Wiki do Caso Leandro Bossi

Extras Episódio 05

Após a descoberta do caso Sandra, a principal dúvida de Ivan Mizanzuk era: seria possível que o caso Sandrinha estivesse relacionado com os de Evandro e Leandro?

Os dos meninos são fáceis de conectar. Apesar de ser difícil extrair informações da ossada de Leandro, devido à demora para ser descoberta, ambos os garotos eram parecidos, de uma mesma cidade, que sumiram em um período curto de tempo e foram encontrados no mesmo matagal.

Mas e Sandra? O corpo da menina não tinha as mãos e estava sem a máscara facial, fatores similares ao caso Evandro. Ela tinha 11 anos, mas era bem pequena e aparentava ter apenas oito. Era loira e estava com o cabelo raspado, o que a deixava parecida com um menininho.

À primeira vista, é difícil ignorar as semelhanças entre os casos. Só que Sandra foi assassinada três anos antes que os garotos de Guaratuba, em outra cidade: Fazenda Rio Grande, na região metropolitana de Curitiba. E ela era uma menina, que foi abusada sexualmente. Isso talvez torna o caso diferente.

Por outro lado, assim como nos crimes de Guaratuba, Sandra foi encontrada em um matagal, perto de casa, com suas roupas. Nesse ponto, parece que há mais semelhanças do que diferenças.

Só que existem várias formas de uma pessoa morrer. Há várias situações que, para olhos leigos, podem ser muito parecidas, mas que se diferem em detalhes importantes. Por causa dessas dúvidas, Ivan sentiu a necessidade de conversar com especialistas. Ele começou essa parte da investigação falando com pessoas que trabalharam na elucidação da morte de Evandro, já que é o caso que possui documentos mais detalhados acerca do corpo.

A esperança de Ivan é de que, se descobrir mais coisas sobre a forma como Evandro foi morto e como o corpo foi colocado naquele local, possa obter mais informações sobre o modus operandi do assassino dessas crianças. Dessa forma, poderia melhor supor fatores sobre o caso Leandro e tentar estabelecer comparações com a morte de Sandra.

Partindo do princípio de que o assassino de Evandro é o mesmo de Leandro, será que é possível encontrar semelhanças entre Evandro e Sandra, e assim estabelecer uma conexão entre os três?

Como não há muitas informações sobre Leandro, Ivan decidiu olhar para o caso Evandro do zero. E, nesse esforço, conversou com o perito de local que viu o corpo do menino no dia em que ele foi encontrado.

Laudo de local do corpo de Evandro

Antonio Carlos Lipinksi, de 62 anos, é perito criminal aposentado e atualmente atua como advogado. Ivan já apresentou o doutor Lipinski no episódio 5 do Prelúdio, que antecedeu essa temporada, e contou em detalhes sobre como ele foi chamado para ir para Guaratuba.

Recapitulando, Lipinski havia entrado no plantão em um sábado de manhã, 11 de abril de 1992. Na época, toda ocorrência no litoral do Paraná exigia que um perito do Instituto de Criminalística de Curitiba fosse chamado para se deslocar até lá.

Inicialmente, Lipinski seguiu para Paranaguá atender uma fuga de presos. Depois, foi chamado para Morretes, cidade próxima, para verificar um furto em uma maternidade. Por fim, foi informado que um corpo havia sido encontrado em Guaratuba, e se deslocou para lá em seguida.

Registro de deslocamento de viaturas – 04 de março de 1993

Registro de deslocamento de viaturas – 11 de abril de 1992

O doutor Lipinski nunca deu entrevista sobre o caso. Mas foi ele o responsável por ir até o local do corpo. Naquela época, geralmente duas pessoas assinavam o laudo. 

O segundo perito que assinou o documento foi Arthur Conrado Drischel, que já é falecido. Ele nunca viu o corpo de Evandro no local, apenas quando já estava no IML de Curitiba, no dia seguinte ao achado.

Ainda assim, o doutor Drischel acabou sendo uma importante testemunha da defesa dos acusados de Guaratuba, pois ele colocava dúvidas sobre o corpo de Evandro.

Ivan já adianta que, apesar de todos os problemas na cadeia de custódia, o exame de DNA feito em 1992 confirmou a identidade do corpo. Relembrar isso é importante porque Drischel, o perito que nunca foi ao local, deu muitas entrevistas. Falou com advogados de defesa, deu depoimentos no júri. Ou seja, ele também acabou contaminado com todo o sensacionalismo em torno do caso Evandro.

Exame de DNA realizado em 1992 – caso Evandro

Entrevista de Drischel ao jornal Hora H (1996)

Diferente do doutor Lipinski, que nunca deu nenhuma entrevista – justamente para não se deixar levar por nenhum lado, nem acusação, nem defesa. Esse envolvimento de Drischel incomodava Lipinski já naquela época.

Confira abaixo um trecho da conversa de Lipinski com Ivan para o podcast:

Dr. Lipinski: E aí que eu divergia do Arthur. Porque o Arthur fazia umas reuniões lá com uma advogada. Eu não lembro o nome… Como é que é? Isabel…

Ivan: Ah, a Isabel…

Dr. Lipinski: Essa daí…

Ivan: Isabel Kluger…

A doutora Isabel Kugler Mendes foi uma advogada que, desde a época das prisões dos acusados em Guaratuba, sempre lutou para comprovar que eles eram inocentes e tinham sido torturados.

Dr. Lipinski: Isso, isso. Aí era com ela… E às vezes ela vinha com mais alguém, e daí ficavam conversando lá na seção, e eu já… Não vou participar…

Ivan: Isso depois das prisões já, né? Isso já…

Dr. Lipinski: Eu lembro que isso durou, assim, alguns meses. Eles se reuniam, conversavam e tal. A questão é… Veja só… Eu não posso me envolver nem com a defesa, nem com a acusação. Porque o trabalho técnico foi feito. Eu posso esclarecer alguma coisa para eles. Agora, não tem lógica eu ficar toda hora conversando… “Ah, pode ser isso, pode ser aquilo, não sei o quê”. Por quê? Porque você não pode… Nesse momento é o Estado se manifestando sobre uma prova que ele produziu. Então, o que eu digo? Não, eu vou ser isento. Se vocês quiserem saber alguma coisa, vocês requerem lá, o delegado vai me mandar, e eu vou responder. Então, quanto a isso, não tem problema. Eu respondo com a maior… Mas de uma forma que eu vou responder para defesa e pra acusação. Volta para o inquérito. Vocês têm que… A coisa tem que estar em sintonia. A partir do momento que eu começo a responder para um e ocultar de outro… Não é função minha fazer isso… Eu posso estar prejudicando a acusação ou a defesa. E a função da prova é esclarecer e não prejudicar nem um e nem outro.

Ivan: Deixa eu te fazer essa pergunta, então, que eu acho que tem a ver com o que o doutor está falando. Quando o doutor e o Drischel conversavam sobre o corpo, em algum momento na discussão para a redação do laudo… Sei lá, dessas semanas que vocês ficaram discutindo aqui… Em algum momento ele falou coisa do tipo: “eu acho que aquele cadáver estava congelado”? “Eu acho que esse não pode ser do menor Evandro”? Ele levantou dúvidas sobre isso? Isso é uma curiosidade…

Dr. Lipinski: Não, não, não. Nunca. Pelo seguinte… Porque a gente fez, procurou fazer o laudo assim… De uma forma assim… Dentro do prazo de 10 dias. Então, a gente conversou nesse período sobre… Mas em momento algum houve pergunta do tipo “estava congelado, não estava congelado”.

Ivan: Porque ele falava em júri. O doutor Drischel falou assim: “ah, eu notei manchas no corpo que davam a entender que ele poderia ter sido um corpo congelado”. Isso nunca… Nunca levantou?

Dr. Lipinski: Não, não, não… Nunca… Não foi objeto de discussão nossa também, não. Veja, esse é o problema, talvez alguém perguntou isso para ele. “Olha, isso não pode ser uma mancha disso ou daquilo?”.

Ivan: E daí ele começou a…

Dr. Lipinski: Então, esse é o problema de você se envolver e começar de repente… Bom, tudo bem, pode ser… Não, espera só… A questão tem que voltar para o foco. O perito não é legista. Ele vai descrever as lesões externas, entendeu? Coloração da pele, você até pode descrever. “Olha, teve…”. Pode. “Achei lá uma mancha”. Só que tem um detalhe: esse corpo ficou no meio ambiente. Então, essa mancha podia ser até sujeira. Porque quando chega lá no IML, eles lavam o corpo… Salvo casos onde você depende de exame de distância de tiro, que daí você precisa verificar aquela impregnação de pólvora na pele, aquela coisa toda. Você não lava. Mas num caso desse, o corpo ia ser lavado. Até por conta das aderências que tinha… Aquilo grudou… Veja… Garoou, choveu no dia anterior… No dia que houve o encontro, eu devo ter atendido ele ali por volta de duas horas da tarde. Estava quente. Mas, veja, era outono. É que nem o… Vamos supor, vamos pegar ontem: amanheceu o dia, acho que estava 14 graus. Na hora do almoço estava 28, gente. Entende?

Ivan: Você vê aqui, ó… A gente tem o laudo técnico das precipitações em Guaratuba naquele período. Ele some no dia 6 e é encontrado no dia 11. Então, você sabe que na terça e quarta, dias 7 e 8, choveu, e dia 8 choveu bastante, né?

Laudo de precipitações em Guaratuba em 1992

Dr. Lipinski: Então, veja, do dia 8… O corpo foi encontrado três dias depois. Então, vamos supor o seguinte: que não choveu nada, a pessoa que falou… “Choveu, mas não choveu muito”. Tá, tudo bem. Não foi ontem, foi anteontem. Beleza. Então, aquela quantidade de água que estava contingenciada dentro do abdômen do menino evaporou também. Então deveria ser um volume maior e aquilo era um volume menor. Então, se aquilo ali aconteceu três dias antes, é mais ou menos o tempo de o corpo estar ali no local.

