Extras Episódio 07

Em toda investigação criminal, o ideal é que, em seu início, sempre tente-se juntar o máximo de pistas. Em seguida, a partir dessas pistas, busca-se um suspeito que se encaixe nelas. Mas existe um erro bastante comum em vários casos de investigações policiais, que é quando se inverte essa lógica. Em outras palavras, parte-se de um suspeito e, a partir dele, busca-se encaixar qualquer pista que reforce uma convicção.
Nas últimas temporadas do Projeto Humanos, Ivan Mizanzuk mostrou uma série de inocentes que foram acusados, presos e condenados por conta de erros metodológicos assim.
O que fazer quando se trata de crimes muito antigos, marcados por tantos equívocos? Como fazer para focar naquilo que realmente importa? Não existe resposta fácil. A maior parte das informações da época já se perdeu. O máximo que se pode fazer é olhar para o material produzido no período e voltar para o básico. E o básico é: há corpos e há locais. Essa tem que ser a base de tudo.
Por isso que é preciso discutir tanto sobre os corpos das crianças, especialmente de Evandro. E, a partir daí, é possível tentar montar as peças que estão espalhadas.
Nesse episódio, o penúltimo dessa temporada, Ivan encerra de uma vez por todas o que é possível saber sobre esses elementos, e também quais as possibilidades que não pode descartar. Pois, se está à procura de um assassino em série, precisa antes de tudo ter certeza de que ele existe – ou seja, de que os casos de Sandra, Leandro e Evandro estão conectados. Esse é o cenário ideal.
Em seguida, se for confirmada essa possibilidade, é necessário olhar para as pistas que o assassino deixou e tentar entender o modus operandi. Só então é que se pode começar a pensar em suspeitos.
REVISANDO O CASO EVANDRO
Depois de esclarecer maiores detalhes sobre o corpo de Evandro, tanto sobre o local quanto a natureza das lesões, Ivan sentia que precisava de uma visão externa. De alguém que pudesse olhar para o caso sem as pressões da época. E que, ainda, pudesse tentar analisá-lo em comparação com os crimes contra Leandro e Sandra.
Após meses de procura por um médico legista qualificado suficiente que tivesse disponibilidade, Ivan e a jornalista Natalia Filippin encontraram o Dr. Sami El Jundi. Abaixo, a apresentação dele ao podcast:
Dr. Sami: Sou médico de formação, fui perito médico legista do Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul durante cinco anos, e perito criminal durante quase 12 anos. Trabalhei dois anos como perito do Alto Comissariado das Nações Unidas pelos direitos humanos no Congo; e atualmente me mantenho como consultor, assessor técnico, na área pericial e como professor concursado que sou, da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, justamente na área de criminalística e medicina legal. Tenho algumas formações acadêmicas na área, o título de especialista em medicina legal, fiz mestrado em medicina forense na Universidade de Valência. Tenho uma pós-graduação em toxicologia forense, e tenho me mantido aí ativo permanente, sem interrupções, na área pericial pelo menos desde 2007.
Ivan e Natalia fizeram duas reuniões online com o Dr. Sami, discutindo os três casos. Antes dos encontros, enviaram para ele um documento contando um breve histórico dos crimes, anexaram todos os laudos disponíveis e fizeram uma lista de mais de 40 perguntas.
Laudo de local do corpo de Evandro
No geral, eles tinham duas propostas: primeiro, que ele se baseasse apenas nos documentos oficiais da época em que foram feitos, sem recorrer a depoimentos em júri, matérias de jornais etc. É claro que, eventualmente, surgiram comentários sobre essas questões extras, visto a quantidade de reinterpretações que o caso Evandro em especial sofreu com o decorrer dos anos. Ainda assim, a diretriz principal era de se manter fiel ao que os laudos em si diziam, partindo do princípio de que eles seriam as fontes de informação mais confiáveis.
E a segunda proposta era de que o Dr. Sami pudesse responder à pergunta principal: será que existem elementos concretos que permitam afirmar que as três crianças foram vítimas do mesmo assassino?
Com isso em mente, eles começaram a primeira reunião pelo caso mais notório, complexo e completo de registros: o de Evandro. Conforme dito nos últimos episódios, muito se discutia se as lesões que ele apresentava poderiam ser de ação animal, da natureza ou humana. A ausência dos olhos, por exemplo, muito provavelmente se deu pela ação de animais e da putrefação – opinião compartilhada pelo próprio Dr. Sami. Mas uma das lesões que mais traziam dúvidas era o aparente escalpe.
Confira a análise do médico sobre esse ponto em específico:
Dr. Sami: Se nós analisarmos o que está registrado pelo perito criminal no laudo de local, pelo laudo de necropsia, e as fotografias, não tem ali naquele corpo absolutamente nada que indique que o cadáver foi escalpelado. O que nós temos é uma ausência de couro cabeludo. A ausência de couro cabeludo pode se dever a várias coisas. Uma ausência de couro cabeludo que os legistas descrevem em determinados momentos como “não havendo lesões do periósteo”, ou, então, daquela estrutura que recobre o osso e que fica entre o couro cabeludo e o osso. A partir daí, deduzem que esse couro cabeludo teria sido arrancado, teria sido retirado. Mas os próprios peritos descrevem os bordos do que restou de tecido facial. Então, por exemplo, há um nível de separação entre a ausência de pele e a presença de pele que se dá mais ou menos um pouco abaixo da sobrancelha, do nível da sobrancelha – para ficar mais fácil para as pessoas se localizarem -, que, apesar de uma aparência de regularidade, se nós olharmos de perto, os bordos são irregulares, e está em estado de putrefação. Então, objetivamente, o que há para indicar um escalpelamento? Nada. Existe a ausência do couro cabeludo. Essa ausência de couro cabeludo, então, por dedução, num exercício interpretativo, poderia ser produzida por várias coisas. Uma delas é o escalpelamento. Poderia ser, é uma hipótese. A outra é a hipótese de que tenha sido produzida pela ação de animais. Aí a gente tem que considerar a ação de animais não apenas como aquela ação que nós pensamos, que vem um cachorro, que vem um gato, que vem um roedor e morde. A ação de animais… Quem já pegou locais de crime com animais atuando sobre o corpo humano… A gente vê de tudo. Por exemplo, eu já vi destruição de lesão inicial muito ampliada por lambedura de gato. Gato não morde, não arranca pedaços, ele apenas fica lambendo os bordos. E o que a gente tinha, que era, por exemplo, uma marca de tiro, com os bordos característicos do tiro, está ampliada, bastante ampliada; e a gente vai descobrir que é um tiro porque examinou internamente. Mas a pele está bastante ampliada com os bordos arredondados e com uma certa regularidade. Por quê? Porque o gato vai destruindo os bordos com a língua. Então, quando nós pensamos em fauna, a gente tem que pensar em toda a diversidade da fauna, pássaros, felinos, roedores, e como eles podem agir sobre o corpo. O que nós sabemos, tanto da literatura quanto da prática envolvendo corpos expostos à ação da fauna, é que a fauna tem algumas predileções, ela é variável de acordo com a região onde o corpo está. Então, não é a mesma coisa um corpo fechado numa casa que tem só gatos, com um corpo fechado numa casa que tem gatos e cachorros, com um corpo em espaço aberto que tem determinado tipo de fauna na localidade. E essa fauna tem algumas predileções. Ela pode começar por onde tem sangue, ela pode começar… As aves gostam muito disso… Começar por tecidos mais macios. Então, é muito comum que a gente pegue aves que vão testando com as garras os tecidos e têm preferência por axilas, que têm o tecido bem macio, lábios, pálpebras, e deixam o resto íntegro para o final, para os predadores maiores; ou que comecem por onde estão os primeiros sinais de putrefação. Então, uma das coisas que se observa no corpo do Evandro é que ele tem diferentes estágios de putrefação em diferentes partes do corpo, o que eu diria que é extremamente comum, porque depende de circunstâncias microambientais e não macroambientais. Elas não dependem daquilo que age sobre todo o corpo, mas daquilo que age sobre cada parte do corpo. Não é a mesma coisa a pele que está exposta ao sol, por exemplo, da pele que, 10 centímetros abaixo ou atrás, está encostada no solo úmido. Elas vão apodrecer de maneira diferente. Isso vai permitir que diferentes componentes da fauna atuem sobre diferentes partes. O que aparece no corpo do Evandro é que os legistas identificam uma área de putrefação um tanto mais acentuada na nuca, que pode decorrer justamente da posição em que o corpo se encontra, e a nuca está encostada no solo, e isso pode se refletir sobre o crânio e produzir interesse por um determinado tipo de fauna local que se inicie por essa área. Então, eu diria assim, o que nós temos de concreto? A ausência do couro cabeludo. Os bordos nada informam porque eles estão alterados em estado de putrefação e não são regulares de corte. Então, podemos hipotetizar um escalpelamento? Eu diria que é uma hipótese válida do ponto de vista teórico, mas consideradas as circunstâncias ambientais e o estado do resto do corpo, não seria definitivamente a minha primeira hipótese. A minha primeira hipótese é a de ação… Que foi a mesma dos legistas no laudo de necropsia feito no dia 12 de abril de 1992, de que era ação da fauna local.
Nesses anos investigando o caso Evandro, Ivan já havia ouvido uma ou outra pessoa falando que não poderia ser descartada a possibilidade de ação animal – interpretação esta que, importante lembrar, é contrária àquela do Dr. Francisco Moraes e Silva, o legista que examinou o corpo de Evandro.
E, dessa vez, Ivan estava propenso a considerar melhor essa possibilidade. Não apenas porque estava interessado em saber todas as condições possíveis, mas também porque já havia visto um evento similar no caso dos meninos emasculados de Altamira. Especificamente, o garoto Klebson Ferreira Caldas, morto em novembro de 1992. Após poucos dias na mata, seu crânio já estava à mostra, sem nenhuma pele, e isso teria sido por ação da natureza.
Claro que a fauna e flora de Guaratuba são diferentes de Altamira, que fica no meio da floresta amazônica. Mas, ainda assim, todas as possibilidades estavam abertas. Só que, diferente de Klebson, de Altamira, Evandro ainda tinha pele no rosto. Pelas fotos, aparentava estar apenas sem o couro cabeludo. E também sem as orelhas.
Ivan: Essa retirada do couro cabeludo envolve também retirar as orelhas? Que a gente não vê as orelhas ali nele também. Então seria a mesma ação? Ou podem ser ações separadas?
Dr. Sami: Digamos que… Vamos explorar um pouquinho a hipótese do escalpelamento, que envolveria as orelhas. A grande questão do escalpelamento é: qual é o propósito de quem pratica o ato? Qual o propósito de quem pratica o ato? Não faz parte da nossa cultura, não há nenhum elemento ritualístico, que eu conheça, pelo menos, que envolva o escalpelamento. Os escalpos, como nós conhecemos do cinema, muito utilizados por Hollywood para explorar o que seria uma prática indígena, de algumas tribos indígenas nos Estados Unidos da América, não eram bem assim. O escalpo, na verdade, começou a ser praticado pelos colonos brancos como forma de provar que haviam matado indígenas. Então, a entrega do escalpo gerava uma remuneração em troca de matar os indígenas. E os indígenas passam a escalpelar, aprendendo com os colonizadores, e reproduzindo, então, a prática do seu agressor. Então, sequer faz parte de uma cultura específica. O escalpelamento, nessa época, era uma forma de não ter que carregar o corpo para poder cobrar a recompensa por ter matado um indígena. Então, eles carregavam o escalpo e podiam carregar vários escalpos e receber prêmios maiores por um custo menor. Era um problema logístico, sabe? Não era uma questão cultural, ritualística. Era uma questão logística. Então, qual é a motivação de quem retira o escalpo? Essa seria a primeira pergunta. Com que propósito? Com o propósito de guardar um troféu? Com o propósito de dificultar a identificação, que foi o que se cogitou em vários momentos? Bom, mas qual é o componente de identificação presente no couro cabeludo que seria relevante mesmo para um leigo? Ocultar que a criança tem cabelos loiros? Olha, convenhamos, nessa região, nós estamos falando de mais de 90% da população local. Então, o propósito em si seria estranho até mesmo a um leigo. O propósito ritualístico também me parece que não encontra nenhum amparo em nenhum ritual conhecido. As orelhas teriam que entrar nesse contexto. Quer dizer, qual é o propósito de alguém retirar couro cabeludo com orelhas? Fazer o que com as orelhas? Entretanto, para os animais, não faz diferença. Se a putrefação se inicia, por qualquer motivo, é uma área… Torna aquela área mais acessível para insetos necrófagos e depois para predadores de pequeno porte, eles podem começar por aí; e a orelha é parte do manjar, então faz algum sentido que as orelhas… Para mim, faz muito mais sentido que as orelhas tivessem ido junto com essa dieta local do que terem feito parte de qualquer outra coisa. Ainda que a gente possa recolher da literatura especializada o uso das orelhas para a identificação, não era definitivamente a primeira escolha. O que também para mim fala o contrário à hipótese do escalpelamento.
Ivan: Mas só para bater com o senhor, porque eu quero verificar isso, tá? O que eu fico pensando é na possibilidade de a gente ter um ofensor que tenha algum delírio, em que esse é um ritual próprio dele, e que ele prefira… Por algum motivo, ele faz isso. Igual o Chagas lá no Norte, no Maranhão, fazia as emasculações, e às vezes tirava um dedo. Não faz sentido dentro do rol de crimes comuns que a gente conhece, mas existe o ritual próprio do cara. Assim, existiram elementos ou não? Descarta isso aqui logo? A chance muito maior é de ação animal mesmo? A gente tem que largar essa parte do escalpelamento como alguma coisa que a gente tem que ficar olhando?
Dr. Sami: Pegando esse teu mesmo raciocínio, se ele faz sentido do ponto de vista do fetiche do agressor, do fetiche do agressor, o problema do fetiche do agressor é que ele só faz sentido para ele mesmo. Então, se para o agressor faz sentido só o couro cabeludo, ele vai recolher o couro cabeludo, ainda que, realmente, a gente tenha dificuldade de vislumbrar… Nós temos históricos, por exemplo, de agressores guardando as orelhas da vítima. Mas não as orelhas e o couro cabeludo. Eu diria: não é impossível, mas faz pouco sentido. Seria muito mais provável, então, a gente pensar em um agressor que eventualmente retirou as orelhas da vítima e as guardou como troféu, e que o couro cabeludo tenha então sido perdido pela ação de animais. Isso faria muito mais sentido para mim do que alguém que retirasse couro cabeludo e orelhas para ter esse conjunto como troféu. Entre outras coisas, porque isso também gera alguns problemas de logística para quem armazena tudo isso. A mente humana nos permite várias possibilidades. Ou seja, nada me surpreende quando a gente fala de comportamento humano. Absolutamente nada. Nós temos desde colecionadores de cabeças até colecionadores de peças, de dentes, de nariz, de orelhas, de olhos. Temos colecionadores de tudo na história. Então, eu te diria que não me surpreende. Só que nesse contexto de alguém que guarda esse tipo de troféu, o que eu esperaria? Eu esperaria que isso se repetisse várias vezes. E o que nós temos é praticamente um, talvez dois casos isolados nesse sentido.
Ivan: Aham. Isso que o doutor tá falando até elucida muito… Porque sempre foi o meu incômodo quando eu olhava as fotos… Mas eu sempre ficava dizendo: “tá, mas onde tá o corte desse escalpelamento? Como que pode forçar tanto? E qual é essa diferença entre o que eu estou vendo no crânio dele, na cabeça, e já aqui do lado do olho ou na bochecha?”. Porque você vê que aqui é como se ainda tivesse pele na bochecha, e aqui no couro, onde seria o couro cabeludo, está sem. Mas eu estou vendo um pouco de pele ainda no que seria o couro cabeludo dele? Existe alguma camada? Ou eu já estou vendo o osso direto? E qual é a diferença aqui de níveis de camadas de pele entre a bochecha e o crânio?
Dr. Sami: Quando a gente vai efetivamente para o crânio, nós temos um nível de pele, um nível de tecido, digamos… Não de pele, mas um nível de tecido superficial que se mantém ainda nesta região temporal, ao redor da orelha, indo até a base do crânio. Então, se tu olhares nas fotografias, tu vês que tem uma diferença de coloração ali entre a coloração mais clara, que a gente vê claramente o osso, nitidamente o osso; e uma coloração mais escura, onde ainda tem alguns restos de tecido superficial. Isso por si só não confirma nem exclui nenhuma das duas hipóteses porque o escalpelamento também não necessariamente teria sido perfeito se tivesse sido realizado. Depois nós temos um nível de tecido onde conseguimos sim distinguir claramente que permanece pele, que se dá mais ou menos no nível das sobrancelhas, na altura das sobrancelhas. Daí para baixo, o que nós vemos é a preservação da pele em um estado de putrefação que os próprios legistas já descrevem como coliquativo, que é aquela etapa em que nós, ainda na fase inicial do coliquativo, conseguimos identificar a presença dos tecidos, mas eles já estão desmanchando. Eles já estão gosmentos. Se a gente tocar, ele está gosmento e se desmanchando. Isso facilita muito a atuação especialmente de pequenos predadores que não conseguem pegar grandes nacos de tecido. Então, o nível está mais ou menos bem definido. Inclusive me recordo que, adiante nesse caso, vão surgir uma série de depoimentos, inclusive de peritos do caso, em que vai se tratar a questão do escalpelamento como tendo sido incluída a retirada da pele do rosto. E a retirada da pele do rosto nitidamente não aconteceu. As fotografias deixam isso bem claro, né? A pele do rosto estava lá, ela já estava alterada pela putrefação, mas ela estava lá. Tanto que tem uma descrição no próprio laudo de necrópsia – ou necropsia, como preferem alguns – de lesões nos lábios, de perdas, de lesões em saca-bocados, ou seja, lesões produzidas por um misto de corte, contusão e arrancamento nos lábios; indicando que os lábios estavam lá e que o resto da pele do rosto também estava. Tanto que fizeram questão de descrever as lesões dos lábios. Então, isso é uma coisa… Surge depois a história do escalpelamento com perda do rosto, que seria então para dificultar… Mas o fato é que o rosto nunca foi arrancado ou retirado, seja por ação humana, seja por ação animal.
Ou seja: pelo menos no caso de Evandro, visto o processo de putrefação e o local em que ele foi encontrado, não se pode afirmar com toda a certeza que ele foi realmente escalpelado. O fato é que ele estava sem o couro cabeludo e sem as orelhas. Mas, de acordo com o Dr. Sami, pode ser que isso tenha sido ação da natureza. Ou pode ter sido ação humana. As duas possibilidades são viáveis.
Além do suposto escalpe, as outras lesões que levantavam questionamentos envolviam as ausências das mãos e dos dedos dos pés.
Dr. Sami: […] Nesse aspecto, o laudo de necropsia tem algumas deficiências, uma deficiência relevante que a gente pode comentar depois. Mas ele tem algumas coisas que os peritos fizeram questão de descrever detalhadamente, e uma delas é a questão das mãos. Então, no item 5 do exame externo, eles colocam claramente: “ausência das mãos ao nível dos punhos com coto apresentando superfície com lesões em saca-bocado (lesões pós-morte, fotos números 1, 2, 5 e 7)”. Esses peritos vão ser quesitados pela autoridade posteriormente. Então, eles vão responder a um ofício sobre isso com quesitos complementares. O segundo quesito: “se na região em que foram retiradas as mãos do menor, extremidades – o quesito já induz que elas foram retiradas –, há sintonia de haver sido utilizado instrumento perfurocortante?”. Resposta: “as extremidades dos membros superiores se apresentavam com lesões em saca-bocado que são consequentes da ação de animais carnívoros, especialmente roedores”. Então, a lesão em saca-bocado é essa que envolve um misto de mordida – a ação corto-contundente dos dentes, eventualmente perfuração de dentes mais finos, como os caninos em alguns animais; mas em outros, em alguns felinos, os dentes pequenos todos podem ser finos e produzir lesões perfurantes – e um arrancamento. Ele morde e arranca. É a típica lesão do roedor, do pequeno roedor. Ratos e seus familiares, seus aparentados da região. Os peritos não apenas descrevem no auto de necropsia lá originalmente uma lesão em saca-bocado, como eles reiteram isso na quesitação: a lesão em saca-bocado. Não há, nessa descrição, absolutamente nenhum elemento trazido pela perícia de superfície de corte que pudesse indicar a existência de uso de um instrumento cortante, de um instrumento corto-contundente, ou de um instrumento como uma serra, por exemplo, que pudesse ter deixado as suas marcas características. Isso vai surgir posteriormente em 1998 a partir de uma reanálise de fotografias em preto e branco ampliadas, produzidas dessa necropsia. Mas o fato é que na necropsia os peritos insistem que foi em saca-bocado. Eu te diria que eu não tenho nenhum motivo… Ainda que a gente pudesse dizer: ok, mas qual era a superfície de corte, óssea? Eu não localizei e acredito que não tenha sido feito na época estudo antropológico.
O Dr. Sami se refere a uma área que hoje é mais presente na perícia criminal, a Antropologia Forense. Um profissional desse ramo é justamente o que se dedica a realizar um exame mais detalhado de ossadas, corpos ou de pessoas vivas não identificadas.
Em 1992, essa prática não era ainda bem estabelecida. E talvez isso explique a ausência de informações nos laudos que hoje seriam importantes. Por exemplo, não há detalhes se os braços de Evandro, de Sandra ou os ossos de Leandro tinham marcas de serra ou sinais de cortes feitos por instrumentos. Particularidades assim são geralmente discutidas a partir dos relatos e memórias dos peritos e médicos que trabalharam nesses casos na época.
Dr. Sami: Não foi feito um estudo antropológico desse corte, então não foram analisados e estudados os ossos. Há uma citação num determinado momento de que teria sido feito um estudo radiográfico, mas o estudo radiográfico não aparece em lugar nenhum. E eu diria, com 99,9% de convicção, que não foi feito estudo radiográfico. Então, nós poderíamos questionar: bom, mas qual era a superfície de corte desses ossos? Para poder, então, excluir que tenha sido só uma ação animal e poder afirmar que alguém poderia ter serrado esses ossos ou utilizado um facão. E aí a gente tem que lembrar de um detalhe: o Evandro tinha seis anos de idade, sete anos incompletos, né? Seis, seis e meio. Aos seis anos, o osso de uma criança… Se pegarmos o principal osso do antebraço e da articulação do punho, que é o rádio, aos seis anos e meio, o rádio não é um osso único, ele é composto de três partes. Ele é composto de uma epífise proximal, que na idade mais tenra é praticamente toda ela cartilaginosa; e tem uma separação, uma divisão entre a epífise distal e a diáfise, que é o corpo do osso, de cartilagem, o osso; mais uma divisão cartilaginosa e uma epífise distal que então compõem a articulação do punho. Então, são três ossos. Quando ocorre, seja a ação direta de animais, seja o próprio processo de putrefação evoluindo pra esqueletização, essa cartilagem se separa… Esses fragmentos ósseos das pontas se separam do osso principal, eventualmente deixando a cartilagem, que também pode desaparecer com a esqueletização ou pode ser comida por pequenos animais. O que nós vamos ver ali é a aparente falta de um segmento do osso, que termina não com o formato clássico que se vê no adulto, mas que termina numa superfície arredondada e rugosa, que seria recoberta pela cartilagem. Então, se eu tenho a ação de pequenos animais aqui, essa epífise distal se foi junto com os pequenos ossos da mão. Foi embora. Ela pode ter se perdido no local ali, podia estar por ali, não foi encontrada, é um ossinho muito pequeno. Ela poderia ter degradado a ponto de desaparecer. O tempo não era suficiente para isso, então isso está descartado. Mas ela pode ter sido consumida, assim como as mãos foram consumidas. E a gente vai ver isso claramente aonde? No pé, que também não existe e que tem a mesma descrição de lesão em saca-bocado.
Ivan: Os dedos, né?
