Wiki do Caso Leandro Bossi

0 – Extras Episódio 05 [Prelúdio]

FAMÍLIA BOSSI

Este é o quinto e último episódio do Prelúdio a Leandro Bossi, uma retrospectiva que serve como introdução para a próxima temporada do Projeto Humanos. Diferente das publicações anteriores, algumas informações apresentadas aqui são novas.

Em janeiro de 2023, após várias conversas pelo WhatsApp, Ivan Mizanzuk se reuniu virtualmente com a família Bossi. O principal responsável por tornar isso possível foi Lucas Steffen Bossi, o irmão mais novo de Leandro, fruto do segundo casamento de João Bossi.

Lucas nasceu em abril de 1993, pouco mais de um ano após o desaparecimento. Ele nunca conheceu o irmão. Mesmo assim, acabou assumindo a função de “porta-voz” da família. Lucas sempre dá entrevistas para a imprensa, por exemplo, quando é preciso ouvir o lado deles.

João Bossi, o pai já falecido, casou-se com a mãe de Lucas, Roseli Steffen, em 1987. Na época, eles ainda não moravam em Guaratuba. A mudança aconteceu alguns anos depois, mas isso será abordado em detalhes mais para a frente na temporada. O casal teve a sua primeira filha, Neli Steffen Bossi, em 1988.

Roseli, a mãe de Lucas e Neli, foi casada antes. Desse primeiro casamento, teve uma filha, Cristiane Steffen. Ela foi enteada de João Bossi, e tem um grande carinho por ele. Ela e Leandro se conheciam, e tinham a mesma idade. Quem conta isso melhor é a própria Roseli, que ficou com João até o fim da vida dele. Ela também participou da reunião com Ivan para o podcast. 

Quando Roseli passou a viver com João, ele já era separado da primeira esposa, Paulina Bossi. Os filhos de João e Paulina, Leandro e Ademir, viviam com a mãe.

De acordo com Roseli, assumir o posto de segunda esposa não foi nada fácil, principalmente no início. “Foi um relacionamento até complicado porque quando ela [Paulina] me viu com o João, não gostou, apesar dos dois serem separados, né? E o menino [Leandro] ficava lá e com a gente um pouco. Quando ele sumiu, estava na guarda dela. Já fazia um ano e dois meses que a gente não o via”, comentou ela durante a reunião com Ivan.

Paulina, a mãe de Leandro, não quis participar da conversa. Ela é uma pessoa muito simples, introspectiva, e enfrentava problemas pessoais graves na época. Em resumo, ela não se sentia à vontade. Mas, em seu lugar, estava Mariane Bossi, sua neta, que mora com ela. Mariane é filha de Ademir.

Dos filhos de João e Roseli, a única que não participou do encontro online foi Gabriela Steffen Bossi, a mais nova.

A última pessoa a entrar na reunião, Cristiane, filha de Roseli e enteada de João, aproveitou a oportunidade para externar a indignação da família diante de tanta negligência.

“Eu me sinto bem revoltada com toda essa situação, sabe? Porque eu vivenciei diversas vezes o meu padrasto chegando em casa chorando, dizendo que foi atrás do Sicride [Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas], em Curitiba. […] Quando colocava o pé lá, ele já percebia que as pessoas se sentiam desconfortáveis. Elas faziam até piadinhas. ‘O louco do pai do Leandro Bossi está aqui de novo perguntando’. Isso é revoltante. Hoje, sendo mãe, dói o meu coração. O meu coração sangra por dentro ao sentir o que ele [João] sentiu até o dia que morreu. Ele percorreu 29 anos da vida dele buscando a verdade, e a verdade estava ali na nossa cara, na cara da polícia. E eles fizeram a gente de palhaço. É uma palhaçada o que eles fizeram. Eu me sinto dentro de um circo pelo o que aconteceu. A gente sofreu, passou anos fazendo aniversário para o Leandro, sem sequer imaginar que ele já estava morto há muito tempo”, desabafou Cristiane, referindo-se à ossada identificada como do menino em 2022, 30 anos após o crime.

Justamente pelo caso de Leandro viver à sombra do de Evandro, e diante de tanta confusão, Cristiane revelou que ainda não consegue acreditar nas novas informações trazidas pela polícia sobre a ossada. A história de “seita satânica” está tão enraizada no imaginário que para ela é difícil sequer considerar outra versão.