Ivan: E a própria… Como é região de mato ali, com muita umidade também, se passou a noite ali, por exemplo, forma um pouco de água. Ou não?

Dr. Lipinski: Essa época faz… Dependendo da temperatura mínima, chega a formar aquele orvalhozinho que fica na coisa… Porque, você veja, hoje é dia 5 [de abril de 2023]…

Ivan: Hoje é dia 5. Aham.

Dr. Lipinski: Daqui a sete dias, vai ser dia… Daqui a seis dias, dia 11. Então, você veja quanto tempo passou de lá para cá, 31 anos. E o clima não muda porque é verão, outono, inverno, primavera. Então, isso a gente tem… Você pode tirar um parâmetro do que está acontecendo aqui agora. Por ser um local de uma vegetação mais fechada, a tendência é que ali, apesar de ter umidade, o calor não seja tão intenso. Então, a evaporação também não é tão grande. Reforça aquela questão de ter aquela água ali.

Ivan: Tinha água dentro, então, quando você…

Dr. Lipinski: Um pouco.

Aqui, Lipinski se refere ao fato de que o corpo de Evandro estava completamente aberto e oco no peito, já que todos os órgãos foram retirados. Aparentemente, havia um pouco de líquido lá dentro. Podia ser da chuva de alguns dias anteriores, mas podia ser também da umidade do local. Essa discussão é importante para se tentar entender quanto tempo o corpo ficou lá até ser encontrado.

OS LIMITES DA ÉPOCA

Em 1992, as fotos eram todas analógicas, o que significa que o doutor Lipinski usava uma máquina fotográfica com filme. Ele já havia feito duas perícias anteriores, em Paranaguá e Morretes, e o Instituto de Criminalística não tinha muitos rolos para fornecer para os peritos. Ou seja, naquela altura do dia, ele já estava sem filme fotográfico.

Ele, então, acabou pegando o rolo de filme de um fotógrafo da prefeitura e com isso produziu uma série de fotos – algo incomum para a época. Nos arquivos do processo do caso Evandro, há uma série de imagens, e esse não era o procedimento padrão.

Dr. Lipinski: Talvez, então, por isso não tenha chegado para a Leila [Bertolini, a delegada do Grupo Tigre]. Mas eu lembro que até eu dei cópia daquelas fotos que você diz lá… Eram fotos da continuidade do filme. Porque quando você faz… Eu faço assim: eu tiro lá… Eu tirava bastante foto. Até comentei com ela lá… Me encheram o saco porque eu batia muita foto. Mas não tem como você ver tudo. Depois você põe tudo em cima da mesa e aí você começa… Para não esquecer nada e tal, então você tem condição de rever tudo aquilo. Aí você faz o teu laudo. Agora, tem coisa assim que… Sabe? Porque quando você faz o laudo, você não tem a menor noção do que está sendo a investigação, como ela vai se desenvolver. Então, eu coloco o que eu acho que é necessário. Normalmente, naqueles casos, naquela época, no Instituto, a regra era trabalhar com quatro fotos. Uma do local, digamos, uma da casa e duas do corpo. Era mais ou menos isso. Eu ali extrapolei o negócio e fiz o máximo.

Essa fala do doutor Lipinski é importante porque dá uma perspectiva dos limites da época. Hoje em dia, com câmeras digitais, são tiradas centenas de fotos de um local de crime. Mas, na época, Lipinski teve a sorte de conseguir um rolo de um fotógrafo de Guaratuba só para usar naquele caso. Para se colocar em perspectiva, no laudo de local do caso da Sandrinha há apenas três fotos do local.

Após o corpo de Evandro ser analisado no IML de Curitiba, os legistas se reuniram com os peritos e o delegado geral para discutir a natureza de algumas daquelas lesões. O principal médico legista que trabalhou no laudo foi o doutor Francisco Moraes e Silva.

Laudo de necropsia – caso Evandro

Dr. Lipinski: Só que, você veja, na primeira reunião que a gente fez com o delegado geral, eu levei um pacotão de fotos. Aí você começa a ouvir um monte de coisa, tal. “O que você me diz disso?”. Eu me lembro que o doutor Francisco estava numa das reuniões, falando do braço… “Não, está aqui, ó”. “É, essa foto está boa”. “É, não é bem assim”. Então…

Ivan: Porque tinha a discussão se era ação animal ou humana, né?

Dr. Lipinski: Exatamente. Era a tal da lesão de saca-bocado.

A lesão de saca-bocado é feita por animais que se alimentam de carne em putrefação, como ratos, por exemplo. Eles mordem e rasgam parte da carne, deixando esse ferimento bem característico.

Ivan vai entrar nesse assunto mais adiante, mas por ora basta dizer que houve uma intensa discussão entre os legistas e os peritos sobre a ausência das mãos de Evandro, se ela poderia ser de ação animal, humana, ou uma mistura das duas coisas.

Dr. Lipinski: É o tipo de coisa, assim, que… Como eu não tinha colocado todas elas [fotos] naquele momento no laudo, mas o laudo já tinha ido, eu tinha as negativas, se precisasse ia revelar mais fotos e assim por diante.

Ivan: Podia ampliar…

Dr. Lipinski: Fazer o que quiser… Mas a quantidade era bem acima da média. Então, eu não tive problema com relação a isso. E as fotos até, por sorte, todas elas de uma qualidade que dá para você ver exatamente… Porque às vezes eu via alguns colegas, os caras batiam a foto meio… Saía tremido, saía meio desfocado… Digo: “pô, mas tenta fazer melhor”. Eu dizia assim, né? “Porra, se especializa um pouco no troço, é tão fácil. Ó, você regula a velocidade, aqui o diafragma e tal, é tão fácil de fazer”. “Não, não, não, deixa, deixa”. Tá bom. Cada um faz o seu, eu nunca dei palpite no laudo dos outros e tal. A gente sempre fazia assim. Eu, por regra, desde o começo, fiz assim. Eu fazia o meu laudo, eu tinha a minha convicção. Mas eu sentava ali… O Arthur até… Porque era, assim, um cara mais dedicado e coisa… Eu gostava de trabalhar com ele porque ele tinha uma paciência de Jó. Então, às vezes alguma coisa que você não sabia, ele te explicava. Daí você entendia. “Ah, sorte que tinha isso, tinha aquilo”, e a coisa fluía. Tinha outros que já eram assim mais secos, era difícil você trabalhar com o cara, porque o cara não tinha paciência de explicar nada. Então, a coisa acabava não tendo o mesmo rendimento e a mesma… Aquele objetivo que você tinha para um laudo, né? Então, essa parceria com ele foi para mim… Eu aprendi muito com ele.

A região daquele matagal era muito, muito grande. Até hoje é. Após encontrarem o corpo de Evandro, fizeram uma busca em um raio de cerca de 50 metros. Encontraram algumas coisas, como calças velhas, sacos, mas nada que chamasse a atenção. Ainda assim, todos esses materiais foram levados para análise no laboratório de química do Instituto de Criminalística. Em nenhum desses itens foi achado algo relevante.

É bem provável que, quando o corpo de Evandro foi encontrado, o de Leandro já estivesse lá. Mas a ossada dele só foi achada em março de 1993, quase um ano depois.

A ossada de Leandro estava em um lugar de mata bem mais fechada, enquanto o corpo de Evandro foi deixado em um local onde havia um caminho semiaberto – uma picada na mata, como se diz. Por causa disso, alguns lenhadores que passavam pela região conseguiram ver os urubus que sobrevoavam a área onde o corpo foi achado e chamaram a polícia logo em seguida.

A ossada de Leandro foi encontrada a uma distância estimada entre 200 e 400 metros do local do corpo de Evandro.

Dr. Lipinski: A perinecroscopia é o exame ao redor do cadáver. Então, o que é ao redor? Você estabelece um perímetro, cinco metros, 10 metros, 50 metros e assim vai. Como a gente trabalhou… Era a rua, o mato… Não era o mato ali, era o mato… Dali para diante era tudo mato. Não tinha campo de futebol, não tinha nada. Eles tinham recém aberto aquela rua. Não tinha casa, não tinha nada, provavelmente por isso que o cara escolheu aquilo ali. E tinha o corpo ali. A gente andou ao redor, e uma coisa que chama a atenção quando faz uma progressão no mato, é galho quebrado, é alguma coisa… Alguma coisa que você acha e assim por diante. E a gente andou, fez ao redor e não achou tipo assim: ó, aqui já teve uma trilha. Aqui alguém já passou. Não, não tinha. Então, você vai entrando um pouco, vai aumentando… Eu acredito que… Tanto eu quanto os outros devem ter trabalhado, assim, mais ou menos alguma coisa em torno de… Porque até a rua, se eu não me engano, acho que dava uns 20 e pouco metros mais ou menos.

Ivan: Tá. Deixa eu te colocar numa outra situação, então. Em 1992, é encontrado um corpo num matagal como aquele que foi encontrado. Seria comum para a época fazer uma busca num raio de 400 metros?

Dr. Lipinski: Não.

Ivan: Muito grande, né?

Dr. Lipinski: Muito grande. E, veja bem, para ele estar a 400 metros para lá… 400 metros são mais ou menos quatro quadras. O problema é que se você entrar no mato… A tua linha reta… É que nem diz o Galvão Bueno: “uma reta curva”. Você começa aqui, daí você tem que desviar porque tem uma árvore, daí tem mais não sei o quê. No que você desvia 30 centímetros aqui, 400 metros lá, vai refletir pelo menos uns 20 metros. Então, você sai… É por isso que as pessoas se perdem no mato. Porque elas perdem a referência. Eu olho, é árvore, é árvore, é árvore. Mas qual árvore? “Ah, mas eu tenho certeza que era por aqui”. E no fim não é nada disso. É muito difícil… 400 metros… Naquela época não tinha nem a Polícia Ambiental.

