qualquer obra deles no norte do Paraná naquela época. De acordo com eles, o mais provável é que não houvesse nada.

Ivan: Uma das testemunhas do caso Sandra falava em depoimento que o [nome ocultado] dizia para ela que ele tinha um terreno no litoral em 89. Isso era verdade? E, se sim, qual era a cidade que ele tinha um terreno?

Filha: Acho que eles tiveram em Itapoá, né, [Filho]?

Filho: Tiveram. Tiveram casa em Itapoá.

Filha: Tiveram em Itapoá, mas eu não… Até perguntei isso para a mãe também, ela não lembra exatamente do ano, assim. A gente lembra vagamente que era Itapoá porque as minhas tias têm ali casa em Itapoá também, então…

Ivan: Aham. Isso em 89, seria?

Filha: Daí eu não sei te dizer o ano. Não…

Ivan: Tá. É que, olha, eu não consegui encontrar nenhum registro de imóveis do [nome ocultado] em Santa Catarina ou no litoral do Paraná nesse período, tá? Encontrei muita coisa em Curitiba, Fazenda Rio Grande, tudo. Agora, Itapoá… Porque eu já sabia de Itapoá, que ele gostava de lá. Sabia que… Acho que construiu uma casa na década de 80, salvo engano, que foi uma casa muito bonita. Mas eu nunca vi nenhum documento com esse nome. Então, assim, vocês iam para essa casa? Vocês frequentavam? Ela era dele mesmo? Porque eu imagino que deve ter sido uma coisa assim de… Também de documentação da época, meio feita na boca…

Filha: Pode ser. Pode ser. Mas aí eu também não lembro porque eu era bem pequena também…

Filho: Eu lembro que a gente ia, que eu era pequeno e que nós tínhamos casa lá.

Ivan: Em Itapoá, né?

Filho: Em Itapoá.

No inquérito do caso Evandro, existe um depoimento de Euclídio Soares dos Reis, o homem que morava perto do local onde o corpo do menino foi encontrado. Ele dizia que, pouco antes do cadáver aparecer no matagal, ele tinha visto um Opala preto passar pela região.

Então, Ivan perguntou sobre isso aos filhos de Pedro. E aproveitou também para verificar algumas informações sobre suspeitos, como aquelas presentes nos relatos dos Irmãos França, que diziam terem sido perseguidos por um homem barbudo e cabeludo.

Ivan: Em algum momento, principalmente nesse período entre 89 e 92, o pai de vocês teve um Opala preto?

Filho: Nunca teve…

Filha: Não. Opala não.

Filho: Meu pai nunca gostou de Opala.

Filha: É, isso eu lembro que ele falava mesmo.

Filho: Odiava Opala.

Ivan: Certo.

Filho: Preto, ainda piorou. Porque ele odiava carro preto…

Ivan: Ok. Ele usou barba em algum momento nessa época? Ele teve…

Filho: O pai nunca usou barba.

Ivan: Nunca usou barba?

Filha: Que eu lembro, assim… A barba dele era, assim, bem baixinha. Sempre teve pouca barba, bem baixinha, e sempre estava fazendo… É…

Ivan: Tá. Não gostava de barba, e imagino que cabelo comprido também não, né? Sempre cortava.

Filho: Nunca, não…

Filha: Nunca. Ele era muito tradicional assim, né? Aqueles homens bem tradicionais, né?

Ivan: Aham. Ele não chegou a ir para o exército nem nada assim, né? De servir, nem nada do tipo?

Filha: Não sei…

Filho: Eu acho que não. Nunca ouvi falar nisso também.

Filha: Também não.

Ivan: Ele sabia andar de carroça? Ou ele teve carroça em algum período?

Filho: Que a gente…

Ivan: Que vocês saibam, não.

Filha: Pelo que gente saiba, não.

Esse é outro ponto importante que não se pode descartar: as descrições físicas do Sr. Pedro não batem com aquelas dadas pelos irmãos França. Nada indica também que ele tinha um Opala preto, tampouco que teria uma carroça com cavalos em Guaratuba.

Mas, como já parece estar óbvio, tudo isso pode ser pista falsa. Pode ser que o relato dos Irmãos França seja um grande equívoco. Pode ser que não era uma carroça com cavalos no relato do menino misterioso a Eli. São muitas variáveis.

E, falando com os filhos, ficava claro para Ivan também outra coisa: por serem crianças na época, dificilmente eles teriam muitas informações para compartilhar. Por causa disso, por muito tempo ele tentou achar alguém que fosse amigo do Sr. Pedro nesses anos. Algum adulto que fosse seu parceiro de churrasco, de boteco, colega de trabalho, qualquer coisa. Nunca encontrou ninguém. 

Ivan: Uma coisa que eu tenho uma enorme dificuldade e muita curiosidade é achar amigos do seu [nome ocultado], principalmente amigos desse período, 89 a 92, 93. Como era a questão das amizades? Ele tinha? Não tinha? Colegas de trabalho?

Filha: Eu nunca conheci ninguém, assim, do trabalho dele. Ele tinha uns amigos, os vizinhos, esses amigos em Mafra, que era uma família que a gente sempre visitava. Mas, de trabalho, não.

Ivan: [Filho], você lembra de algum colega de trabalho, visita, assim?

Filho: O pai era muito na dele, quietão. Gostava de ajudar muitas pessoas, mas sempre na dele, não tinha muita amizade com o pessoal, assim. Não lembro de ninguém, assim, que vinha em casa, nada…

Ivan: É que… Acho que seria legal a gente tentar saber um pouco mais de uma perspectiva de adulto daquela época, né? “Não, eu andava com o seu [nome ocultado], a gente fazia tal coisa, saía para pescar”, sei lá, qualquer coisa assim. Mas ninguém que vocês conheceram era um amigo de longa data? Ninguém?

Filha: Não.

Filho: Não.

Ivan: Tá. Até quando ele veio a falecer, não foi nenhum amigo para o funeral? Foi só a família?

Filho: Só a família.

Filha: Só a família. É que foi bem na pandemia também, né? A gente fez um… A gente fez um velório bem restrito, assim, e rápido. Nem ficamos lá o dia todo. Foi bem rápido, por conta da pandemia.

E, então, Ivan quis saber mais sobre a história que a viúva contou envolvendo o suposto quarto onde Pedro não deixava ninguém entrar e a arma que descobriram dele.