Se muitas pessoas ficaram confusas e desconfiadas com a coletiva de imprensa sobre a ossada em 2022, a própria família Bossi também passou por isso. E para eles foi pior, pois viveram tudo na pele. Eles passaram pelas histórias de confissão sobre o corpo jogado na baía de Guaratuba; a ossada que seria de uma menina; um falso Leandro vindo de Manaus; as entrevistas de Diógenes Caetano dos Santos Filho para a imprensa, primeiro dizendo que o menino estava morto, depois que viu o sequestro durante o show de Moraes Moreira. Tudo isso está marcado na memória dos familiares de um jeito que ninguém é capaz de entender.

Por isso, para alguns deles é difícil acreditar nos fatos que começaram a aparecer nos últimos anos: a inocência dos sete acusados no caso Evandro e de Valentina de Andrade, e a confirmação de que aquela ossada pertencia ao Leandro.

Se o novo exame de DNA seria um motivo para que as autoridades olhassem para a família com mais atenção, a sensação foi de que isso não aconteceu. A reunião de Ivan com os familiares do menino aconteceu em janeiro de 2023, sete meses depois da coletiva de imprensa que revelou a identificação da ossada. Até aquele momento, eles ainda não haviam recebido nenhum documento oficial atestando a morte de Leandro e os próprios fragmentos ósseos para que pudessem enterrar. Ou seja, na prática, nada havia mudado.

Depois da reunião, Ivan entrou em contato com a delegada Patrícia Conceição Nobre Paz, do Sicride. Ela lhe disse que, para enviar o resultado do DNA, alguém da família precisava mandar um e-mail requisitando o laudo. Lucas entrou em contato com ela no mesmo dia e, assim, meses após a coletiva, os familiares finalmente conseguiram o documento que atestava a identidade da ossada. Aquele era mesmo Leandro Bossi.

Apesar disso, Lucas ainda tinha esperanças de que os fragmentos utilizados no DNA fossem de uma amostra pequena, de apenas parte do corpo, o que poderia indicar que o irmão pudesse estar vivo. Ele revelou essa expectativa em outra conversa com Ivan. “Eu estava em devaneios assim, de que um osso de mão não significa que ele morreu”, disse na ocasião.

A ambiguidade apresentada por Lucas é extremamente válida: afinal, os fragmentos analisados são, de fato, da ossada encontrada em Guaratuba em março de 1993? Ivan garante a ele que a resposta é sim. E, infelizmente, a grande quantidade de ossos no local não deixa dúvida de que aquela criança, de fato, não poderia estar viva.

A OSSADA

Olhando hoje, sabendo tudo o que sabemos, fica ainda mais claro que todos os elementos indicavam que aquela ossada era mesmo de Leandro. Ela foi encontrada por alguns garotos que brincavam no mesmo matagal onde o corpo de Evandro havia sido jogado um anos antes, a uma distância estimada entre 200 e 400 metros. Ela estava com as roupas de Leandro.

É aqui que entra a grande ironia do caso da ossada: objetos pessoais próximos do corpo não são considerados suficientes para confirmar a identificação. Em casos assim, o procedimento da época era solicitar as fichas dentárias da possível vítima. 

Quando a ossada foi encontrada, a Polícia Civil do Paraná pediu as fichas dentárias de Leandro ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, o antigo INAMPS, de Paranaguá, cidade próxima a Guaratuba. Poucos dias depois, veio a resposta de que eles não conseguiram encontrar nenhum registro referente à criança.

Apesar do inquérito de Leandro Bossi correr em Guaratuba, em 1993 as investigações estavam a cargo de um delegado de Curitiba, Agenor Salgado Filho. Designado especialmente para o caso, ele ia até o litoral ocasionalmente para as diligências necessárias. Após a ossada ser encontrada, o investigador se encarregou de tentar confirmar a sua identificação. Ele não quis conceder entrevista ao podcast, mas conversou com Ivan por telefone, tirou algumas dúvidas e permitiu a publicação das informações que passou.

Sem as fichas dentárias, Salgado Filho partiu para o mesmo recurso utilizado no caso Evandro: um exame genético que confrontaria o DNA da ossada com o dos pais de Leandro. Quase um ano depois, o resultado apontou para um falso negativo, sugerindo que a ossada poderia ser de uma menina. 