Ivan: É. Mas se eu sou mateiro e estou acostumado…

Dr. Lipinski: Ah, sim, aí… Tá, mas o cara que é mateiro já entra preparado para andar no mato.

Ivan: Aham, sim. Ele já se…

Dr. Lipinski: Já sabe se localizar. Exatamente. É diferente. Ele já tem aquele ímpeto porque ele sabe, ele vive disso.

Ivan: Aham, aham.

Dr. Lipinski: Então, é o dia a dia dele. Para ele, não tem dificuldade.

O trabalho do doutor Lipinski foi feito dentro das melhores condições possíveis para os padrões da época. Ele até chegou a levar bronca porque tirou mais fotos do que deveria. Fizeram uma varredura no ambiente, encontraram peças, catalogaram, enviaram para análise, não resultou em nada. E pela distância entre os corpos, dificilmente encontrariam o corpo de Leandro naquele dia.

OS CHINELOS E A CHAVE

Dias depois da descoberta do corpo de Evandro, um par de chinelos foi achado perto daquele local. Os pés estavam distantes um do outro.

Quando os chinelos foram encontrados pelos policiais do Grupo Tigre, da Polícia Civil do Paraná, havia uma discussão se eles poderiam ter sido arremessados de um dos canais que cortavam aquela área.

Laudo de Química Legal – objetos encontrados próximo ao corpo de Evandro (1992)

Dr. Lipinski: O que acontece numa situação dessas? Alguém pode ter jogado? Pode. Ali você perguntou também se podiam ter jogado o chinelo. Pelas árvores, pela copa dessas árvores, eram árvores, assim, de dois metros e meio, no máximo três. Se alguém jogasse o chinelo, ele ia ficar preso na árvore. Ele não ia cair. Porque aquele galho… Como é que vou te explicar? É um galho… Tipo havaiana… Havaiana tem aquela… A alça dela é alta. Então, a hora que está caindo…

Ivan: Era um chinelo tipo Rider, né?

Dr. Lipinski: É a mesma coisa. Então, teria condição de enroscar. Mas, vamos supor, não enroscou. Beleza. Mas aí vem a segunda pergunta: eu consigo arremessar um chinelo desse mais do que 40 metros?

Ivan: Então… Tanto que foi essa… O senhor sabe a história desse chinelo?

Dr. Lipinski: Não.

Ivan: O doutor Adauto estava lá com o Pencai e o Blaqueney…

O doutor Adauto Abreu era o delegado do Grupo Tigre na época. Rogério Podolak Pencai e Blaqueney Murilo Iglesias eram policiais da sua equipe. Todos trabalhavam também em conjunto com a delegada Leila Bertolini.

Ivan: Encontraram esses chinelos. A doutora Leila até fala que achava estranho porque parecia que estavam muito limpos, como se tivessem sido lavados ou se fossem novos. E daí eles tão com os dois chinelos na mão, e começa uma discussão de “não, mas será que a pessoa veio aqui e deixou o chinelo? Ou será que ela jogou do outro lado?”. Daí o doutor Adauto disse assim: “não, eu duvido que ela tenha vindo até aqui, acho que ela jogou do riacho, quer ver?”. Daí ele pega um chinelo e joga. E daí o chinelo não passa do riacho, ele cai e se torna inutilizado como prova. Basicamente isso.

Dr. Lipinski: Apesar que aquela prova naquela época só ia servir para identificar o tamanho e o reconhecimento, alguma coisa assim. Mas, tudo bem… Isso a gente sempre tem um cuidado muito grande, para evitar de você extraviar qualquer coisa do local. Porque determinadas situações não tem como você reverter. Eu estava vendo agora… Outro dia teve um colega advogado… Me perguntou e me mostrou uma foto do que foi apreendido. Pegaram todas as roupas e misturaram tudo junto. Daí eu falei: “olha, isso aí criou uma situação…”. Porque pode acontecer a transposição. Eu posso fazer exame de DNA na roupa. Só que aqui… O que estava aqui pode ter passado para cá, sabe? Então, a pergunta vai ser: qual a confiabilidade que vai ter isso aí? Entende? Então… É responsabilidade.

Essa história do chinelo sempre foi contada como mais um ato de irresponsabilidade das autoridades policiais da época. Mas, novamente, a perspectiva do doutor Lipinski é importante: em 1992, o que daria para se fazer com aquele chinelo?

Apesar disso, Ivan continua achando que a atitude foi irresponsável. As provas precisavam ser melhor guardadas e armazenadas, até pensando em tecnologias futuras.

Junto com os chinelos, outro fator relevante era a discussão sobre a chave da casa de Evandro encontrada perto do cadáver. Além da roupa que usava, essa chave foi mais um objeto utilizado em um primeiro momento para que a família já tivesse noção de que aquele corpo poderia ser realmente de Evandro.

A doutora Leila Bertolini, delegada do Grupo Tigre, contou um pouco sobre a chave no depoimento que prestou em júri no ano de 2004. Nessa parte do relato, ela respondia às perguntas do advogado de defesa Haroldo César Nater, que também lhe questionava sobre os chinelos:

Dr. Haroldo: Quando a senhora anunciou que procuraria os chinelos que o garoto Evandro portava quando desapareceu, é verdade dizer que, logo após essa comunicação pública através da imprensa, esses chinelos apareceram? Como se não tivessem nunca sido usados, como se tivessem sido novos, inclusive, sem nenhuma deformidade?

Dra. Leila: É verdade, é verdade.

Dr. Haroldo: A senhora estranhou esse fato de os chinelos aparecerem na região onde foi encontrado o cadáver, que provavelmente estariam expostos ali às intempéries por cerca de quatro dias, estarem naquele estado tão conservado?

Dra. Leila: Eu até estranhei a gente achar os chinelos, porque era mato. E nós achamos os dois chinelos. Como se tivessem sido colocados naquele dia.

Dr. Haroldo: Como se tivessem sido colocados naquele dia?

Dra. Leila: Naquele dia.

Dr. Haroldo: Relativamente às chaves da casa, as chaves que o Evandro portava ao desaparecer, a senhora estranhou também essas chaves terem sido encontradas próximas ao cadáver? Sendo que ele não tinha, segundo os laudos, as mãos? Como é que iria levar aquelas chaves? Pareceu que essas provas foram plantadas lá para induzir as investigações?

Dra. Leila: Com certeza. Essa chave foi colocada ali para identificar o cadáver. Porque, na verdade, o cadáver foi encontrado em determinado local. E, para chegar nesse local, havia um carreiro, já um mato amassado. E, nesse carreiro, o único lugar que você precisava olhar para o chão é onde tinha um tronco, um pedaço de madeira atravessado. Então, para a gente trocar o passo, você tinha que olhar para o chão, senão você ia sem olhar, e as chaves estavam ali.

Só que essa chave nunca foi apreendida. As histórias da época dão conta de que alguém da cena, provavelmente algum policial militar que cuidava do isolamento, deve ter pegado essa chave e entregado diretamente para a família.

Ivan sempre achou isso um absurdo, pois a chave, de metal, poderia conter alguma impressão digital, e isso seria mais um descaso da cena toda.

Ivan: Quando o doutor chegou lá, não tinha mais a chave da casa do Evandro?

Dr. Lipinski: Alguém falou da chave. Mas, assim, no local, eu não me recordo da chave.

Ivan: O corpo foi encontrado de manhã. Daí a história que aparece é que chegou algum PM lá… Se duvidar, o sargento Schultz, que é um cara que trabalhava lá, pegou a chave e entregou para o pai.

Dr. Lipinski: Olha, eu, assim… Eu só passei aquelas orientações… “Não deixa ninguém entrar”. Esses detalhes… A gente só pergunta: “tem alguma coisa para relatar?”. “Não”.

Ivan: Se o doutor tivesse chegado lá e encontrado a chave, qual seria o procedimento daquela época para uma chave encontrada?

Dr. Lipinski: Para uma chave? Anexaria no laudo.

Ivan: Mas… Desde o início… Você pega uma luva? Pinça? Naquela época… Ou não? Naquela época…

Dr. Lipinski: Olha… Veja, esse era um grande problema porque luva, a gente começou a ter aqui no Instituto em 2010. Nós estamos falando de 1992. Então, a gente estava bem atrasado. O que eu ia fazer? Eu sempre carregava, naquela época, saco plástico, saco de lixo. Essas sacolinhas de mercado, essas coisas. E, naquela época ainda, não eram todos… Porque ainda tinha alguns mercados que usavam de papel. Era sacola mesmo, de papel. Eram alguns que estavam começando com sacola plástica. Eu usava aquilo porque às vezes precisava carregar uma arma, que eu coletava lá num local de morte, alguma coisa… Então, como você tem… Você tem que protegê-la, porque você pode ter uma impressão digital… Eu passei a usar, no caso da arma, uma garrafa PET. Naquela época estava começando também… Eu cortava o fundo e punha a arma dentro da garrafa vazia, seca e tal. Eu punha ali dentro e trazia, porque daí eu não corria o risco de transportar a minha impressão digital para aquela arma. Porque, senão, pô, vai sair um laudo onde tem a minha… Você já pensou? A minha impressão digital sobreposta… Daí não dá para classificar aquela… A gente tinha esse cuidado para evitar esse tipo de situação.

Ivan: Com uma chave, teria esse cuidado também?