Dr. Sami: A ausência dos dedos dos pés apresentando os cotos superficiais em saca-bocado. Os dedos dos pés. O mesmo fenômeno… Vamos lá, alguém amputou as mãos e amputou os dedos dos pés também? Não, mas os animais começaram pelas mãos? Sim, começaram pelas mãos como começaram pelos pés, começaram… Os pequenos predadores mordem aquilo que a sua boca alcança, as pontas dos dedos. Nós temos casos infelizes por aí de bebês que tiveram as pontas dos dedos comidas por ratos, morando em casebres em condições subumanas, vivos, e tiveram as pontas dos dedos comidas por ratos. Esses pequenos roedores começam por aquilo que alcança caber na sua boca, a ponta dos dedos, e vão avançando sobre isso, tá? Então, assim como sumiram os dedos dos pés por pequenos roedores, sumiram as mãos. Não há absolutamente nenhum elemento descritivo que permita afirmar que essas mãos foram amputadas. As mãos foram comidas. E é isso que está claramente descrito.
Ivan: Eu vou te passar, então, a interpretação que eu fiz com base em tudo o que eu ouvi dessa descrição dos saca-bocados. Daí eu queria ouvir o comentário do doutor. Existe a ausência da mão. Os bordos em torno dos cotos são muito irregulares, com putrefação avançada. E o que na verdade seria esse saca-bocado seria a ação dos roedores nas bordas, não exatamente… Que, assim, se fosse o arrancamento da mão inteira por animais, a gente teria outros elementos. Por exemplo, seriam encontrados ossos ali perto, você veria alguma mancha no fundo, algum líquido que saiu, alguma coisa assim. Como há uma certa limpeza na região ali logo abaixo de onde deveriam estar as mãos, e a gente tem essa ação dos animais nas bordas com a putrefação avançada, vamos dizer assim, não dá para dizer com certeza, mas a maior chance é que essas mãos já não estavam lá quando o corpo foi jogado. O que o doutor teria a comentar sobre essa hipótese?
Dr. Sami: Por correlação, tá? Tu tens ali… Essa é uma grande dificuldade que a gente tem quando se depara com determinadas condições ambientais. Quando eu comparo o fato concreto com o livro, a situação no livro é outra. As fazendas de corpos nos Estados Unidos tentam reproduzir o máximo de variantes para que elas possam eventualmente ser comparadas com casos concretos. A Universidade do Tennessee, por exemplo, mantém uma… Mas tu tens ali um ponto de referência no próprio corpo, nos dedos dos pés. Por que esses mesmos elementos que tu está questionando com relação às mãos, não estão nos dedos dos pés? Os dedos dos pés sumiram. Cadê os ossinhos dos dedos dos pés?
Ivan: É que os dedos dos pés…
Dr. Sami: Cadê o sangue? Os dedos dos pés são menores…
Ivan: São menores, e a gente vê… É que não tem nenhuma foto que apareça o pé assim, para a gente ver. Mas a gente consegue ver, por exemplo, nas fotos, que os pés aparecem um pouco melhor, que não parece ser um corte tão, entre muitas aspas, regular, como nos punhos ali retirando as mãos. Então, eles parecem ser mais ações de animais, em que parece mais irregular do que…
Dr. Sami: Mais irregular.
Ivan: Mais irregular do que um corte. Sim, eu sou leigo, doutor, por isso que eu preciso… Acho que a gente pode dizer assim… Acho que a minha pergunta seria mais ou menos: animais poderiam produzir um tipo de lesão que, um leigo olhando, parece que foi cortada com instrumento corto-contundente? Porque parece que foi arrancado com facão, olhando… Mas eu sou leigo. Então, assim, os animais conseguem produzir esse tipo de… De acordo com a literatura?
Dr. Sami: Conseguem. A primeira coisa que a gente tem que pensar é o seguinte: voltemos para a mão de uma criança de seis anos e meio. A mão não é uma estrutura única. Ela é composta por vários ossinhos, assim como os dedos. São vários ossinhos. O animal não precisa vir abocanhar a mão. Ele precisa comer a ponta do dedo. Depois ele precisa comer mais um pedaço do dedo. Mais um pedaço do dedo e ele chegou na mão. Se ele comer a mão em pedacinhos, ele tem um monte de ossinho, e de novo… Nós voltamos para uma criança de seis anos e meio. A maior parte desses ossos da mão ainda tem pelo menos 50% do osso com núcleo cartilaginoso, para poder crescer. Senão, essa mão não cresce. E ele vai mordendo aos pouquinhos. Ele vai levando aos pouquinhos, tá? E aos pouquinhos ele vai retirando ossinho por ossinho. E vai retirando como? Onde é mais fácil. Onde é mais fácil? É mais fácil o animal pegar, por exemplo, o dorso do punho e vir subindo pelo braço ou ele ir pescando ao redor o que já está disponível? Na medida em que soltou aquele ossinho dali do meio, ele vai pegando ao redor? Então, esse padrão de irregularidade caótica requer a intervenção de vários elementos em momentos diferentes. A gente está falando de elementos semelhantes… Por exemplo, pequenos roedores atuando em grupo, em pequenos grupos, ou um casal alimentando a ninhada, eles têm um padrão. E esse padrão não é caótico. A natureza não é caótica, ainda que, quando a gente olhe pequenos padrões, pareça que eles são caóticos. Quando a gente se afasta um pouquinho, nós vemos regularidade em tudo. E aqui eu te diria assim, a regularidade se baseia num princípio de economia que existe em todas as espécies vivas, chama-se princípio do menor esforço. Na medida em que tu cria um espaço, aproveita todo ele. Cria um novo espaço e aproveita todo ele, e isso produz um padrão com uma certa regularidade. Por exemplo, se nós estamos cogitando da ação da fauna no crânio, com ou sem escalpelamento, quer dizer, a fauna veio depois, por que ela não consumiu caoticamente o crânio? Por que não tem mordida num lado e depois noutro completamente desorganizado? Essa mesma fauna segue uma racionalidade que envolve o mínimo de esforço, o princípio da economia da energia, o mínimo de esforço, aproveitando aquilo que já se criou de oportunidade. E, a partir dali, ela não faz novos orifícios se já existe um orifício para explorar. Ela só vai procurar criar um novo orifício quando aquele que ela está explorando esgotou as suas possibilidades. É como seres humanos roendo osso. Tu até pode achar que o ser humano roendo osso segue uma grande racionalidade. “Não, eu vou escolher esse lado aqui e vou escolher este outro”. Mas, na verdade, o ato é 90% instintivo. A gente vai mordendo e testando onde cede com mais facilidade.
Ou seja, de acordo com o Dr. Sami, assim como não é possível dizer que a falta do couro cabeludo seria por um escalpe, também não há elementos para afirmar que as ausências de mãos e dedos dos pés seriam por ação humana. E tudo isso é com base nos documentos.
No júri de 2004, por exemplo, o Dr. Francisco dava detalhes ao juiz Rogério Etzel sobre como poderia afirmar que as mãos foram cortadas por ação humana.
Juiz Etzel: Ele não tinha as mãos e nem parte dos dedos. Essas lesões não foram causadas por esses animais?
Dr. Francisco: Não, não. Eram lesões externas produzidas por alguém.
Juiz: Por alguém… Instrumento…? Não se… Perfuro?
Dr. Francisco: Cortante.
Juiz: Cortante?
Dr. Francisco: Cortante ou corto-contundente. A regularidade da lesão lembrava muito um instrumento corto-contundente, Excelência.
Juiz: Certo.
Dr. Francisco: Lembrava instrumento corto-contundente… Seria da maior conveniência porque também eu não tenho condições de, cinco anos depois, me lembrar de tudo o que eu falei.
O Dr. Francisco falava em instrumentos cortantes, como facas, ou corto-contundentes, como facões e machados. Mas nada disso está nos laudos. Então, isso se resume a um dilema: confiar na memória do Dr. Francisco? Ou se ater apenas aos que os laudos dizem, fazendo com que todas as perguntas que surgem sejam deixadas em aberto por consequência?
Se optar pelo último caminho, não se pode descartar que boa parte dessas lesões pode ter sido causada por ação animal ou do ambiente. Sobre o corte na barriga, o Dr. Sami concorda que foi feito de forma regular. O que não dá para afirmar é se foi um corte único, ou se o ofensor teve que continuá-lo e corrigi-lo no meio do processo de abertura. De qualquer forma, de uma coisa o médico não tem dúvida: aquilo foi ação humana. O mesmo ele diz sobre as costelas cortadas.
Dr. Sami: O abdômen poderia perfeitamente ter sido atacado por animais, sem necessidade de ação humana. Mas, aquelas costelas, da forma como elas estão, o que a gente verifica nas costelas… Nós estamos falando, ainda que de uma criança de seis anos e meio, já tem um componente ósseo ali um pouco mais resistente no ponto onde houve a secção das costelas. E tem um padrão ali, realmente tem um padrão na secção das costelas que mantém uma linearidade dos dois lados. Então, eu te diria… Mesmo sem examinar o bordo, o rebordo dessas costelas, e nós voltamos ao problema das deficiências do auto de necropsia, não tem uma descrição mais detalhada desses rebordos… Mesmo não tendo detalhes sobre os rebordos, esse padrão definitivamente não parece um padrão produzido por animais. O local escolhido… E aí eu esperaria o quê? De novo, a lei do menor esforço. O animal… É mais fácil ele entrar pelo abdômen – então, uma vez que, por exemplo, a gente pensasse uma lesão abdominal iniciada pelo abdômen –, ele entrar pelo abdômen e comer os tecidos moles por baixo das costelas, do que ficar arrancando e quebrando o osso. O mesmo princípio da economia. Eu precisaria de predadores maiores para produzir esse tipo de coisa e, quando nós vamos para predadores maiores, com presas maiores, com mandíbulas maiores, é virtualmente impossível produzir esse grau de regularidade. Então, mesmo sem ter detalhes sobre os rebordos das costelas, eu diria: este padrão não é um padrão de fauna local, tá? Os arcos costais, aparentemente, foram serrados ou cortados com algum instrumento semelhante. Pode ter sido… Como não tem detalhes nem fotográficos nem descritivos desse rebordo, isso pode ter sido serrado ou pode ter sido utilizada uma tesoura que num determinado momento já não mastigou o osso do outro lado e produziu esse bisel, esse recorte. Então, estava cortando bem de um lado, do outro lado deu uma mastigada no osso.
Ivan: Uma tesoura de jardineiro, por exemplo, né?
Dr. Sami: Tesoura de jardineiro, que é a coisa que mais se assemelha a um costótomo e que é regularmente utilizada nos IMLs. Os IMLs utilizam regularmente, para produzir esse tipo de corte, uma tesoura de jardineiro mesmo. Esse recorte, apesar de também ter sido comentado no processo que não era um recorte adequado… Olha, ele coincide com o padrão utilizado nos IMLs. Ele coincide com o padrão. Inclusive o local… Os IMLs… Dependendo muito da experiência do técnico, vão conseguir abrir um pouco mais para os lados para expor melhor a cavidade torácica, ou, eventualmente, o técnico iniciante corta um pouco mais para o meio e deixa uma exposição não tão boa da cavidade torácica. Então, é um padrão que pode ter sido produzido por uma serra. Sem descrição, eu não excluo que possa ter sido usada uma tesoura, como uma tesoura de jardineiro, e é um padrão que a gente conhece muito bem, de corte de arcos costais, que é um padrão de exposição torácica, de IML.
E aqui volta uma questão que sondava o caso Evandro desde o início: os cortes que ele apresentava poderiam ter sido feitos por um médico ou alguém com conhecimento de medicina legal.
Como foi mostrado no episódio anterior, o Dr. Francisco sempre negou essa possibilidade, ao afirmar que a pessoa demonstrava desconhecimento de anatomia infantil. Segundo ele, alguém com expertise faria cortes precisos nas cartilagens presentes nas costelas de crianças, sem necessidade de golpes tão grosseiros. Mas o Dr. Sami discorda dessa afirmação. Ao seu ver, essa hipótese não poderia ser descartada tão rapidamente.
Dr. Sami: Eu vi que nos autos, num determinado momento, se comenta que alguém mais experiente teria usado as cartilagens que ficam um pouco mais para o meio. Mas isso reduz a exposição. Quem fez aquilo ali, por algum motivo, queria uma exposição total da cavidade torácica, e conseguiu o que queria. A partir de uma ação humana… Então, voltando para o que é a base do teu raciocínio, para a inicial, para a questão do escalpo, para a questão das mãos, de que uma ação humana… Uma ação humana poderia ter se sobreposto à ação da fauna, que me parece que não é o caso do escalpe, não é o caso das mãos, é o caso do tórax e do abdômen. Se tu tens uma lesão provocada intencionalmente, isso vai chamar os animais e, a partir daí, esse vai ser o grande motivo, a grande isca, para eles se alimentarem. A ausência de órgãos ali com a ação animal não me diz nada, não me diz absolutamente nada. Eles vão se alimentar do que estiver disponível para se alimentarem.
Ivan: Pode ser que os órgãos tenham sido todos comidos por animais, então?
Dr. Sami: Literalmente comidos. A lei do menor esforço de novo. Nós estamos falando de vísceras, nós estamos falando de órgãos que são molinhos, facinhos, de pouca resistência, e que alguém propositalmente deixou exposto.
Ivan: E são animais que agem mais… São animais que agem mais à noite? Porque, de novo, eu estou pensando na quantidade de animais que um corpo aberto assim chamaria, e tem gente ali na região. Pouca gente, mas tem. Você ouviria barulhos, você… Os próprios urubus chamaram a atenção…
Dr. Sami: Roedores, pequenos felinos, vão atuar mais à noite. São animais preferencialmente noturnos e vão atuar mais à noite. Mesmo que o alimento esteja ali, eles não tendem a sair da toca, como regra geral, não tendem a sair da toca para se alimentar nesse horário, mas as aves sim. Então, as aves têm um padrão que não necessariamente elas podem ficar ali se alimentando. Elas podem vir recolher um bom naco, levantar voo de novo e alimentar a ninhada, por exemplo.
Ivan: Não teria vísceras espalhadas, alguma coisa assim?
Dr. Sami: Possivelmente. Possivelmente teria vísceras espalhadas, especialmente o intestino. Por suas características, teríamos fezes no local, tudo isso poderia estar ali espalhado. Então, eu diria que tem uma grande chance de ter sido a fauna, mas tem essas questões que levantam dúvidas sobre se não foram retirados os órgãos, especialmente os órgãos abdominais. Torácico, a gente observa uma coisa: o pulmão direito estava lá.
Ivan: Não é um pedaço do pulmão esquerdo?
Dr. Sami: Está descrito um pedaço do pulmão direito.
Ivan: Eu lembrava ser do esquerdo…
Dr. Sami: Do esquerdo, o que nós temos descrito… Deixa só eu localizar aqui…
Ivan: Eu estou com ele aberto aqui também…
Dr. Sami: No laudo, eles dizem apenas: “constata-se a ausência parcial dos órgãos intratorácicos”. Só isso. Na complementação, eles se referem à presença do revestimento ceroso no interior do tórax, do abdômen, condição devido à ação humana. “Pois a ação de animais carnívoros deixaria lesões dependentes do tipo de mordida destes”. Discordo parcialmente disso aqui, mas está de acordo, digamos, em termos gerais, com a hipótese de terem sido retirados. Mas é num depoimento que vai surgir depois, que se fala no pulmão direito… E se a gente olhar as fotografias, analisar as fotografias, é do lado direito que tem um segmento de pulmão bem evidente, principalmente mais inferior. O terço inferior do pulmão direito está presente. O que a gente vê do lado esquerdo? Aí é um ponto interessante. O que nós vemos do lado esquerdo? Uma grande mancha escura, vinhosa, um vermelho escurecido, ocupando todo o hemitórax esquerdo; que destoa do lado direito, destoa significativamente nas fotografias do lado direito. Do lado direito, que tem fragmentos de pulmão, está mais claro. O que nós temos do lado esquerdo? E aí eu quero te remeter ao laudo de perícia de local. No laudo de perícia de local, os peritos descrevem algo muito interessante. Item cinco do laudo de perícia de local… Lesão… Está na página 4, de 5, da transcrição. “Lesão com características de ferida contusa, localizada na parte posterior esquerda do tórax”.
No quinto episódio, o Dr. Antonio Carlos Lipinski comentou sobre uma ferida que parecia ter sido feita por uma faca ou um punhal nas costas. Já o Dr. Francisco, no sexto episódio, afirmou que essa lesão teria sido produzida por uma bicada de urubu. É desse ferimento que o Dr. Sami está falando. Ferida essa que, por acreditarem ter sido causada por um animal, os legistas não incluíram no laudo de necropsia.
Dr. Sami: Tem uma fotografia bem nítida dessa lesão na parte esquerda do tórax, que está… Vamos localizar aqui… E eu te faço referência… Nas fotografias do inquérito e do laudo de perícia de local, tem uma foto feita à esquerda… Nas do inquérito da Polícia Civil, elas estão lá na folha 13. Tem um graveto indicando essa ferida nas costas à esquerda… Essa ferida… Só tem menção a ela no laudo de perícia criminal. Não há menção a essa ferida no auto de necropsia. E ela, por sua vez, coincide perfeitamente com o lado esquerdo onde a coloração é outra, é uma coloração bem escura, vista da face interna. Quando a gente olha de frente, olha para dentro, o lado esquerdo é completamente diferente do direito. Quando a gente olha as costas dele de fora, a perícia criminal descreve, fotografa e identifica muito bem uma ferida que eles chamam de ferida contusa localizada na parte posterior esquerda do tórax, e que é ignorada na necropsia. Se nós ampliarmos esta ferida com um instrumento adequado para isso, uma lente, nós vamos ver que essa ferida tem uma característica que não é uma característica produzida por animais. Ela tem uma característica de uma lesão em abotoadura. Ela tem a característica de uma ferida perfurocortante por arma branca, vista de fora. Uma facada ou algo parecido, vista de fora. Quando a gente olha o cadáver de frente, aquela mancha escura, ela não é só de putrefação, ela é de sangue putrefeito. Uma grande mancha de sangue putrefeito na cavidade torácica esquerda. Então, somando as duas coisas, eu te diria que ele recebe uma lesão nas costas, sangra no pulmão esquerdo, e essa muito provavelmente tenha sido a causa da morte. Isto aparece numa única, bem-feita, fotografia, que permite a sua ampliação, do local. E talvez tenha sido a grande motivação de ter sido aberto o tórax dele, permitir que a fauna agisse e destruísse o corpo o mais rápido possível. Quem colocou o corpo ali e quem abriu o tórax fez isso para facilitar a ação da fauna, e tinha motivos para esperar que o corpo iria desaparecer antes de ser encontrado. Essa é… Quando eu considero a ação humana na abertura do tórax e essas duas lesões, eu te diria que isso parece uma ocultação de cadáver. Ocultação de cadáver, de quem, sabendo das condições locais, facilita a ação dos animais. Assim como se amarram pedras e pesos para jogar corpo na água, caçadores deixam corpos abertos para alimentarem os outros animais.
Ivan: É uma prática conhecida por caçadores, então?
Dr. Sami: Exatamente. E poderia ser uma prática conhecida por qualquer um que morasse naquela região ali e se utilizasse daquela mata.
Ivan: Mas, assim, até pela lei do mínimo esforço, me parece ser muito mais complicado abrir a costela para deixar aberto desse jeito do que, sei lá, cavar um buraco no chão.
Dr. Sami: Talvez. Mas aí nós voltamos… Quem fez pensava o quê?
Ivan: Sim, sim.
Dr. Sami: Que cortando e facilitando a ação de animais, o corpo desapareceria sem deixar vestígios? Qual é o problema de corpos enterrados?
Ivan: Os vestígios são encontrados… Inclusive, se você deixar com os órgãos, ele demora mais tempo para esqueletizar, correto?
Dr. Sami: Alguém desenterra. Este é o grande problema, alguém desenterra. Um cachorro desenterra, alguém acha o corpo.
Mas enterrar um corpo exige tempo. Tem que cavar um buraco no chão. O corpo tem que estar em algum lugar próximo para jogar lá dentro. É muita exposição desnecessária. Seguindo a lógica do Dr. Sami, o corpo teria sido jogado lá como uma carcaça para desaparecer pela ação da natureza.
Dr. Sami: Corpos comidos por animais somem completamente. Eles deixam poucos vestígios. Ou podem se tornar potencialmente irreconhecíveis, inclusive irreconhecíveis no sentido de identificar se é humano, ou podem simplesmente desaparecer. Aparece lá um crânio tempos depois, que ninguém sabe de quem é. Mas crânio de criança também, aqui com seis anos e meio, tem boa chance de desaparecer. Então, essas lesões, para mim, não são coincidência. Porque elas envolvem ação humana. A lesão nas costas é característica da aplicação de um instrumento ali que provavelmente seria um perfurocortante, uma faca.
Ivan: Essa lesão… A gente conversou com o perito de local, o doutor Lipinski. E ele falou exatamente isso que o doutor está falando. “Para mim, isso aqui foi uma facada”. Eu perguntei para os médicos legistas sobre isso. E eles até falam em depoimento que tinham interpretado isso como uma bicada de urubu, que seria ação animal essa perfuração. É possível que tenha sido uma bicada de um animal, essa perfuração?
Dr. Sami: Vamos lá. Ele está de costas. Essa lesão é nas costas, do lado esquerdo. Na posição original em que o corpo foi encontrado, essa lesão está protegida. Então, não tem acesso de animal. Então, nós teríamos que cogitar, para que fosse uma lesão produzida por animal, que ele estivesse noutra posição, de preferência, decúbito ventral, e depois passou para o decúbito dorsal. Ok, cogitemos dessa hipótese, ainda que a lesão não seja característica. A lesão característica das aves de rapina é uma lesão um tanto mais regular, no sentido mais circular ou mais oval. Essa é uma lesão em botoeira. Eu diria que, assim, eu não gosto de usar a expressão “típica”, mas se nós ampliarmos essa imagem e botarmos ela lado a lado com as lesões típicas de facadas nos livros, ela é uma lesão de facada. Ninguém teria dúvida se aquela lesão é de facada. E ela tem essa correspondência interna. Por que no lado esquerdo, que está do ladinho do lado direito, está a três centímetros, cinco centímetros do lado direito, o processo de putrefação gerou aquele nível de escurecimento do pulmão? Na verdade, da cavidade posterior, da parte posterior da cavidade pleural. Porque ali nós não estamos mais falando de pulmão. O pulmão sobrou do lado direito, do lado esquerdo aparentemente não sobrou pulmão nenhum. Bom, o que produz isso é sangue putrefeito. Então, é muita coincidência que eu tenha uma lesão posterior esquerda que se assemelha com uma facada e eu tenha um monte de sangue putrefeito do mesmo lado internamente. É muita coincidência. Eu tenderia a concordar 100% com o perito criminal, especialmente depois de ver as fotografias do corpo internamente. E nós não combinamos, não conheço o perito criminal, nunca falei com ele…
Essa questão da suposta facada era importante porque mudava o entendimento da forma como Evandro teria sido morto. De acordo com os legistas que o examinaram, a causa da morte teria sido por asfixia mecânica, e afirmavam isso com base no fenômeno dos dentes rosados e da putrefação mais avançada em torno do pescoço. Mas, ao considerar essa provável facada, tudo muda.
Ivan: Tem a história do corte no pescoço, que o doutor já deixou bem claro antes que não tem corte, não existe essa discussão. Essa discussão vem depois, né?
Dr. Sami: Essa discussão vem depois como uma especulação. Eu diria que não é nem uma dedução, é uma especulação, assim como a tese da asfixia mecânica. A tese da asfixia mecânica também. A tese da asfixia mecânica foi e veio, foi e veio, mas ela encontra razões irrazoáveis. Ou seja, num determinado momento se sugere que o pescoço estaria protegido da putrefação porque teria sido pressionado; depois se sugere que ele teria entrado em putrefação mais rápido porque teria sido cortado, e assim vão com relação a isso. Mas, assim, não encontrei…
Ivan: E os dentes rosados também, né, que a doutora Beatriz fala…
Dr. Sami: A história dos dentes rosados… Assim, a história dos dentes rosados foi motivo de muita discussão no júri de 2011, e ela não se sustentava nem na literatura citada pela própria doutora Beatriz na época e nem na literatura posterior. Os dentes rosados são um fenômeno que não depende do mecanismo de morte. Não dependem da causa da morte, nem do mecanismo de morte. Então, ela vai ser encontrada… Ela mesma diz isso em júri, que a literatura cita que ela pode ser encontrada em enforcados, afogados e até num sujeito que tomou um tiro na cabeça. Bom, mas o que eles têm em comum? Se é uma asfixia, o que isso tem a ver com o sujeito que tomou um tiro na cabeça?