Esse resumo já havia sido explicado no episódio anterior, mas é importante retomá-lo. Durante o ano de 1993, o delegado responsável pelo inquérito de Leandro enviou vários ofícios ao Instituto de Criminalística e ao Instituto Médico Legal pedindo duas coisas:

– o laudo de exame de local, feito por um perito do Instituto de Criminalística onde ocorreu o incidente; 

– o laudo de exame cadavérico, realizado no IML por um médico e um odontolegista. 

O IML respondeu que não poderia mandar o laudo cadavérico sem o resultado do exame de DNA que confirmaria ou não a identidade. Já o Instituto de Criminalística nunca enviou uma resposta. 

Delegado Agenor pede ao IML o laudo da ossada – 09 de março de 1993

Delegado Agenor pede ao Instituto de Criminalística o laudo de local da ossada – 09 de março de 1993

IML explica motivos pela demora do laudo da ossada – 20 de abril de 1993

Promotor pede laudos ao IC e IML – 17 de junho de 1993

Delegado Agenor pede novamente pelo laudo da ossada ao IML – 17 de agosto de 1993

Delegado Agenor pede novamente pelo laudo de local ao IC – 17 de agosto de 1993

IML ainda aguarda resultado do DNA – 13 de setembro de 1993

Quando o exame de DNA com o falso negativo veio no início de 1994, é de se supor que tudo isso caiu como um balde de água fria na cabeça dos investigadores. Essa suposição tem como base um detalhe curioso do inquérito de Leandro Bossi: ele possui o resultado do exame de DNA, mas não tem os laudos de local e de exame cadavérico – duas peças básicas para fundamentar qualquer investigação desse tipo.

Depois que o DNA saiu, ninguém nunca mais cobrou esses dois documentos. A ossada ficou num limbo. Nunca foi investigada, nunca mais foi questionada. Serviu apenas para alimentar imaginações conspiratórias de todos os lados. 

Para tornar tudo ainda mais estranho, o único documento presente é uma cópia parcial do laudo cadavérico feito pelo IML, e ele está nos autos do caso Evandro, não nos de Leandro. 

Nesta cópia incompleta, é possível ver as descrições dos ossos encontrados e algumas considerações gerais, mas nada que chame muito a atenção. E não havia nenhuma foto dos ossos no IML. 

Cópia parcial do laudo cadavérico de Leandro Bossi

O que interessava mesmo eram as imagens da ossada no local onde foi encontrada. Quem acompanhou o podcast do Caso Evandro sabe que Ivan sempre teve uma dúvida muito direta: ela usava as roupas de Leandro Bossi? Ou as vestes estavam ali próximas? Essas fotos deveriam estar anexadas no laudo produzido pelo Instituto de Criminalística, realizado por um perito que vai ao local da ocorrência. Mas o Instituto nunca sequer respondeu aos pedidos do delegado responsável. E, por causa disso, não é possível saber nem onde exatamente a ossada estava. Os relatos da imprensa da época falam de aproximadamente 200 a 400 metros do ponto onde Evandro foi encontrado. No entanto, essa é uma estimativa feita por cima, com base na memória de testemunhas. Os locais exatos, que seriam importantes, não sabemos.

TRINTA ANOS DEPOIS

Ivan Mizanzuk não sabe como a delegada Patrícia Conceição localizou a ossada de Leandro Bossi para o novo exame de DNA. Ela não conseguiu dar entrevista para o podcast, e não respondeu Ivan sobre esse tópico específico.

O Projeto Humanos, então, consultou fontes dentro da polícia, e a história levantada é a seguinte: o IML de Curitiba tinha duas sedes, a antiga e a nova. A mais recente tem uma estrutura moderna e é localizada no bairro Tarumã. Já a antiga, no centro da cidade, conta com muitas partes completamente abandonadas. Uma delas seria um lugar apelidado de “Chernobyl”, dado o nível de negligência e bagunça. Ali, havia pilhas de provas de casos antigos, como papéis, joias e cofres. Um desses cofres guardaria a ossada de Leandro Bossi. Ainda nessa área, o teto estaria quebrado e aberto ao tempo. O cômodo seria literalmente cheio de entulho, acumulando poeira, água e mofo.

Apesar dessa informação ser confiável, Ivan precisava de uma confirmação oficial. Para isso, ele contou com a ajuda da jornalista Natalia Filippin, que virou o seu braço direito durante a produção do caso Leandro Bossi. Ela enviou para o IML de Curitiba uma série de perguntas na tentativa de esclarecer algumas dúvidas.