Dr. Lipinski: A chave… Eu iria pegar… Não pegaria direto na chave, pegaria com a sacola e deixaria dentro da sacola. Anexaria aquilo e depois colocaria… O nosso sistema era um envelope… E escrevia por fora: “contém um chaveiro com tantas chaves”.

Ivan: Porque uma chave daria para pegar uma impressão digital, né?

Dr. Lipinski: Depende. Depende. Tem chave que dá, tem chave que não dá. Naquela época, ia ser até mais difícil de você ver uma impressão digital, porque você trabalhar com fragmentos no momento… Hoje é bem mais fácil, você escaneia. Naquela época, o processo era: eu passava pó, utilizava uma fita durex, grudava, transpunha aquilo e passava por uma lâmina de vidro. E aí fotografava aquela lâmina de vidro e trabalhava com a fotografia. Então, fazer todas essas operações… Às vezes a chave era cheia de ranhura. Então, você não ia conseguir trazer a impressão por causa da ranhura.

Ivan: Entendi.

Dr. Lipinski: Então era bem mais complicado…

Ivan: Você ia ter, provavelmente, fragmentos de impressão digital…

Dr. Lipinski: Mas aí também não teria um microscópio adequado para fazer esse confronto papiloscópico.

Ivan: Tá. Ou seja, ficar lamentando que a chave não foi para o doutor na época também… Naquela época, não teria o que fazer.

Dr. Lipinski: Nós não teríamos… Veja, assim, as superfícies ideais para nós para coletar impressão, naquela época, eram vidro e superfície lisa e polida. Por que lisa e polida? Porque a pessoa pega naquilo, fica muito fácil eu passar o pó, passar a fita adesiva e transportar para o…

Ivan: Grafite? Pó de grafite?

Dr. Lipinski: Não, não. Era um pó especial para a impressão. Agora, numa superfície que é curva, a probabilidade maior era que o durex ou a fita adesiva enrolasse, então eu ia ter dificuldade de retirar ela. E outra coisa, ela ia sair curva. Daí na hora que eu passasse na fita, ela ia abrir…

Ivan: Ela ia estar distorcida.

Dr. Lipinski: Então, ela ia dar uma distorção. É que nem você olhar um espelho de carro hoje, um espelho novo de um carro novo, ele te coloca… Ele amplia o campo de visão porque é um espelho que reduz o tamanho da imagem. Naquela época, era o contrário. Quer dizer, era o que ia acontecer com a impressão naquela época.

Ivan: Tá. A gente não ia conseguir ter um match…

Dr. Lipinski: Veja, eu nunca digo “a gente não ia”. Eu digo “a gente ia tentar”.

Ivan: Ia ser muito difícil.

Dr. Lipinski: É. Ia ter um grau de dificuldade bem maior do que o comum.

De acordo com Ivan, conversar com Lipinski foi uma aula sobre como era a perícia do início da década de 1990, desde os desafios tecnológicos até a falta de estrutura material.

O DIA 11 DE ABRIL

Sobre o dia da descoberta do corpo, 11 de abril de 1992, Lipinski afirmou o seguinte:

Dr. Lipinski: Me parece que era um loteamento que eles estavam fazendo lá na época, mas ainda estavam começando pelas ruas, estava bem na fase inicial. Porque não tinha casas próximas, não tinha nada maior assim, um ponto de referência, né? Tanto que a gente precisou que eles nos levassem até lá.

Ivan: Tá. Então, o senhor está na viatura, chega lá. Imagino que o policial que está te acompanhando fala: “estamos chegando”, e daí vocês…

Dr. Lipinski: Eles encostaram.

Ivan: Encostaram, entraram de carro na picada ou não?

Dr. Lipinski: Não, não. Não dava para entrar de carro.

Ivan: Então parou na rua…

Dr. Lipinski: Nós descemos e fomos a pé.

Ivan: Você estava do lado do passageiro?

Dr. Lipinski: Passageiro, isso.

Ivan: Na frente. Desce do carro e só segue reto, então? Você não dá a volta no carro?

Dr. Lipinski: Praticamente… Não… Não… Eu saí direto…

Ivan: Sai direto e vai… Ou seja, vocês estão na Avenida das Araucárias, é do lado direito…

Dr. Lipinski: Isso.

Ivan: Tá certo. Entrou lá. Daí agora eu quero que você tente narrar para a gente o que você viu, como foi o caminho, a primeira coisa que você já começou a notar, todas as suas impressões. O que você está vendo?

Dr. Lipinski: Veja… A primeira coisa que me chamou a atenção foi tentar evitar que mais gente viesse atrás. Porque a imprensa estava toda lá esperando. Não que você não quer… Você está impedindo o trabalho deles, em absoluto… Mas ali naquele momento era muito importante determinar se mais gente tinha passado ali. Porque, como era mato, é importante você saber se aquilo ali era um local de passagem, se era um local pouco utilizado, poucas pessoas… Agora, se entrasse todo mundo, ia pisotear tudo, qualquer evidência que eventualmente a gente pudesse encontrar ia se perder no local. Então, eu me lembro que eu ainda pedi para o pessoal ficar… Eu me lembro que veio o rapaz de uma emissora, não me lembro qual, atrás ainda, e foi me filmando até a hora que eu entrei no mato. Em seguida, ali já tinha um policial militar, um pouquinho mais adiante já tinha outro, e daí nós já estávamos ali no corpo.

Ivan: Você olha o corpo… Descreve para mim o que você viu… Primeira vez, bateu o olho…

Dr. Lipinski: Me chamou a atenção até porque, veja, ao longo do meu trabalho, eu tive a oportunidade de atender alguns casos que envolviam criança. Quando é com adulto, não choca tanto a gente como quando é com criança. No que eu olhei, me deu assim… Gelou… Eu digo: “meu Deus do céu, quem é capaz de uma brutalidade dessas com uma criança?”. O primeiro pensamento. Porque, vamos supor, a pessoa matou? Matou. Mas matou, cortou, retirou, arrancou as mãos, os pés, isso e aquilo. Quer dizer, todas as possíveis formas de identificação. Havia uma preocupação muito grande do autor ou dos autores de que não fosse possível a identificação daquela criança. Essa foi a primeira coisa que a gente observou no local.

Ivan: Passou pela cabeça isso.

Dr. Lipinski: Sim, sim.

Ivan: Assim, o corpo está desfigurado, está sem as mãos. Não estão querendo que identifique.

Dr. Lipinski: Exatamente.

Essa é uma hipótese que sempre circulou em torno do caso Evandro, especialmente no início: o assassino teria feito todas aquelas mutilações com o intuito de impedir o reconhecimento.

Essa suspeita voltará a ser discutida em outro episódio, mas Ivan já adianta que ela não faz muito sentido. Primeiro porque, se a pessoa quisesse se desfazer de um corpo em Guaratuba para nunca mais ser encontrado, teriam lugares melhores – o próprio mar, por exemplo, ou algum rio.

Segundo, aquele matagal não era muito longe da casa de Evandro. E ele estava com a bermuda que utilizava no dia do desaparecimento, assim como também havia a chave perto do corpo. Ou seja, tudo leva a crer que essas mutilações foram feitas com outro propósito.

Dr. Lipinski: Aí você dá uma olhada geral. Olho para ali… Opa, já tem uma calça. Mas o teu foco principal é primeiro fotografar o corpo. Então eu…

Ivan: Tinha gente em volta?

Dr. Lipinski: Tinha. Tinha o… Daí os dois policiais militares estavam ali, tinha mais um fotógrafo da prefeitura… Acho que devia ter umas quatro, cinco pessoas.

Ivan: O doutor lembra o nome desse fotógrafo?

Dr. Lipinski: Não lembro. Não lembro. E acredito que em torno de umas cinco pessoas, não mais que isso. Naquele momento. Antes disso, na rua lá quando a gente entrou, que eu desci da viatura, tinha bastante gente. Então, eu não sei se essas pessoas também não estiveram lá porque a vegetação ao redor do corpo estava bem pisada ali, uns trechos. Então, aí…

Ivan: Muita gente deve ter andado…

Dr. Lipinski: Muita gente, com certeza. Porque alguém achou, fala para mais alguém, daqui a pouco o cara já avisa, daqui a pouco já vem todo mundo. É impressionante, sabe? Tem gente que sai e pega a família inteira para ir ver corpo. Eu digo: “poxa, coisa meio macabra”. Mas tudo bem…

Ivan: Mas quando o doutor chegou lá… Salvo engano, o teu laudo diz que é lá por uma hora da tarde…

Dr. Lipinski: É, foi…

Lembrando: o corpo foi encontrado de manhã. Ou seja, à uma hora da tarde, muita gente já devia ter circulado por ali.

Ivan: Tinha gente perto do corpo naquele momento? Ou já tinham feito um círculo de isolamento, alguma coisa assim?

Dr. Lipinski: Não. Eles tinham colocado uma fita. Mas, assim, ela impedia o pessoal da rua. Mas no trajeto ainda tinha algumas pessoas. Então, eles estavam contendo lá atrás. Nesse deslocamento ainda… Ali não tinha como… É muito difícil porque, quando você chega, já está vislumbrando a cena do crime, você já está começando a focar no que precisa fazer. Então, essas coisas, não é que elas são secundárias, mas é uma coisa que depois, assim, ao longo do tempo, a gente vê… Deveria ter fotografado aquelas pessoas. Porque é uma coisa assim que… Provavelmente o autor estava ali. O cara quer ver aquilo ali. Teve o sadismo naquilo… A pessoa tenta fazer, faz, executa um crime com todos aqueles requintes de crueldade, não é uma coisa normal. Então, provavelmente, o cara vai ver o resumo da obra dele.

Ivan: Então o senhor estava aqui com o corpo. As pessoas estavam aqui na rua?