Ivan: Eu vou falar exatamente o que ela falava. Então, assim: os dentes rosados aparecem naturalmente em qualquer pessoa que morre, mas no caso de crianças que têm os dentes de leite ainda, os vasos estouram mais rápido, dando essa coloração se houver asfixia mecânica. Então, pelo prazo que passou do desaparecimento do Evandro, ter o fenômeno dos dentes rosados em cinco dias, isso era uma indicação de asfixia mecânica. Se não fosse a asfixia mecânica, deveria demorar mais para aparecer os dentes rosados.
Dr. Sami: Isso não se sustenta nem no artigo que ela citou, nem nos artigos que ela mesma citou para corroborar essa hipótese. Ela leu do artigo a parte que interessava para ela para sustentar a tese dela. Em princípio, o fenômeno dos dentes rosados requer basicamente duas coisas: a possibilidade da infiltração de sangue nos dentes, que requer sangue, em alguma medida, fluido, e a presença de canais ainda permeáveis. Esses canais vão se fechando na medida em que a gente vai amadurecendo, vai envelhecendo. Então, o fenômeno dos dentes rosados será tão mais comum quanto mais jovem for o sujeito. Existe um fator de juventude porque depende de canalículos e de irrigação sanguínea, portanto estarão presentes na dentição mais jovem com maior facilidade do que no adulto. E eu preciso de um sangue fluido que seja capaz de infiltrar. Então, ele vai ser encontrado, por exemplo, em afogados. Afogados, por quê? Bom, tem várias hipóteses para isso. Uma delas é que a posição do corpo do afogado, com a cabeça dentro da água, um pouco mais baixa, facilitaria o escoamento do sangue para a cabeça; outras de que a diluição sanguínea que dificultaria a coagulação de sangue facilitaria também a impregnação. Para muitos autores, o dente rosado é a versão dental dos livores que nós vemos no restante do corpo. Então, depende de ter possibilidade de deposição. E pode ser encontrada em qualquer causa de morte, não tem absolutamente nada na literatura, nem nos artigos que ela mesma citou, e eu revisei todos, de que seja preferencial. Ela foi descrita inicialmente por quem encontrou enforcados. Quando o pessoal começou a prestar atenção nisso, começou a encontrar isso em várias situações. As primeiras especulações é de que exigiria uma grande pressão na cabeça. Tá bom, se exige uma grande pressão na cabeça, por que aparece uma semana depois? Um dia depois, dois dias depois? Se exige uma grande pressão na cabeça, aparece agora, quando eu estou fazendo a pressão, não quando a pressão acabou. Depois que o sujeito está morto, a pressão acabou. Alguns começaram a dizer: “não, é que exige uma grande pressão na cabeça”. Outros: “não, pode ser posicional. Se a cabeça estiver numa posição que desloca mais sangue, também pode infiltrar”. Cada um foi achando uma explicação a ponto de que se encontrou no sujeito que tomou o tiro na cabeça, que não sofreu grande pressão no crânio. Então, o que se sabe é isso. Eu preciso de duas condições. Eu preciso do canal permeável para o sangue entrar e eu preciso de um sangue fluido o suficiente para entrar. Por que isso vai acontecer dias depois? Porque é quando o sangue entra em putrefação também e fica mais diluído. Por que aparece em alguns casos imediatamente? Porque não daria tempo de o sangue coagular. Então, temos explicações para todos os gostos. O fato é o seguinte: nada informa sobre a causa da morte. Nada informa sobre a causa da morte. Nem que foi asfixia, nem que não foi asfixia. É um achado que não tem relação com a causa da morte, tem relação com mecanismos próprios para produzir o achado, e não com a causa da morte. Nem os artigos que ela mesma citou… Os próprios autores dos artigos que ela citou tiveram a cautela que ela não teve quando foi aplicar os artigos para concluir no laudo de necropsia que a causa da morte foi uma asfixia mecânica.
Então, novamente, se o objetivo é começar a ver esse caso do zero, apenas com base na documentação oficial produzida na época, já foi estabelecido que não se pode descartar a ação de animais em lesões que, por muitos anos, foram garantidas como tendo sido causadas pelo assassino. Além disso, também não se pode aceitar tão facilmente a explicação da asfixia mecânica. E, sob esse olhar, é possível que Evandro tenha sido morto através da facada nas costas, que foi ignorada pelos legistas da época.
Dr. Sami: E a outra questão que eu acho relevante nisso é a do exame da região anal, que eu acredito que merece atenção. Merece atenção por quê? Porque os legistas encontraram um ânus dilatado pelo fenômeno natural da morte, pela própria dilatação e relaxamento muscular pós-morte, e encontraram uma área de putrefação. Pediram ali uma coleta de espermatozoide, que obviamente veio negativa. Eu não espero encontrar espermatozoide naquele nível de putrefação. Então, o resultado era esperado que viesse negativo. Quando o resultado veio negativo, ficou a impressão de que estava garantido que não houve violência sexual. Eu não correria… Eu não seria tão apressado em excluir a violência sexual. Eu diria que, com os achados da necropsia, nós não temos elementos para dizer que não ocorreu uma violência sexual e que esse não foi um crime de natureza sexual. Então, eu manteria isso pendurado como uma hipótese de trabalho a investigar, de que o crime tivesse natureza sexual. Nós sabemos que essa história toda pegou outro rumo, onde qualquer hipótese investigativa mais séria foi jogada na lata do lixo, mas eu não descartaria a natureza sexual desse crime, como nós não poderemos descartar no caso do Leandro, já fazendo um link aqui, mas nós poderemos confirmar no caso da Sandra.
Conforme Ivan, uma das coisas que se mostraram muito positivas dessas conversas com o Dr. Sami foi poder contar com a experiência dele tanto como legista quanto como perito de local. Como ele mesmo relatou, muitas vezes os peritos se atentam a detalhes importantes que passam despercebidos pelos médicos.
A questão da lesão nas costas de Evandro seria um exemplo disso, na opinião dele. E, ao saber de tudo isso, é fácil culpar os profissionais do passado por negligência, incompetência ou algo parecido. Mas uma coisa que nunca se deve esquecer é que o caso era complexo, e que muita informação já havia se perdido.
Isso ficou bem claro quando Ivan perguntou ao Dr. Sami sobre como se calcularia o tempo que o corpo de Evandro ficou no matagal.
Dr. Sami: Tem uma série de inferências no processo sobre o tempo que ele estaria no local, sobre o tempo que ele… Teria inclusive permanecido um determinado tempo num local fechado, e depois um tempo num local aberto. Assim, não há absolutamente nenhuma base científica para a gente poder estabelecer o tempo no local. Nós temos duas coisas diferentes: uma, o tempo de morte. Uma é o tempo de morte. Nós sabemos que esse corpo tem mais de 36 horas de morte. Agora, se tu me perguntares, mais de 36 horas, 48, 72, 96, 120? Pode ser qualquer coisa. Não há… Hoje, em termos de determinação do tempo de morte, nós temos algumas referências melhoradas pelas pesquisas científicas dos últimos anos para as primeiras 24 horas. Depois que se inicia o processo de putrefação, especialmente depois das primeiras 36 horas, dependendo muito, claro, da temperatura do local, mas basicamente depois das 36 horas, nós temos uma dificuldade muito grande para estabelecer o tempo, porque há inúmeros fatores ambientais que podem modificar isso. Então, isso quanto ao tempo de morte. Quanto ao tempo de deposição no local, nós temos ali uma vegetação que tem marcas de putrefação. Se tu olhares a vegetação que está especialmente do lado esquerdo da cabeça, ela está toda escurecida, essa vegetação. Esse escurecimento da vegetação é produzido pelo material de putrefação do próprio corpo. O que, inclusive, pode sugerir que a posição original de deposição do corpo não fosse essa, que os animais também… Se eles estão atuando sobre o corpo, eles estão produzindo lá as suas próprias forças e eventualmente modificando a posição do corpo. Então, o que nós temos aqui? Nós temos uma evolução para a fase coliquativa, o que eu diria que aponta para mais tempo do que menos, então talvez quatro, cinco dias; e nós temos esses elementos de putrefação no local. Então, pelo menos a última fase de putrefação aconteceu no local. O que nós sabemos de prático? Nós sabemos que ele desapareceu no dia 6 e foi encontrado no dia 11. Cinco dias. Então, qual é a resposta científica para isso? Olha, o estado desse corpo é compatível com cinco dias.
Ivan: Mas seria também com… É isso…
Dr. Sami: Seria com quatro também. Exatamente. Seria com quatro também. Assim como seria com cinco, seria com quatro. Eu diria que mais para cinco do que para dois, então vamos em direção ao cinco, vamos tensionar para o cinco. Parte disso, dessa putrefação, se deu naquele local. Agora, o corpo foi depositado no local três dias antes? É possível. Quatro dias antes? É possível. Cinco dias? No dia em que ele desaparece, ele morre no mesmo dia? É possível. O grande problema é que esse é um terreno que permite que eu especule qualquer coisa. Então, vamos ficar no que tem evidência científica: 36, 48. Mais de 48, ficamos bem. Dois dias. Mais de dois, no máximo cinco, porque nós sabemos que no dia 6 ele estava vivo, então acabou aqui a contagem. Entre dois e cinco. Ele está ali há quanto tempo? Poderia ser qualquer lapso nesse período de tempo.
Ivan: Tá. Mas, assim, vamos tentar fazer por uma eliminação. Ele poderia ter ficado ali por poucas horas?
Dr. Sami: Não.
Ivan: Por exemplo, ele foi encontrado às nove da manhã, foi jogado às seis da manhã.
Dr. Sami: Não. Não, porque isso não daria tempo de produzir aquela dispersão de material que tem no solo ali ao redor do corpo, tá? A fauna, nesse aspecto, é muito econômica, com exceção dos grandes predadores. Ela é muito econômica. Então, essa dispersão de putrilagem de material que modificou a flora local ali, que modificou as condições ambientais locais, eu te diria assim, especulando com base em experiência de local de crime, talvez dois dias.
Ivan: Tá…
Dr. Sami: Não foi algumas horas.
Ivan: O que me chama a atenção, que sempre foi levantado para a possibilidade daquele corpo estar lá há poucas horas, é porque tinha morador ali perto, era uma região de lenhadores, que estavam inclusive… Acho que tirando lenha, fazendo alguma obra ali. E eles notam o corpo do Evandro para dentro da mata porque percebem urubus voando na região. Ou seja, a gente está falando de lenhadores que estão sempre ali, e naquele sábado de manhã eles veem os urubus. Então, transformando isso numa pergunta, quanto tempo leva… Eu jogo um corpo no mato. Quanto tempo leva para os urubus começarem a sobrevoar?
Dr. Sami: Eu já vi de tudo. Eu já vi de tudo. Eu já vi eles aparecerem já nas primeiras horas. Essas aves de rapina são extremamente boas caçadoras, extremamente boas caçadoras. Então, a identificação de um corpo imóvel chama a atenção muito rápido para elas. Mas a pergunta é: foram atraídas pelo cheiro? Foram atraídas pela visão do corpo? Foram atraídas pela ação de outros predadores no local, pequenos predadores no local? E com que frequência isso acontece naquela região? Eu sou de cidade do interior, de região que tinha algumas matas ao redor, então, aparecer um pequeno animal morto na mata é extremamente comum, e isso atrai aves de rapina. Então, com uma certa frequência, elas são atraídas. O que, nesses lenhadores que estão ali, chamou a atenção, de especial? Talvez o acúmulo de aves de rapina? A grande quantidade de aves de rapina? Pode ser, nesse caso especial. Mas isso pode se dever justamente porque a atração foi se dando ao longo do tempo, tá? A atração foi se dando ao longo do tempo, e as aves, então, naquele momento, resolvem atuar. Mas eu diria assim, nesse local, talvez dois dias, especulando, seria o mínimo para produzir aquelas alterações ambientais ali.
Ivan: Se ele foi morto na segunda-feira e jogado na segunda-feira, só a ação do local já poderia produzir essas putrefações mais avançadas?
Dr. Sami: Sim. A gente não tem absolutamente nenhuma base para estabelecer que ele estava num local fechado e foi para um local aberto. Porque isso, por si só, não modifica a evolução da putrefação. O que modifica a evolução da putrefação são, de um lado, fatores internos do cadáver, e de outro lado, as condições ambientais. Mas a putrefação é basicamente de dentro para fora. Então, os fatores internos são muito mais importantes do que os fatores externos. Quando a gente vai considerar a ação da fauna, aí sim. Se ele está num local fechado, eu não tenho ação da fauna, ele está protegido. Se ele está num local aberto, eu tenho ação da fauna porque ele está exposto a essa possibilidade. Então, aqui eu acho que teve uma confusão, um pouco de confusão, entre o que é putrefação, que depende basicamente, do ponto de vista ambiental, de dois fatores: calor e umidade, são os dois grandes fatores ambientais que vão determinar a velocidade da putrefação, calor e umidade… O fechado ou aberto só é significativo se ele incide sobre o calor e a umidade. Se ele não incide sobre o calor e umidade, ele não modifica o resultado. Então, houve uma confusão entre o que é a putrefação aqui e o que é a ação da fauna, que depende muito mais de aberto ou fechado. Só para tu teres uma ideia, nós podemos ter um corpo num quarto fechado com ar-condicionado ligado, que vai retardar a putrefação significativamente se o ar está no frio porque ele cria ambiente frio e seco. Mas eu posso ter um corpo também com a putrefação bastante retardada se ele estiver num local muito seco, muito quente e muito ventilado. Ambos fechados.
Ivan: Aham.
Dr. Sami: Então, isso é uma coisa. A putrefação é uma coisa, a ação dos animais é outra, ainda que a putrefação chame a fauna e facilite a ação da fauna.
De acordo com o Dr. Sami, a interpretação do Dr. Francisco de que o corpo teria sido armazenado em algum lugar fechado antes de ser descartado não seria exatamente tão confiável assim. No mínimo, seria um ponto de debate. Na investigação, isso abria mais uma possibilidade: Evandro pode ter sido morto e jogado naquele matagal no mesmo dia em que foi sequestrado. E, com base em todas essas novas leituras, Ivan perguntou ao Dr. Sami se ele conseguia ter uma ideia de qual foi a ordem das lesões sofridas por Evandro.
Dr. Sami: Eu diria assim, com tudo isso que eu considerei, a minha hipótese seria de que ele sofreu uma facada e morreu por causa disso. Todo o resto, todo o resto, é uma tentativa de ocultação do cadáver, não de ocultação da identidade do cadáver. Mas de ocultação do cadáver como meio de ocultação do crime. O que levou à facada? Não tenho a menor ideia. E eu não tiraria da mesa, como eu disse, a possibilidade de violência sexual nesse caso. O que acontece depois? Alguém tenta se livrar desse corpo na mesma lógica de quem amarra uma pedra e joga no mar ou na lagoa, expondo o corpo para ele desaparecer. E, para mim, infelizmente, é inevitável fazer links com os outros casos. Porque nós sabemos que nesse mesmo local houve sucesso em desaparecer com um corpo, ou um quase sucesso. E o sucesso teria sido total se não fosse o corpo do Evandro ter sido encontrado. O sucesso poderia ter sido total em sumir com outro corpo. Veja, quando a gente pensa nos urubus, nos animais, ninguém prestou atenção nisso lá atrás. Tinha outro corpo a 200 metros dali, 200 metros. Não eram dois quilômetros. Então, quando a gente pensa em todas essas coisas, dá para traçar paralelos bem interessantes. Então, para mim, ele morre por causa de uma facada. Quem praticou o crime busca se livrar do corpo e, assim, ocultar o próprio crime. A motivação para mim é absolutamente desconhecida. O resto é o efeito da natureza, propositalmente induzido por quem queria ocultar o corpo.
Ivan: Mas a gente tem a possibilidade de as mãos e o escalpelo terem sido ação humana? Ou o doutor…
Dr. Sami: Tem, tem. Eu diria assim, o meu raciocínio é o mesmo do Carl Sagan, que é uma proposição científica: excluído o impossível, todo o resto é possível, ainda que improvável.
Ivan: Afirmações extraordinárias precisam de provas extraordinárias.
Dr. Sami: Provas extraordinárias. Então, eu diria que, na minha opinião, é pouco provável, mas eu não posso dizer que é impossível. Mas nós não temos evidências extraordinárias a sustentar a hipótese extraordinária. A hipótese ordinária é aquela com a qual nós lidamos todos os dias, que isso tenha sido proposital até uma certa medida e a partir dali… E o que nós podemos demonstrar que é proposital é a abertura do tórax. O resto eu deixaria em ‘stand by’. Não excluo aqui uma coisa, que realmente não é uma questão de não excluir, é uma questão que me parece que há elementos suficientes para isso, de que a morte tenha sido produzida num lugar e que ali tenha sido apenas a desova do cadáver. Em que momento se deu a morte e em que momento se deu a desova, eu não sei, não arrisco especular sobre tempo em lugar fechado, tempo em lugar aberto. Mas ali não há nem elementos para que esse tórax tivesse sido aberto no local, não tem sangue, não tem condições ambientais para dizer que esse tórax foi aberto no local, com ou sem retirada de órgãos. Mesmo a retirada de órgãos, humana, por ação humana, para poder se livrar do corpo e deixar ali exposto, ou retirar e levar, produziria sangue, produziria uma certa sujeira no local, que a gente não encontra. Então, aquele local é o local de desova do cadáver, não é o local em que ele foi morto.
Como é possível notar nas entrevistas com o Dr. Lipinski e o Dr. Francisco, naquela época, década de 1990, toda a linha de investigação girava em torno de uma pergunta: qual o motivo desse crime? Essa não é a postura do Dr. Sami.
Como ele mesmo disse, qualquer discussão em torno de motivação acaba caindo no campo das hipóteses e suposições. Mas, na época dos crimes, esse era o procedimento padrão: por que fizeram isso? Vingança? Abuso sexual? Perversão? Ocultação de identidade? “Magia Negra”? E, a partir daí, filtrava-se quais seriam as hipóteses mais viáveis e passava-se a se fazer uma série de suposições a partir dessa suposta motivação.
Com o passar das décadas, notou-se que esse tipo de metodologia investigativa poderia ser prejudicial. Afinal, por anos, os crimes de Guaratuba foram encarados e aceitos pelas autoridades como um caso de ritual satânico, fruto exatamente daquela metodologia de pensamento.
Mas, nessa visão do Dr. Sami, abrem-se outras alternativas. E, apesar das dúvidas se algumas lesões foram feitas pela natureza ou ação humana, duas novas fortes possibilidades aparecem: de que as crianças poderiam ter sido vítimas de um predador sexual; e de que os meninos de Guaratuba foram deixados naquele estado e local com o intuito de ocultar os corpos em si. Procedimento este que, como o Dr. Sami aponta, seria uma prática comum entre caçadores no momento que desejam se livrar das carcaças de animais.
Afinal, seria possível estabelecer uma relação direta entre os casos dos meninos de Guaratuba e o de Sandra?
Caso sim, a questão da violência sexual seria uma grande pista. E lembrando: assim como no corpo de Evandro, no de Sandra, não foi encontrado nenhum sêmen, apesar da clara lesão de abuso que apresentava.
Dr. Sami: Eu acho que Evandro e Leandro são uma coisa, e Sandra é outra. Perfis de vítimas… Exceto o fato de serem crianças… Há alguns fatos excepcionais aí, que não é exceto o fato de serem crianças: região, idade, condição socioeconômica, são pelo menos três fatores aí que unem esses três casos. Mas dois meninos de um lado, uma menina de outro. Uma menina com clara violência sexual de um lado. Meninos que… Eu não excluo no caso do Evandro, mas que não temos maiores elementos para falar em violência sexual. Corpos descartados no mesmo lugar, na mesma região, talvez com um padrão parecido porque… O problema que nós temos no caso do Leandro é que ele já está esqueletizado e faltam várias partes do corpo. Então, eu trataria Leandro e Evandro de um lado, e Sandra do outro. Também não encontrei nenhuma conexão, salvo engano, não encontrei nenhuma conexão de qualquer dos envolvidos nos casos de um lado e de outro, que pudesse estabelecer alguma conexão, salvo engano, nesse sentido. Então, eu diria assim, Sandra para mim é um perfil de um tipo de crime, de um tipo de criminoso, Evandro e Leandro são outro tipo de crime, outro tipo de criminoso, que tem como grande conexão aí o sucesso… Para mim, a grande conexão entre os dois está no sucesso do descarte do corpo do Leandro. Porque até a descoberta do corpo do Evandro, o Leandro seria, entre aspas, um case de sucesso para quem matou.
Ivan: Se a gente… É tão difícil falar isso… Mas, assim… Surpreenderia o senhor, o doutor, se o mesmo ofensor do Leandro e do Evandro fosse o da Sandra? Seria uma surpresa? Você não esperaria por isso? Ou você diz: “não, está dentro do limite da possibilidade”?
Dr. Sami: Não, não surpreenderia. Não surpreenderia. Mas aí nós teríamos como fio condutor a violência sexual. O fio condutor seria a violência sexual. Porque o caso da Sandra é nitidamente um caso de agressão sexual. Então, o fio condutor, digamos, o motivador, o moto do agressor, se torna a violência sexual. E não é absurdo, eu diria que é até plausível, que eventualmente a gente tenha um agressor que modifica o seu perfil, porque isso faz parte do agressor serial, que ele, digamos, evolua, que ele avance na mudança do seu padrão para aquilo que realmente lhe dá prazer. Então, eu não excluiria alguém que começa agredindo uma menina antes de criar coragem de partir para os meninos. Não é… O fato de que ela é menina e ele é menino exclui a possibilidade de ter sido o mesmo agressor? Não. O que a gente vê em agressores seriais é uma evolução no seu padrão de vítimas, inclusive, não apenas no modus operandi, mas na escolha da vítima, que começa com as que são de menor risco para ele – não apenas o risco tático, o risco de empreender, da empreitada criminosa, mas o risco psíquico também – antes de ele evoluir. Então, eu não excluiria um link entre os três casos. Mas, se esse link existir, para mim ele é de natureza sexual.
Assim, Ivan e Natalia terminaram a primeira reunião com o Dr. Sami, com novas informações que os deixaram apreensivos. De repente, os crimes contra essas crianças ganhavam contornos um pouco mais precisos, que afastavam de vez a influência do pânico satânico que marcou o caso Evandro.
O Dr. Lipinski e o Dr. Francisco são personagens importantes porque estiveram diretamente envolvidos na produção dos laudos, tiveram contato com o corpo de Evandro, possuem informações que nem sempre constam nos documentos oficiais. Então, há coisas que eles falam nos episódios anteriores que são fundamentais para obter pistas, e também para entender a mentalidade e condições de trabalho da época.
Ao mesmo tempo, as falas do Dr. Sami servem para tentar olhar para todos esses elementos com uma visão mais atualizada cientificamente, e com um afastamento necessário para ter uma leitura menos contaminada pelas confusões do período.
No fim das contas, o trabalho de Ivan acaba sendo verificar da melhor maneira possível o que cada um fala, e ver o que se encaixa melhor. E, com esse intuito, já se pode estabelecer algumas novas possibilidades importantes.
Primeiro, as lesões no corpo de Evandro seriam resultado de um esforço de ocultação de cadáver, não de sua identidade. E, nas palavras do Dr. Sami, Leandro teria sido um “case de sucesso”, no qual o ofensor conseguiu dificultar ao máximo a sua localização através de procedimentos que, muito possivelmente, eram parecidos.
Segundo, muitas das lesões que encontram-se no corpo de Evandro podem ter sido causadas por animais ou ação da natureza.