Na primeira resposta, o Instituto negou a existência de uma sala apelidada de “Chernobyl” e assegurou que os fragmentos ósseos de Leandro estavam bem guardados em um cofre. Ivan e Natália insistiram e enviaram um novo e-mail com outra questão importante: a família de fato receberia o que restou da ossada para poder enterrá-la? Afinal, essa possibilidade teria sido repassada para os Bossi pela Polícia Civil, após o resultado do exame de DNA.

Depois da primeira leva de questionamentos e respostas, Natália recebeu a ligação de uma assessora da Polícia Científica, chamada Mariana Gevaerd. Ela convidou os dois jornalistas a visitarem a sede do IML no Tarumã para conversar com os diretores, mas sem gravar. Com os inquéritos em mãos, Ivan e Natália, então, foram até lá.

Na primeira conversa, eles explicaram para os diretores toda a situação, desde a ausência dos laudos no inquérito até o desejo da família de enterrar a ossada. A partir daí, foi possível entender melhor o contexto do trabalho pericial realizado na década de 1990. 

Na época dos casos de Guaratuba, o estado contava com o Instituto de Crminalística, responsável pelas períciais nos locais de crime, e o Instituto Médico Legal, que fazia os exames na sua sede. Ambos os órgãos faziam parte da Polícia Civil do Paraná. 

Mas, no início dos anos 2000, teve início um processo de mudança que só foi concluído em 2022. Agora, a Polícia Científica assumiria as funções antes exercidas pelos dois institutos, além de expandir para atividades de pesquisa relacionadas às investigações. Ou seja, hoje, em 2023, ambos os órgãos que atuaram nos casos Evandro e Leandro não existem mais. E essa é uma tendência em vários estados do Brasil, apesar de não ser bem aceita por muita gente das antigas. Quem defende essa estrutura afirma que a ideia é evitar a influência política existente na Polícia Civil, a fim de produzir laudos mais técnicos.

Na opinião de Ivan, essa mudança parece ser boa. Em um primeiro contato, ele teve a impressão que a Polícia Científica é mais fundamentada em extensa pesquisa, desenvolvimento de tecnologias, análises técnicas e investimento em inteligência.

Mas a alteração estrutural significava um problema sério para o trabalho do podcast. Além da dificuldade em compreender protocolos antigos, a polícia tinha agora um sistema de classificação muito diferente daquele de 30 anos atrás. E essa era só a mudança mais recente. Em todas as décadas passadas, ocorreram várias transições de gestão para gestão. É um pesadelo logístico tentar reconstruir e imaginar quais eram os procedimentos exatos de tanto tempo atrás.

Boa parte dessa etapa da investigação foi focada em conversar com pessoas da época e perguntar “como vocês faziam diante da situação X?”. Isso, claro, se a pessoa estivesse viva, se ela topasse falar e, principalmente, se a memória dela fosse boa. Raramente essas três coisas aconteciam. 

De qualquer forma, na primeira reunião na nova sede da Polícia Científica, Ivan e Natalia foram recebidos por várias pessoas. Entre elas, o próprio diretor da instituição, Luiz Rodrigo Grochocki. Elas olharam toda a documentação que os jornalistas mostraram e se dispuseram a ajudar. E logo explicaram algo importante: o que estava guardado no cofre do antigo IML não era a ossada inteira de Leandro Bossi, mas sim dez fragmentos, entre pedaços da maxila, mandíbula, clavícula, e outros.

De acordo com a Polícia Científica, em resposta oficial enviada por e-mail, o procedimento para guardar esse tipo de amostra era o seguinte:

Segundo relatos da época, o procedimento de extração era determinado pelo médico legista, que selecionava os melhores fragmentos de acordo com o estado de preservação de cada ossada. Não existia procedimento padrão, porém todas as ossadas não identificadas deveriam ter fragmentos coletados e armazenados, a fim de evitar a necessidade de exumação. Seu acondicionamento era realizado em embalagens plásticas ou de papel, e armazenados em cofres ou salas com acesso restrito. 