Dr. Lipinski: É. Nessa picada, né?

Ivan: Nessa picada. Ou seja, aqui a 35 metros, né?

Dr. Lipinski: Mais ou menos.

Ivan: Tá. Então elas estavam aqui com uma faixa, e no caminho você já via mais pessoas também…

Dr. Lipinski: Isso.

Ivan: Mas tinha uma faixa aqui isolando. Quantas pessoas o doutor chuta que devia ter aqui assim? Só para a gente ter uma noção…

Dr. Lipinski: Você sabe que nessa hora, quando você está no mato, não dá para você ficar olhando muito para cima. A minha preocupação maior ali era com cobra, então você tem que olhar onde pisa. Eu estava mais preocupado com isso do que… Eu lembro, assim, que eu fui passando por algumas pessoas, mas eu não cheguei a olhar no rosto nem nada, porque eu estava de tênis. Eu digo… Eu não estava preparado para aquele atendimento, assim, com roupa adequada. Quando você sabe que vai atender num local desse, você bota uma bota e tal, já se protege. Agora, eu estava com uma camisa, uma calça jeans e tênis. Então a minha preocupação maior… Digo: “pô, venho aqui e ainda levo uma picada de cobra”. Não dá para cuidar muito disso…

Ivan: Mas, assim, para a gente ter uma noção, estava lotada de gente?

Dr. Lipinski: Não, não, não. Lotada não. Tinham pessoas… Mas, assim, eu não tenho como precisar… Talvez, no máximo, umas 10 pessoas…

Ivan: No máximo, umas 10… Tá. Curiosos passando, polícia?

Dr. Lipinski: Ah, sim. Curiosos, na parte onde estava abrindo rua, lá tinha bastante.

Ivan: Aqui?

Dr. Lipinski: Isso. Não, não… Aqui é a picada…

Ivan: Aqui?

Dr. Lipinski: Isso, aí.

Ivan: Aqui tinha muito curioso.

No desenho do mapa, ele apontou a Rua das Palmeiras.

Ivan: Daí o pessoal olhava aqui o mato… Tinha uma faixa impedindo o pessoal?

Dr. Lipinski: Sim, a faixa estava ali.

Ivan: Estava aqui, então?

Dr. Lipinski: Exatamente.

Ivan: Não estava aqui?

Dr. Lipinski: Não. Isso.

Ivan: Estava aqui. Tá. Então, na entrada da picada. Daí aqui tinha umas 10 pessoas, vamos dizer assim? Com policiais e outras…

Dr. Lipinski: Isso, isso, isso.

Ivan: Tá. E aqui muito curioso.

Dr. Lipinski: Aí bastante curioso.

Ivan: O carro tinha dificuldade para estacionar, inclusive? Teve que ir afastando o pessoal ou não?

Dr. Lipinski: Não. Porque, quando nós chegamos, o pessoal estava mais para cá. Nós paramos o carro mais ou menos aqui assim. E daí as pessoas começaram a se aproximar. Eu já avisei o policial: “ó, não deixa ninguém entrar. Quem entrou não sai, e quem não entrou também não vai entrar”. Porque, nessa hora, se eu encontrasse alguma coisa lá que eu achasse importante, eu ia precisar falar com todos eles. Então, por isso, você já está lá dentro… Cara, agora você vai ter que esperar aqui…

Ivan: E aqui… O doutor acredita que o assassino ou assassinos poderiam estar aqui nessa…

Dr. Lipinski: Poderia estar junto com toda aquela multidão de pessoas, né?

Ivan: Dezenas? Centenas de pessoas?

Dr. Lipinski: Olha, eu vou dizer, assim, mais de 50 pessoas.

Ivan: Mais de 50 pessoas. Tá. Ok. Daqui do corpo, qual é mais ou menos a área de busca que vocês fizeram?

Dr. Lipinski: A gente pegou do rio para cá mais ou menos aí em torno de uns 50, 60 metros, que a gente foi fazendo ao redor…

Ivan: Até aqui? Ao redor do corpo?

Dr. Lipinski: Isso.

Ivan: Tá. Então, pega o corpo, raio de 50 metros mais ou menos…

Dr. Lipinski: Isso. Em todas as direções.

Ivan: Todas as direções. Inclusive passando por outra picada aqui em cima?

Dr. Lipinski: É… Mas você veja…

Ivan: Porque é tudo mato.

Dr. Lipinski: É tudo mato. Não tem como você ver confrontação, que não tinha nada de divisória… Agora, é uma coisa estranha porque, quando você está fazendo uma progressão no mato, você olha ali… “Ó, tem uma coisa ali”. No mato, você olha, é tudo igual. Então, você vai tentando ver se tem um galho quebrado, se alguém passou por ali. O nosso objetivo era entender se a pessoa entrou e saiu pelo mesmo lugar, ou ela entrou por um lugar e saiu por outro. Porque, nesse deslocamento, o que pode acontecer? Você pode enroscar uma roupa, rasgar uma roupa. Você encontra um fragmento de uma camisa. Aí você vai lá… “Quem é o suspeito? Ah, é o fulano”. Você vai lá, faz uma busca e encontra lá o fragmento daquela roupa. Não quer dizer que ele seja o autor…

Ivan: Mas que ele esteve lá.

Dr. Lipinski: Mas que ele esteve lá, e vai ter que explicar o que ele estava fazendo lá. Agora, e se essa roupa… Vamos supor que ele carregou esse corpo e ficou com aderência de sangue na roupa. Então, às vezes você vai buscar uma informação e consegue outra. Então, assim, naquele primeiro momento eu imaginei isso. Porque impressão digital não ia encontrar. O que eu poderia encontrar ali que me auxiliasse? Praticamente nada, porque o normal seria uma passagem… A única coisa seria alguma coisa que a pessoa tenha perdido ao longo dessa passagem.

AS LESÕES

Ivan: Então, qual foi o seu procedimento para registrar o estado do local do corpo?

Dr. Lipinski: É o método descritivo que a gente utiliza. É o princípio “visum et repertum”, eu repito aquilo que eu vejo. Então, o que eu observei? Eu observei o corpo de uma criança, em torno de um metro, mais ou menos, deitada em decúbito dorsal, e fui fazendo as minhas anotações.

Ivan: Decúbito dorsal para leigo é…

Dr. Lipinski: De costas.

Ivan: De costas. Ele estava deitado de costas, então?

Dr. Lipinski: Isso.

Ivan: Porque as fotos que a gente vê, parece que ele está de barriga para cima.

Dr. Lipinski: Ah, não… É… Então, deitado de costas.

Ivan: Ah, de costas, deitado de costas.

Dr. Lipinski: Isso, de barriga para cima.

Ivan: De barriga para cima. Aham, certo.

Dr. Lipinski: E o posicionamento de braço… Mas é uma coisa, assim, que fica te puxando… Porra, cara, mas não tem mão? Cadê a mão? Sabe? Você fica assim pensando: meu Deus, quem vai fazer isso com uma criança? Por que vai fazer isso com uma criança? Qual o motivo? Então, você começa… A hora que a tua cabeça começa a formular milhares de hipóteses… Por que isso? Por que aquilo? Por que isso? Meu Deus, pô, como é que pode isso? Como é que pode aquilo? Então, aí você baixa um pouco a adrenalina… Porque é uma coisa que a princípio choca qualquer um que visse aquilo, aquela cena. Aí devagarinho você vai vendo e tal… Nós fomos posicionando… Até você me perguntou com relação à costela. Ela parece que não tem do lado direito, mas ela tem.

As costelas de Evandro estavam serradas, e esse é um detalhe importante para se ter em mente. As costelas do lado esquerdo faziam uma espécie de V – nas mais altas, seguiam uma linha de corte, e de repente subiam, como se alguém tivesse cortado ou serrado em dois ângulos diferentes. Ou seja, a pessoa começou de um lado, foi até um ponto, e trocou de posição para cortar os ossos restantes.

Só que, pelo ângulo da foto, não é possível ver se as costelas do lado direito também estavam cortadas. O doutor Lipinski explicou que elas estavam sim serradas, mas não tinham aquele declive que existia do lado esquerdo. Elas estavam cortadas de forma mais reta.

Dr. Lipinski: Então, eu fiquei numa posição para pegar aquela costela do lado esquerdo, que eu teria condição também de observar a do lado direito. Mas como você vai olhar ela mais ou menos nessa posição aqui assim, de frente, ela dá a impressão que é pequena. Não, ela até… Voltando à posição, depois ela… Numa outra posição, que daí ele já estava mais ou menos um pouquinho de lado. Mas eu precisava aqui… Aquela foto das costelas do lado esquerdo foi muito importante porque ela consegue, assim, me dar uma série de informações. Primeiro, qual foi o instrumento utilizado para cortar? Foi uma serra pequena. Pode ser uma serrinha de pão, alguma coisa assim. Foi cortado num golpe só? Não, vários. Não, ela foi serrada. Parou…

Ivan: Você conseguia ver a ranhura?

Dr. Lipinski: Eu conseguia ver as ranhuras e tal. A mesma coisa a gente observa naquelas cartilagens que tem no pulso do menino. Ali já foi cortado com uma faca. Você vê o gume entalhado na cartilagem. Então, a mesma coisa, ampliando aquela foto, você consegue observar tudo aquilo.

Ivan: Então ali foi facão, por exemplo?

Dr. Lipinski: Eu não diria facão, uma faca… Uma faca bem afiada.

Ivan: Foi num golpe só ou foi cortando?

Dr. Lipinski: Num golpe só, ela ia fazer uma incisão profunda e ia repartir a cartilagem. Ali não, foi um corte. Então, foi uma passada, uma deslizada do gume sobre a cartilagem.

Ivan: Então, uma faca bem afiada…

Dr. Lipinski: Exatamente.