Terceiro, pelo estado de putrefação, não há como precisar o tempo que o cadáver esteve naquele local. Pode ser que Evandro tenha sido morto na segunda-feira, dia que foi sequestrado. Mas é seguro dizer que ele não estava lá há poucas horas de quando foi encontrado. No mínimo, estaria lá há cerca de dois dias. Isso condiz também com as opiniões do Dr. Francisco e do Dr. Lipinski. Contudo, o Dr. Francisco acreditava que o corpo teria sido armazenado em algum lugar antes de ser jogado lá – algo que, de acordo com o Dr. Sami, não teria como ter certeza. Essa é uma questão de diferenças de interpretações.
Por fim, a quarta possibilidade nova é que, se o caso de Sandra estiver realmente conectado, a motivação dos crimes poderia ser de natureza sexual.
Com tudo isso em mente, após alguns dias, Ivan, Natalia e o Dr. Sami se reuniram novamente. E, dessa vez, conversaram sobre as possíveis relações entre os casos Leandro e Sandra.
LEANDRO E SANDRA
Na segunda reunião, os jornalistas decidiram começar pelo caso de Leandro Bossi, já que era o que provavelmente teria mais relações claras com Evandro. Para quem acompanhou a temporada sobre o caso Evandro, no episódio 36, Ivan fez um esboço de quais ossos foram encontrados. E, naquele desenho, chamava a atenção a ausência de alguns deles.
Esboço com ossos encontrados (em vermelho) – caso Leandro
Exame cadavérico da ossada de Leandro
À primeira vista, a falta das mãos e dos dedos dos pés poderiam ser uma relação direta com Evandro. Só que havia também a ausência do fêmur direito, que tinha todo o aspecto de ter sido ação animal.
E, quando se coloca em perspectiva que a ausência de mãos e dedos dos pés de Evandro pode ser por ação da natureza, fica mais difícil estabelecer com certeza que o corpo de Leandro também sofreu essas mutilações.
Ivan: Vamos para o Leandro, então, que eu acho que é, de todos, o mais pobre também de elementos que nós temos. Porque é uma ossada em que não foi feito exame de local, pelo que a gente pôde levantar. A gente revirou o Paraná inteiro, procuramos peritos, Polícia Científica e, ao que tudo indica, não foi feito exame de local mesmo. A gente não sabe responder uma pergunta básica: se a ossada estava vestindo as roupas, ou se elas estavam localizadas próximo. A gente não tem essa resposta. Mas pelo menos a gente conseguiu com a Polícia Científica os laudos do exame cadavérico completo e do exame odontológico. Daí, no caso do Leandro, eu acho que antes da gente começar a fazer as perguntas específicas, eu gostaria que o doutor falasse as suas impressões assim, lendo esses dois laudos que nós conseguimos.
Dr. Sami: Confirmando isso que tu dissestes, assim, a perícia médico legal recebe uma ossada envolta em saco plástico. Isso, infelizmente, não é tão incomum assim, que ossadas, especialmente no interior, não seja chamada a perícia para o local, e sejam recolhidas e enviadas. Isso gera um problema, um primeiro problema, que é de quais outros elementos ósseos poderiam existir no local com relação ao que foi encontrado. Então, o primeiro problema é esse. O encontro de uma ossada deveria remeter a um estudo arqueológico do local na tentativa de verificar se essa ossada não está parcialmente enterrada e se não há outros elementos ósseos próximos. Então, a ausência da perícia de local nos privou de várias coisas. Não apenas, eu diria, não apenas da questão das roupas, mas da questão da própria relação da ossada com o local. A outra questão que eu… Aí a questão que eu observaria é que o Leandro também não tinha as mãos. Ele também não tinha as mãos. Mas ele não tinha… Não só as mãos. Por exemplo, do lado esquerdo, faltava todo o antebraço e a mão esquerda; e do lado direito, faltava a mão direita e faltava mais um conjunto de outros ossos. Então, de certa forma, fazendo uma correlação com o caso do Leandro, a pergunta seria: onde estão os outros ossos? Ficaram no local? Não foram encontrados?
Ivan: Acho que falta um fêmur também, né?
Dr. Sami: Falta o fêmur direito, falta o osso do púbis, falta a tíbia esquerda. Então, na verdade… Faltam os pés… Se a gente pensar numa ossada de uma criança de oito anos, em termos de mãos e pés, nós estamos pensando em ossinhos muito pequenininhos. Ossinhos, alguns com menos de um centímetro de diâmetro. Então, esses ossos poderiam estar ali enterrados, semienterrados, poderiam ter sido levados. Se tivessem sido efetivamente levados, e a gente não encontrasse eles até, digamos, um nível de terra compactado… Que, normalmente, você faz a pesquisa disso até o primeiro nível de terra compactado, naturalmente compactado. Se não estivessem ali, poderia também remeter à questão de os animais terem levado as mãos, terem levado os pés. Também não excluiria que tivessem sido retirados. Mas a gente também não tem, nesses ossos, maiores detalhes sobre o que eles encontraram. A questão da causa morte ficou em aberto. E eu não sei se a questão da causa morte ficou em aberto porque realmente não tinha nenhum elemento para correlacionar com a causa morte, ou porque eles não tinham capacidade para fazer um estudo antropológico adequado. A mesma questão remetendo ao Evandro. Eu sou sincero, eu adoraria exumar essas duas ossadas hoje. Porque se a gente está pensando, por exemplo, em ossos serrados ou até em corte no couro cabeludo, dificilmente tu consegue fazer um corte no couro cabeludo sem deixar uma marca da lâmina no osso em algum momento, ter mantido ela tão superficial que não deixasse nenhuma marca no osso. Então, do Leandro, me chama a atenção isso: a ausência da perícia do local, que prejudicou não apenas a questão dos achados de local em geral, mas do próprio achado da ossada; a falta de vários elementos ósseos, que nós não temos como saber se foram degradados pelo ambiente ou se foram levados por animais, ou se permaneceram no local. Não é incomum que alguma coisa permaneça no local, porque quem recolhe não é exatamente um especialista nisso. E a questão da causa morte também, que, sem ter um bom exame, um exame antropológico adequado dos ossos, para mim fica em aberto se realmente a ossada era pobre e não poderia nos informar nada, ou se alguma lesão possa ter passado despercebida durante o exame por quem não estava qualificado para fazer isso. Esse é o problema que a gente tem, na verdade, com as duas ossadas que foram encontradas.
Ivan: Deixa eu tirar uma dúvida com o doutor. Exames antropológicos dessa natureza que o doutor gostaria já eram comuns em 1992 ou não, assim? É uma coisa recente?
Dr. Sami: Não. Não eram comuns. Se a gente pensar que a equipe, a maior equipe de antropologia forense da América Latina, e quem efetivamente distribuiu o know how dessa área, foi fundada em 1987 na Argentina… A América Latina não tinha esse know how. Os estudos antropológicos na época eram grosseiros, grosseiros. Quando muito, para estimar, para estabelecer perfil biológico, sexo, estatura, características gerais do corpo. Mas não eram detalhados no nível que a gente tem hoje. Isso foi um know how que veio para a América Latina no final dos anos 80, início dos anos 90, via equipe argentina de antropologia forense, que foi depois quem fundou a Associação Latino-americana de Antropologia Forense. E esse know how acabou chegando no Brasil também. Mas, nessa época, o nível que nós temos hoje estava recém começando a ser construído aqui, e com a ajuda dos norte-americanos. Quem tinha esse know how eram os norte-americanos.
Ivan: Em que ano ou período o doutor considera que, ok, a partir desse momento, está estabelecida a antropologia forense como uma área importante, e isso aqui passa a ser padrão? Eu sei que tem muitos lugares do Brasil em que não é ainda, mas, assim, que a gente melhora um pouco nesse período…
Dr. Sami: No Brasil, nós não chegamos nesse ponto, Ivan. Nós temos um sério problema no Brasil hoje que é o seguinte: enquanto os outros países têm formação numa área chamada de antropologia física, o Brasil não tem formação em antropologia física. Nós formamos antropólogos culturais e não antropólogos físicos. Então, quem começou a ocupar o espaço que seria da antropologia física nesse trabalho, digamos, nos últimos 15 anos, 20 anos, foram os odontólogos forenses. De 15 a 20 anos para cá, foi o pessoal da odontologia forense que começou a ocupar esse espaço porque já fazia odontologia forense nas ossadas antes, e foi meio que natural já que eles já estavam vinculados às ossadas, e os médicos legistas… Poucos se interessavam pelo assunto. Mas nós temos uma caminhada ainda pela frente em termos de Brasil, viu? A própria odonto forense nessa área, no Brasil, ainda deixa um pouco a desejar. Tem uma equipe boa da Polícia Federal, da perícia criminal federal, que se formou aí nesses últimos 15, 20 anos, e até em função de todos os programas de desastres de massas e tudo mais, mas em termos de perícias estaduais nós temos… Eu te diria que, assim, nós temos aí dois ou três estados com equipe dedicada e o resto corre atrás do prejuízo.
Ivan: Aham. É. Bom, então, dentro dessas limitações da época, que nós temos, o doutor apontou bem que nós temos a ossada do Leandro, então, faltando vários ossos, inclusive do braço esquerdo, do antebraço, perdão, esquerdo. Nós temos faltando o fêmur direito. São ossos grandes, né? Desses ossos grandes, pode ser ação animal, que foram retirados aqueles ossos… Estou supondo, né? Mas podem ter sido também cortados… É que, assim, o fêmur direito me chama a atenção porque se tirar o fêmur, mas botar a perna ali, a tíbia, o tarso, não me faz sentido… Então, é muito provável que tenha sido retirado do local por algum animal, por exemplo?
Dr. Sami: Sim. A dificuldade… Quando a gente encontra uma ossada incompleta, na ausência de sinais evidentes de que os ossos tenham sido cortados, na ausência de sinais evidentes disso, é virtualmente impossível saber… É impossível, na verdade, saber quem nasceu primeiro ali, o ovo ou a galinha. Quer dizer, veio um animal e retirou, arrancou um pedaço? Primeiro houve a putrefação e a esqueletização, porque quando tu tem a esqueletização completa, os ossos soltam naturalmente, e depois esse osso foi perdido? O que aconteceu primeiro? Vem um animal e retira um pedaço? Ou ocorre a esqueletização, e o osso solto, depois vem o animal e retira? Eventualmente, a gente consegue identificar esses fenômenos quando tu encontra, por exemplo, uma ossada que tem um crânio próximo; e que o crânio, tu consegue, pelas condições do local, pelas características do local, dizer: “olha, este crânio se descolou e deslizou para outra posição”. Então, eu sei que este crânio não foi arrancado, ele deslizou quando houve a completa esqueletização e o rompimento dos ligamentos, dos últimos ligamentos que prendiam o crânio no local. Agora, fora isso, nessas circunstâncias, qualquer coisa pode ter acontecido primeiro. Pode ter havido ação de animal, veio, retira tecido mole, retira o osso e leva junto, e o que ficou, ficou. Pode ter tido a putrefação e esqueletização primeiro e os animais vêm depois. Pode algum osso ter sido cortado, e o fragmento que ficou também ter desaparecido por ação animal ou porque ficou lá no mato, na retirada dos ossos. Quer dizer, a sequência dos eventos, nós não temos como fazer o traceback, né? Rastrear para trás a sequência de eventos que levou a essa perda de fragmentos.
Ivan: Perfeito. Acho que a dúvida desses ossos menores, por exemplo, dos dedos, das mãos, dos pés, que estão faltando, a gente sabe que é possível a ação humana, é possível a ação animal. Mas eu queria saber: é possível também ação do próprio ambiente? Imaginando que essa ossada ficou por um ano lá. Isso é tempo suficiente para o osso desaparecer por ação do solo?
Dr. Sami: Degradar, sim. Nós estamos frente a uma criança que tem um osso muito pouco calcificado ainda, esse osso é basicamente tecido fibroso com cálcio. Pode ocorrer ali a descalcificação e a completa destruição desse fragmento ósseo. Isso é mais difícil em adultos e mesmo assim acontece. Mas em crianças é muito fácil. Tendo as condições ambientais apropriadas ali, eu te diria que, considerando o tempo transcorrido, um pequeno fragmento de osso pode ter ficado ali perdido na vegetação, levemente enterrado, alguns poucos centímetros… Porque basta o acúmulo de água, lama, água, lama, água, lama… Cobre aquilo que antes estava exposto… E ele pode ter degradado completamente. Especialmente esses ossinhos menores que têm um componente de matriz de cálcio, um componente mineral muito pequeno e muito frágil. Perfeitamente podem ter sido degradados ali. Mais difícil isso ocorrer com um fêmur ou uma tíbia. Mais difícil, mas não impossível. Mas pode ter ocorrido.
Ivan: Ainda mais levando em consideração também que é uma região muito úmida, é um banhadão aquele matagal. Chove muito, ele acumula água, a vegetação cresce em volta, então…
Dr. Sami: Exatamente.
Então, as ausências das mãos e dos pés na ossada de Leandro não necessariamente significam que foram arrancados por ação humana. Pode ter sido até mesmo por degradação natural do solo nesses ossos menores.
Com base nas provas existentes, o que mais liga com certeza os casos de Evandro e Leandro são as datas próximas que os garotos desapareceram, o local onde eles foram encontrados e suas semelhanças físicas. Pelas lesões em si, pouca coisa se sabe. E a única mutilação que se tem certeza de que foi ação humana em Evandro, que foram as costelas cortadas, não estava presente na ossada de Leandro.
Uma matéria publicada no jornal Folha de Londrina, em 9 de março de 1993, faz uma relação entre as costelas cortadas de Evandro com a ausência de um dos ossos de Leandro: o esterno, que fica bem na frente do tórax. Pela reportagem, dava-se a entender que essa poderia ser uma possível relação entre os casos.
Ivan: Daí eu tenho essa dúvida do osso do esterno também. Porque daí tinha essa discussão… Isso apareceu em matérias da época, tá? Que eu acho que foi uma barrigada dos jornalistas… Mas que ele fala: “chamou a atenção que a ossada encontrada estava sem o esterno e isso aproximaria o caso do Evandro, que estava com as costelas abertas”. Só que daí eu lembrei já… Não, mas o esterno de uma criança é super poroso ainda, ele pode se degradar com o tempo numa condição como essa. Então, acho que…
Dr. Sami: Para começar, são três ossos, né? Para começar, o esterno são três ossos na criança, não é um só, já começa por aí. São três fragmentos de ossos. Depois, é um osso que, na sua porção central, ainda tem medula óssea na criança. Ou seja, ele não é todo osso. Ele ainda tem capacidade de produção de tecido vascular. Em cima disso, tem uma camadinha de osso, que ele é perfeitamente tranquilo de ser reabsorvido ali, de ser degradado completamente e desaparecer. Eu não faria o vínculo com base nisso.
Ivan: É. Porque, do Evandro, o que a gente consegue dizer com certeza que foi ação humana são os cortes nos arcos costais, né?
Dr. Sami: Exatamente.
Ivan: Coisa que não temos aqui no Leandro, pelo que o laudo nos mostra. Correto?
Dr. Sami: O laudo… Ele deixa… Ele descreve a presença de 17 arcos costais. Mas não nos descreve, digamos, a condição de degradação desses arcos costais. Mas, ao mesmo tempo, não descreve nenhuma lesão corto-contundente, cortante, nada disso, naqueles arcos costais; que, salvo absoluta, digamos, imperícia de quem examinou isso, não seriam lesões que passariam despercebidas. Realmente não seriam lesões que passariam despercebidas, esses arcos costais terem sido cortados.
Ivan: Sim. O que ele faz aqui… Ou seja, o que o doutor está falando é: se aparecesse ali algum sinal de corte, o médico legista teria que colocar isso, alguma menção, pelo menos, né?
Dr. Sami: Sim, sim. Ele deve ter visto ali a terminação do osso e mínimas condições, porque, senão, aquilo que estava no Leandro não passaria… Aquilo que estava no Evandro, perdão, não passaria despercebido no Leandro.
Ivan: Claro.
Dr. Sami: Então, realmente, faltavam arcos costais, mas o que tinha, eles teriam visto.
Ivan: É. E o que ele faz aqui para garantir alguma noção, pelo menos, é que o menor arco costal mede 36 milímetros de extensão e o maior 168 milímetros. Por esse cálculo, a gente consegue entender que os arcos costais estariam completos, eles não teriam sido cortados, né?
Dr. Sami: Isso. Exatamente. Ele examinou e mediu, né?
E, por essa medição, entende-se que os arcos costais não foram cortados. Eles estavam íntegros. Não havia nivelamento e regularidade, como no caso de Evandro. Então, novamente, o que leva a ligar esses dois casos não são as condições dos ossos ou ausência de alguns deles. Talvez, se essa ossada fosse encontrada hoje, poderia ser submetida a exames antropológicos mais detalhados. Se tivéssemos conhecimento de onde essa ossada está hoje, ela poderia ser melhor examinada para tirar essas dúvidas.
Mas, como já foi explicado no episódio 5 do Prelúdio, a ossada se perdeu. E com ela, foi-se embora também qualquer esperança para se obter mais informações.
Em relação ao caso de Sandra, no episódio 4, Ivan citou algumas lesões que ela apresentava, como o arrancamento da máscara facial, a ausência de mãos e as marcas de violência sexual que ela sofreu – que, pela avaliação do Dr. Francisco no episódio anterior, teria ocorrido pouco antes de ela ser morta.
Sandra não apresentava nenhum sinal de facada. Não estava com o ventre aberto. Estava com todos os órgãos internos. Então, se foi o mesmo assassino, houve uma evolução entre o seu caso e o de Evandro. Mas há outros detalhes no corpo de Sandra que não foram revelados no episódio 4. Alguns deles Ivan só pôde perceber na conversa com o Dr. Sami, que também se preocupou em tentar verificar possíveis semelhanças.
Dr. Sami: Um ponto em comum. Ela desaparece dia 4, aparece dia 12, um lapso de tempo também muito semelhante a dos outros, oito dias. O que nós temos de interessante dela? Bom, primeiro nós temos de interessante que o corpo é encontrado, digamos, íntegro, mas faltando a mão direita, o antebraço esquerdo e as orelhas. Então, esses elementos, além dos olhos que também não estavam presentes no corpo… Vestida, com a calça vestida pelo avesso… Chama a atenção. Pouco sangue no local, que também seria um local de desova do corpo. Com algumas manchas verdes pelo corpo, então já iniciando uma putrefação que não é compatível com todo esse lapso temporal. Por mais que a gente estique as manchas verdes pelo corpo, nós chegaríamos aí… Nós estamos no mês de junho… Então, o frio… 36 horas. Estourando, muito frio, 48 horas, que não é compatível com os oito dias do desaparecimento dela. Que mais? Manchas verdes, circulação póstuma…
Ivan: Deixa eu fazer essa pergunta das manchas verdes, então. Essas manchas verdes indicam que ela foi morta há quanto tempo, do encontro do corpo?
Dr. Sami: A mancha verde é um dos primeiros… É um dos sinais de putrefação, é um dos primeiros sinais de putrefação que aparecem, e eles dependem muito do ambiente, temperatura e umidade, principalmente temperatura. Então, em lugares mais quentes, ela começa a aparecer com 18 a 24 horas; em locais mais frios, mais em torno das 24 horas, talvez um pouco mais. Então, se nós pegarmos aqui que estamos no mês de junho no Paraná, a gente pode jogar… Eu não cheguei a verificar qual era a temperatura da época, mas a gente vai jogar aí para mais de 24 horas, mas não vamos exceder 48 horas, 36 horas. Mas isso vem da perícia de local. A perícia necroscópica já apresenta sinais de circulação póstuma. Então, significa… Circulação póstuma significa que o corpo já tem algum inchaço, ele está já na fase gasosa de putrefação, isso é mais para 36 horas. Então, vamos lá, 36, 48 horas, caberia bem aqui, considerada a temperatura da época do ano. No máximo, 48 horas de morte.
Ivan: Ou seja, ela é sequestrada, mantida viva em algum lugar, morta e jogada.
Dr. Sami: E jogada. Então, ela vai morrer ali no máximo dois dias antes do dia do encontro do cadáver. Se ela foi encontrada dia 12, ela deve ter morrido lá pelo dia 10. Ela, de alguma forma, foi mantida em cativeiro nesse período.
Sandra sumiu no domingo, dia 4 de junho de 1989. Seu corpo foi encontrado em uma segunda-feira, dia 12. Então, de acordo com o Dr. Sami, ela deve ter sido assassinada dois dias antes – em 10 de junho, um sábado.
Dr. Sami: A perícia encontra sinais indiscutíveis de estupro. Ela encontra efetivamente laceração anterior do reto e posterior da vagina, então ela nitidamente foi estuprada. Considerando o porte físico dela, ou por um adulto, um pênis ereto, ou por um objeto. Não tem como saber se foi um pênis ereto ou introduzido algum objeto. E aí nós temos as outras características, então, do que está descrito como uma incisão bimastoideana. Ou seja, um corte que é muito utilizado em necro, que é o corte que vai de orelha a orelha, vai de orelha a orelha. De novo, Ivan, aparece para mim um outro elemento que remete à necropsia médico legal. Lembra que quando nós falamos do Evandro, eu comentei que aquele corte de costelas me lembrava o corte feito nos necrotérios, né? Um pouco mais amplo, um pouco menos amplo, mas um padrão de corte feito em necrotério. Essa incisão bimastoideana que está descrita na necropsia dela, feita com uma lâmina de orelha a orelha, também é outro corte característico de necrotério, tá? Que pareceria que alguém está usando ou se aproximando das técnicas médico legais. Não parece ser um corte de alguém que pretendesse retirar o escalpo inteiro porque justamente está seccionando o escalpo de fora a fora. Esse corte permite que se retire ou o escalpo, ou só o couro cabeludo, mas ele permite que se avance sobre o rosto. Com essa incisão dá para ir descolando e retirar todo o rosto.
Vale lembrar que o Dr. Francisco afirmava que o corpo de Evandro teria também marcas de uma incisão bimastoideana, e que não necessariamente ele colocaria isso no laudo de necropsia.
Dr. Sami: Não sei se foi um ensaio, se o objetivo era esse. Mas, aparentemente, a tarefa fica pela metade. A tarefa começa e fica pela metade. Tem o esgorjamento, e fica questionado se ela foi esgorjada, ou seja, se a lâmina também cortou o pescoço ou não cortou o pescoço. Daí a pergunta seria: o corte no pescoço é… O objetivo do corte no pescoço é matar ou o objetivo de um eventual corte no pescoço é completar a incisão de orelha a orelha, e retirar uma máscara facial completa? São questões que ficam para mim indefinidas. Mas a necropsia descreve o arrancamento de ambas as mãos, e descreve a incisão bimastoideana. O arrancamento poderia remeter a semelhanças com os outros casos, a incisão bimastoideana também, ela não está excluída. Mas sem examinar em detalhes os crânios, os outros crânios, fica difícil estabelecer, mas ela me remete a essa técnica que é também uma técnica usada em necrotério. A grosso modo, olhando assim…
Ivan: Eu queria, daí… Acho que essa era uma das minhas grandes dúvidas: partindo da hipótese desses três casos estarem relacionados, ser a mesma pessoa, qual é a diferença da técnica feita para o hipotético escalpo do Evandro e para o que a gente viu no caso da Sandra? Qual é o mais complexo? Um é continuação do outro? Um prepara para o outro? Como a gente consegue ver, dentro dessa hipótese?