Ivan: Ele de fato tinha uma parte na casa dele que não deixava ninguém entrar? Que eram as coisas dele, e que eventualmente o [Filho] entrou lá e encontrou uma nota fiscal de arma? Essa história é verdadeira?

Filho: Não é que não seja verdadeira. Ele tinha um quartinho que ele guardava ferramentas, mas era aberto.

Filha: E essa pasta até… Eu lembro de uma pasta que ele tinha e que eu até depois brincava com essa pasta. Brincava com essa pasta. Era uma pasta preta, eu brincava com ela. Porque daí ele não usava mais e enfim…

Ivan: Essa história de que descobriram que ele tinha uma arma, então, depois que ele morreu… A [viúva] se confundiu? Isso não aconteceu nem com você, [Filho], nem com você, [Filha]?

Filho: É até novo esse negócio de ele ter… Como é? É porte de arma que ele tinha?

Ivan: Não. Pelo que eu me lembre, pelo o que eu me lembre, ela falou que encontrou uma nota fiscal de arma. Não digo que foi porte ou posse, acho difícil ser. Acho que foi mais uma nota fiscal de uma arma. Agora, o que exatamente, eu não sei. Isso foi uma… Até uma coisa que a gente ia perguntar para vocês o que foi, né?

Filha: Não, eu não sei o que é…

Filho: Eu não vi nada disso aqui.

Mais uma vez, o que a viúva havia dito não condizia com o que os filhos estavam falando.

Ivan: A [viúva] contou para a Natalia uma história de que uma vez ele teria encontrado uma menina na BR-116, que teria sido estuprada, que ele teria prestado auxílio para ela. Vocês conhecem essa história? Você ouviu essa história alguma vez? Nada?

Filha: Ela falou que ele contou para ela que auxiliou uma família. É só isso que a gente sabe, assim. Ele contou para ela que auxiliou uma família…

Ivan: Auxiliou como? O que… Não deu detalhes?

Filha: Não deu detalhes. Não. Não deu detalhes.

Ivan: Simplesmente: “auxiliei uma família na BR-116”?

Filha: Aham.

Ivan: Pode ter sido a própria família da Sandra, então?

Filha: Não sei te dizer, Ivan.

Ivan: Tá, não. Tudo bem. Mas essa história… A [viúva] contou para vocês igual ela contou para a Natalia, ou não?

Filho: Eu não lembrava disso.

Ivan: Nunca falou?

Filho: Para mim… Eu não lembrava disso.

Ivan: Sobre o caso da Sandra novamente, a [viúva] alguma vez ficou sabendo dessa história? Ficou sabendo só pela gente também, né?

Filha: Sim, só por vocês, é.

Ivan: Ele era do tipo de pessoa que se aproximaria da dona Juvelina, uma mulher pobre… Deixa eu explicar para vocês como era a casa da Juvelina. A casa da Juvelina… Ela era uma mãe solo de 40 e poucos anos, que tinha três filhas: a mais nova de oito, a mais velha de treze. A Sandra era a do meio, tinha 11. Elas moravam numa meia-água no Parque Verde, numa casa sem luz, sem água, e, assim, as meninas viviam soltas por ali, tá? Faz sentido ele ter chegado ali perto para se aproximar, fazer amizade com pessoas assim? Por que ele faria isso?

Filho: Boa pergunta.

Filha: Não sabemos te responder isso, Ivan.

Filho: Não tinha motivo…

Ivan: [Filho], eu quero justamente que você… Justamente… Que falou assim: “pô, o meu pai ensinou um monte de coisa…”. Se coloca no lugar dele. Por que ele poderia fazer isso? Pensando nesse carinho de filho que você tem, o que poderia estar passando na cabeça dele para se aproximar daquela família? Porque você entende o que eu quero dizer. Você entende o que eu quero dizer, [Filho]? É estranho.

Filho: Não vejo motivo, entendeu? Sinceramente, não vejo motivo de ele ter se aproximado dessa família. Sabe? Ele ficava com os meus filhos em casa. Eu tenho um filho, eu tenho uma filha. Ele ficava com os meus filhos aqui. Então, eu não vejo motivo de ter se aproximado dessa família. Foi uma coisa tão diferente que vocês trouxeram para a gente. Eu não vejo motivo de tudo isso aí, entendeu? De ter se aproximado, ter conhecido essa família, essas meninas, essa mulher… Não consigo te ajudar nisso, desculpe, não consigo.

Ivan: Tá. É que se você me fala, por exemplo, assim: “não, ele era um cara muito legal, que fazia conversa fácil com qualquer pessoa e queria ajudar…”. Mas não me parece ser isso. Eu não estou… Entende? É isso que eu estou achando estranho. Por isso que eu preciso que vocês me deem uma explicação…

Filho: Veja bem, ele tinha o jeitão dele, só que ele tinha um coração muito bom. Ele ajudava realmente as pessoas. Se alguém precisasse de ajuda… Eu lembro que, até aqui onde eu moro, alguém… Se um vizinho precisasse de uma ferramenta, ele emprestava. Ele ia lá, ajudava a fazer até o negócio se fosse preciso. Nessa parte, ele tinha um coração muito bom, entendeu? Agora, assim, só que ele tinha o jeitão dele, quietão, fechadão, entendeu? Às vezes ficava bravo. O jeitão dele, era o jeitão dele. Pessoa mais antiga, sabe? Ele era bem antigo, sabe? Mas não… Tipo, assim, às vezes estava lá numa obra… Mas o que essa família ia fazer de obra lá? Não ia fazer nada. Não sei… Não vejo no que ele poderia ajudar essa família, entende?

Natalia: Teve algum conflito dele com a mãe de vocês, assim, que deixe ela mais revoltada quando vai falar dele? Porque ela até citou que a única vez que ele falou que amava ela foi antes de ele falecer, assim, quando ela já estava cuidando dele após o AVC. Teve alguma coisa assim, que deixou ela muito magoada? Alguma coisa que ela descobriu?

Filho: Eu acho que as brigas deles normais…

Filha: Briga de casal, como eu já comentei com vocês.

Ivan: É que, veja, briga de casal normal, eu entendo uma coisa. A [viúva] falou que ela apanhava do seu [nome ocultado]. Desculpa falar sobre isso.

Natalia: E que uma vez até o [Filho] chegou a mediar, a falar assim: “pai, não bate mais na mãe”. Daí, a partir disso, ele ficou com receio do [Filho], e daí acabou respeitando um pouco mais a mulher, né?

Filha: Não, de bater… De bater, não. Bater de fato, não.