Ivan: Sendo passada…

Dr. Lipinski: É, veja… Normalmente, a pessoa que tem um pouco mais de destreza para fazer isso, ela consegue enfiar a ponta da faca e ir cortando entre os ossos. Ela corta o tecido, afasta e depois puxa. Então, você…

Ivan: Mas daí teria sinal de arrancamento, né?

Dr. Lipinski: É. Mas se observar bem na borda ali de onde seria o pulso, você percebe que tem um pedaço do tecido. Mesmo ele sendo cortado, alguma coisa ficou, e daí teve um puxão.

Ivan: Mas esse puxão não pode ser dos saca-bocados, dos animais que comem e puxam a pele?

Dr. Lipinski: Pode. Pode. Exatamente, pode também. Isso não… Só que, veja, à medida que ele puxar, ele vai arrastar o corpo…

Ivan: Aham… Não, mas por um rato, por exemplo…

Dr. Lipinski: Ah, o rato não vai conseguir puxar. Teria que ser um animal maior.

Ivan: Não, mas ele puxa um pouco da pele, daí faz essas…

Dr. Lipinski: Não, o rato vai roendo… Teria que ser um [animal] maior mesmo, um cachorro, alguma coisa assim, um animal maior que tivesse essa força para conseguir puxar. Vamos supor, ele morde a mão e arranca. Então, ele vai puxar…

Ivan: Eu não estou falando de arrancar a mão. Eu estou falando de… O assassino cortou a mão, deixou ali, daí você tem aqui o pulso aberto. Chega um rato e começa a morder as bordas, e daí…

Dr. Lipinski: Mas daí teria micro… Aquelas marcas assim como se fossem uns arredondadinhos das mordidas. Seria diferente.

Ivan: Tinha cheiro?

Dr. Lipinski: Não. Não, porque ele não tinha… O cheiro é produzido pelo conteúdo da cavidade abdominal: intestino, estômago, fígado. Como ele não tinha, aquilo foi removido, foi arrancado… Por isso que dificultou você valorar quanto tempo da morte. Porque os fenômenos transformativos começam a acontecer pelo abdômen. Então você vai lá… Um dia, dois dias, acontece isso, tantos dias acontece aquilo, e assim vai. Quando você tem um trauma, a gente tem uma coisa chamada espectro equimótico, ele vai mudando de cor. Ele vai chegar num ponto que aqui… Ele fica amarelo e daí desaparece. Isso aqui é mais ou menos próximo do 14º dia. Você tem uma pancada maior assim, um extravasamento, isso aqui estaria entre o segundo… Até o terceiro dia. Depois, ele fica preto, daí vai esverdeando, amarelando, e desaparece. Então, esse tipo de lesão a gente não pôde observar. É uma coisa assim que… É por isso que eu falei, precisaria ter lavado o corpo para você determinar qualquer coisa assim em relação ao tempo exato. Porque, vamos supor, tem folha que quando fica no molhado, descolore. E, por um processo de transposição, ela passa lá aquele… Vamos supor, aquele verde para alguma coisa… Então, poderia uma mancha na pele levar à reflexão equivocada de, no caso, ser uma lesão, quando na verdade poderia ser aquilo ali, a fixação daquela pigmentação da própria folha.

Ivan: Sim, sim. Tem aqui também uma parte do… Ele está com essa bermuda.

Dr. Lipinski: Isso.

Ivan: A bermuda estava seca? O senhor lembra se estava dura assim? Porque é sangue isso aqui, né?

Dr. Lipinski: É, sim, sim.

Ivan: Isso aqui é de sangue… Lembra se…

Dr. Lipinski: Não, não estava dura não.

Ivan: Não estava dura.

Dr. Lipinski: Não. Não, porque ele vira ela e assim… Tem uma foto que a gente fez em que ele está de costas, que eu estou tentando indicar uma lesão que ele tem nas costas.

Ivan: Aham. Acho que não é aqui, mas eu posso mostrar…

Dr. Lipinski: Essa aqui…

Ivan: Essa aqui?

Dr. Lipinski: Isso, ó lá…

Essa lesão nas costas parece uma boca semiaberta, com os dois cantos mais finos.

Ivan: Inclusive aqui nas costas a gente consegue ver vários tons de pele, né?

Dr. Lipinski: É, mas aí que está, isso daí é ocasionado… Você veja que tem bastante folha que aderiu na coisa… Ele ficou… O que acontece? O terreno não é plano. Então, à medida que ele vai marcando algumas coisas… Vamos supor que o corpo ficou em cima de uma pedra em algum lugar, uma folha no outro… Aí você olha aqui… Por que aqui está limpo e ali não está? Ali está sujo… Ou por que ele está com uma coloração diferente? Isso tudo por conta do quê? Do tempo que ele está ali. Agora, ele ficar em cima das folhas aí um, dois dias, já vai fazer isso. Então, a gente… Eu sempre fiz isso, até o último local que eu atendi… Esse tipo de pigmentação, essas coisas, eu deixava sempre para ver no IML, depois do corpo lavado, porque daí você pode afirmar. Até então, é uma expectativa. Por isso que eu digo, eu era contra a gente se pronunciar antes de ter uma coisa assim mais consistente. Porque, você imagine, eu saio dali e converso lá com todos os veículos de imprensa, e falo alguma coisa. Aí chega lá no IML, eles lavam o corpo… Aí o que vai acontecer? Claro que você tem um paradigma. O perito falou uma coisa, o legista disse outra. E você acaba perdendo a objetividade da tua investigação porque já cria uma desconfiança. Quem está certo e quem está errado? Quando, na verdade, você se manifestar… A diferença é que o legista está vendo o corpo lá na bancada limpinho, lavado, aquela coisa toda. Eu estou vendo ele ali sujo, às vezes com formiga, com coisa… Quer dizer, então, não posso, assim, ser prematuro num comentário e depois criar toda uma celeuma por conta de uma coisa equivocada. Quer dizer, então, a gente… Eu, pelo menos, evitava de me manifestar por causa disso.

Ivan: Essa presença de larvas aqui nos diz alguma coisa sobre o tempo de decomposição ou sobre quanto tempo ele está nesse local?

Dr. Lipinski: Veja, isso daí vai acontecendo a partir de 24 horas…

Ivan: A partir de 24 horas já começa a ter larva…

Dr. Lipinski: É, mas a gente perdeu a referência porque ele começa pelo trato intestinal. Então, não tinha como você valorar a coisa. E veja outra situação… Como o abdômen dessa criança estava aberto, o lugar onde mais deveria ter larvas era ali. E ali não tinha. Então, são coisas assim que… Veja, estudos entomológicos aqui no Brasil começaram ali mais ou menos em torno de 2000, 2005, a partir dali começaram. Porque o Brasil é muito grande, tem uma fauna muito grande. Então, vamos supor, larvas que eu tenho aqui no Sul, eu não tenho lá no Norte. Então, são coisas assim… Classificar isso, a idade daquela larva, quem pôs aquela larva…

Ivan: Aham, sim. Eu tenho um amigo perito que fala bem assim: “poxa, se a gente tivesse a análise da larva, a gente saberia dizer quanto tempo que ela estava…”.

Dr. Lipinski: É, eu sei. Mas isso…

Ivan: Só que nessa… Só que eu pensei: em 1992?

Dr. Lipinski: Não existia isso. Não existia assim… Deixa eu corrigir… Não é que não existia. Essa informação não estava tão acessível para nós. Dizer que não existia, não. Ela existia. Mas aqui no Brasil, a gente… Eu imagino assim, nós estamos com um delay de 30 anos em relação aos Estados Unidos. Os estudos que eles têm lá e coisa, eles são bem mais avançados. Outra coisa… Os estudos são feitos nas universidades, eles não são repassados. Veja, e aí é um grande equívoco… Porque a perícia tem que estar trabalhando aliada com instituições de ensino. Você está tendo uma pesquisa lá… Então, tem alguém lá do curso de botânica pesquisando e classificando essas larvas, isso aí tem um estudo… O cara bate o olho ali: “não, isso aí dura e tal… O casulo e tal, não sei o quê…”. Assim, naquela época… Veja que a gente começou a ver, assim, estudos embrionários, de pesquisa, mais recente. 

Ivan: Então, tá. Realmente aqui dentro da cavidade não tem…

Dr. Lipinski: Não tem larva. Exato.

Ivan: Mas já aqui, ao redor, a gente vê algumas, né?

Dr. Lipinski: É, muito pouquinho…

Ivan: Mas muito pouquinho…

Dr. Lipinski: E você veja que aqui, ó… Você pode ver que foi feito um corte quase linear. Dá a impressão que utilizaram uma faca muito afiada ou um bisturi, alguma coisa. E o corte não é daqui, ele estava mais para cá. Como esse corpo ficou ao ar livre, e lá durante o dia era quente, ele desidrata e a pele encolhe…

Ivan: Então a pele provavelmente estava aqui assim…

Dr. Lipinski: É mais ou menos isso.

Esse corte em questão é o que abriu o peito e a barriga de Evandro. É como se fosse um corte único, contínuo, que pode ter começado da base do pescoço e circulado por todo o peito e barriga, como se tirasse uma tampa. Com o tempo da putrefação, a pele vai ressecando, e deixa uma diferença de comprimento entre as camadas mais internas para as mais externas.

Ivan: Aham, tá. Então isso aqui que a gente… Já é a pele ressecada?

Dr. Lipinski: Já é a pele ressecada, exatamente.

Mas quanto tempo o corpo de Evandro ficou no matagal? Ele sumiu em uma segunda-feira. O corpo foi encontrado no sábado.