Dr. Sami: Bom, trabalhando com essa hipótese, a incisão bimastoideana pode ser o começo de tudo. Ou seja, o que nós sabemos é que o Evandro não tinha couro cabeludo, certo? E que ele tinha o que pode ser uma incisão ou pode ser o resultado da própria ação dos animais no nível do supercílio, no nível das sobrancelhas; então, separando o rosto do couro cabeludo. A incisão bimastoideana pode ser exatamente o começo disso. Porque, tecnicamente, o que a gente faz no necrotério? A gente faz a incisão bimastoideana e vai descolando o couro cabeludo para frente até o nível das sobrancelhas e dobra esse couro cabeludo para frente. Atrás, se faz a mesma coisa, vai descolando para trás até o nível do osso occipital, atrás, dobra para trás, e isso permite ter acesso à cúpula craniana, o crânio exposto pronto para ser cortado e haver a exposição do encéfalo. Então, eu te diria: qual é a possibilidade de que essa tenha sido a primeira manobra? Digamos que, na hipótese de que do Evandro tenha sido tudo por uma incisão, ele tenha sido efetivamente escalpelado, a técnica poderia ter iniciado por aí. Ou seja, quem escalpelou fez a bimastoideana, faz… O couro cabeludo para frente e corta no nível das sobrancelhas. É perfeitamente possível. Até, eu diria, eventualmente, para quem… Dependendo da experiência da pessoa, eventualmente é até mais fácil para retirar, ir descolando do meio para os bordos e depois retirar os bordos. É perfeitamente factível.
Ivan: Então, falando em termos leigos, a bimastoideana, se eu bem entendo, é: eu pego um bisturi e eu começo a fazer o corte aqui do lado do crânio, acima das orelhas e vou passando aqui por cima?
Dr. Sami: É exatamente… A lâmina passaria exatamente por onde está o teu fone de ouvido. Pelo suporte do fone de ouvido. Começa… Ela começa…
Ivan: Aqui por cima?
Dr. Sami: Exatamente.
Nesse momento, eles estavam acompanhando com o dedo o arco do fone de ouvido na cabeça de Ivan. Esse é o desenho de uma incisão bimastoideana, que foi explicada no episódio passado.
Ivan: De orelha a orelha?
Dr. Sami: De orelha a orelha. Depois, tu só vai dobrando para frente e dobrando para trás. Depois que dividiu a cabeça no meio, dobra para trás, dobra para frente.
Ivan: E, daí, se eu quiser fazer o escalpo, então eu passo a bimastoideana aqui em cima, de orelha a orelha, daí eu passo… Abro o couro para ter acesso à caixa craniana. Aí, se eu quiser fazer o escalpo, eu só passo o bisturi da linha da orelha para frente, de cima das sobrancelhas, e depois aqui pela nuca? E depois aqui pela nuca, aqui atrás…
Dr. Sami: Isso. Dá para fazer de orelha a orelha pela frente, de orelha a orelha por trás, e se retira o couro cabeludo em duas frações, em dois fragmentos, dois grandes fragmentos. Pode ter sido a técnica utilizada? Olha, se a gente pensasse que a Sandra é o começo e o Evandro é final, é uma hipótese válida.
Ivan: Por que o que acontece, da Sandra? Pode ter sido que ele tenha sido mais agressivo, assim? Porque, daí, como está todo o couro cabeludo… A máscara facial retirada… Eu imagino que pode ter sido… Faz a bimastoideana, começa a puxar o couro cabeludo e já arranca toda a máscara facial.
Dr. Sami: Precisa continuar, para retirar a máscara facial, precisa continuar cortando, tá? Tu não consegue arrancar, tu precisa continuar trabalhando com o bisturi embaixo disso. Mas o acesso para a retirada da máscara facial… Ou ele se dá de baixo para cima pelo pescoço ou ele se dá de cima para baixo pela bimastoideana. Ou vai do pescoço de baixo para cima ou vem de cima para baixo. A pergunta aqui seria se a intenção era o couro cabeludo ou o rosto, ou a máscara facial, ou preservar o rosto…
No inquérito do caso Sandra, por algum motivo, um dos delegados fez algo incomum: pediu para que fosse anexado não apenas o laudo da necropsia, mas também o rascunho feito pelo médico.
O rascunho é produzido durante o exame. Geralmente, o legista está examinando o corpo, acompanhado por um auxiliar. Durante o procedimento, o médico fala coisas para o auxiliar anotar. Depois, essas anotações são passadas a limpo, e o rascunho fica arquivado.
No laudo final, o médico tem que tomar cuidado de só colocar aquilo que ele tem certeza, que pode fundamentar. Por isso, não é incomum o rascunho conter afirmações, dúvidas ou pensamentos que estão passando pela cabeça do legista na hora do exame – diferente do laudo final, que deve ser o mais técnico possível.
De acordo com Ivan, foi a primeira vez que ele viu um rascunho, escrito à mão, anexado em um inquérito. E, ao ler o rascunho, conseguiu entender melhor o motivo de ele estar lá. Especialmente em um longo trecho escrito à mão onde havia uma anotação ao lado, dizendo “não bater” – o que significa “não bater na máquina de escrever”. Em outras palavras, aquele trecho não deveria constar na versão finalizada.
Ivan: E o doutor chegou a ler o rascunho com aquela anotação que o médico faz? Porque o rascunho… Acho que foi uma das partes mais interessantes, assim. E eu achei prudente até o médico falar para não bater aquele trecho no laudo final, porque claramente era o que estava se passando na cabeça dele quando estava olhando aqui. Eu achei legal, assim…
Dr. Sami: Eu li esse rascunho, eu li esse rascunho, mas não estou lembrado agora do que está escrito no rascunho.
Ivan: Eu vou compartilhar aqui a transcrição que a gente tem. Olha só, isso aqui ele fala para não bater. Está escrito à mão, aqui é a transcrição que a gente fez. “A incisão bimastoideana do couro cabeludo com rebatimento e exérese da pele, a incisão em V na altura no manúbrio esternal, a retirada das glândulas salivares e o arrancamento das mãos foram, ao que parece, realizados por pessoa afeita ou pelo menos informada em relação aos procedimentos médico legais, pelas características das incisões, e também às implicações médico legais. A retirada das glândulas salivares dificulta o trabalho da química legal, e a retirada das impressões digitais prejudica a identificação em criança de 11 anos? E as roupas não seriam elemento para a identificação? Portanto, tal ato hediondo parece ter sido cometido por psicopata com informações médico legais”. Eu achei interessante isso porque você vê que, de novo, falando como escritor aqui, eu vejo o médico com uma coisa muito diferente na frente dele; que ele começa a fazer relações, ele está botando ali para fora os seus pensamentos e tentando fazer conexões, mas ele está vendo que não está fazendo sentido. A primeira lógica que é: “prejudicar a identificação em criança de 11 anos?”. Que foi o mesmo problema que teve lá no Evandro. “Ah, deve ter feito isso para tirar a identificação”. Mas pô, ele estava com os objetos da casa dele, então não é esse o objetivo. É outro. Mas, enfim, eu queria saber a tua leitura sobre essa anotação. Porque eu entendo ela não estar no laudo final, mas eu achei interessante ela estar no rascunho e ser resgatada no inquérito.
Dr. Sami: Eu me lembro de ter lido esta anotação. O problema desta anotação é que, de um lado, ele tem elementos aqui, desse detalhamento, que ele não botou no laudo. Por exemplo, a retirada das glândulas salivares, a incisão em V na altura do manúbrio esternal. Esses detalhes não estão claros no laudo. Então, ele considerou elementos posteriormente que ele não deixou claro no laudo depois. Mas é exatamente a impressão que eu tenho. Desde o primeiro momento, quando eu olhei, quando eu… Eu comecei pelo caso da Sandra. Então, quando eu olhei o caso da Sandra e depois fui olhando e cheguei no caso do Evandro, que foi o último que eu analisei… Eu ordeno às vezes, normalmente, por essa coisa mais temporal assim, mais cronológica… Que foi o último que eu analisei, a impressão que eu tive foi exatamente essa, de que quem fez isso conhecia os procedimentos de alguma maneira, tinha acesso, conhecia os procedimentos médico legais, porque eles são muito semelhantes ao que a gente faz. Difícil estabelecer intencionalidade. É difícil estabelecer a intencionalidade. Dizer… Ele retirou as glândulas salivares ou ele queria chegar a obter uma máscara facial e não conseguiu fazer isso tecnicamente, não tinha técnica, não tinha habilidade para isso? Então, retirou, tinha a intenção de… A grande dificuldade quando a gente trabalha com esse tipo de coisa, que é analisar o perfil de quem faz a partir das lesões que nós encontramos, é diferenciar modus operandi de assinatura; o que é uma característica que tem significado para o sujeito e o que é a técnica que ele emprega na situação específica. A grande diferença é que o modus operandi se ajusta às circunstâncias, e a assinatura é mais ou menos invariável. Então, o que é modus operandi e o que é assinatura, e o que no modus operandi variou ao longo do tempo. Porque se nós estamos pensando que na Sandra ele está querendo obter uma máscara facial, por que ele não obtém essa máscara facial no Evandro? Que teve tempo, teve algum tempo para treinar aqui. Os casos realmente estão separados porque não houve outros casos no meio? Ou eles estão separados porque esse indivíduo estava treinando e evoluindo em outro lugar e, portanto, outros casos não foram correlacionados com esse? Mas o que me chama a atenção é isso. Se a intenção era obter determinadas peças, determinadas características, preservá-las, na forma, por exemplo, de uma criança empalhada em casa, quer dizer, uma espécie de… Preservação daquele rosto, isso não vai acontecer no Evandro. A única coisa que – deduzindo que o Evandro tivesse as mãos arrancadas – se manteria como padrão ao longo dos casos, seriam as mãos; o que fugiria à lógica da identificação.
Ivan: Sim.
Dr. Sami: Então, a descrição do legista aqui tem alguns detalhes que, independentemente de eles estarem ou não no laudo de necropsia, já tinham me chamado a atenção. Tem uma semelhança muito grande desses casos com aquilo que nós fazemos no necrotério.
Ivan: O que é essa incisão em V na altura do manúbrio esternal, em termos leigos, para a gente entender, visualizar, assim? Porque eu estou imaginando um corte aqui na linha do pescoço, mais ou menos, em V. Só que não dá para ver nas fotos, isso não está também descrito no laudo. Então, eu queria que o doutor explicasse para a gente, para não médicos.
Dr. Sami: A incisão em V, como técnica necroscópica, é uma técnica de abertura. Existem basicamente duas formas, as duas formas mais usadas de acesso ao corpo, de acesso às cavidades do corpo. Uma delas é a incisão mento-pubiana. Então, é um corte que vem do queixo, desce pelo pescoço e vai, faz a volta no umbigo e vai até o púbis. Uma incisão única. Essa incisão permite expor todo o tórax, todo o abdômen, e ter acesso ao plastrão, aos arcos costais anteriores e ao esterno, para fazer a retirada do plastrão. A outra incisão é aquela que aparece mais nos filmes, que é aquela que vem das clavículas, descendo na forma de um V até esta proeminência óssea que a gente tem no esterno. Se tu botares a tua mão na parte mais superior do teu esterno, no terço superior, tu vais… Desliza um pouquinho, que tu vai encontrar um calo ósseo, uma proeminência óssea que fica mais ou menos nesta altura aqui, no terço inferior. Ali é uma junção que está separada em criança, e ali fica o manúbrio. Então, que incisão é essa que o sujeito fez ali? É essa da clavícula até o manúbrio? Essa é uma técnica de abertura utilizada em medicina legal. É a técnica que mais aparece nos filmes, não é a mais usada no nosso meio, mas é a que mais aparece nos filmes e, de novo, remeteria a alguém com algum conhecimento ou tentando ensaiar algum conhecimento, tentando ensaiar… Porque a gente não pode esquecer que, mesmo no final dos anos 80, muitas dessas coisas já apareciam em filmes. Nós sempre pensamos que… Mas muitas dessas coisas já apareciam em filmes. Não, obviamente, com a frequência com que começaram a aparecer com as séries de CSI e médicos legistas na televisão nos últimos 20 anos, mas já apareciam. De qualquer maneira, a abertura dos ossos do Evandro não era algo que aparecesse em filme. Então, a gente começa a juntar tudo isso, e eu diria: bom, alguém aqui passou por um necrotério em algum momento e viu, assistiu alguma coisa num necrotério em algum momento.
Essa descrição da incisão em V está apenas no rascunho. Em todas as fotos de Sandrinha, tanto no local quanto no IML, ela está vestindo uma blusa. Não é possível ver detalhes. Tudo o que se sabe é o que está escrito no trecho do rascunho.
De acordo com o Dr. Sami, isso é relevante, pois seria uma técnica de necrotério – assim como os cortes das costelas de Evandro. E são nessas semelhanças que os casos parecem começar a ficar mais próximos, pelo menos na sua interpretação.
Só que essa questão de que o assassino supostamente possui algum conhecimento de medicina legal sempre incomodou Ivan. Afinal, foi esse o erro que ocorreu em Altamira, temporada passada do Projeto Humanos. As pessoas viam os cortes nas crianças, diziam que eles seriam muito precisos e que, portanto, só poderiam ter sido feitos por médicos. E nisso, dois médicos inocentes foram acusados e presos.
Mas há uma grande diferença. Em Altamira, não havia nenhum documento mostrando que os cortes examinados poderiam ter sido feitos apenas por médicos. Essa ideia partiu da população, foi para a imprensa e acabou contaminando todo o caso. Já no Paraná, nos casos de Evandro e Sandra, são tipos de cortes muito específicos que chamam a atenção justamente por serem mais comuns em práticas de necrotérios.
Ivan: Poderia ser alguém que, por exemplo, foi criado na roça e fazia abate de animais para comer carne?
Dr. Sami: Olha, em abate de animais, não se faz a incisão bimastoideana, como regra geral, e essa em V no tórax, não teria por que fazer uma incisão em V. Eu não sou exatamente da roça… Mas, como regra geral, todos os abates que eu vi… Eu sou da fronteira… Abate de ovelha, a gente escolhe a ovelha no campo e leva para abater, o abate é mento-pubiano mesmo. Quer dizer, o corte começa lá em cima no pescoço do animal e desce até embaixo inteiro. Então, não me recordo, em nenhum momento, de ter visto algo semelhante.
Ivan: Tá. Certo. Vamos lá…
Dr. Sami: Não sou um expert em abates, mas todos os abates que eu vi eram mento-pubianos, de cima a baixo, um corte só.
Então, Ivan entrou em contato com o Dr. Cláudio Dalledone Júnior, que foi advogado de Valentina de Andrade no caso dos emasculados de Altamira. E o motivo do contato foi justamente porque Dalledone é caçador e tem o costume de descarnar animais.
Basicamente, Ivan perguntou para ele se costelas serradas, a incisão bimastoideana e o corte em V no peito poderiam ser sinais de um caçador, ou de alguém acostumado com o abate de animais. O Dr. Dalledone respondeu por mensagem dizendo o seguinte:
Esses são cortes que usamos para tirar couro de animais. Seria o caso da incisão bimastoideana. Serrar as costelas, ou o que corresponde ao esterno para eviscerar, tem a ver com retirar as vísceras. Eu sempre dividi as partes da caça dessa forma, inclusive serrando as costelas. De acordo com a minha experiência, o corte do tipo em V também não é incomum de ser feito em animais.
Com isso em mente, por mais que o Dr. Sami enxergue ali mais características de necrotério, não se pode descartar também a possibilidade de ser um caçador – ou pelo menos alguém com alguma experiência em abate e corte de animais.
Foi falado anteriormente sobre a perfuração que Evandro possuía nas costas, do lado esquerdo, e Ivan pôde verificar com algumas pessoas que dominam práticas de abate, especialmente de porcos, que uma perfuração parecida com aquele tipo não é incomum para causar maior sangramento e levar o animal a óbito.
O próprio Dr. Sami falou sobre como o corpo de Evandro parecia ter as características de alguém que busca ocultar sua localização, de forma parecida com a que caçadores fazem com animais, jogando suas carcaças em matagais.
Em outras palavras, não se deve descartar nenhuma das possibilidades: de conhecimento de necrotério ou de conhecimento de abate de animais. E essas não são coisas que qualquer um sabe. Não se trata de uma pessoa qualquer. Ela tinha algum conhecimento diferente. O difícil é identificar qual exatamente.
CONEXÕES
Ivan: O doutor falou também que, no caso da Sandra, está faltando não só a mão esquerda, mas o antebraço esquerdo também está faltando? Isso me passou batido, que eu só li… Eu lembro de ler que as duas mãos foram arrancadas, agora não me lembro do braço ou antebraço…
Dr. Sami: Sim. Na perícia de local, a gente tem a observação de que falta o antebraço esquerdo. Na ficha odontológica, existe uma observação: “antebraço esquerdo com osso”, mas não nos diz se o osso está completo, se está incompleto, o que está faltando aqui com relação ao antebraço esquerdo da Sandra. E na necro fala em arrancamento de ambas as mãos, então para mim ficou uma questão mal resolvida aqui, do que está faltando. Na perícia de local, ele diz que falta o antebraço esquerdo, a mão direita e as orelhas.
Ivan: No Leandro, falta o antebraço esquerdo.
Dr. Sami: Também falta o antebraço esquerdo. E a mão direita.
Ivan: Que nem a Sandra.
Dr. Sami: Exatamente.
Ivan: Tá. Daí, desculpe… Daí, sabe? Daí é o que eu estou falando. São coincidências… Mas tudo bem… Pode ser uma grande coincidência? Pode, pode…
Dr. Sami: Não, tem coincidências demais. Se a gente pensasse numa linha que conectasse os três casos, eles passariam realmente pela amputação das mãos como principal marca, e aí a questão de qual o papel das lesões no couro cabeludo, para mim, fica em aberto, qual o papel das lesões do couro cabeludo. Se realmente queriam o escalpo, se a questão era levar um fragmento de cabelo com couro cabeludo, se tentou ensaiar todo o rosto e desistiu porque não aprendeu, não obteve uma boa técnica, não teve tempo de aprender. Passaria pelas mãos e pelo couro cabeludo. Esse seria o elemento conector desses casos, se a gente extrapolar um pouquinho cada um deles.
São três crianças loiras, brancas, de estatura parecida. Sandra, a única menina, estava com os cabelos raspados, aparentando ser um menininho. As três vítimas estão sem as mãos. Sandra e Evandro estão sem o couro cabeludo. Ambos possuem mutilações com cortes que não são comuns de serem feitos por qualquer pessoa.
As três vítimas foram encontradas relativamente perto de suas casas, com roupas e objetos que permitiam uma identificação mais rápida. E, no caso de Sandra e Leandro, há a enorme coincidência de que ambos estão sem o antebraço esquerdo – diferente de Evandro, que estava com o antebraço.
A ausência das mãos por ação natural é uma possibilidade que não pode ser descartada. Mas quando se observa esse quadro geral, fica muito difícil não ver uma conexão entre os três. Se forem casos isolados, são coincidências muito grandes.
A partir do momento que Sandra entra no quadro com elementos de conexão mais fortes com os casos de Guaratuba, vem a lembrança de que ela foi violentada sexualmente. E a possível motivação dos crimes pode ficar mais evidente.
Para o Dr. Francisco, ela foi violentada antes de morrer. Ivan queria a opinião do Dr. Sami sobre isso.
Dr. Sami: Eu não diria que essas lesões foram post mortem. Não são lesões post mortem. São lesões com característica de vitalidade, são lesões que têm algum infiltrado hemorrágico, ainda têm alguma vermelhidão, são lesões pré-mortem ou perimortem, pelo menos, né? Ou elas são enquanto ela estava viva ou naquele intervalo em que a gente ainda tem alguns funcionamentos fisiológicos, chamado intervalo perimortem – imediatamente antes e imediatamente depois.
E, então, enquanto eles analisavam essa foto de Sandra, notaram uma ferida na parte interna da coxa direita. Uma ferida circular.
Ivan: Tem até uma feridinha aqui também… Aqui… Chamou a atenção agora isso aqui também. Isso aqui é nesse mesmo período que foi feito, provavelmente?
Dr. Sami: Isso, essa é uma ferida em vida. Essa é uma ferida em vida, com as mesmas características.
Ivan: Com as mesmas características aqui.
Dr. Sami: É. Eu até diria que essa ferida na perna tem até um bordinho ali de… Já arredondadinho, já de inflamatório, então, algumas horas de vida, pelo menos.
Ivan: Quem mantinha ela em cárcere pode ter feito isso aqui para machucar ela…
Dr. Sami: Pode, e eu não excluiria, pela característica, pelo tamanho, o formato, pelo que tem ao redor dela, eu não excluiria nem que pudesse ter sido feita com cigarro.
Ivan: Pode ter sido um cigarro isso aqui?
Dr. Sami: É, eu não excluiria nem que ela tivesse sido feita com cigarro.
Ivan: Tá. Ok. Eu só acho uma pena que a gente não tenha mais fotos, porque eu queria ver essa incisão em V, que fala… Que a gente não consegue ver como está aqui. Dá a entender, então, que está tudo aberto aqui embaixo dela, debaixo da roupa, né? Aqui assim…
Dr. Sami: É a impressão que o legista deixa, de que está tudo aberto até embaixo, ou pelo menos alguns centímetros para baixo, que a gente não consegue ter acesso a essa informação. Ele fala, inclusive, em retirada de glândulas salivares naquele comentário dele.
Ivan: Aham. E nós não temos mais detalhes disso, né?
Dr. Sami: Não. Não temos mais detalhes disso.
Ivan: […] Assim, para a gente poder encerrar de vez, o que o doutor acredita? Os três casos são relacionados? Não são? Outros elementos podem nos levar a isso? O que se passa na sua cabeça de entendido? Porque, como leigo, a gente fica imaginando aqui, né?
Dr. Sami: Eu diria, assim, eu não posso excluir… Eu sou um cético por natureza, tá? Então, eu não posso excluir a correlação entre os três casos. Correlacioná-los requer uma certa extrapolação em função, por exemplo, do estado do corpo do Leandro, do próprio estado do corpo do Evandro. Quer dizer, o corpo da Sandra é o que nos dá mais informações, e todo o resto nós temos uma perda significativa de informações. Então, correlacioná-los requer alguma extrapolação daquilo que a gente está efetivamente vendo no Leandro e no Evandro. Então, feitas essas extrapolações que, necessariamente, são hipotéticas – mesmo nesse contexto de um monte de coincidências, elas são hipotéticas –, dá para traçar uma linha que une esses casos. E que passaria pela característica da Sandra, que era o corpo em melhores condições, uma linha de natureza de crime sexual, ou essencialmente sexual; do qual, o resto aparece como fetiche, como, digamos, alguma perversão do agressor para além, obviamente, do abuso de crianças. Isso eu estou tirando de… Basal, linha basal. Então, precisaria de uma certa extrapolação. Eu não descarto. Me anima a tese, excita a minha disposição investigativa a hipótese de que os casos estejam conectados, mas eu não me sinto à vontade para bater o martelo e dizer: “olha, definitivamente eles estão conectados”. Eu acho que ainda falta alguma coisa aí, falta um elo. Quer dizer… Digamos que a gente pensasse tudo isso que nós discutimos até agora, que a gente considerasse, nós temos um lapso de tempo entre a Sandra e o Leandro que é um lapso de tempo muito grande. Mesmo que eu pensasse em período de ‘cool off’, quer dizer, o período de esfriamento da violência, está me faltando um elo aí. Esse elo pode ser porque as características… O estado dos outros dois corpos não me permite amarrar melhor eles, mas esse lapso temporal me chama a atenção. Digamos que os casos estejam conectados, e digamos que seja o suspeito X. O que ele fez em três anos? Onde ele estava em três anos? Que crimes ele praticou em três anos? Ele ficou três anos frio? Duvido. Depois do primeiro… Pode ser. Mas o segundo e o terceiro com um lapso de dois meses, e o primeiro para o segundo um lapso de três anos? Eu te diria assim… Se tu me perguntasse o que eu faria, eu cavaria mais vítimas no meio desse tempo, entre 1989 e 1992. Eu procuraria mais vítimas.
Ivan: É. A gente tem, inclusive, casos de crianças abertos ainda, de desaparecidos. Eu compilei todos os dados do que a gente tem, pegando data de desaparecimento, nome da criança, idade, cidade, e quatro fontes diferentes: uma matéria da Gazeta do Povo, sites de desaparecidos atuais, cartazes do Sicride e um cartaz de 1992 que a gente localizou, que tinha crianças desaparecidas.
Nessa hora, Ivan abriu no computador uma tabela com todos os casos de crianças desaparecidas no Paraná.