Filho: Ele era truculento…

Filha: Ele era truculento, ele falava assim mais bravo e tal, mas não chegou a…

Ivan: Isso que a [viúva] então falou para a Natalia não aconteceu, [Filho]?

Filho: A mãe é meio exagerada, sabe? Até com a gente isso. Normal, do jeitão dela. A gente já se acostumou com isso. Talvez a Natalia chegou aqui do nada, se apresentou, começou a fazer perguntas ou começou a falar algumas coisas, talvez ela tenha falado na hora da raiva dela… Dele, né? Falando dele. Mas, sabe, o meu pai tinha o jeitão dele. A gente tinha acostumado já com o jeitão dele. Mas ela… Sei lá, ela tem mágoa dele. É o jeitão dela. Ela tem mágoa dele. Só que é uma coisa dos dois.

Ivan: Ela mentiu que apanhou dele, então?

Filho: Não posso dizer que ela mentiu, mas também não posso dizer que é verdade.

Ivan: Você nunca viu nada?

Filho: O pai falava… O pai gritava, o pai tinha o jeitão dele, truculento, como eu te falei. Era o jeitão dele…

Ivan: Você nunca soube de ele ameaçar ninguém de morte?

Filho: Não, isso não.

Ivan: Alguém da família?

Filho: Não, não, não, não. Não, com certeza não. Jamais isso eu vi na minha vida…

Ivan: Você nunca viu. Mas já ouviu histórias?

Filho: Também não.

Ivan: Certo. Gente, de pergunta que eu tenho para vocês, é isso, tá. Eu preciso agora falar claramente, assim, uma coisa: de novo, tem muitas coisas que me tiram o [nome ocultado] como suspeito. A questão do IML, a questão de a gente não conseguir focar ele em Guaratuba de verdade. Só que assim, eu preciso ser sincero com vocês. Eu acho muito esquisita a aproximação dele com a família. Eu acho muito esquisito ele ter aquele carro que vocês não sabiam. A [viúva] chegou a falar que ele tinha uma vida oculta, que ele não dava muita explicação sobre o que fazia por fora, especialmente nessa época. Não sei se depois mudou. Mas o que a gente está tentando agora ver é o que a gente consegue achar… Se a [nome da empresa ocultado]… O que a [nome da empresa ocultado] fazia em Guaratuba em 92 e se o seu [nome ocultado] passou por ali em algum momento. Talvez não encontre nada. Daí é o famoso: “não posso dizer”. Mas eu preciso perguntar para vocês: se a gente achar alguma coisa que ligue ele à Guaratuba naquela época, isso vai ser uma surpresa para vocês?

Filho: A gente não lembra, né, Ivan. A gente não sabe. Entendeu? Que nem você acabou de falar, a [nome da empresa ocultado] tem construção em Guaratuba? Ela é uma empresa que vende casa pré-fabricada. Eles podem ter construção até Ponta Grossa, São Paulo, Rio de Janeiro. Não significa que ele tenha ido para lá.

Ivan: Aham. Não, eu estou dizendo de achar o nome dele em uma construção, em alguma estadia, alguma coisa assim…

Filho: Não sabemos.

Filha: Mas o que isso faria… É. E, assim, isso faria dele… Ter feito alguma coisa? Por ter trabalhado?

Ivan: Não. O que teria é só ele estar nesses lugares ao mesmo tempo… Eu não estou dizendo que tem. Isso não significa nada. Criminalmente… Tem uma advogada criminalista aqui, inclusive, que pode responder isso para vocês, tá? Só que, de novo, são indícios, e que a gente só pode responder… A gente só vai descobrir quem fez isso mesmo quando a gente encontrar, se um dia encontrar, registro que a pessoa fez. Sabe? Pedaços dos corpos, anotações, porque as crianças foram mutiladas. Então, assim, esse perfil de pessoa que faz isso… De novo, eu não estou dizendo que é o pai de vocês. Eu estou dizendo que é uma possibilidade que essas pessoas tenham vidas secretas, que façam coisas que a família nunca vai saber. Isso existe, é possível. Eu já peguei caso de serial killer que, infelizmente, isso aconteceu. A família não tinha a menor ideia, e o cara tinha matado mais de 40 crianças no Norte do país, no Norte e Nordeste do país. Eu não acho… Eu não tenho como confirmar que é o pai de vocês, tá? Eu posso dizer… Preciso ser muito sincero com vocês, que eu nunca achei nenhum suspeito tão forte quanto esse pelo simples fato dessa aproximação com a família e da semelhança dos casos. O que me tira de cara o pai de vocês? É essa questão do IML. De cortes típicos de IML. Então, assim, eu não condenaria ninguém com base nisso. Eu não colocaria: “essa pessoa é culpada”, nem nada. Mas é uma investigação que não foi feita na época, se perdeu essas questões, e a gente está tentando recuperar o que é possível. Eu espero que a gente consiga outros elementos por outros lugares, porque eu mal conheço vocês, mas eu sei que vocês são filhos que amaram o pai, que passaram por uma vida e que… Eu não quero ser a pessoa que dá notícia ruim para ninguém, tá? Eu espero que seja outro caminho. Mas eu preciso também ser sincero com vocês, que assim… Eu estou há quase 10 anos nesse caso, e eu não conhecia esses detalhes. Então, tem questões ali que… Assim, ainda é uma questão aberta. E eu gostaria de me colocar à disposição de vocês. Sempre que vocês tiverem qualquer dúvida, qualquer questão, eu estou aqui à disposição para tirar a dúvida de vocês também e explicar algumas das coisas que aparecem. Porque… De novo, são 10 anos quase nesses casos, e a gente insistiu em falar com vocês justamente porque a gente achava que era importante por causa dessa força que… Por causa dessas coisas esquisitas que aparecem. A coisa principal é: se aproximou da família e ninguém sabe explicar por quê. Diz que tinha um carro, que não sabe o que tinha. Então, pode não ser nada? Pode. Mas, cara, é esquisito, é esquisito. Qualquer pessoa aqui vai achar esquisito. Qualquer pessoa aqui vai achar esquisito. Mas eu vou preservar toda a identidade de vocês. Eu vou deixar muito claro que não tinha nada aqui que vocês falassem que desabonasse o pai de vocês. Que, no máximo, a gente não conseguiu confirmar muita coisa que aparece. Que tem coisas que deixam mais suspeito, mas ao mesmo tempo tira a suspeição dele, e é isso, tá? Eu só posso agradecer vocês ao tempo que me concederam. E, se eu puder fazer alguma coisa, responder alguma pergunta também, mostrar alguma coisa que eu tenho, de documentação, eu estou aqui à disposição de vocês também, tá? Não quero que… De novo, não quero ser a pessoa que acaba com a semana, ano, vida de ninguém, tá? É só realmente para… A gente precisa ser transparente o máximo possível e se colocar à disposição de vocês. Tem alguma coisa que eu posso tirar de dúvida de vocês, de tudo? Porque, assim, eu já fiz todas as minhas perguntas. O que vocês podiam me responder, beleza. Eu acho que a última pergunta que eu tenho é: por que a mãe de vocês falou uma coisa para a Natalia, coisas tão pesadas… É por que ela tem essa mágoa com ele mesmo?