É consenso que ele não foi morto naquela área, pois ela não condizia com um local de morte. Ao mesmo tempo, é difícil estipular o dia exato em que o menino foi assassinado, pois o corpo estava em avançado estado de putrefação. Na época do caso, havia discussões de que o cadáver estaria lá há dias, enquanto outras pessoas diziam que estaria lá por horas.

Ivan: Qual a sua opinião… Na sua opinião, há quanto tempo o corpo estava naquele local?

Dr. Lipinski: Naquele local, como eu te falei, em torno de uns três dias, mais ou menos.

Ivan: Então ele pode estar lá há três dias.

Dr. Lipinski: Isso.

Ivan: Na sua opinião, assim que ele foi morto, ele foi guardado em algum lugar ou não? Foi morto e já foi jogado lá?

Dr. Lipinski: Olha, eu vou falar uma coisa que eu nunca falei para ninguém. Aquilo ali, para mim, foi assim… Alguém pensou assim: “putz, fizemos, e agora? Ah, eu não vou mexer com isso. Agora você que se vire com isso”. E deve ter começado um jogo de empurra… Para daí acontecer… Alguém chegar… “Não, deixa que eu levo”, e levou. É a minha opinião. Porque, veja só, aquela pessoa que tem a frieza de fazer a coisa, para ela… Ela só não vai fazer completo se ela não tiver os meios. Agora, se ele não foi ali… Eu tenho que partir da premissa que pode ter acontecido em qualquer lugar do mundo, e foi levado para lá. Em qualquer lugar do mundo, eu vou precisar de um meio de transporte porque eu não posso sair na rua carregando um corpo. Então, ele provavelmente pôs isso num carro ou numa carroça… Naquela época tinha carroça lá em Guaratuba.

Ivan: Muito… Ainda mais que é uma região de mateiro, de pessoal que tira lenha…

Dr. Lipinski: Lenha… Exatamente.

Ivan: Então, o pessoal vai com carroça direto para lá.

Dr. Lipinski: Então… Coloca uma lona em cima… Veja bem… Para, desce, joga o corpo, volta… “Não tenho nada a ver com isso”, e vai embora. Para mim, foi isso que aconteceu.

Ivan: O doutor tem uma ideia de como foi a ordem do que foi feito? Desde que pegou o menino… A partir dali, fez o quê?

Dr. Lipinski: Eu acho que a pessoa que fez o corte era destro.

Ivan: Era destro.

Dr. Lipinski: Destro, pela posição do serrilhamento nas costelas. Ele vai, vai, vai…

Ivan: Não, mas desde o início. Como é que ele mata o menino primeiro?

Dr. Lipinski: Naquela foto… Veja… Aquela que ele está… Que você me mostrou o shorts por trás…

Ivan: Aqui.

Ele está falando da perfuração em formato de boca citada anteriormente. Ela está bem nas costas de Evandro, do lado esquerdo da costela.

Dr. Lipinski: Veja que aqui, ó, tem um corte, uma perfuração aqui, ó… Ela é perfurocortante…

Ivan: Não pode ter sido animal isso aqui?

Dr. Lipinski: Não. Veja que ela tem o bordo bem característico de faca.

Ivan: Aham. Isso aqui foi… A gente consegue dizer que foi feito em vida?

Dr. Lipinski: Foi. Porque, olha aqui, a partir do momento que ele começou a repuxar, ele vai abrindo, ó. Ele repuxa e a ferida começa a abrir. Só que, como foi cortado, veja que aqui ele tracionou o tecido, mas parou aqui.

Ivan: Aham. Então, ele enfia a faca…

Dr. Lipinski: Veja que é de baixo para cima, e pega… E é lado esquerdo, ele pega no coração.

Ivan: Então ele mata pelo coração?

Dr. Lipinski: Isso.

Ivan: Então, não… Ele não esgana?

Dr. Lipinski: Veja, eu tenho uma coisa bem característica. Se você voltar a foto ali, vamos colocar ele de frente… Veja que no pescoço não tem a mesma coisa.

Ivan: Não, o que tem que sempre falaram é: que ele tinha uma área de putrefação maior em torno do pescoço, que dava… Que são sinais que você veria numa…

Dr. Lipinski: Olha, eu pensei muito nisso. Mas, veja só, da mesma maneira que a pele teve esse repuxamento, ela encostou e preservou uma parte. Então, é a mesma coisa que… Quando você toma sol, vamos supor, eu flexiono o braço e tomo sol assim. Ele queima tudo, e a hora que eu abro o braço, essa parte ficou branca. E é o que aconteceu ali. Acredito eu, né?

Ivan: Sim, claro, claro. Porque aqui… O que me dá a certeza de que isso aqui foi feito com ele em vida?

Dr. Lipinski: Porque o tecido… Veja só, essa parte aqui estaria mais ou menos correspondente na horizontal com o rim. Se fosse na perpendicular, uma perfuração em um dos rins, ela poderia lesionar o rim, perfurar… Mas com um rim, a pessoa viveria. Eu não teria a morte imediata. Agora, se eu, digamos assim, alterar a inclinação da faca, do punhal, alguma coisa, e subir, eu posso pegar o coração.

Ivan: Tá. Mas o que me… A minha dúvida é mais assim: e se eu primeiro esganei o menino, mato e daí enfio a faca? Ele está morto já, e daí eu faço essa lesão.

Dr. Lipinski: Ah, mas a lesão em morte não ia acontecer… Acredito que não ia acontecer isso.

Ivan: Não ia acontecer assim?

Dr. Lipinski: Não. Outra coisa…

Ivan: Como seria… Como ela deveria ser se fosse feita em morte?

Dr. Lipinski: Ela não ia repuxar. Quer dizer, ela iria repuxar pela desidratação, mas não ia ter alteração. Porque veja que ela tem inclusive alteração da coloração.

Nesse momento, o doutor Lipinski mostrou uma foto com a parte interna do corpo de Evandro, no local onde deveria ficar o coração que havia sido retirado. 

Dr. Lipinski: Essa alteração da coloração se deu por deposição de sangue. Então, foi uma batida… Alguém pegou e BUM… Para dar uma facada e penetrar com força.

Ivan: Certo. Então, assim… Vamos imaginar… A pessoa… Vamos olhar aqui de novo as lesões principais. Ah, eu queria perguntar sobre o cheiro antes, de novo. Quando vocês viraram o corpo, não saiu cheiro?

Dr. Lipinski: Não, não saiu cheiro. Não, porque, veja…

Ivan: Não tinha cheiro nenhum?

Dr. Lipinski: A gente estava em ambiente aberto. Quando ele está confinado, ele fica muito intenso. Nesse caso, como não havia intestino, não havia nada, não tinha o que cheirar. Assim, pelo menos eu não senti. Talvez alguém possa ter sentido. Mas eu já vivo com o nariz trancado, então, normalmente…

Ivan: Então, eu… Então, tá… Porque sempre tem essa discussão sobre cheiro, tudo. Vamos imaginar que ele foi morto no mesmo dia, numa segunda-feira, e retiraram os órgãos dele. No dia seguinte teria cheiro, depois que tira os órgãos?

Dr. Lipinski: Não…

Ivan: Mas, assim, o que eu… Essa é a minha dificuldade de entender, tipo, a pele não cheira? O rosto não cheira?

Dr. Lipinski: Pois é, mas a pele não estava em putrefação. O que faz criar esse cheiro é a putrefação do conteúdo gastrointestinal. A partir do momento que… Ele vai inchando que nem uma bexiga. Aí chega uma hora que ele estoura. Tanto que quando a gente vai em encontro de cadáver, a gente toma até certos cuidados. Porque às vezes você está atendendo e de repente… BUM… É como se fosse o estouro de uma bexiga, uma coisa assim mais… Ele chega a abrir. Porque a pele vai tentando… Resistindo, resistindo… Os gases vão trabalhando e aumentando. Vão aumentando, vão aumentando, e chega uma hora que…

Ivan: Incha, né?

Dr. Lipinski: Incha. Exatamente. Agora, isso não aconteceu aqui porque a gente vê o corte linear em volta, aqui no peito e tal… Num caso desses, quando rompe o abdômen, a pele… É como se ela tivesse sido arrebentada. Ela fica esgarçada, os pedaços são completamente irregulares.

Ivan: Aham. Porque eu fico vendo, por exemplo, esses buracos aqui na pele…

O corpo de Evandro tinha várias perfurações, especialmente nas pernas. Essas, diferentes da lesão nas costas, foram provavelmente causadas por animais, como urubus.

Ivan: O próprio rosto… Eu fico imaginando… Não poderia estar cheirando isso aqui?

Dr. Lipinski: Não, porque o olho… O humor aquoso é como se fosse uma gelatina. Isso dissolve rapidamente.

Ivan: Não, mas eu digo, bochecha…

O rosto de Evandro tinha uma coloração avermelhada, indicando que a primeira camada de pele já não estava mais lá. Poderia ter sido arrancada ou saído pelo processo de decomposição natural.

A única diferença era bem na cabeça, no crânio, onde era possível ver uma camada de pele mais profunda, ou até mesmo o próprio osso. Era o escalpo, uma lesão sempre citada no caso Evandro.

Dr. Lipinski: Aí que está o detalhe. Ele não estava direto no osso. Foi retirada uma camada, a camada superficial. É a questão lá do escalpo. Ele foi retirado ou ele foi arrancado? Veja, é uma coisa que a gente não tem como precisar, porque eu não tenho pele aqui que demonstre que ele está arrancado. Digamos assim, foi removido, né? Saiu uma camada. Pode ter sido, digamos… Um animal puxou… Como ele estava… As camadas vão se soltando à medida que o corpo vai ficando em contato com o ar… Ele remove uma camada. Pode ter sido um animal que puxou? Pode. Pode ter sido um animal que puxou.

Ivan: É. Porque a pele vai se soltando, né?