Tabela com casos de crianças desaparecidas no Paraná
OS NÚMEROS
O Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas (Sicride) do Paraná só foi aberto em 1995. Desde a criação, ele passou a concentrar todos os casos desse tipo. Mas os anteriores a isso são dispersos. É possível que alguns tenham sido esquecidos, ou até mesmo ignorados pelas autoridades, especialmente em alguma cidade no interior.
Com os dados que Ivan tinha em mãos, pode-se notar que desde 1986 havia uma constante de apenas uma ou no máximo duas crianças desaparecidas. Mas, em 1992, ano em que Leandro e Evandro foram mortos, esse número saltou para seis. E o interessante é que, quando se organiza esses dados em uma disposição geográfica, nota-se que os casos de crianças desaparecidas desde 1987 ocorreram próximos à Curitiba.
Em 1992, ano do pico desses eventos, há três casos nesta região. Os outros três ocorreram no norte do Paraná, em Londrina e Maringá. E todos eles em datas muito próximas.
Entre fevereiro de 1992, data em que Leandro desapareceu, até 20 de abril de 1992, foram cinco casos de desaparecidos. Se incluir Evandro, são seis. E, em novembro de 1992, houve o desaparecimento de uma menina em Araucária, na região metropolitana de Curitiba.
Os desaparecidos são meninos e meninas, com idades entre cinco e 12 anos. Ivan não sabe se esses eventos estão conectados e se houve mais casos além destes. Mas são dados que chamam a atenção.
Ivan: No ano de 1992, que é o ano do Evandro… Isso aqui, só casos de desaparecidos em aberto, não casos de desaparecidos solucionados, tem toda essa questão, né? Corpos encontrados, condições de putrefação avançada, a gente não sabe. Mas aqui, ó, em 1992, a gente tem realmente um salto. E o que a gente começou a fazer é… Vamos tentar cruzar a cidade por ano. E daí é interessante… Quando a gente faz pela disposição geográfica delas, o que a gente vê aqui? A gente vê, numa região específica, de 1987 a 1992, uma aglutinação de alguns casos.
Dr. Sami: Um ‘clusterzinho’ ali…
Ivan: Um ‘clusterzinho’, isso. E que vai se alterando, né? Um tempo depois ele vai para outros lugares e tudo, mas isso aqui já é coisa mais recente também, pode ser outras coisas. Mas aqui, por exemplo, Araucária, Almirante Tamandaré, Curitiba… Então, com base nesses casos em aberto, que nunca foram solucionados, pode ter alguma coisa. É o nosso suspeito, são outros? Não sei. Mas foi uma coisa que chamou a atenção da época, tanto que criou toda a mobilização, movimentos de pais e mães de crianças desaparecidas e tal. Mas, assim, geograficamente e cronologicamente, a gente tem casos, só dos casos em aberto, que despertam a nossa atenção de alguma forma.
Dr. Sami: E os casos encerrados podem ter sido encerrados naquelas que a gente sabe, né?
Ivan: Isso.
Dr. Sami: Mal encerrados.
Ivan: Apareceu uma ossada super deteriorada, anos depois…
Dr. Sami: Identificação positiva e deu… E encerraram o caso, ou apareceu um suspeito de ocasião, né?
Ivan: Isso, exatamente.
Dr. Sami: Um suspeito de ocasião que acaba condenado por um crime que eventualmente não cometeu.
Ivan: É o próprio caso Evandro. O caso Evandro é considerado um caso resolvido…
Dr. Sami: Pois é, é considerado um caso… Exatamente… Então, ali tem um cluster de casos não resolvidos e pode ter talvez um cluster maior de casos resolvidos.
Essa conversa com o Dr. Sami ocorreu antes da revisão criminal dos acusados de Guaratuba, e por isso Ivan comentou que o caso era dado como resolvido pelo Estado – como de fato era na época. Hoje, tudo voltou para a estaca zero, mas não haverá nova investigação, visto que o crime já prescreveu.
PSICOLOGIA INVESTIGATIVA
Após as conversas com o Dr. Sami, Ivan enviou as entrevistas com ele para o psicólogo investigativo Denis Lino.
Dr. Denis: Eu sou formado em psicologia pela [universidade] estadual da Paraíba, tenho especialização em psicologia jurídica e investigação criminal. Fiz o meu mestrado em psicologia forense investigativa pela Universidade de Liverpool, e atualmente estou fazendo doutorado em psicologia na Universidade Federal de Pernambuco. A minha área de atuação sempre foi e vem sendo psicologia investigativa com consultoria, artigos publicados. Estou com um livro publicado, outro que eu organizei sempre dentro da temática de perfil criminal ou de psicologia investigativa, e é por aí que eu me encontro.
Antes dessa conversa com o Dr. Denis, Ivan também enviou para ele todos os materiais que havia mandado para o Dr. Sami – históricos resumidos dos casos, todos os laudos e uma lista de perguntas.
Durante meses, Ivan e o Dr. Denis trocaram informações, discutiram alguns pontos dos casos e, após as entrevistas com o Dr. Sami, Denis sentiu-se mais à vontade para poder finalizar as suas análises como psicólogo investigativo.
Relatório Análise Comparativa de Dados – Denis Lino
Relatório Perfil Criminal Geográfico – Denis Lino
Tendo em vista que essa não é uma área ainda muito conhecida e difundida no Brasil, Ivan aproveitou para pedir para ele explicá-la um pouco.
Ivan: Psicologia investigativa e psicologia forense seriam a mesma coisa? Ou a gente está falando de áreas próximas, mas separadas?
Dr. Denis: A gente está falando de áreas próximas, mas separadas. É basicamente a diferença de onde você atua. Forense vem de fórum, então é quando você está atuando ali junto ao fórum de justiça, quando você está fazendo perícia para um tribunal tomar uma decisão, um juiz ou um júri, ou você está como assistente técnico de algum caso nesse sentido. Enquanto a investigativa, como o nome diz, é a psicologia aplicada na investigação, que é o que a gente vai chamar de fase pré-processual, antes do processo, da parte judicial como um todo. É como a psicologia pode contribuir para que a investigação seja mais eficaz e que gaste menos recursos humanos, de pessoa, de dinheiro e tudo mais, e garanta uma justiça de fato mais justa.
Ivan: Quando a gente fala de psicologia investigativa, eu penso em duas coisas. Eu queria saber se é por aí mesmo. Eu penso primeiro em um contato entre um psicólogo e um potencial suspeito, ou até testemunhas, depoentes que precisam de alguma avaliação. E também penso, dentro de uma área da Polícia Científica talvez, de que seria de perfilamento criminal. A gente tem alguns elementos aqui, a gente precisa fazer um perfil criminal desse ofensor. É por aí que você trabalha mesmo, nessas duas áreas?
Dr. Denis: Isso. Exatamente nesses dois contatos é onde eu mais entro. Mas a psicologia investigativa… Eu costumo dizer que ela às vezes é quem faz a coisa, mas às vezes ela está por trás das cortinas, fazendo uma preparação para os policiais que vão estar na linha de frente. Então, essa parte de interrogatório com suspeitos ou coleta de depoimento com testemunhas e vítimas, eu nunca fiz porque eu não sou policial. O policial é que faz isso. O que a gente faz é tentar contribuir com a formação policial, com técnicas e conceitos da psicologia, para que eles consigam lá naquele momento do interrogatório, da entrevista, obter mais sucesso na coleta de dados, com colaboração de quem está ali. Um suspeito que não quer conversar, que não quer falar nada, como que a gente consegue desenvolver uma relação com ele que gere colaboração. Então, não sou eu que faço o interrogatório, mas a gente traz conceitos da psicologia para garantir uma entrevista menos sugestiva e que traga mais frutos para a investigação. Mas a gente também tem a outra atuação, que é fazendo algo mais pericial, como na questão do perfil criminal, da autópsia psicológica, da análise comparativa de casos, que é de fato uma análise psicológica de algo que no fim gera um relatório, um laudo, um parecer, dependendo da situação.
Ivan: Então, acontece um crime ou uma série de crimes. Você tenta pegar os elementos disponíveis da investigação e pode tentar montar um perfil com… Sempre suposições, né? Nada é 100% garantido. Mas, assim, “existe uma grande probabilidade de o ofensor ter as seguintes características”. É isso.
Dr. Denis: Isso, exatamente. Essa é uma das formas de atuação da psicologia investigativa. Talvez a principal confusão que a gente tem aqui no Brasil é a noção de que psicologia investigativa e perfil criminal são sinônimos. Mas, na verdade, não são. Perfil criminal é uma técnica de aplicação da psicologia na investigação. E aí é justamente como você falou. A gente tenta analisar como o crime foi cometido. Então, quando a gente fala de psicologia, a gente está falando de comportamento de pessoas, e aqui especificamente de comportamento do criminoso. Então, a gente olha para o comportamento no crime e tenta levantar as prováveis características de quem teria cometido aquilo dali, que tipo de pessoa agiria dessa forma num contexto criminal como esse.
Ivan: Aham. Eu imagino também que é um trabalho colaborativo no ponto de… Tem questões até de medicina legal, se a gente está falando de homicídios, né? A gente está falando de casos em série. Foi até o caso que a gente está trabalhando aqui, né? A gente tem três casos separados. A gente se faz a pergunta: ok, até que ponto a gente pode dizer que é a mesma pessoa? Você vai ter a sua leitura em um certo ponto, só olhando os documentos da época. Mas daí a gente conversou com o Dr. Sami… Você também deu uma olhada em tudo o que já foi falado sobre esse caso no passado com outros peritos e médicos legistas, e daí você tenta montar: ok, a partir do momento que entendo que esses casos são ligados, o perfil seria assim. Se fosse com três pessoas diferentes, seria outro. Então, eu acho que a gente pode estabelecer aqui uma regra, para não ficar uma conversa interminável, a gente vai partir do ponto de que os três casos estão ligados, né? E, a partir desse ponto, tem um conceito que você usa em um dos seus pareceres, que eu gostaria que você também explicasse para a gente, que é o ‘case linkage’.
Durante essa conversa, tanto Ivan quanto Denis chamaram os documentos produzidos por ele de “pareceres”, mas na realidade são relatórios.
Ivan: O que é case linkage?
Dr. Denis: Certo. O case linkage é um termo em inglês que a gente já tentou traduzir de algumas formas diferentes. Acho que a gente ainda não achou o nome ideal, mas seria algo como “vinculação criminal”, “vinculação de crimes” ou “análise comparativa de casos”. Que é basicamente quando você olha para dois ou mais crimes e busca identificar se existem ali semelhanças suficientes entre eles para dizer que foram cometidos pelo mesmo autor. Foi o mesmo ofensor que cometeu o crime A e o crime B. Então, vamos dizer que surgiu um novo crime de homicídio na cidade, e aí a investigação achou muito semelhante ou teve alguma suposição de que poderia ter sido cometido pela mesma pessoa que cometeu um homicídio no passado. A gente vai olhar para os comportamentos. Como esse crime foi cometido? Como foi que esse ofensor chegou até a vítima? Que instrumento ele usou? Como foi? Se a gente tem relatos sobre o que ele falou, se teve comportamento sexual ou não, que tipo de comportamento foi esse… Para ver se existem duas coisas: uma, se existe semelhança suficiente em como esses crimes foram cometidos, se eles são consistentes entre si; mas também se esses dois crimes apresentam características que vão diferenciar eles dos outros crimes semelhantes que acontecem na região e na mesma época. Porque eu posso encontrar dois crimes que são idênticos baseados em alguns comportamentos, mas que isso por si só não garante que foi… Não é nem garante… Mas não indica que foi cometido pela mesma pessoa. A gente sabe que os homicídios no Brasil, cerca de 75% a 80%, são cometidos por arma de fogo. Então, por mais que eu possa olhar para dois homicídios e dizer: “o comportamento é idêntico. No homicídio A e no homicídio B foi usado um instrumento, foi uma arma de fogo, foi atirado na pessoa e ela morreu”. Mas 80% dos homicídios são assim. Então, não tem como a gente usar isso para diferenciar. Então, é como se fosse um balanço entre ser próximo, ter muitas similaridades, mas também esse conjunto de comportamentos não ser tão comum para dizer que qualquer outro tipo de crime igual a esse nessa época e nessa região apresentaria essas características.
Como foi falado anteriormente, o trabalho que o Dr. Denis desenvolve ainda não é muito aplicado no Brasil. Mas já existem casos solucionados de crimes em série em que essa metodologia ajudou na resolução. Um exemplo disso ocorreu em 2021, em Curitiba, e virou até um episódio do programa Linha Direta, da Rede Globo.
Ivan: Eu acho que um caso que eu lembro de ter acompanhado porque aconteceu aqui em Curitiba e que a psicologia criminal, a psicologia investigativa, foi importante, foi o caso do [José Tiago Correia] Soroka, que foi esse serial killer de homossexuais que foi preso em maio de 2021; e que ele tinha um modus operandi que foi… Que foi esse modus operandi que permitiu à polícia identificar: “ok, tá acontecendo um padrão aqui”. Ele entrava em contato com as pessoas por aplicativos de encontros. Era exatamente… Eu não me lembro agora com detalhes, mas ele tinha… Isso levou a polícia a mostrar: “ok, existe um método que está sendo apresentado, muito provavelmente é a mesma pessoa”.
Dr. Denis: A gente inclusive teve um psicólogo, que era o Guilherme Bertassoni, que é perito criminal lá no Paraná, e que fez a colaboração junto à polícia, trazendo conceitos da psicologia. E essa ideia de “a gente tem um método, que parece que é a mesma pessoa” é como se você pensasse assim: você aprendeu a fazer algo de determinada forma, você não mexe naquilo dali. Você continua repetindo. Toda vez você vai, sei lá, lavar a louça, você começa por uma coisa e depois outra. Outra pessoa acha melhor começar lavando os copos, outra pessoa acha melhor começar lavando os pratos. A gente tem aquela nossa estrutura de como a gente vai agir. E a gente, quanto mais faz, vai aprimorando isso, ajustando melhor a louça suja, depois a louça limpa, e cada um tem a sua forma de fazer. Mas quando você identifica ali mais ou menos o que dá certo para mim, você tem uma certa repetição, que é o que a gente viu, por exemplo, nessa situação dele. Teve essa ideia inicial… Se a gente supor, partir da ideia de que o primeiro crime que a gente tem conhecimento é de fato o primeiro crime dele… Porque isso também não tem comprovação, pode ter algum outro que a gente não saiba… Mas a partir do momento que identificou aquela forma de agir… Que, se eu não me engano, ele tinha o aplicativo de relacionamento, combinava na casa da pessoa, trancava a porta e, pouco antes de ter de fato o ato sexual, ele vinha a matar a sua vítima por estrangulamento, enforcamento, algo do tipo.
O tipo de trabalho do Dr. Denis não é ciência exata. Todo o estudo que ele faz é com base em probabilidades de outros casos, e também de conceitos psicológicos. Logo, tudo o que ele diz são estimativas do que é o mais provável de ter acontecido. Em casos em série, esse estudo de probabilidade ganha grande importância.
Geralmente, quando se trata de crimes em série, por conta da influência de filmes de Hollywood, é comum pensar em serial killers. Mas esse não é o tipo de crime em série mais comum. Existem estupradores em série. Existem arrombadores de casas em série. Existe toda uma miríade de crimes que podem ser considerados nesse sentido de continuidade.
E, para entrar nas questões técnicas, o Dr. Denis explica dois conceitos fundamentais nessa metodologia de investigação que busca solucionar crimes em série: Modus Operandi e Assinatura.
Dr. Denis: Ok. De fato, são dois conceitos que são centrais dentro da psicologia investigativa voltada à essa parte de perfil criminal, análise comparativa, e que a confusão é generalizada. Porque se mistura muito e às vezes tem confusão até em quem estuda sobre o que deve ser definido A ou B. Então, você vai encontrar diversas definições diferentes. Aqui eu vou trazer o que eu trabalho, que eu acho que faz mais sentido, tá? Modus operandi significaria o modo de operar, que é esse método, essa forma que eu faço, qual a sequência de ações que eu utilizo para chegar no meu objetivo. Então, qual é o meu passo a passo para atingir aquilo dali que eu quero. No caso do agressor, ele vai ter uma sequência de ações que faz para atingir o seu objetivo que é… Dependendo do crime, vai ter objetivos diferentes. Num homicídio é tirar a vida da pessoa; num estupro vai ser variado, mas pode ser geralmente uma gratificação sexual; no arrombamento de uma casa, seria roubar essa casa. Mas, em todos os crimes, junto a isso, a gente tem a situação de: ele não quer ser identificado, ele não quer ser interrompido, ele não quer ser capturado. Claro, vai ter o caso A ou B em que ele gostaria disso, mas aí a gente entra em outra discussão. Mas, de uma maneira geral, o ofensor quer alcançar o que ele quer sem ser interrompido, sem ser identificado e sem ser capturado depois. Então, o modus operandi é: quais são as ações que eu tomo para garantir que isso aconteça. Alguns ofensores vão ser extremamente agressivos e deixar a vítima inconsciente antes de ela ter chance de reagir. Outros ofensores vão decidir usar uma máscara para evitar que sejam identificados. Alguns ofensores vão usar luvas, seja lá que tipo de luva, para não deixar nenhum tipo de impressão digital. Outros vão ser menos descuidados com isso. Então, o modus operandi, apesar de ele ser essa forma de agir do ofensor, ele tem muitas variações entre quem comete crime, devido à natureza de cada um. Às vezes é o conhecimento que ele tem. Então, um estudioso de perícia criminal, quando for cometer um crime, vai ter muito mais cuidado com coisas do que alguém que tem um acesso de raiva quando estava embriagado e matou outra pessoa. Então, são dois momentos, são duas pessoas, são conhecimentos diferentes. Do mesmo jeito que alguém que já cometeu crimes, já foi preso, sabe como funciona o sistema de justiça e investigação, vai ter um conhecimento mais aprofundado sobre quais cuidados ele deve ter para não ser identificado e tudo mais, do que aquele que está cometendo o seu primeiro crime. Então, modus operandi, em resumo, seria quais são as ações que esse ofensor toma, que esse ofensor faz para garantir que ele atinja o seu objetivo do crime sem ser identificado naquele momento, sem ser interrompido naquele momento, e sem ser capturado depois. O modus operandi tem uma certa consistência, ele se repete. É como eu disse sobre lavar louça. A gente vai tendo uma certa forma de agir que se repete. Só que ele também tem uma certa flexibilidade. Porque pode ser que você encontre uma maneira melhor de fazer aquela atividade. Então, talvez o indivíduo que estava cometendo crimes desarmado, ele começa a levar uma arma porque viu que, em determinado momento, aquela vítima fugiu quando ele só ameaçou sem uma arma na mão. Então, houve uma modificação. Alguém que cometeu dois crimes de estupro sem usar faca, sem usar arma de fogo, no terceiro começou a usar uma faca, uma arma de fogo. Porque tem uma alteração ali do que ele acha que talvez fique melhor. Então, o modus operandi tanto pode evoluir, ter algum tipo de sofisticação no seu ato, quanto involuir, ficar de alguma forma menos sofisticado por N motivos. Pode ser que o indivíduo estava sob o efeito de drogas, pode ser que ele tenha algum tipo de transtorno mental que piorou, algum tipo de processo cognitivo que ele tenha, pode ser que ele esteja demasiado confiante e por isso ele tomou menos precauções. Então, o modus operandi tem uma certa repetição, mas ele tem mais abertura para se modificar, geralmente evoluir, mas também pode ter alguns casos de involução.
Ivan: E pode ser também algum imprevisto, né? Aconteceu alguma situação ali, alguém estava passando ali perto, né? Imprevistos acontecem também, e a gente raramente vai ficar sabendo.
Dr. Denis: Exatamente. É uma das principais… Como eu posso dizer… Decepções da área, de quem vem, assim como eu vim, de filmes, de seriados e tudo mais. Porque o filme, quando você resolve o crime, está ali perto do fim do filme, você tem a encenação de exatamente como o assassino fez alguma coisa. Então, você sabe exatamente o que ocorreu. Quando, na vida real, a possibilidade disso existir é quase zero, se você não tem uma câmera lá gravando todo o ato criminal. Então, pode ser que aconteça alguma situação de improviso ali que a gente só venha a descobrir depois ou nunca, e fique naquela… Talvez um crime não seja considerado como parte de uma série porque justamente a vítima reagiu, era mais forte do que ele esperava, passou uma viatura de polícia com o som da sirene e ele fugiu. Então, N fatores estão envolvidos, que podem influenciar a ação do ofensor, e, por consequência, a nossa própria percepção do crime, da possibilidade de ser o mesmo ofensor ou não.
Ivan: E a assinatura?
Dr. Denis: Já quando a gente fala de assinatura, ela seria já um comportamento mais raro e mais específico, muitas vezes não necessário para atingir esse objetivo do crime. Então, a gente pode ter… Geralmente a gente trabalha com exemplos de assinatura. Quando a gente fala em crimes de estupro, pode ser um tipo de vestimenta específica que ele pede para a vítima usar, ou algum tipo de ação específica que ele pede para a vítima fazer. A gente está falando, por exemplo, de uma humilhação que ele faz com a vítima, de exercer controle sobre a vítima ou de ser mais violento do que o necessário com a vítima, ou direcionado a algum tipo de parte do corpo da vítima. Então, pode ser que seja um ofensor que chame a vítima por algum nome específico, que xingue a vítima de algum jeito específico, que busque humilhar a vítima de alguma maneira. Nos casos de homicídio, a gente já tem outros casos de exemplos de assinatura, como necrofilia, como desmembramento, como a forma de ocultação de cadáver, como até mesmo o método de abordagem – talvez um ofensor que chegue na sua vítima de alguma forma específica. Então, seria um comportamento raro. Quando a gente diz assinatura pensando em quadros, pensando em documentos, o que a gente tem é: quando você vê um quadro A e um quadro B, você não sabe, tem alguma semelhança no desenho, nos traços, mas tem ali uma assinatura que você sabe exatamente que é daquela pessoa. É uma coisa rara, é uma coisa muito específica que aquela pessoa coloca ali. No crime, ele seria essa coisa diferencial que facilitaria a gente a identificar que crime A e B é do mesmo ofensor. Não necessariamente, como no quadro, é intencional deixar a assinatura, não necessariamente é o que acontece nos crimes. Existe essa concepção errônea de que o assassino quer deixar algo lá para ser encontrado. Às vezes nem é. Às vezes é o que ele quer fazer naquele momento, é o motivo pelo qual ele quer cometer o crime, ele quer exercer controle sobre a vítima, e para isso ele vai humilhar, vai atacar, vai fazer isso, vai fazer aquilo. E isso é uma consequência, deixar algum tipo de evidência comportamental ou física depois. Mas a assinatura, então, em poucas palavras, seria um comportamento ou um conjunto de comportamentos que é extremamente raro e específico, e muitas vezes não é necessário para o cometimento do crime. Ele vai além do que é necessário e pode estar relacionado aí a algum tipo de fantasia do ofensor.
Ivan: Sim. Eu lembro do… Um exemplo bem banal assim, mas é do filme “Esqueceram de Mim”, os bandidos molhados, que eles tinham o hábito de roubar as casas e abrir todas as torneiras e tapar o ralo, para que a casa ficasse inundada. Então, essa era a assinatura deles. A sua casa foi roubada e está inundada, então são os bandidos molhados.
Dr. Denis: É melhor do que uma que eu já vi, de arrombamento de casa também, que era defecar na cama de casal.