Filho: Eu acredito que sim. Ela é magoada com ele. E, no fim, não resolveram isso, né? O meu pai faleceu, e eles não resolveram isso. Então, ela ficou com essa mágoa. E a gente sabe que ela tem essa mágoa, só que ela tem que tratar isso dentro dela.

Ivan: Tá. [Filha], você queria fazer perguntas no início, que não sabia nem como começar. Você quer fazer agora que já falamos tudo isso?

Filha: Não, Ivan, acho que já… Acho que uma das perguntas o [Filho] acabou fazendo ali, né? Que é sobre os suspeitos, enfim, mas era isso só. Acho que, agora, a gente conversando aqui também, já ficou claro algumas coisas…

Natalia: É. Eu queria aproveitar esse espaço para pedir desculpas também pela encheção de saco, pelas mensagens, pelas vezes que a gente bateu na casa de vocês. Não era o objetivo assustar, de forma alguma, e nem acusar o pai de vocês de nada. Era justamente para a gente… Que a gente queria falar e ouvir de vocês justamente porque conflitavam as informações de documentos com o que a mãe de vocês tinha falado, assim. Mas obrigada mesmo por essa conversa de hoje.

Filha: Obrigada a todos. Boa noite, então.

Filho: Obrigado. Boa noite para vocês todos aí.

Ivan: Boa noite.

Após essa conversa, Ivan pediu para que as advogadas dos filhos e da viúva enviassem uma declaração para ser colocada neste episódio. Ele combinou com elas de não citar nomes e nem o escritório para evitar também qualquer forma de vínculo com eles. Abaixo, a declaração:

Olá, Ivan, e a todos os ouvintes do podcast. Agradecemos pela oportunidade de termos acompanhado os entrevistados enquanto nossos clientes, conforme solicitado por eles. Gostaríamos de esclarecer que a nossa presença, no momento da entrevista, visou, exclusivamente, à garantia da segurança jurídica e tranquilidade aos entrevistados, dado o desejo deles de cooperar plenamente com informações que pudessem ser relevantes para a busca do verdadeiro responsável por essas terríveis atrocidades. Em nenhum momento a intenção foi de vigiar ou censurar as perguntas, muito pelo contrário, com a nossa presença, os entrevistados se sentiram mais tranquilos para responder o que fosse perguntado. O único objetivo almejado por nós foi o de resguardar os dados sensíveis da família, como nome e endereço, e assegurar a presunção de inocência ao pai dos entrevistados, que, infelizmente, já não se encontra entre nós para falar por si mesmo. Aqui, é importante explicar que a presunção de inocência é um princípio constitucional que garante que uma pessoa, cuja culpa ainda não foi plenamente comprovada, não seja estigmatizada prematuramente, ou pior, irreversivelmente. Em outras palavras, na prática, a presunção de inocência opera, não apenas em face das autoridades do poder judiciário, mas também com relação à imprensa, como um verdadeiro dever de tratamento, quer dizer, de preservação de um estado de inocência que perdura até o trânsito em julgado de uma sentença condenatória, ou seja, o momento em que a decisão deixa de ser suscetível à recurso. Foi para tanto que a nossa presença não apenas se fez necessária, mas também foi respeitada por parte do Ivan e de sua equipe. Dessa forma, aproveitamos a oportunidade para agradecer o trato cuidadoso por parte dos organizadores deste podcast, bem como pelo respeito e sensibilidade pelos nossos clientes em todo o processo de produção deste episódio.

SOM E FÚRIA

Não há nada que Ivan tenha conseguido provar contra o Sr. Pedro. Ele nunca foi acusado formalmente no caso Sandrinha. E não tem como colocá-lo em Guaratuba em 1992, sem sombra de dúvidas. Mesmo que tivesse, isso não significaria necessariamente que ele é o culpado. Esse caso só se resolveria com provas irrefutáveis que, muito provavelmente, já se perderam há muitos anos – se é que foram preservadas em algum momento.

Há coisas sobre a sua vida que parecem condizer com algumas das questões levantadas pela Dra. Lígia no início desse episódio. A suposta soberba relatada por alguns parentes, por exemplo, poderia ser um traço de transtorno antissocial. E a possibilidade de ele aparentemente ter contado mentiras, como ter escondido um carro da própria família, pode reforçar essa hipótese. Mas Ivan não é psicólogo, o Sr. Pedro já é falecido, e seria irresponsabilidade cravar qualquer opinião sobre isso.

Mas os próprios familiares não conseguem explicar a existência do Fusca Azul e a aproximação dele com a família de Sandra em 1989. E, na época dos casos de Guaratuba, Pedro trabalhava em uma empresa que ia para lá e que fornecia um veículo, que também não seria dele. Dito isso, não é impossível também que a família simplesmente não se lembre do Fusca azul que o Sr. Pedro tinha, em 1989. Tudo é possível.

Na época que Ivan falou com os filhos, havia acabado de entrevistar o Dr. Sami. Por isso, estava com a questão dos cortes de IML muito fortes na cabeça. Então, não chegou a perguntar para os filhos sobre o descarne de animais na juventude – informação essa que foi passada à Natalia pela viúva. Os outros parentes confirmaram que o pai do suspeito tinha costume de criar porcos e que fazia abate deles. Mas ninguém pôde confirmar se Pedro ajudava o pai.

Conforme dito no episódio anterior, de acordo com algumas pessoas com quem Ivan conversou, que entendem do assunto, a facada que Evandro tinha nas costas se assemelhava com o tipo dado em porcos para abate. 