Ou seja, a Polícia Científica não possuía a ossada inteira de Leandro Bossi armazenada, apenas fragmentos. Mesmo assim, o fato de em 1993 terem o cuidado de coletar e guardar esses pedaços foi determinante para chegarmos até aqui. Outro fator determinante, apurado por meio de várias fontes, foi a direção geral da Polícia Científica do Paraná ter ficado a cargo de Luiz Grochocki em 2019. As fontes foram unânimes em dizer que a arrumação interna começou na gestão dele, especialmente na antiga sede do IML. Isso significa que, se fosse em administrações passadas, talvez a doutora Patrícia não conseguisse achar os fragmentos de Leandro Bossi

Após serem encontradas, as amostras passaram por exames no Paraná, sem sucesso. Através de um acordo nacional para localização e identificação de pessoas desaparecidas, elas foram enviadas à Brasília para serem analisadas em laboratórios da Polícia Federal. Só que existe um problema nisso tudo: extrair DNA, especialmente de ossos mais degradados, é complicado. Muitas vezes, vários desses procedimentos resultam na destruição total do fragmento. Foi o que aconteceu com a ossada de Leandro Bossi. Restaram apenas poucos pedaços. E estes, por sua vez, precisam ser mantidos em cofres, tanto em Brasília quanto em Curitiba, para eventual produção de contraprova futura. Isso é padrão nos dias de hoje. Eles não podem sair da sede da Polícia Científica.

Sendo este o caso, a suposta informação que a família Bossi recebeu, de que poderia sepultar Leandro, não seria possível. O menino provavelmente havia sido enterrado como uma criança indigente, talvez uma menina, em algum cemitério. Mas qual? Tudo o que Ivan sabia é que o protocolo atual consiste em enterrar no município onde a pessoa foi encontrada. Era hora, então, de planejar a visita aos cemitérios de Guaratuba, o que seria feito nos meses seguintes.

Assim que Ivan saiu da primeira reunião com a Polícia Científica, explicou tudo o que tinha descoberto ao grupo da família Bossi no WhatsApp. Cristiane Steffen, irmã de Leandro, resumiu o sentimento geral na seguinte mensagem:

Lendo, relendo, ouvindo. Coração partido, revivendo, e morrendo um pouquinho mais por dentro. Deus queira que eu jamais encontre as respostas certas para não morrer de decepção em saber que Leandro parece não ter existido para o estado do Paraná. Mix de sentimentos: revolta, tristeza, pânico, e vontade de não ter vivido tudo isso. E infelizmente questiono Deus o porquê de ter passado e estar passando por tudo isso. Cada vez que revivo tudo isso, me destrói e me maltrata. Me dói na alma. Deus nos abençoe para conseguirmos ter paciência para conviver com esse trauma. 

Após o primeiro encontro, foram meses de visitas, conversas e pesquisas com a Polícia Científica do Paraná. A instituição foi solícita com Ivan e Natalia, e abriu todas as portas para eles, tanto da sede nova quanto da antiga. Logo na segunda reunião, já havia uma novidade: alguns laudos de Leandro Bossi tinham sido encontrados. 

LAUDOS ENCONTRADOS

Em maio de 2023, Ivan e Natalia visitaram o antigo IML. Lá, eles foram recebidos por Mariana Gevaerd, assessora de imprensa, e Fabíola Machado, diretora do museu do Instituto. Elas apresentaram dois documentos originais que encontraram nos arquivos. O primeiro foi o laudo cadavérico, que seria o mesmo presente nos autos do Caso Evandro. Mas a segunda parte do exame, a perícia odontológica, era nova para Ivan. Apesar de não ser conclusiva, devido à falta das fichas dentárias de Leandro, ela possuía fotos da ossada.

Laudo cadavérico completo de Leandro Bossi

Laudo odontológico de Leandro Bossi (atenção: contém fotos que a família autorizou que fossem publicadas)

Lucas Bossi, irmão do menino, pediu para ver esses novos documentos, o que foi feito durante uma reunião online. Ivan admitiu que tinha receio de mostrar as fotos para ele. Afinal, assim como Lucas, ele sempre viu fotos do garoto em cartazes de crianças desaparecidas ou em arquivos da família e de jornais. Olhar para a imagem do crânio foi, claro, muito impactante. E, apesar do choque, resgatar o laudo completo representou um passo essencial para a investigação. Faltava agora o laudo de local, aquele que o delegado Agenor Salgado Filho solicitou e não obteve resposta do Instituto de Criminalística do Paraná.

Aqui vai um pouco de contexto sobre como funcionava o Instituto na época dos crimes. Havia várias sedes dele espalhadas pelo estado. No litoral, desde os anos 1970, os peritos de local saíam da cidade de Paranaguá. No entanto, por motivos que nunca ficaram claros, esse órgão estava fechado no início da década de 1990. Isso significava que, para toda ocorrência que exigisse um perito, ele teria que se deslocar de Curitiba, o que demoraria entre uma a duas horas. 