Ivan: Ah, tá…
Dr. Denis: É um comportamento completamente desnecessário e deixa a evidência forense lá, que é do indivíduo, mas que para ele tinha uma gratificação para além de roubar. Então, está vendo? É o comportamento específico. Quantos casos você sabe que isso aconteceu? Eu só conheço esse. E ele tem um significado para a pessoa, um tipo de mensagem, de desprezo para quem mora naquela residência, de algum sinal que ele deixa ali. Mas, e aí eu acho importante dizer também, que a assinatura, apesar de ela ser estática, assim como o modus operandi, ela é bem mais fixa, ela é bem mais repetida. O modus operandi pode ter mais modificações na sua forma de agir. Mas a assinatura se mantém mais comum. Só que ela também não é perfeitamente comum. Não é como se toda vez que ele fosse, nesse caso, defecar, seria na cama de casal, milimetricamente correto, com determinada quantidade ou coisa do tipo. Mas ele vai talvez fazer ações que danifiquem a casa que ele arrombou e que deixem as pessoas com a mesma sensação de nojo ou coisa do tipo. Não necessariamente a mesma ação, mas que tenha aquela função para ele, que tenha aquele sentido para ele. Então, no caso em que o ofensor humilha a vítima, ele pode humilhar de determinadas formas diferentes. Não é porque ele sempre repete a mesma frase ou o mesmo comportamento, que só aquilo é a assinatura, mas com a função desse comportamento para um indivíduo psicologicamente na sua fantasia. Aí é que a gente entra na possibilidade de assinatura.
Ivan: Quando eu penso em modus operandi e assinatura, eu sempre fico… Dentro desse ramo de possibilidades, eu lembro que tipo: ok, esses são parâmetros que a gente vai ter, vai tentar levar em casos seriais ou suspeitos de casos seriais. Mas, ao mesmo tempo, você vai ter exemplos como, sei lá… Acho que o que mais me vem à mente, que é mais clássico, é o caso do Zodíaco, dos Estados Unidos, em que ele fez uma série de vítimas, e a gente só sabe que ele fez uma série de vítimas porque ele escrevia para os jornais fazendo… Porque ele matava cada vítima de maneira diferente, né? Inclusive usando roupas diferentes, abordando em horários diferentes. Então, parece que o grande prazer dele ali era simplesmente cometer o crime, fugir da polícia e avisar para o jornal: “olha, cometi tal crime, eu sou o Zodíaco”. Era isso. Então, o modus operandi era completamente aleatório, mas uma assinatura estava ali, que era falar com os jornais, né?
Dr. Denis: Aham. E aí entra numa outra discussão sobre crimes em série, a ideia de que ele vai ter sempre o mesmo padrão de crime, vai ser repetido igualzinho o modus operandi. Mas a gente vê que tem possibilidade de alteração, seja de evolução ou involução, ou o caso concreto, algum tipo de situação contextual. Mas a própria assinatura sofre modificação. E tem essa noção de que se não é exatamente igual, se as vítimas não são perfeitamente iguais, não é um assassino em série, ou não é algum tipo de estuprador em série ou coisa do tipo. Mas não, é. Se ele cometeu dois ou mais crimes, do mesmo tipo de crime, ele já é aquele criminoso em série. Isso vai depender de teorias e teóricos, mas dois a três crimes repetidos já são aí crimes em série, independente se a vítima era um homem e depois era uma mulher, se era maior de idade, se era menor de idade. Ele já entra em série, e aí a gente vai ver os pormenores de cada um especificamente no caso a caso.
Essa é uma variável importante de ser colocada na investigação. Às vezes, a tendência é achar que tudo deve se repetir exatamente da mesma forma, mas não é o caso. Imprevistos acontecem. Situações variam, pessoas mudam. Ficam mais habilidosas em alguns casos, ou às vezes não conseguem fazer exatamente o que pretendiam desde o início.
Mas se considerar que os três casos são conectados, há um modus operandi específico nos sequestros e mortes dessas crianças, que pode sofrer algumas variações, mas que possui uma assinatura muito clara: os corpos sem as mãos, jogados com as roupas em um matagal próximo de suas casas. Olhando por esse lado, os crimes parecem ter ainda mais relações.
Ivan conheceu o trabalho do Dr. Denis Lino na época em que produzia a temporada sobre Altamira. Ele estava interessado em entender melhor sobre Geografia do Crime, que foi o método aplicado pelos investigadores do caso de Francisco das Chagas, no Maranhão, em 2004.
Procurando por artigos científicos sobre o tema, Ivan encontrou alguns escritos pelo Dr. Denis. E o interesse em falar com ele era justamente pelo fato de que não sabia muitas coisas sobre os casos Evandro, Leandro e Sandra além do que já existia nas documentações oficiais. Mas Ivan sabia de vários lugares relevantes nesses crimes, que nunca foram analisados com cuidado como método de investigação.
Assim, ele pediu a ajuda do Dr. Denis justamente para entender melhor como esse método de investigação funciona, e se ele teria ferramentas disponíveis para auxiliar com base em probabilidades.
Dr. Denis: Eu achei interessante quando você falou “eu não sei o que aconteceu com essa criança, mas eu sei onde o crime aconteceu”, seja porque o corpo foi encontrado ali ou porque a gente tem uma noção mais ou menos de onde a criança foi vista pela última vez ou de onde ela pode ter sido raptada. Eu estou considerando aqui rápido em todos os três casos… Porque uma coisa que a gente não tocou ainda, mas que para mim é o que mais faz sentido dentro do que eu chamo de perfil criminal geográfico, como você chamou de geografia do crime, é que o local do crime não é aleatório. Porque se crime fosse aleatório, a gente não ia ter, por exemplo, o que a gente chama de hotspots, que são as áreas de calor, concentração de crimes. A gente não teria mais crimes de relações, de brigas interpessoais, até de assassinatos, em fins de semana, que é quando as pessoas estão fora de casa, socializando, que tem mais possibilidade de conflitos. A gente não teria crimes em algumas cidades que são de veraneio, fora do verão, porque tem menos pessoas nas casas. Então, o crime não é aleatório, e o local do crime não é aleatório. As pessoas que cometem crimes têm que ter, de alguma forma, um contato com aquele local em que o crime ocorreu. Eu costumo falar também em sala de aula, como eu dou aula nível Brasil, online, desde a pandemia… Se você fosse cometer um crime aqui em Campina Grande, que é a cidade que eu estou agora, em que bairro você faria isso? Em que rua você faria isso? Você vai arrombar uma casa para roubar um notebook, uma televisão. Em que bairro você faria isso? A maioria dos alunos não sabe, porque não são de Campina Grande. Então, para você saber que existe uma vítima em potencial ali, você tem que, de alguma forma, ter contato com aquele local. Esse contato geralmente se dá pelo o que essa pessoa faz no seu dia a dia. É porque ela mora na região, é porque ela trabalha na região. De alguma forma, ela tem que se locomover por aquela área para saber: “aqui eu posso levar essa criança porque não tem uma fiscalização”. Ou então, se eu estou aqui, tem algum motivo para eu estar aqui. Seja porque eu estou me locomovendo da minha casa para a casa de um colega, de uma esposa, de outra pessoa; seja porque eu estou saindo no trajeto de trabalho… Eu lembro de um caso específico em que crimes de um estuprador em série ocorreram por volta ali das três e meia, quatro da tarde, que era justamente o horário de saída do trabalho dele, e era no trajeto que ele fazia do trabalho até a sua casa. Então, ele trabalhava das sete às três. Três e meia para as quatro horas, ali entre os bairros em que ele trabalhava e para onde ele saía para sua casa, era onde ele fazia as suas vítimas. Então, tinha uma relação com o local e também com o tempo, que fazia a conexão com ele. Então, o perfil criminal geográfico seria a análise dos locais dos crimes e também de como esses crimes foram cometidos, o modus operandi, a assinatura, para tentar identificar onde esse ofensor tem um ponto de âncora, uma base. Geralmente, a gente considera como sendo a casa deles. Óbvio, já tiveram aí alguns estudos que mostraram que alguns ofensores tinham como base um bar que costumavam frequentar. Ficava muito tempo nesse bar, e ele saía desse bar para cometer os seus crimes. Então, acabava que o ponto dele era aquele bar. Em algum outro caso específico, foi onde ele já morou. Mas, de uma maneira geral, o que a gente tem é a casa do ofensor, onde ele reside atualmente, como sendo a sua base. Mas também pode ter algum outro tipo de situação assim. Então, a gente olha pra: em que local geográfico aconteceu esse crime, como esse crime foi cometido e o que a gente sabe sobre a relação movimentação e comportamento criminal. Porque, como eu disse, se ele cometeu crime em algum local, ele tem que ter alguma relação com aquilo dali. Algumas características de modus operandi vão indicar talvez uma distância maior ou menor percorrida por aquele indivíduo. Características individuais também vão dizer isso. Então, a gente tem que, geralmente, indivíduos que cometem crimes muito jovens, ainda ali no início, metade, fim da adolescência, costumam percorrer distâncias bem mais curtas comparadas a jovens adultos. Mais ou menos ali pelos 30 anos é quando o pessoal viaja as distâncias mais longas. E, depois, quando eles passam a uma idade mais avançada, os seus 40, 50 anos, eles voltam a percorrer distâncias curtas. Então, de acordo com características individuais do crime, a gente tem algumas interações com como eles se movimentam. Crimes interpessoais, de estupro, homicídio, geralmente são cometidos mais próximos da casa do ofensor, comparado a crimes monetários, aquisitivos, como roubos, assaltos, arrombamentos, que eles costumam viajar mais. Então, algumas características específicas vão indicar mais ou menos a distância percorrida desse indivíduo. E o principal ponto que a gente tem hoje, que é pacífico, digamos assim, na literatura de estudos de perfil criminal geográfico, é a ideia de que os ofensores em geral viajam distâncias curtas para cometer o seu crime. Isso entra justamente no princípio do mínimo esforço. A gente tem a teoria do princípio. Quando a gente for ver na prática, de fato, não é como se eles fossem como alguns filmes ou séries retratam, que ele sai viajando e matando pessoas à medida em que viaja. Na verdade, ele viaja distâncias de dois, três, quatro quilômetros em média para cometer os seus crimes. Então, a gente busca construir uma área ali dentro do mapa, analisando o local e como os crimes foram cometidos, para indicar: “é por aqui mais ou menos que essa pessoa provavelmente tem a sua base”.
Com base nessas teorias, o Dr. Denis elaborou um relatório de perfil criminal geográfico, examinando especificamente a cidade de Guaratuba. Só foi possível fazer nela, já que lá houve dois casos – o mínimo necessário para se fazer esse tipo de estimativa. E tudo gira em torno do matagal onde os corpos de Evandro e Leandro foram encontrados.
Dr. Denis: Uma das coisas que a gente, dentro do perfil criminal geográfico, desenvolveu nas últimas duas décadas foram softwares, programas de computador para tentar auxiliar nessa construção do perfil geográfico. Partindo principalmente dessa ideia do mínimo esforço, que reflete na noção de que os ofensores vão viajar distâncias menores para cometer o crime. Então, quanto mais distante do crime, menos provável de ele residir ali. Isso se aplica na maioria dos casos, mas como a gente já viu, a gente está lidando… Existe sempre a possibilidade de ser a exceção à regra. Mas supondo que não é uma exceção, já que a gente trabalha com regras, com o que é mais provável de acontecer, utilizando de um dos softwares disponíveis, que é o Dragnet, que foi desenvolvido pelo professor David Canter lá da Universidade de Liverpool, que também é a pessoa que meio que criou a psicologia investigativa enquanto área… A gente vê que não só o programa identifica essa área de mata em que foram encontrados os corpos como área em potencial para estar a base do ofensor, seja ela residência, local de trabalho, ou algo do tipo; mas também uma área ali de intersecção, meio que entre o local onde o Evandro foi visto pela última vez e também o local onde talvez o Leandro tenha sido raptado, que seria na sua casa. A gente tem algumas informações dentro dos relatos que mais ou menos pontuam onde o Evandro talvez tenha sido visto. E como a gente sabe que o Leandro voltou até a sua residência e depois desapareceu, eu tratei desses dois pontos como sendo o provável rapto. Porque se não foi ali, deve ter sido em alguma coisa próxima. Então, a gente teria uma pessoa que, por algum motivo, também está nessa região que conecta esses dois pontos, onde o Evandro foi visto e onde o Leandro morava e pode ter sido raptado. A gente não está falando necessariamente, em questão de probabilidade, de acordo com o software e a técnica, de pessoas que moram na beira da praia, de pessoas que moram muito ao norte, de pessoas que moram muito a oeste ou coisa do tipo. É provável que ele estava naquela região, e se a gente pega crimes em que surgiu a oportunidade – aparentemente foram crimes não planejados, mas são crimes de oportunidade –, a gente pega a situação que ocorreu… Não é como se o Leandro toda vez saísse de casa naquela hora, não é como se o Evandro toda vez saísse de casa naquela hora. Porque se é algo que está dentro da rotina deles, a gente espera que pode ter tido um planejamento para aquele rapto acontecer naquela hora. Mas em ambos os casos e até mesmo no caso da Sandra, se a gente for ver, analisar, a gente vê que não foi uma situação típica o dia em que aquilo aconteceu, mas sim uma situação mais incomum do que comum. Então, a possibilidade de ter sido alguém que estava esperando aquela criança voltar para casa porque todo dia, vamos dizer, às cinco da tarde, ela sai da escola e passa por aquele caminho, não era uma situação assim. Então, por algum motivo, ele estava naquele local naquela hora. Que motivo é esse? É o que a gente começa a hipotetizar. Se ela é uma pessoa que trabalha como comerciante ambulante por aquela região, ela estava ali naquele momento. Se ele trabalha fazendo entregas naquela região, ele talvez não more por lá, mas é uma área que ele frequenta por conta do seu trabalho. Então, o que a gente defende ou tem a hipótese principal, é que ele tem alguma ação ou tinha algum tipo de ação cotidiana que colocava ele naquele local, naquela região. E, de acordo com o software, mais especificamente nessa… Como se fosse nessa linha, nessa área, que conecta esses dois pontos.
No relatório que o professor Denis produziu, há duas estimativas de mapas gerados pelo Dragnet, que tentam passar uma estimativa provável de onde poderia ser a base do assassino de Evandro e Leandro. E a maior probabilidade, de acordo com o programa, é de que ele tivesse como base de operações algum lugar perto daquela região do matagal.
Isso significa que ele morava lá? Estatisticamente falando, sim, mas não necessariamente. Pode ser apenas que o local onde ele matou os meninos era naquela região. Pode ser que ele não morasse na cidade – o que não seria uma possibilidade a se desprezar, visto que Guaratuba é uma cidade onde muita gente tem casa para passar férias ou finais de semana, mas mora em Curitiba, por exemplo. É uma cidade com muito trânsito, então não se pode descartar nada.
Ivan: Uma das hipóteses que eu levanto nos meus momentos antes de dormir, que essas coisas não saem da minha cabeça, é: ele não mora em Guaratuba. Ele passa, comete um crime, rapta uma criança e comete um crime em outro lugar incerto, que a gente não sabe. Mas por algum motivo… Ele não quer ser pego, então ele vai preparar os corpos de uma forma que eles não vão ser identificados, não vão ser achados tão rápido. Mas por algum motivo ele quer que um dia a família saiba… “Tá aqui o teu filho, que você encontrou. Só que ele está de um jeito já que você não consegue mais me localizar”. Então daí ele joga no mato perto da casa. Ele volta para Guaratuba para jogar os corpos. E eu penso nisso muito porque… O fato de ele deixar com as roupas… Ele não quer impedir a identificação das crianças. Ele quer deixar de alguma forma. Que eu saiba, o Evandro estava sem a camisa. Mas ele estava com a bermuda. Os chinelos do Evandro são achados alguns dias depois, como se ele tivesse voltado ao local do crime, estava com ele, e ele joga lá as sandálias. Talvez porque… Eu lembro que daí começa a discussão se era o Evandro ou não, apesar que já tinha… Foi enterrado como o Evandro, rapidamente. Mas pode ser porque ele estava com provas… Mas eu tenho a impressão que ele quer que… Algum tipo de remorso, não sei… É uma possibilidade. Ele quer deixar assim: “não, está aqui”. Porque as duas crianças são deixadas num matagal muito próximo da casa, quando ele poderia deixar em qualquer lugar de Guaratuba. Tem uma área lá perto, por exemplo… Ela é perto da serraria mesmo, Abagge, que ficou tão famosa no [caso] Evandro. Aquela área lá, assim, tem um rio que passa por trás, que deságua no mar. Daria para fazer… Teria jeitos melhores de se livrar de um corpo, para ele nunca mais ser encontrado, entende? Então, assim, eu não consigo deixar de pensar de por que deixar nesses lugares. Daí eu lembro da Sandra. A Sandra está perto de casa também. Ela é deixada perto de casa com as suas roupas, de uma maneira que não tem como identificar ela. Mas é deixada lá. Então, assim, tudo isso… Ou seja, a gente não sabe dizer onde ele cometeu o crime, a gente não sabe onde é a sua base de operação. Mas, com base no Dragnet, a gente tem a hipótese, com base em estatísticas de outros casos, pegando outros casos… Os crimes ocorreram aqui, é aqui que seria mais ou menos a área… As probabilidades de ele estar morando… Mas pode ser que ele nem more em Guaratuba. É possível também.
Dr. Denis: É possível também. Inclusive, um caso de aplicação do perfil criminal geográfico que deu errado foi disso. Os atiradores de Washington, se eu não me engano, de sniper… Que tinham uma van, e eles ficavam andando pelo país e cometendo os seus crimes. E participou-se aí a construção de um perfil criminal geográfico que não ajudou em nada porque a base deles era móvel. E aí não tem como você descobrir isso, a não ser a partir do depois, do posteriori. Então, existem as nossas próprias limitações.
Ivan: Pois é. Ele pode ter uma base móvel, ele pode ter uma Kombi, naquela época, por exemplo.
Dr. Denis: Hoje em dia, naquela época, em qualquer momento. Só que a questão é: esse caso pode ser justamente isso, e por isso talvez esteja tão complicado. Mas pode também ser um caso em que o indivíduo que conhece uma área de mata pouco frequentada decidiu largar os corpos lá. Tanto que a gente não vê muito mais cuidado para esconder ele. Você pode dizer: “ah, ele colocou numa área de mata pouco frequentada, ele queria uma ocultação total do cadáver”. Mas ele poderia também ter cavado, poderia ter feito outras coisas. Então, a gente tem ações desse indivíduo que não necessariamente… É o complicado da coisa. Não necessariamente dá a entender que pode ser A ou B. […] Eu concordo com a visão do Sami, em que parece ser o seguinte: eu cometi um crime como eu gostaria, meu modus operandi seguiu o seu propósito, em que eu consegui raptar aquela criança. Ninguém nem sabe onde foi esse rapto, não estão na minha cola, eu fiz o que eu queria – supondo aí de as possíveis mutilações terem sido intencionais, cometidas por seres humanos. Eu fiz o que eu gostaria, me descartei desse corpo nessa área que eu sei que não é comum as pessoas virem para cá, então vou deixar lá. Vou cometer um segundo crime. Aí tem o nosso ditado: para que mexer em time que está ganhando? Por que eu vou modificar algo que dá certo? Só que aí a gente tem o rapto de uma criança que movimenta muito mais, e não é nem por causa desse movimento, pelo o que eu me recordo, que ela é encontrada, é por algum acaso. Das pessoas terem passado naquela região. Mas…
Ivan: Viram urubus andando e decidiram… Eram dois lenhadores que estavam ali na região justamente para tirar lenha. Era uma região que tinha um caminho, tinha uma picada para dentro do mato, diferente do Leandro, pelo o que a gente pôde levantar. O Leandro é numa mata fechada, e do Evandro tinha um caminho. Então, esses lenhadores que estavam ali naquela região decidiram entrar naquele caminho e viram os urubus, daí encontraram o corpo.
Dr. Denis: A gente pode falar de involução do modus operandi. A gente repete, mas será que eu precisava ir tão fundo naquele matagal para deixar o corpo? Talvez não. Aí é onde começa a dar problema para o ofensor. Agora está todo mundo vindo atrás, tem toda uma comoção sobre o fato, então agora eu tenho que mudar. E talvez por isso que a gente não saiba da existência de outros crimes. E aqui eu já estou partindo da ideia de que… Vamos até excluir a possibilidade de Sandra. A gente tem o Leandro, a gente tem o Evandro, e aí parou. Mas aí é difícil essa questão do parar. Não é impossível, quando a gente tem um assassino em série, ele parar. Geralmente os motivos que colocam o assassino em série a parar são pessoais, da sua vida. Morreu, parou. Ficou preso. Está numa idade muito avançada. Ou às vezes algumas outras questões. Tem caso em que o ofensor parou de cometer crimes em série porque ele se casou e aí estava vivendo bem, a sua esposa não era envolvida com crime e tudo mais. E, depois de tantos anos, quando se separou, ele voltou a cometer os crimes. Ele está numa situação de vida diferente, que faz ele mudar. Então, existem também diversas possibilidades. Geralmente, são uma dessas que eu comentei, que a gente tem de informação de porquê para…
Ivan: Uma mudança de rotina, de trabalho, que impede ele também. Antes ele trabalhava na rua, de alguma forma, e agora ele está trabalhando no escritório das oito às dezoito, por exemplo…
Dr. Denis: Não é impossível, mas eu diria que é menos comum. Porque se ele está de oito às dezoito, ele ainda teria ali dezoito à meia-noite, digamos assim, pra fazer algo. Eu não diria que essa seria uma motivação tão grande para parar com crimes em que a gente vê o grau de teor psicológico nele. Não é como se fosse uma briga de bar, que agora aconteceu algo e eu parei de beber ou coisa do tipo. A gente tem coisas que vão além do necessário. A gente tem uma assinatura muito bem estabelecida com ações de mutilação, que é difícil você ver depois de acontecer, imagina de você estar fazendo aquilo dali. Então, tem uma carga emocional aparentemente grande nesse tipo de crime para… Então, para se parar algo assim, muito provavelmente precisa ser algo grande. Por isso que eu estou levantando aqui a possibilidade de que a fantasia de cometer esses crimes, de realizar esses atos, não necessariamente cessou. Mas pode ser que, porque começou a ter comoção com aquele caso e o modus operandi não funcionou tão bem, ele teve alguma modificação. Talvez ele saiu da cidade. Quando a gente fala de ofensores mais organizados, a gente tem uma das ações dele… É justamente quando ele sente que a investigação está chegando perto de si, mudar de local. Mudar de residência, mudar de local de trabalho para evitar ser identificado. A gente pode ter uma pessoa que agora, em 2023, escute o podcast, sabe que é ele e sabe que não parou aí. Existe essa possibilidade quando a gente fala de assassinos em série, porque ele pode ter passado a fazer uma das várias coisas que você falou para descartar os corpos.
Na conclusão do relatório criminal geográfico, acerca das mortes de Leandro e Evandro, o Dr. Denis Lino afirma o seguinte:
Em ambos os perfis criminais é defendido que o ofensor é um indivíduo da localidade que, durante os crimes de rapto, estava na região realizando alguma atividade de seu dia a dia, quando vislumbrou uma oportunidade para o crime. O local de desova do corpo indica também conhecimento da área, especialmente nos crimes de 1992, sugerindo que ele possa ter uma base ou se locomover pelas redondezas da área de mata. De posse dessas informações é possível gerar uma lista de suspeitos ou filtrar os suspeitos existentes.
Além do relatório do perfil criminal geográfico, o Dr. Denis também elaborou dois outros documentos: um sobre a dificuldade em se confiar em testemunhos prestados com base em memória, especialmente em crianças; e outro sobre as possibilidades dos casos Sandra, Leandro e Evandro estarem conectados.
O relatório sobre memória foi mais para auxiliar Ivan em cuidados que precisava tomar em confiar ou não em alguns detalhes que eram dados em depoimentos – por exemplo, no caso dos irmãos França, que devem ser lidos com bastante cautela, dadas as condições da época.
Já no relatório sobre as possibilidades de conexões dos três casos, ele estabelecia uma série de critérios e, em seguida, ia marcando a presença ou não deles em cada um. Por exemplo, a vítima tinha até 12 anos de idade? Tinha cabelo loiro? Foi raptada? Foi raptada em um final de semana? E por aí vai. Ao todo, foram 33 categorias para formar essa base de comparação.
Em seguida, o Dr. Denis ia para uma questão estatística, em um plano mais macro. Por exemplo: quantas pessoas são assassinadas por ano? Dessas pessoas, quantas são menores de idade? Dessas crianças assassinadas, quantas foram antes raptadas? Dessas que foram raptadas e mortas, quantas tiveram mutilações em seus corpos?