Pelo o que conseguiu levantar com pessoas acostumadas a descarnar animais, a prática de se enfiar uma faca pelas costas, atingindo o coração, era bem comum entre os mais antigos, já que hoje existem técnicas mais avançadas para fazer isso. Além disso, a forma como o corpo de Evandro foi descartado se assemelhava também com o modo com que caçadores ou abatedores se desfaziam de carcaças. Isso também foi confirmado por pessoas que fazem abate de porcos. Segundo elas, antigamente era comum jogar carcaças no mato para que a natureza desse conta.

Mas tudo isso é conjectura. Mesmo se Ivan perguntasse para os filhos do Sr. Pedro sobre essas coisas, eles provavelmente não saberiam de nada desse histórico do pai.

Afinal, ele havia saído do interior de Santa Catarina ainda muito jovem, e nunca mais teve criação de animais. Quando queria fazer churrasco, comprava a carne no açougue. E pode ser que o Dr. Sami esteja certo. Pode ser que os cortes sejam típicos de necrotério mesmo, e que o verdadeiro culpado tivesse esse conhecimento de algum lugar.

É bem provável que o verdadeiro assassino nunca tenha passado nem perto de todas essas investigações. Em uma conversa posterior que Ivan teve com a Dra. Lígia, ele pediu a sua opinião sobre o Sr. Pedro. Contou com o seu sigilo profissional e mostrou alguns dos materiais.

Ela disse que havia uma coisa que afastava o Sr. Pedro como potencial suspeito. E isso seria o seguinte: partindo da hipótese de que ele era o assassino, e de que os três casos estão conectados, a forma como ele aborda Sandra é aparentemente bem diferente da maneira como Leandro e Evandro foram sequestrados.

Se ele fosse um pedófilo do tipo sedutor, como poderia ser com Sandra, se aproximando e dando presentes até o momento que decide sequestrá-la, não parece ter indícios de que algo parecido ocorreu com Leandro e Evandro. Não se sabe se as famílias dos garotos conheciam o Sr. Pedro. Nisso, o modus operandi teria se alterado drasticamente. Seria impossível? Não. Mas improvável.

Só que tem uma coisa que intriga Ivan – e que ele já adianta que não tem resposta. O Sr. Pedro veio do interior de Santa Catarina, da cidade de Itaiópolis, e nasceu na década de 40. De acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1950, Itaiópolis contava com cerca de 7.400 pessoas. 

Paulina e João Bossi, os pais de Leandro, também eram de Itaiópolis. E ambos nasceram na década de 1950. O Sr. Pedro se mudou para Curitiba na década de 1960. João Bossi e Paulina ainda eram crianças. A região onde Pedro morou na capital por muitos anos é a mesma onde a família de Paulina tinha terrenos. Em uma certa época, o Sr. Pedro chegou a viver na mesma rua de um terreno que a família de Paulina tinha naquela área.

João Bossi era mestre de obras, assim como o Sr. Pedro. Então, são coincidências que chamam a atenção. Ivan chegou a perguntar para a dona Paulina se ela conhecia o Sr. Pedro. Mostrou até fotos para ela. Ela disse que não conhecia. Ninguém da família Bossi jamais ouviu falar sobre ele.

Ivan também fez o contrário, com familiares do Sr. Pedro, perguntando se eles conheciam alguém da família Bossi, de João, ou da família Rudy, de Paulina. Ela e sua família moraram também um bom tempo em Colorado, uma cidade próxima de Itaiópolis. Ninguém nunca ouviu falar de nenhuma dessas famílias.

Então, geograficamente, há mais essas coincidências. Não se pode descartar a hipótese de que o Sr. Pedro conhecesse a família de Leandro. Talvez conhecesse a de Evandro. 

Porém, a família de Evandro ainda acredita que os inocentes de Guaratuba são os verdadeiros culpados, então não há nem abertura para tentar falar com eles. 

Mais uma vez, essas respostas se perderam, provavelmente para sempre. Ficaram apenas as dúvidas. E, na dúvida, sempre se segue pela inocência.

Lucas: Meu Deus.

Esse é Lucas Bossi, irmão de Leandro Bossi. Essa foi a sua reação após Ivan contar tudo o que havia levantado sobre o Sr. Pedro. E isso foi antes de ter realizado a conversa com os filhos.

Ivan: O que eu sei por cima é que a filha desse cara tem muito medo, muito medo, de vocês, especialmente. Do tipo assim: “não, mas eu não sei do que essa família é capaz. Se foi…”. Entende a situação? Tipo, o meu pai morreu. Daí vem um jornalista um dia na minha casa e diz assim: “eu acho que o teu pai pode… Ele foi suspeito num caso…”. A família não sabia que ele tinha sido suspeito. Tudo o que eu falei para eles é novidade. Eu cheguei com um calhamaço de documento e disse assim: “olha, tá aqui tudo o que eu tenho sobre o pai de vocês”. Um monte de informação. Eles ficaram assim: “mas como você sabia de tudo isso?”. “Porque está aqui, está aqui nessa documentação”. Foi muito chocante. E daí eu disse assim: “eu preciso falar com vocês, eu preciso conversar…”. Eles falaram: “Não, não quero falar, não quero falar, não quero falar, não quero falar”. E eu falei assim: “olha…”. Daí eu disse: “não, mas é que a gente só quer esclarecer à família, a gente está ajudando a família da Sandra e do Leandro”. Porque a família da Sandra também acabou entrando nessa. A gente também tem contato hoje com eles. Assim como vocês. E daí ele falou: “tá, mas é que eu não sei…”. Em algum momento, a filha do cara falou assim: “eu não sei do que eles são capazes”, sabe? Eu imagino que… Assim, de fato… Sei lá, pode ser que… Imagina, alguém ficaria louco e ia querer botar fogo na casa, sei lá. Eu entendo o receio. Eu entendo também o medo do tipo: “cara, eu não sei se eu estou afim de abrir…”. É um desafio que eu tenho feito para algumas pessoas assim, tipo: chega um dia… O teu pai morreu. Alguém bate na tua porta dois anos depois e fala: “o teu pai pode ter… Ele foi suspeito num crime anos atrás, e eu acho que ele pode ser suspeito de outros”. Você ajudaria a pessoa ou não? Entende?

Lucas: Pois é.

Ivan: Eles não têm culpa de nada…

Lucas: É, eu sei. Eu sei. Aham. Caramba. E esse é o nosso cenário hoje, então, Ivan?