Assim como hoje, existiam várias especialidades de perícia, dependendo da situação, como de incêndio, acidente de trânsito e local de morte. Mas também, como hoje, nem sempre essa regra era seguida. O que importa por enquanto é que na época todos os peritos eram levados aos locais de ocorrências por uma viatura do Instituto de Criminalística, que era da Polícia Civil. 

A Polícia Científica do Paraná guarda até hoje os livros de registros de deslocamentos das viaturas. Ivan conferiu as entradas e encontrou o seguinte: às 9h do dia 4 de março de 1993, um carro se deslocou de Curitiba em direção à Guaratuba. Segundo o livro, o motorista de nome Orlando teria levado para uma ocorrência de incêndio um perito chamado Ernâni – que era especializado em casos que envolviam engenharia. Mas por que não há menção da descoberta da ossada nesse arquivo?

Quem ajuda a responder a essa pergunta é o perito aposentado Antonio Carlos Lipinksi, que atualmente é advogado. Ele foi o responsável pelo laudo de local do caso Evandro, realizado em 11 de abril de 1992. Pela primeira vez, Lipinski concedeu entrevista para o podcast, e Ivan aproveitou para perguntar como ele foi chamado para a ocorrência na ocasião, já que não era perito de local de morte.

Segundo ele, a troca de plantão acontecia às 8h e, naquele sábado, não foi diferente. O colega do turno da madrugada lhe avisou que havia uma fuga de presos em Paranaguá, e logo Lipinski seguiu para lá, de carona com o motorista da viatura. Ele acredita que a perícia no local durou até 10h. Depois, o perito precisou se deslocar até Morretes para analisar um caso de furto. Nessa época, as informações das ocorrências eram repassadas pelas delegacias por telefone. Assim, logo que terminou esse último trabalho, ele recebeu a notícia de que um cadáver havia sido encontrado em Guaratuba. Era o corpo de Evandro Ramos Caetano

Porém, no livro de registro das saída das viaturas, não constam os três casos nos quais Lipinski atuou naquele dia, apenas o primeiro, a fuga de presos. Isso porque só se registrava o deslocamento inicial do perito, não tudo o que ele fez durante o expediente.

Voltando à ossada de Leandro Bossi, quando Ivan checou no livro a entrada do dia 4 de março de 1993, a conclusão foi óbvia: o perito designado, Ernâni, saiu para verificar um incêndio em Guaratuba e passou pela mesma situação que Lipinski. Foi chamado inicialmente para uma ocorrência, mas trabalhou em outras.

Registro de deslocamento de viaturas – 04 de março de 1993

Registro de deslocamento de viaturas – 11 de abril de 1992

Ivan conseguiu entrar em contato com o perito Ernâni, que hoje está aposentado. Infelizmente, no entanto, ele disse que não foi até o local da ossada naquele dia. No livro de deslocamentos, não havia mais nenhum registro de movimentações para Guaratuba. 

O Projeto Humanos tentou também contato com o motorista Orlando, mas ele está com uma idade avançada, passando por problemas de saúde. Por isso, não conseguiu responder às perguntas de Ivan.

Pelo inquérito de Leandro Bossi, é possível saber que uma equipe de peritos realizou um pente fino no matagal dias após o encontro da ossada. Ivan conversou com alguns deles, em especial Djalma Pires, que foi bastante atencioso. Ele se lembra de ter feito buscas complementares na área, mas assegura que, na ocasião, os ossos já não estavam mais lá. 

Em resumo, ninguém sabia dizer quem tinha sido o responsável pelo laudo de local de Leandro. Foi então que surgiu a desconfiança de que nenhum perito teria sido designado. Talvez a ossada foi enviada para Curitiba por uma pessoa qualquer, como o funcionário de uma funerária, por exemplo. Mas isso não fazia sentido, já que havia no inquérito ofícios do delegado Agenor Salgado Filho, dizendo que aguardava os peritos do Instituto de Criminalística para registrar o achado. Isso sem contar os insistentes pedidos para que eles logo lhe enviassem o laudo de local. 

Em mensagem para Ivan durante a produção do podcast, o delegado disse o seguinte:

Tenho certeza que o Instituto de Criminalística ou o IML compareceu ao local do achado e removeu a ossada para Curitiba. 