Bases de dados para isso não são das mais simples, e frequentemente são mal alimentadas – isso quando não são inexistentes no Brasil. Nessas situações, para base de comparação estatística, o Dr. Denis recorria a fontes estrangeiras.
Ivan: E daí tem outra coisa que o Dr. Sami falou que me bateu muito e para você também, que é a questão da possibilidade de abuso sexual. Porque daí a gente teria um link bem mais claro.
Dr. Denis: E bem mais forte também. Que aí volta a ser um… Qual é a motivação do crime? Talvez a gente nem saiba a motivação. Foi o abuso sexual e aí o homicídio foi para a vítima não denunciar? Era o homicídio junto do abuso sexual? Ou era a mutilação, só que, porque estava ali na oportunidade, fez isso? Será que era tudo? Mas, independente de qual seja a motivação dele, de qual era, digamos, o ponto primário, eu acho que… Eu acho não, só fortalece a noção de que os três foram cometidos pela mesma pessoa. E eu também… E aí é um problema, que a gente começa a entrar um pouco nos achismos porque existe a possibilidade de o Evandro ter sido [abusado], porque não tem informação. Existe a possibilidade de o Leandro ter sido [abusado], porque não tem informação.
Ivan: Aham. A gente não pode descartar a possibilidade de abuso sexual…
Dr. Denis: Mas a gente também levar para crer que existiu, porque não pode descartar também, é o ‘wishful thinking’, né?
Ivan: É, sim…
Dr. Denis: Então, eu vou trabalhar com isso daqui…
Ivan: Então, vamos fazer um exercício aqui. O que nos conecta Sandra e Evandro seria… É que a gente vai pulando de um a um. O que nos conecta Sandra e Evandro é o aparente escalpo, que pode ter sido feito… No caso do Evandro, pode ter sido feito por ação natural. A ausência das mãos…
Dr. Denis: E no caso Evandro também se coloca que pode ter sido feito de maneira diferente do da Sandra. Só que isso não significa dizer que foram duas pessoas diferentes. É só porque foi uma maneira diferente da retirada. E, como eu disse, existe uma certa experimentação dentro do modus operandi, que é uma modificação, então… Eu cheguei a pesquisar… Eu vou ver se eu encontro aqui com uma certa facilidade… O quão comum é o ato de mutilação pós-morte.
Ivan: Ah, sim. Isso… Acho que foi uma das partes mais legais, assim, dos seus pareceres. Porque daí você vai fazendo esse cálculo, do tipo: quantas crianças morrem e tal… Acho que esse é um bom ponto. É um bom ponto para a gente ver.
Dr. Denis: E aí a gente tem pouquíssimo material que fala de assassinato sexual de crianças, que é o que talvez seja o que a gente está lidando. Com certeza no caso da Sandra e muito provavelmente no dos outros. Porque o assassinato sexual tem algumas definições diferentes, mas a mais clássica, que é a do FBI, coloca que se o corpo é encontrado e tem algum tipo de abuso sexual, seja por penetração de pênis, de algum outro objeto, algum tipo de ato sexual… Seja porque esse corpo foi deixado em algum tipo de pose para ser encontrado daquela forma, algum tipo de pose sexual, por exemplo, ou se o corpo foi encontrado desnudo ou parcialmente nu. Então, a gente sabe que no caso da Sandra, ela foi de fato abusada sexualmente. No caso do Leandro, a gente só encontrou, se eu não me engano, possivelmente a cueca dele; e no caso do Evandro, também ele estava parcialmente desnudo, e há a possibilidade de ter sido retirada a roupa para fazer as mutilações. Então, meio que eles se encaixam dentro dessa definição de assassinato sexual, e todas eram crianças. Quando a gente vai ver os materiais que tem sobre, em menos de 20% dos casos de homicídio sexual de criança teve o desmembramento depois que a vítima foi morta, e em 90% dos casos o corpo foi escondido. Em uma pesquisa apenas de assassinato em série, sem ser especificamente assassinos sexuais de criança, o desmembramento só ocorre em até 10% dos casos. Então, é como se, de 100, apenas 10 haviam cometido esse tipo de ato. De assassinato de criança, especificamente assassinato sexual, um pouco mais comum. Mas, ainda assim, não é um comportamento que a gente pode dizer que se repete. Se a gente pega que foram dois casos… Pensando especificamente no escalpelamento, a gente tem a Sandra e o Evandro. Três anos de diferença. Perfil vitimológico semelhante; um perfil temporal semelhante, três anos; um perfil geográfico semelhante também, em cidades praticamente vizinhas, aí é assim… Em 10 anos, em 20 anos, aconteceram 10% de mutilação, mas aqui, em uma cidade vizinha da outra, duas crianças semelhantes foram mutiladas de maneira semelhante. É difícil a gente crer ou ter como ponto principal que são duas pessoas diferentes, porque é um comportamento extremamente raro. E como a gente tem uma certa repetição nos crimes, mais ainda. Tem estudos que foram especificamente sobre mutilação de parte do corpo, a mutilação da face não é comum. Então, aqui a gente está falando apenas de homicídios em que teve a presença de algum tipo de mutilação. Em apenas cerca de 10% é que a face foi mutilada. Então, a gente novamente… A mutilação da face em crimes em que há mutilação é raro. A mutilação do corpo em assassinatos em série é rara. A mutilação do corpo em assassinatos sexuais de crianças é rara. Mas a gente está tendo essa repetição no mínimo duas vezes num período de três anos, com cerca de cento e poucos quilômetros de distância entre si, com crianças semelhantes, e ainda há a possibilidade de uma terceira… Então, são esses comportamentos que são aqueles extremamente raros que indicam assinatura, que parece estar presente em dois crimes.
E não apenas esses detalhes das mutilações são muito únicos. A forma como os corpos foram desovados também se assemelham muito.
Dr. Denis: Novamente em forma das três mortes semelhantes, né? Elas são deixadas numa área, mas não tem uma tentativa maior de não identificação, não descoberta do corpo. Não vou nem falar de identificação.
Ivan: Sim, porque cavar um buraco para esconder um corpo leva tempo.
Dr. Denis: Dá trabalho.
Dr. Ivan: Dá trabalho e leva tempo, né? Então, a pessoa tem que agir rápido.
Na conclusão do relatório sobre a possibilidade de os casos estarem conectados, o Dr. Denis Lino escreveu o seguinte:
Os crimes que vitimaram Sandra Matheus da Luz, Leandro Bossi e Evandro Ramos Caetano apresentam modus operandi muito semelhante, com características singulares que se repetem e denotam evolução do modus operandi e da assinatura. Os crimes praticados não são comuns e algumas das características presentes são bastante raras, além de ocorrerem em um espaço-tempo muito próximo. Diante do que foi exposto conclui-se que há forte probabilidade de os três crimes terem sido cometidos pelo(s) mesmo(s) ofensor(es), e baixa probabilidade de que ofensores distintos e desconhecidos entre si possam ter praticado cada um dos crimes.
Quando Ivan contratou os serviços do Dr. Denis na elaboração dos relatórios, estava mais interessado que ele respondesse sobre as análises geográficas, estudos de memória e possibilidade de os casos estarem conectados.
Ivan não pediu para que ele elaborasse um possível perfil do assassino, pois ficou com medo de que isso pudesse induzir a falsas impressões. Mesmo sabendo que seria um estudo de probabilidades e que é difícil estar 100% correto nesse tipo de trabalho, Ivan tinha esse receio. Mas, no fim da conversa, decidiu fazer essa pergunta para ele.
Ivan: Você fez uma análise de uma série de estatísticas, estuda casos assim o tempo inteiro, então, se a gente tiver que montar o perfil psicológico dessa pessoa com base no que você tem… Quando eu digo perfil psicológico, é do tipo: com base em estatísticas, as probabilidades óbvias, alguma coisa que nos chame a atenção, como seria essa pessoa? O que a gente poderia dizer sobre essa pessoa, com base em probabilidades? Não “eu acho que…”, né? Com base nos casos que já aconteceram, de semelhantes, que a gente vê, modus operandi e assinaturas envolvendo vítimas parecidas, o que a gente pode falar?
Dr. Denis: Do que a gente havia combinado inicialmente, a gente não pensou sobre as características da pessoa, originalmente. Era mais sobre: será que os casos estão conectados? Uma coisa. Onde será mais ou menos que essa pessoa mora? Outra coisa. Quando, então, estatisticamente falando sobre cada um dos comportamentos e ao que ele pode estar vinculado, eu não vou poder aprofundar muito, porque teria que parar para fazer todo o trabalho que eu fiz nesses com essa outra vertente. Mas o que a gente já consegue encontrar com relação ao que já foi produzido é: primeiro, essa pessoa tem que ter um motivo para estar ali. A gente não sabe, até onde eu conheço, até do que foi pesquisado como parte do projeto, outros casos talvez até dentro do estado ou fora do estado que fossem semelhantes, para indicar talvez um ofensor em locomoção. Então, um ofensor viajante. De alguma forma, ele estava ali quando essas crianças estavam… E aqui a palavra talvez não seja a mais adequada… Mas essas crianças estavam “disponíveis” para o rapto dele, dentro do que ele havia planejado, dentro do que ele havia pensado. Os crimes me parecem muito mais oportunistas do que planejados. Isso não quer dizer que é uma pessoa que não tem… Muitas vezes quando as pessoas pensam em crimes planejados, é aquela pessoa fria, calculista, extremamente inteligente, coisa do tipo. Aí quando você fala que é oportunista, ele seria o inverso. Não necessariamente. Mas quer dizer que é uma pessoa que estava já planejando o cometimento do crime e, quando surgiu a oportunidade, ela fez isso. Então, não é como se ele estivesse buscando exatamente a Sandra, buscando exatamente o Leandro, buscando exatamente o Evandro. Pode ter sido de fato uma coisa situacional. Se a gente partir dessa ideia de oportunismo, aquela pessoa estava num posto de gasolina às oito horas da noite, que seria mais ou menos a última vez em que a Sandra foi vista, por algum motivo. Ele poderia estar abastecendo. Reforça a ideia do carro. Ele poderia estar passando por ali…
Ivan: Está jantando no restaurante…
Dr. Denis: Ele está jantando no restaurante lá. Mas ele estava lá por algum motivo. Onde o Evandro foi encontrado, segunda… Era que horas o do Evandro, que ele foi raptado?
Ivan: A gente estima entre dez e onze da manhã, mais ou menos, tá? Por cima, né?
Dr. Denis: Ele foi visto pela última vez às nove e meia, e depois nunca mais foi visto. O Evandro, saindo de casa, a última vez que foi visto… Nove e meia para dez horas, talvez até onze, houve o rapto. Segunda-feira, onze horas da manhã, muita gente está em horário de trabalho, está fazendo algo do tipo. Então, ou essa pessoa não tem um emprego; ou nesse emprego ela se locomove por aquela região específica; ou nesse emprego não sentiriam a sua falta, então não importaria tanto se ela tivesse faltado naquele dia. Há a possibilidade de férias, etc? Claro. Mas se a gente trabalha com… Férias é apenas um de 12 meses, existe essa possibilidade… A mesma coisa com o Leandro. Não foi uma situação do dia a dia, foi algo atípico, mas que ele estava lá naquele local. Por que ele estava lá naquele local? De alguma forma, ele tem contato com aquela região, seja porque trabalha, seja porque mora. Então, eu acho que isso reforça a ideia de que ele seria aí alguém da região e não necessariamente de fora.
Ivan: Mas pode ser… De novo, a gente está falando de Guaratuba, que é uma cidade que assim, sei lá…
Dr. Denis: De translado.
Ivan: De muito translado. Então, tem muita gente que conhece muito bem essa cidade, mas que não mora lá. Eu conheço uma boa parte de Guaratuba. A minha vó vivia em Guaratuba, tinha casa lá. Mas morava em Curitiba.
Dr. Denis: Ia visitar a tua vó?
Ivan: Eu ia visitar a minha vó, sim.
Dr. Denis: Mas passava um tempo lá?
Ivan: Passava. A minha vó passava bem mais tempo. A minha vó passava bem mais tempo. A minha vó passava um mês…
Dr. Denis: Mas, de alguma forma, você tem um vínculo com a cidade.
Ivan: Sim, sim.
Dr. Denis: Para você construir essa noção do que é a cidade, de conhecer ela bem… Então, não necessariamente essa pessoa… Vamos falar… Então vamos usar a palavra de base, para não dizer que ele mora ou que ele trabalha, mas ele tem uma base ali. Pode ser que ele já morou antes. Pode ser que ele já trabalhou antes. Mas ele tem que, de alguma forma, ter esse contato lá nessa região.
CONCLUSÕES E CUIDADOS
No estudo da filosofia, é comum em algum momento se deparar com o conceito de falácia. No geral, uma falácia é uma ideia equivocada apresentada como verdadeira.
No estudo de falácias, há várias classificações. Existe, por exemplo, a falácia do apelo à autoridade, aquele tipo que alguém diz “eu entendo disso mais do que você”, sem necessariamente trazer provas do que está falando.
Outra famosa falácia é a do ad hominem, que é o ataque à pessoa que está falando algo. E ela está sendo atacada pela sua biografia, e não pelos seus argumentos.
Mas há um tipo de falácia que nem sempre é lembrada, que em inglês é chamada de “Slippery Slope”. Em português, ela é chamada às vezes de falácia da Derrapagem, da Ladeira Escorregadia, ou falácia da Bola de Neve.
Ela estipula mais ou menos o seguinte: se você desenvolve um raciocínio longo e comete um erro em algum ponto dele, é possível que toda a sua conclusão esteja equivocada.
O Caso Evandro foi um ótimo exemplo da falácia da Bola de Neve, entre outras. Em certo momento, quando as autoridades aceitaram que o menino havia sido morto em um ritual de “magia negra”, tudo começou a dar errado.
Ivan afirma ter plena consciência do risco que corre. Após tantos anos investigando esses casos, ele tem uma tonelada de variáveis para considerar. Muitas dessas questões não são mais possíveis de serem respondidas, pois dependem de informações que já se perderam. Ainda assim, ele não pode também se privar de tentar desenvolver algum raciocínio.
Então, com base em tudo o que investigou, e especialmente a partir das falas do Dr. Denis, do Dr. Sami, do Dr. Lipinski e do Dr. Francisco, Ivan vai correr o risco de dizer o que acredita que aconteceu.
Mas ele deixa claro que está tomando liberdades quase irresponsáveis, e pode estar errado em algum ponto, caindo involuntariamente em uma falácia da Bola de Neve. Por isso, está sendo transparente e detalhista justamente para que alguém no futuro possa revisar o trabalho dele e avançar, caso alguma novidade apareça.
Ivan acredita que os três casos estão sim conectados. Leandro e Evandro são mais fáceis de conectar, mas o fato de Leandro estar com o antebraço esquerdo ausente, assim como Sandrinha, é um ponto de conexão relevante.
Ele entende também o cuidado que o Dr. Sami tem em afirmar que nos laudos de Evandro não há elementos suficientes para descartar ação de animais. Mas as coincidências entre os corpos, especialmente a ausência de mãos, lhe parecem muito fortes.
E, seguindo o raciocínio do Dr. Denis, acerca do quão raras são mortes de crianças com mutilações, ainda mais levando em conta a proximidade geográfica e temporal, Ivan é levado a crer que foi tudo ação humana. Inclusive a ausência das mãos no caso da ossada de Leandro, ele acredita que foi ação humana também. Ao mesmo tempo, também supõe que houve ação de animais na ausência de alguns ossos grandes – como o fêmur direito, por exemplo.
O escalpe e as retiradas das mãos seriam assinaturas mais fixas desse ofensor. Já as mutilações em Evandro foram uma evolução. E quanto ao Modus Operandi, é difícil saber muitos detalhes. Mas parece evidente que o assassino tinha o costume de sequestrar, ficar alguns dias com a vítima – viva ou morta – e, depois de matá-la, jogava-a em um mato próximo do local onde ela foi raptada.
Obviamente, Ivan fala isso com base nos casos Sandra e Evandro, já que no de Leandro não há como saber muita coisa.
Ivan também acredita que a motivação foi sexual. Nenhum vestígio de esperma foi encontrado em Evandro e Sandra, mas, como o próprio Dr. Sami disse, isso já seria esperado, visto que esse tipo de material se degrada muito rápido.
Ele não descarta a possibilidade de o assassino saber técnicas de necrotério, mas está mais inclinado a acreditar na possibilidade de um caçador ou alguém que tinha algum conhecimento sobre abater e cortar animais. E acredita nisso especialmente por causa da forma como os corpos de Evandro e Leandro foram descartados.
Ivan acredita que Sandra pode ter sido não a primeira vítima, mas o meio do processo. Com o tempo, o assassino foi ficando mais agressivo, descartando melhor os corpos. Pode ser que em suas primeiras vítimas ele “apenas” violentava sexualmente. Depois passou a matar. E depois, passou a matar e mutilar. Uma evolução de modus operandi.
Ivan não sabe dizer quais teriam sido as vítimas anteriores. É apenas suposição. Também acredita que o assassino não parou nessas três crianças. Muito provavelmente, ele fez mais vítimas. Talvez sejam alguns desses casos de crianças desaparecidas do final dos anos 80 e início dos anos 90. Talvez mais. E é possível que existam crimes supostamente solucionados ou arquivados sem solução que poderiam entrar nesse rol.
Outra possibilidade que Ivan aponta é que o assassino queria que os corpos fossem encontrados e identificados. Por isso, os deixava perto de suas casas. Podia fazer isso por remorso, por não querer deixar as famílias das vítimas sem respostas, mas podia também fazer isso por pura soberba, na crença de que nunca seria pego.
Ivan também não acha que o assassino era a pessoa mais brilhante. Se ele tentou realmente raptar mais de uma criança enquanto cometia os crimes, seja o caso de Aramis, irmãos França, ou as crianças misteriosas que supostamente estavam presas com Evandro, ele não conseguia ter pleno controle da situação. Ele pode ter cometido erros por fatores que saíram do seu controle, coisas inesperadas, ou se achava muito mais capaz do que realmente era.
Guaratuba e Fazenda Rio Grande são municípios pequenos, e em princípio seria necessário encontrar alguém que estava nestas cidades nas duas épocas. Só que uma questão importante não pode ser ignorada: ambas são locais de bastante tráfego em seu entorno.
Fazenda Rio Grande tem uma rodovia importante na qual passa muita gente. Com frequência, Guaratuba é passagem para quem vai para Santa Catarina, ou ainda de pessoas que moram em Curitiba, mas vão para lá com alguma frequência. Então, pode ser alguém que tinha o costume de passar por lá, mas que não necessariamente morava nesses lugares.
Segundo Ivan, é também seguro dizer que a pessoa tinha algum conhecimento das duas cidades. E, para ele, esse indivíduo tinha carro, pois agia muito rápido em dois momentos: no sequestro e na desova do corpo.
No caso Evandro, a investigação do Grupo Tigre olhou muito para os carroceiros que frequentavam aquele matagal. Eles iam para lá para carregar lenhas e varas extraídas da região. Uma carroça certamente poderia transportar um corpo. Mas é um veículo lento, chama a atenção, as pessoas conhecem.
Se no momento do sequestro Evandro estivesse andando de carroça, por exemplo, Ivan supõe que alguém veria. O menino poderia fugir, quem sabe. E vale lembrar que o Grupo Tigre investigava apenas o caso Evandro. Se olhassem para os três crimes juntos, talvez também chegassem à mesma desconfiança.
E, ainda sobre carroças, o relato do menino misterioso que conversou com Eli Gonçalves da Silva na semana que Evandro desapareceu dava conta de que ele teria sido levado a um lugar por um carroceiro. Só que Ivan tem uma dúvida: de onde veio essa palavra “carroceiro”? Foi o menino misterioso que falou isso? Ou foi Eli que entendeu isso?
Partindo do princípio de que esse encontro realmente aconteceu, e que o menino não estava mentindo para Eli, Ivan se questiona quem disse a palavra “carroceiro”, porque ele não descarta que o sequestrador tinha não exatamente uma carroça puxada a cavalo ou por ele mesmo, mas poderia ter um pequeno caminhão. Uma carroceria, uma picape, algo assim.
Essa questão da mobilidade começou a ser importante para Ivan. E, com base nela, e com o que sabe do caso Sandra, começou a descartar alguns suspeitos antigos do caso Evandro.
Em relação aos carroceiros, por exemplo, Ivan nunca conseguiu verificar se eles estavam em Fazenda Rio Grande. Tudo leva a crer que não. Daí, há o caso de Euclídio Soares dos Reis, conhecido como Euclides ou ainda pelo apelido de Barba. Ele morava próximo do local onde o corpo de Evandro foi encontrado, e foi o principal suspeito do delegado Adauto Abreu do Grupo Tigre na época.
Ivan conversou com algumas pessoas envolvidas na investigação, e elas falaram que aquela era uma suposição do Dr. Adauto apenas. Havia uma suspeita sim, mas ninguém estava tão convencido quanto ele.
Em 1989, Euclídio morava perto de Fazenda Rio Grande, na cidade de Araucária, que fica a cerca de 30 quilômetros de distância. Só que há uma questão importante, pelo menos nessa linha de raciocínio: Euclídio nunca teve carro. Sempre foi um homem muito pobre que morava na época com esposa e filho. Em 1992, em Guaratuba, morava em uma casa sem luz e sem água. Não tinha muita estrutura para fazer grandes locomoções, manter um menino em cativeiro, matá-lo ou qualquer coisa do tipo.
Ivan, com o passar desses anos de investigação, cada vez mais vê Euclídio como um homem muito simples e ignorante que se viu no meio de uma história grande demais e tentou sobreviver como pôde. E em um momento de desespero, quando foi preso por tráfico de drogas, chegou a inventar uma história em 1995, dizendo que viu Diógenes Caetano dos Santos Filho, o parente do menino Evandro, jogando o corpo no mato. Ivan explicou essa história em detalhes no episódio 34 do caso Evandro.
E daí, claro, há a figura de Diógenes. Segundo Ivan, já cansou de receber mensagens de ouvintes perguntando “mas esse cara não foi investigado? Por que ele se meteu tanto na investigação assim? Esse cara para mim é suspeito”. Há anos ele ouve isso, e há anos jura que tentou considerar essa hipótese. Mas não consegue se convencer disso.
Para ele, é muito claro que Diógenes acredita em tudo o que diz. Se ele fosse o assassino de Evandro e Leandro, ele saberia que o corpo de Leandro não estava na Baía de Guaratuba, como falou por tantos anos.
Diógenes acredita tanto na história de seita satânica que é incapaz de enxergar qualquer nova evidência que apareça – sejam as fitas de tortura mostrando como os acusados foram forçados a inventar uma história sem sentido, seja a verdadeira localização do corpo de Leandro.
Isso sem contar todo o esforço dele em desmentir qualquer testemunha que fosse contra a versão em que ele acredita, tal como os relatos do menino Eli e da babá Rachel. Se Diógenes realmente fosse o assassino, seria difícil não ter cometido algum deslize em tantas décadas.
E também, como Ivan disse em outras ocasiões, o caso de Sandra muda tudo para ele. Em 1989, Diógenes já estava morando em Guaratuba por alguns anos. Não há nada que o coloque em Fazenda Rio Grande em junho de 1989.
Ivan não acredita que o assassino de Sandra, Leandro e Evandro apareceu nos inquéritos de Guaratuba. Tudo o que levantou nos episódios finais do caso Evandro, acerca dos outros suspeitos investigados pelo Grupo Tigre, é absolutamente inconclusivo.
É possível que alguém tenha passado batido naquelas investigações. É também possível que Ivan esteja cometendo algum erro, caindo na falácia da Bola de Neve. Por isso, todo cuidado é pouco.
Mas, então, se Ivan estiver certo, e se não tiver nenhum suspeito em potencial que se encaixe nessas pistas que coletou, será que ele foi citado em algum outro lugar?
No episódio 4 dessa temporada, sobre o caso Sandrinha, Ivan citou o fato de que duas pessoas foram investigadas, e que não havia pistas suficientes sobre elas. Mas ele não disse que havia um terceiro suspeito.
E é sobre ele que falará no próximo e último episódio desta temporada.