Ivan: Esse é o nosso cenário hoje. Que muita coisa bate com… Como eu te falei, assim, esquece seita, esquece Valentina, esquece… Olha para isso, tudo começa a fazer sentido. É um cara que é um predador sexual ou um predador de crianças. Ele se aproxima das famílias, ele tenta seduzir, ele tem algum ódio com criança que a gente não sabe. Deve ter algum delírio, não sei. Tem muita coisa esquisita desse cara. Tem muita coisa esquisita. Informações que não batem, informações que deveriam existir e não existem, sabe? Então, pode ser só um cara muito desorganizado num nível inacreditável ou pode ser alguém que estava escondendo alguma coisa, né?

Lucas: Que coisa, cara. Que lástima isso tudo, meu Deus.

Ivan: Porque é muito mais provável que seja inocente… Se você pegar assim, sabe, tipo… Quem são as pessoas? Se você pegar uma pessoa aleatória na rua, é muito mais provável que ela seja inocente do que culpada.

Lucas: É, claro… A gente também não pode exigir e cobrar muito… Não foram eles, né? Mesmo se fosse o cara vivo aí, com certeza ele não falaria.

Ivan: Exato.

Lucas: Né? Então… Quem sabe, às vezes, é até melhor que ele morreu, vamos dizer assim…

Ivan: É, é… Acho que nesse caso é… No que a gente está lidando agora é um problema, mas acho que é um problema mais contornável do que se o cara estivesse vivo, né? Porque a família pode… Ok, passa o choque, ajuda… O cara simplesmente pode dizer… Vamos dizer que o cara é inocente. Aparece um cara lá 40 anos, 30 anos depois, dizendo: “pô, teve esse caso aqui”. “O que você tá me enchendo o saco de coisa de 35 anos, que eu não tenho nada a ver?”. Sabe? Então, para a gente, pareceria suspeito, mas o cara só não quer que encha o saco dele. Pode ser que ele nunca tenha falado para a família, inclusive, porque não quer que encham o saco dele. Do tipo: “não, não quero que me encha o saco com isso. Não vou falar que eu fui suspeito num crime. Por que eu vou chegar em casa falando isso?”. O cara já não era de se abrir muito com a família, de repente tinha uma vida secreta. Isso foi uma coisa que eu ouvi muito sobre ele, de várias pessoas. Ele tinha uma vida secreta. Ninguém sabe o que ele fazia, então…

Lucas: Meu Deus…

Ivan: Pode ser que o cara gostava…

Lucas: Isso só alimenta ali, né?

Ivan: É. Pode ser que esse cara gostava de… Sei lá, jogar o jogo do bicho todo dia, ficar bebendo no bar…

Lucas: Exatamente. Pode ser uma coisa bem improvável…

Ivan: Que trai a esposa, não sei… Mas assassino de criança? Inclusive é isso que me leva a crer que o cara às vezes é inocente, sabe? Porque é tanta coisa ruim que eu já ouvi sobre esse cara, que eu digo assim: “não é possível que ele seja tão ruim”, sabe? Além de ser marido ausente, bater na esposa… Ainda é assassino de criança. Tanta coisa…

Lucas: Sim, não existe isso…

Ivan: Não, até existe, não sei… Mas é isso.

Ao final da longa conversa com o Lucas, Ivan já havia passado para ele praticamente tudo o que tinha levantado do caso de Leandro. De tudo o que puxou e avaliou sobre Evandro e Sandra, de como eles poderiam estar conectados.

Ivan: Lucas, tem alguma outra coisa que eu posso te…

Lucas: Acho que não. A gente conversou bastante coisa. Mas eu acho que já foi muito esclarecedor, foi muito bom a gente conversar. Entendi muita coisa. E eu sei que o teu papel é esse mesmo, é a gente chegar no mais próximo da verdade, seja ela qual for. Porque às vezes não tem como chegar, né?

Ivan: Isso, exato.

Lucas: Não tem como fazer milagres com coisas que são bem fragilizadas e fragmentadas, no caso aí do Leandro. É bem triste isso. Mas isso comprova que de fato houve um problema na investigação, é mais uma confirmação para nós de tudo isso…

Ivan: Eu acho, inclusive… Como eu te falei, se você pegar todos esses elementos, que no podcast vão estar mais didáticos assim… Que hoje foi muita coisa. Mas, no podcast, acho que vai conseguir absorver melhor… Vale a pena você conversar com o Basto sobre entrar com uma ação contra o Estado mesmo.

O Basto a que Ivan se refere é o advogado Antonio Figueiredo Basto, responsável por conseguir a revisão criminal dos acusados de Guaratuba.

Desde que a ossada de Leandro foi identificada em junho de 2022, ele passou também a representar a família Bossi na Justiça do Paraná, buscando por mais respostas. Especialmente sobre a localização dos ossos de Leandro. Eles ainda não desistiram de encontrá-la.

Ivan: Porque quem tem que saber onde está o corpo do Leandro Bossi, não sou eu, não é você, são eles.

Lucas: Isso, isso, isso…

Ivan: Então, assim, eu sei que o doutor Basto já entrou com uma representação lá falando: “eu quero saber onde está o corpo do Leandro porque a família quer enterrar”.

Lucas: Ele falou isso para mim. Aham.

Ivan: É. Então, assim, eles têm que responder. Não respondeu? Vocês perderam o corpo do Leandro Bossi? Processo. Cadê o laudo de local? Processo. Por que nunca tomaram depoimento? Processo.

Lucas: É. Eu quero… Exatamente. Eu quero fazer uma reunião com o Basto. Inclusive, depois, se ele achar pertinente, conversar alguma coisa contigo, porque você tem muito conteúdo, né? Às vezes o Basto não tem muita informação, até não sei se você pode se disponibilizar a isso…

Ivan: Claro, claro. Só chamar.

Lucas: Às vezes até para dar uma claridade nele, né, nas coisas aí. Porque às vezes muita coisa ele pode conseguir até contigo, né? Eu estou achando importante isso, está chegando cada vez mais a hora. Agora, com o lançamento do podcast, vai ser o momento, eu acho, de ele dar uma pressionada de maneira jurídica no Estado, porque é uma palhaçada isso. Eu não aguento. Tá louco.

Ivan: Não, e assim… Vocês têm que pedir indenização milionária para isso aqui. Eu sei que isso não paga nada, não volta ninguém…

Lucas: Não, mas é isso que eu quero, Ivan… Eu, assim… Eu sou uma pessoa muito sensata. Só que eu sou muito metódico. E eu aprendi… A gente aprende em sociedade e no meio jurídico que hoje a indenização, a moeda, é um peso de medida muito grande. Então, a gente só vai entender o quanto eles erraram de acordo com o valor da indenização.