Nessa altura, Ivan e equipe pensaram em todas as possibilidades possíveis. Eles chegaram a verificar no arquivo da Polícia Científica literalmente todos os laudos de local de morte produzidos em 1993, na esperança de encontrar alguma coisa. Não encontraram nada. Procuraram também por documentos no IML de Paranaguá, mas descobriram que eles não existem mais. Não havia nenhum registro, nem mesmo um livro de deslocamento de viaturas ou de entrada e saída de corpos.

Até que veio um estalo. Ivan pediu para que os jornalistas da equipe procurassem por pistas em matérias da imprensa da época, especialmente na semana em que a ossada foi encontrada. E lá estava uma nova descoberta, na edição de 6 de março de 1993 do extinto Jornal Diário Popular: uma foto bem grande de um homem segurando um crânio. Era o crânio de Leandro Bossi. A legenda dizia: 

Roberto, um dos peritos do caso Evandro, agora neste outro.

Uma reportagem do dia anterior, do mesmo jornal, conta com a seguinte informação:

A partir do momento da localização dos ossos, policiais de Guaratuba solicitaram a presença de peritos do Instituto de Criminalística. Seguiram ainda ontem para o Litoral quatro peritos, liderados por Roberto Werzbitzki

Confira abaixo as matérias encontradas:

Pasta com matérias digitalizadas pela Biblioteca Pública do Paraná

Finalmente, Ivan tinha o nome de um perito. Numa pesquisa mais aprofundada, a equipe também achou um livro de registro de entrada da ossada no IML de Curitiba. Ela havia sido encontrada em 4 de março de 1993 em Guaratuba. Segundo o livro, os ossos chegaram no IML no dia seguinte, às 19h30. 

Registro de entrada da ossada no IML de Curitiba

Nesta ficha, consta que a ossada estava acompanhada de 21 fotos, atribuídas a duas pessoas: Gerson Luiz Laux, médico legista que realizou o exame cadavérico, e Roberto Werzbitzki, o perito que aparecia no jornal segurando o crânio.

A partir dessas informações, Ivan foi atrás de Roberto, e descobriu que ele era um perito de acidentes de trânsito, e já estava aposentado. Na época, ao que tudo indica, ia para o local da ocorrência o profissional que estivesse mais próximo e disponível.

O perito não quis conceder entrevista para o podcast, mas autorizou que Ivan publicasse o que ele lhe disse. Por meio de mensagem, Roberto afirmou que lembra pouco desse caso e que não queria mais mexer com isso. Ele confirmou que a matéria do Diário Popular realmente tinha uma foto dele, mas negou que teria liderado uma equipe de peritos. Disse apenas que foi lá como auxiliar do colega Djalma Pires.

Roberto Werzbitzki também comentou que, desde que se aposentou, passou uma borracha em tudo. Não lembra de detalhes e não quer falar. Além disso, deixou bem claro que não produziu nenhum laudo, nem tirou fotos. 

Após extensas procuras e todas as verificações possíveis, a conclusão é que, provavelmente, não existe nenhum laudo de local da ossada de Leandro Bossi, nem imagens de como ela foi encontrada.

Ivan ainda levantou que Roberto tem casa em Guaratuba há muitos anos. É possível, então, que ele estivesse na cidade quando a ossada de Leandro foi achada. Ele deve ter sido chamado informalmente para auxiliar, e o jornal o fotografou. Talvez o perito tenha tirado algumas fotos, talvez não. 

Enfim, não há explicações concretas sobre o que aconteceu. Os protocolos da época não são claros. Na melhor das hipóteses, um ficou esperando o outro fazer o laudo, e ninguém tomou a iniciativa. Isso explicaria o motivo do Instituto de Criminalística nunca ter respondido nenhum dos insistentes pedidos do delegado Agenor Salgado Filho

Tudo isso, por si só, já é frustrante. Mas Ivan também estava atrás de algo ainda mais importante: a ossada de Leandro Bossi.

ONDE ESTÁ LEANDRO?

Após ficar claro que o exame de DNA foi feito com fragmentos, o Projeto Humanos passou a procurar pela ossada. Afinal, a família Bossi tinha interesse em enterrá-la. O primeiro passo foi conferir o arquivo das fichas de sepultamento guardadas no antigo IML de Curitiba. Muitas já se perderam com o tempo. E nas que puderam ser consultadas, nada foi encontrado.

A produção, então, foi informada que o protocolo hoje em dia é devolver o corpo não identificado para o município de origem. Então, Ivan e Natalia foram para Guaratuba e visitaram os dois cemitérios da cidade. Com o acesso às fichas de sepultamento, eles começaram a procurar. Infelizmente, as buscas não tiveram resultado.

Foi aí que Ivan decidiu conversar com o doutor Francisco Moraes e Silva, que foi diretor do IML por muitos anos. Ele já havia concedido entrevista para a produção do podcast, e agora poderia ajudar a tirar dúvidas sobre alguns protocolos da época. Afinal, onde um corpo não identificado era enterrado na década de 1990? A resposta veio logo: no cemitério do bairro Santa Cândida, em Curitiba.

Com a nova informação, veio mais um problema. O cemitério de lá tem livros gigantescos com todos os corpos sepultados, mas, com um sistema não padronizado na década de 1990, as buscas não seriam nada fáceis. Além disso, por questões ambientais, uma área extensa de gramado foi interditada no local durante os anos 2000. Ela só voltou a ser usada após a pandemia de Covid-19, desta vez com a instalação de gavetas mais altas, longe da terra. Acontece que esse era justamente o ponto onde pessoas não identificadas eram enterradas. Havia ali pequenas demarcações em tijolos e placas de numeração muito frágeis, que se perderam com o tempo. Hoje, não há gravação em nenhuma lápide, e não há mapa dos túmulos na época. Ou seja, é provável que Leandro esteja nesse cemitério, mas não é possível dizer onde. 

Diante dessa descoberta, a reação da família não podia ser outra. Essa é mais uma fonte de indignação, frustração e tristeza. “Minha Nossa Senhora, meu Deus do Céu. É horrível pensar o que poderia ter acontecido, as possibilidades. […] Você vê como o simples fato de não anotar quem era o perito na época ou não pedir para essa pessoa fazer um trabalho bem específico, o tanto de transtorno que isso causa. Agora a gente está precisando de uma informação que a pessoa às vezes só não tem porque ficou com preguiça aquele dia. Porque achou que era irrelevante”, desabafou Lucas Bossi em conversa com Ivan.

Após os contatos com a Polícia Científica, a produção do Projeto Humanos elaborou uma lista de perguntas específicas sobre todos os assuntos abordados neste episódio. As respostas oficiais completas estão disponíveis aqui:

Respostas oficiais da Polícia Científica do Paraná

As informações referentes às questões sobre a localização da ossada estão no trecho abaixo: 

Não foram encontradas informações sobre o fato da ossada ter sido enterrada como indigente no Cemitério do Santa Cândida, em Curitiba. A Polícia Científica não tem gestão ou informações sobre o serviço funerário ou cemitérios. Como o caso ocorreu na década de 90, haja vista o lapso temporal decorrido, torna-se difícil à atual administração obter dados confiáveis sobre esse eventual processo de inumação da ossada. À época os registros eram manuscritos, as exigências legais relacionadas à cadeia de custódia eram diferentes e a instituição possuía outra estrutura organizacional e hierárquica. Atualmente seguimos a Lei Estadual 19.362/2017, normativa que dispõe sobre a inumação de cadáveres humanos identificados e não reclamados e dos não identificados sob a custódia da Polícia Científica do Paraná. 

Em outras palavras, a ossada se perdeu. A família não terá como enterrá-la. E sequer é possível saber qual o túmulo exato no cemitério do Santa Cândida para prestar homenagens. Isso se Leandro Bossi realmente estiver enterrado lá.  

Leandro parece ser a criança que ninguém nunca olhou com atenção, cujo inquérito pareceu servir sempre como um apêndice para outras coisas: seja para incriminar os sete inocentes do caso Evandro, seja para tentar investigar Valentina de Andrade

Antes mesmo de levantar todas essas informações, Ivan tinha certeza de uma coisa após a coletiva de imprensa sobre o exame de DNA: mais uma vez, ninguém investigaria esse caso. Mesmo depois de uma revelação tão importante, que mudava tudo, e que talvez fosse uma chave para a solução desse mistério.

A família Bossi aceitou a investigação proposta pelo Projeto Humanos. Portanto, esqueçam bruxas. Esqueçam baía de Guaratuba. Esqueçam Valentina, pais de santo, seita satânica ou qualquer bobagem do tipo. Esqueçam conspirações sobre aqueles não serem seus corpos. Chegou a hora de olharmos para os fatos. Chegou a hora de voltar para Guaratuba e procurar pelo assassino de Leandro e Evandro.