Ivan: É.

Lucas: Não é que eu estou querendo… Eu quero uma quantia X. Não interessa o quanto eu quero. É que eles me escrevem uma carta de perdão, e eles querem que a gente acate aquela cartinha de perdão, que é praticamente a confissão deles.

Ivan: Exato. Isso que é importante lembrar… Bem lembrado. Eu estava até revendo aquela entrevista, aquela declaração do Ney Leprevost, quando ele fez aquela carta.

Ivan se refere ao deputado estadual Ney Leprevost que, em 2021, era o Secretário de Justiça do Estado do Paraná. Ele foi o responsável pela criação do Grupo de Trabalho do Caso Evandro naquele ano e, ao final, enviou cartas com pedido de desculpas às famílias de Evandro e Leandro, e também dos acusados.

Ivan: Ele disse: “a gente está fazendo essa carta que a família pode usar no meio jurídico, inclusive pedindo indenização se o Estado assim bem entender”. Ou seja, dá para ver que o Ney Leprevost fez aquilo meio que tipo assim… “Velho, é para vocês entrarem com ação”, sabe? Porque ele, como Secretário de Justiça, podia chegar… Ele não podia… Tem que ser uma ação indenizatória que vocês têm que entrar no judiciário.

Lucas: Exatamente. Então, é isso que a gente… Isso é o meu foco com o Basto ali, sabe? Só que eu preciso sentar com ele e mostrar para ele que eu tenho… Como se diz? Um imediatismo que isso aconteça, e o tapa tem que ser forte. Eu quero que o tapa seja forte. Dá licença quem está na minha frente. Porque o quão conheceram o João Bossi… Eu tenho todos os traços dele assim, do inconformismo dessa história, puxei muito bem, sabe? E a força de vontade está aí, a gente tem muita vontade de fazer isso e vai acontecer. A gente sabe que demora, mas vai acontecer.

Ivan: Sim. Imagina, a revisão criminal do Osvaldo, da Beatriz, do Davi… Saiu tudo agora só. Imagina, dois anos depois…

Lucas: Sim, isso aí demora.

Ivan: É, demora.

Lucas: Demora, mas vai ocorrer, vai ocorrer. E a gente vai estar lá para ver isso daí acontecer…

Ivan: É isso aí. Eu vou estar aqui à disposição sempre, contem comigo, tá? E com certeza… Certo? E, eu tendo novidades, te aviso.

Lucas: Tá bom. Muito obrigado por tudo, viu?

Ivan entrou em contato com o Dr. Basto e o escritório dele para ter alguma atualização sobre como estava o caso da família Bossi. No momento em que Ivan gravava este episódio, eles haviam acabado de receber uma resposta oficial da Polícia Científica do Paraná, via judicial, afirmando basicamente o mesmo que relataram para Ivan e Natalia. Que os processos de sepultamento de ossadas não-identificadas na década de 90 eram diferentes dos de hoje, que a instituição passou por muitas mudanças nos últimos 30 anos e que não foi possível obter respostas sobre onde estão localizados os restos mortais de Leandro.

Além disso, também afirmaram que há fragmentos ósseos remanescentes que se encontram custodiados na instituição, para eventual realização de exame de contraprova ou liberação do vestígio. 

Agora o processo continua correndo. Essas coisas são lentas, mas, após todas as etapas principais, o próximo passo será entrar com uma ação indenizatória na esfera cível contra o Estado do Paraná, em razão de todas as omissões cometidas.

Respostas oficiais da Polícia Científica do Paraná

Leandro Bossi sempre foi a criança deixada de lado, sempre à sombra do caso Evandro. Mesmo nesse podcast, que leva o seu nome, Ivan se viu incomodado tendo que deixá-lo de lado tantas vezes, visto a falta de informações coletadas na época.

No meio desse processo, infelizmente acabou encontrando outra criança também esquecida: Sandrinha. E, no caso dela, há coisas ainda mais tristes. O seu corpo foi encontrado sem a máscara facial, e a família não tinha nenhuma foto dela. Não há nenhum registro de como ela era em vida.

​​Ivan não tinha como dar uma resposta definitiva para a família sobre o que aconteceu com ela exatamente. Mas pensou que poderia tentar dar alguma coisa: uma imagem dela.

Hoje em dia, existem técnicas avançadas de reconstrução de rostos de pessoas que morreram há muito tempo. Elas envolvem exumação do cadáver, exames de ressonância magnética para se obter um modelo 3D da pessoa e reconstrução do rosto por programas de computador. 

Infelizmente, essas metodologias estavam muito fora do alcance de Ivan. Mas, mesmo assim, decidiu tentar alguma coisa.

Ele contratou um pintor, o Gustavot Diaz, que é especialista em anatomia humana. Enviou para ele fotos do crânio de Sandra que constavam nos laudos, fotos de familiares e uma descrição de Sueli, sua irmã mais velha, sobre como ela lembrava da aparência da irmã. Esse é um desafio ingrato, óbvio. A lembrança de Sueli não necessariamente condiz exatamente com quem Sandra era. Então, eles tentaram ao máximo aproximar a imagem mental que ela tinha de Sandra com esse desenho.

Em um primeiro desenho, Sueli falou que estava tudo errado. Passou novas informações, que foram repassadas para o Gustavot em seguida. Ele trabalhou nesse desenho por meses e no final produziu uma pintura de 80 por 50 centímetros.

Nela, Sandrinha aparece com o seu cabelo loirinho em corte chanel, com sardas no rosto. Ela tem alguns traços que puxam mais a mãe – dona Juvelina – diferente de todas as irmãs, que puxaram mais os pais. Todas essas foram instruções dadas pela própria Sueli.

No quadro, Sandra também segura com a mão esquerda o desenho de uma flor em traços infantis. Outros desenhos infantis, como sol, nuvens e pássaros, estão espalhados pelos cantos da tela.

Ivan ficou muito emocionado em vê-la. E, por outro lado, também ficou apreensivo. Será que Sueli iria gostar? Será que o artista conseguiu aproximar melhor essa imagem física de Sandra daquela que Sueli tinha em mente?

Agora, em dezembro de 2023, Ivan foi novamente à casa da dona Sueli. Foi recebido pela Shariane, filha dela. Estavam no local também um dos filhos de Sueli, e a pequena Izabelly, filha de Shariane, neta de Sueli, que estava prestes a completar um ano de idade.

Nesse dia, Ivan levou Sueli até o carro dele para poder dar o quadro a ela.

Arte da Sandrinha, por Gustavot Diaz

Sueli é uma pessoa muito forte. Teve que ser assim para aguentar tudo o que viveu. Ivan torce para que esse retrato de Sandra agora seja uma lembrança a ser compartilhada por toda a família pelas próximas gerações.

O Caso Leandro Bossi tem mais de 30 anos. Junto a ele, existem convicções de que os crimes contra Evandro e Sandrinha provavelmente estão conectados também. E se o assassino que Ivan procura foi mesmo o responsável pelos três, ele também pode ter feito mais vítimas. Talvez aquelas crianças que desapareceram no Paraná entre 1987 e 1992. Talvez outras.

Ivan tem a esperança de que um dia poderá olhar para todos esses inquéritos e procurar por mais pistas. Esses inquéritos são mais difíceis de conseguir, visto que ele não é da polícia. E, como sempre ocorre em casos antigos assim, muita coisa certamente já se perdeu. De repente, existe algo que una tudo e que nunca ninguém percebeu.

E, nesse sentido, Ivan gostaria muito que fosse feito no Paraná algo semelhante ao que ocorreu no estado do Maranhão em 2003. Como explicou na temporada anterior sobre Altamira, naquela época foi montada uma força-tarefa da Polícia Civil com parceria da Polícia Federal para investigar todos os casos de crianças mortas de forma violenta na década anterior. 

Essa força-tarefa permitiu que o serial killer Francisco das Chagas fosse preso com provas robustas. De repente, algo similar poderia ser feito no Paraná acerca das crianças desaparecidas, especialmente após todas essas reviravoltas.

Ivan não sabe se o Sr. Pedro é o responsável por esses casos. Não sabe se ele é o verdadeiro assassino de Sandra, Leandro e Evandro. Como afirmou, há indícios que lhe deixam curioso, mas nada conclusivo. E ele vive com o medo de estar partindo de um suspeito para encontrar provas contra ele, invertendo assim a forma como uma investigação séria deveria ser.

No fim, Ivan está lidando com um espectro muito amplo. Em um extremo, por mais improvável que seja, os três casos são completamente isolados, e as três crianças foram mortas por pessoas diferentes. No outro extremo, todos os casos estão conectados e uma só pessoa as matou. Mas quem? É aí que esse espectro fica em três dimensões, ganhando múltiplas variáveis. E um mínimo movimento em falso para qualquer direção leva a uma conclusão errada.

Para ele, seria muito fácil, cômodo e bombástico dizer que resolveu o caso. Mas isso seria mentira. Ele estaria enganando os ouvintes e todas as famílias das vítimas com quem teve contato. 

Por consequência, estaria destruindo uma nova família, a do Sr. Pedro. É aqui que ele percebe como é fácil acusar alguém, e como é perigoso ter esse poder. Na melhor das intenções, com todo o desejo por justiça que construiu, pode cometer absurdos.

Ao mesmo tempo, Ivan afirma ser impressionante ver o quão longe conseguiu ir. 

Olhando esses casos 10 anos atrás, o que havia deles? O que se sabia deles? Que um menino chamado Evandro foi morto em um ritual de “magia negra” por uma seita satânica composta por, no mínimo, sete pessoas, entre elas a filha e a mulher do prefeito de Guaratuba. 

Que, antes dessa criança, o menino Leandro Bossi havia desaparecido, mas que nunca foi descoberto seu paradeiro. Que na época desses crimes havia a presença de uma tal de Valentina de Andrade em Guaratuba, que depois foi acusada de ter matado crianças em rituais de magia negra no Pará. Que os acusados de Guaratuba sempre falaram que foram torturados, mas que nunca havia prova disso.

E hoje toda essa história mudou. As torturas foram comprovadas e reconhecidas pelo Tribunal de Justiça do Paraná. As acusações caíram, todos tiveram as fichas limpas. O próprio Ministério Público do Paraná reconheceu que não há provas no caso. 

Valentina de Andrade pôde contar a sua história. O paradeiro de Leandro Bossi foi tragicamente descoberto, assim como o caso de Sandra foi colocado nessa história horrível.

Foram descobertas muitas coisas nesses quase 10 anos de investigação. Ivan conseguiu mudar vidas e trazer algumas respostas. E tudo isso seria impossível sem os ouvintes, que o acompanharam nessa jornada. 

Mas, mesmo sabendo do quanto avançou, ele confessa que ainda fica com um gosto amargo na boca. Nada parece ser suficiente. Nenhuma vitória é o bastante. Não há nada a se comemorar. No fim do dia, após toda a euforia, só lhe sobram lamentos.

Por ora, Ivan encerra o trabalho de Guaratuba. Mesmo sabendo que essas histórias nunca sairão dele. Que os rostos de Sandra, Leandro e Evandro lhe acompanham toda vez que vai dormir. Que suas perguntas provavelmente nunca serão respondidas.

E, daí, ele olha para o filho dormindo ao seu lado. Ele afirma não conseguir imaginar viver as dores dessas famílias. Nessa luta, Ivan se esforça em tentar olhar para outras imagens que construiu nesse caminho. 

De Sandra brincando de boneca com as irmãs. De Evandro feliz por ter ganhado um minigame. De Leandro jogando bafo no bar da dona Antônia. Crianças. Pequenos momentos de felicidade que ninguém tinha o direito de interromper. E de como é importante que esses casos sejam estudados e sirvam de exemplo para que não se repitam.

Nesses anos que Ivan investigou casos criminais, aprendeu muitas coisas. E conta que, se pudesse escolher, preferia não ter aprendido nada. Mergulhar nesse nível de crueldade não lhe trouxe nenhum conforto. 

Nesta temporada, o desafio era ainda maior. Ivan queria descobrir o assassino, fazer uma investigação completamente nova. Ele não sabe se conseguiu. 

Ivan se sente a todo momento andando em uma corda bamba, tentando se equilibrar para não cometer nenhum erro. E, ao perceber o quão fácil é acusar alguém talvez injustamente, a pior lição que aprendeu é a seguinte:

Em nome de inocentes, em um piscar de olhos, também se aumenta o horror do mundo. No fim, todos são atores berrando em um palco mal iluminado. Ivan é apenas o louco que decidiu contar essa história, no meio de todo esse som e fúria.

O silêncio só resta às vítimas. Que elas sejam ouvidas então.