Dr. Lipinski: Isso. Mas você veja que aqui…

Ivan: Aqui está muito retinho… Aqui, né?

Nesse momento, eles observam com atenção uma linha que divide a parte de cima da bochecha e onde começa a área na altura da orelha.

Dr. Lipinski: É, exatamente. Parece que ele segue essa linha de corte, parece. Mas, assim, aqui ele tem um pouco de irregular… Mas veja que aqui, ainda, as bochechas não estão expostas. E a gente… Não é que nem a barriga, que a gente tem uma camada adiposa. Não, ali é colágeno, pele e só, não tem assim nada mais de…

Ivan: A boca estava… Parece que está inchada…

Dr. Lipinski: Tá, exato. Os lábios dele… Isso…

Ivan: E os olhos já tinham sido tirados por animais? Ou você viu uma gelatina ali?

Dr. Lipinski: Ali o que você observava é o seguinte… É como se fosse esse conteúdo aqui, ó. Naquela foto que está aqui assim…

Ivan: Aham, que tinha lama…

Dr. Lipinski: É, é. Ele dissolveu…

Ivan: Dissolveu… Tá. Certo. Porque tem essa discussão se foram os animais que arrancaram os olhos… Porque é uma das primeiras partes que os animais arrancam.

Dr. Lipinski: Pode. É bem provável.

Ivan: Tá, sim. Até os próprios urubus acabam arrancando…

Dr. Lipinski: E esses furos, inclusive, podem ser bicada do próprio urubu.

Ivan: Daqui? Da perna?

Dr. Lipinski: No braço também tem ali…

Ivan: No braço também. É, só que aquela das costas, o doutor acredita que não.

Dr. Lipinski: Não, ali não. Aí é facada…

Ivan: Aqui é… Um punhal…

Dr. Lipinski: É. Alguma coisa assim, um instrumento perfurocortante.

Ivan: Tá. Ok. Tem até… “A lesão característica de ferida contusa encontrada na região posterior esquerda do tórax”.

Dr. Lipinski: Então…

Ivan: “[…] putrefação que o corpo apresentava”.

Dr. Lipinski: Ela é contusa, mas internamente ela tem isso aqui…

Neste ponto, o Dr. Lipinski mostrou novamente a parte interna do corpo, onde ficaria o coração. Ali é possível ver uma mancha mais escurecida, como se tivesse sangrado.

Dr. Lipinski: Então, foi… Digamos assim, na hora que ele levou o golpe, foi com bastante força. Alguém chegou e entrou com vontade ali, que era para fazer com que… Vamos supor… Eu não me recordo da estatura dele…

Ivan: Um metro e pouquinho…

Dr. Lipinski: Então, uma faca aí de 30 centímetros daria aqui… Aqui, ó, já no coração…

Ivan: Sim.

Dr. Lipinski: A lâmina não precisa ser muito grande.

O LAUDO

O nome do laudo que o doutor Lipinski produziu é bem extenso: “Laudo de Exame e Levantamento de Local de Achado de Cadáver”. Ivan ficou curioso em entender o motivo do nome, e isso já o levou a outras perguntas. 

Dr. Lipinski: Achado de cadáver. Por quê? Porque se eu digo “local de morte”, eu estou dizendo que ele foi morto ali. E essa também foi uma preocupação. A gente não conseguiu encontrar nada que determinasse que o fato aconteceu ali. Então, eu já preciso mudar no título isso. Eu já procurei tomar toda a precaução para amanhã ou depois não… Às vezes você está com muito serviço, está fazendo um laudo e esquece de um detalhe desses. Então, eu procurei… Eu repassei, fiz uma, duas, três, para não deixar que um laudo desse… Porque eu já imaginei… Pela brutalidade do crime, esse caso ia ter bastante repercussão no mundo jurídico. Então, essa repercussão… Amanhã ou depois, poderia ser questionado isso daí. “Não, mas ali foi o local…”. Não, não foi o local de morte. Ali foi o local onde foi encontrado o corpo daquela criança.

Ivan: Sim, sim. Então, tira um monte de foto, o que foi muito bom para a gente poder analisar, na época… Falando até dessa questão da achada, o doutor não acredita que o menino foi morto ali?

Dr. Lipinski: Não. Não tinha elementos para… Veja, se ele tivesse sido morto ali, quando a gente remexeu aquelas folhas, eu ia encontrar sangue ali no chão, e não tinha. Mas sangue em quantidade. Pelo menos um litro, no mínimo. Porque um menino desses aí devia pesar o quê? Uns 40 quilos? A tua volemia é 7%. Seria em torno de 2,8 a 3 litros que seria o que ele ia ter de sangue. E ia extravasar praticamente tudo. Então, não teria como passar em branco uma quantidade de sangue dessas. Ele não ia conseguir se infiltrar no chão. Ele ia ficar em cima das folhas, ia aderir no corpo… Por mais que chovesse e coisa… Não ia ter essa…

Ivan: Então ele foi morto em outro lugar…

Dr. Lipinski: Em outro local e jogado ali.

Ivan: Ele sumiu na segunda-feira e foi encontrado no sábado. Quando que o doutor chuta… Chutaria que ele foi morto?

Dr. Lipinski: Eu acredito que em torno de, no máximo, três dias.

Ivan: Então, ele pode ter ficado em cativeiro segunda, terça, quarta… Quarta foi morto?

Dr. Lipinski: Exatamente.

Ivan: No máximo quarta-feira?

Dr. Lipinski: Isso.

Ivan: Daí ele é morto… O doutor Francisco geralmente falava que ele tinha que ter sido… Que ele estava com um estado de putrefação que é como se ele tivesse sido… Um corpo que, assim, morreu sozinho num apartamento, sabe? E acelerou a putrefação de alguma forma, da pele, que tem áreas avançadas de putrefação…

Dr. Lipinski: Olha… Veja bem, isso pode acontecer? Pode. Mas eu acredito que não nesse caso. Porque você vê o corte linear. Quando você tem um estado adiantado de putrefação e o corpo chega a romper o abdômen… Veja, ele vai romper no meio. Eu teria a pele… Ela vai fazendo isso, isso, isso, isso, isso… PÁ… Ela vai estar ali flácida, totalmente irregular, mas vai estar ali. Ali não tinha pele. E você vê que nessa parte aqui superior do tórax, é linear…

Ivan: Foi cortado.

Dr. Lipinski: Foi cortado.

Ivan: Sim. Não, o que ele diz é assim… O que eu consigo entender, tá? Que o menino foi morto, foi colocado em algum lugar que acelerou a putrefação da pele. Porque ele não conseguia, por exemplo, ver a lesão que tinha no pescoço exatamente. Assim, tinha partes da pele em que estava muito acelerada a putrefação…

Dr. Lipinski: Mas a lesão no pescoço, você pode ver ela externamente. Mas é mais importante ver ela internamente. O legista teria total condição de ver aqui as marcas que iam ficar, porque veja junto comigo aqui… Ele está vivo. Ele é esganado. Eu vou ter… Às vezes a gente dá uma batidinha na pele aqui, alguma coisa, e já fica roxo. Se você vai imprimir uma força bem maior para tentar matar uma pessoa, a força que você vai aplicar ali é muito maior. Você veja, uma coisa de nada aqui já ficou roxo, já fez todo esse espectro equimótico. Você acha que aqui, internamente, não teria a constrição, o rompimento de vaso, tudo isso?

Ivan: Sim. Isso, inclusive… Além do doutor Francisco, reforça a questão do esganamento a doutora Beatriz Sottile França, por conta dos dentes rosados.

Beatriz Sottile França foi a odontolegista que realizou o exame de arcada dentária de Evandro.

Laudo odontológico – caso Evandro (incluso no exame de necropsia)

Ivan: Os vasos romperam, então daí teria uma constrição que rompe os vasos, e daí depois…

Dr. Lipinski: Pode. Como você falou, pode ter sido das duas formas. O cara foi lá, esganou, ficou na dúvida, foi lá e deu uma facada. Talvez ele não tenha morrido na hora. Não chegou a esganar mesmo. O hioide ia ser o suficiente para você determinar isso… Teria condição de você atestar porque na esganadura… Imagine um adulto esganando uma criança. Com certeza ia ter fratura de hioide. Não tem como não acontecer isso. É muita força que foi aplicada ali.

Ivan: Aham. O doutor já viu o vídeo da necropsia?

Dr. Lipinski: Eu vi uns anos atrás. Para falar bem a verdade, acho que faz mais de 20 anos que eu vi esse filme. Foi nos anos 90 isso aí. Foi perto da época do julgamento lá em São José.

Ivan: Sim. O doutor quer dar uma olhada para ver se…

Dr. Lipinski: Não faço muita questão, sinceramente. É engraçado… Caso que envolve criança me marca muito. Eu não… Olha, adulto… Independente se é homem ou mulher… Não cria… Porque, veja, um adulto tem a possibilidade de uma defesa. Pode ser uma mulher, pode ser um homem, não importa, seja lá quem for. A não ser que seja surpreendido, pego… A traição, alguma coisa… Mas a pessoa tem como reagir. Você vê lá, às vezes, a mulher é vítima de um estupro, ela reage, ela agride, ela tem marcas. Você vai lá, vê, examina o corpo, você vai colher tecido embaixo da unha. Quer dizer, você vê que ela morreu lutando. Agora, uma criança… É uma coisa assim, é de uma brutalidade tão grande. Às vezes o cara chega pra uma criança, oferece um doce, na maior inocência a criança vai e ali ela entrou no caminho da morte. Ela não tem… Ela não vê maldade nas coisas.

Ivan: É desigual.

Dr. Lipinski: É desigual. É desproporcional. Então, é uma coisa assim que… Olha… É uma coisa que na minha cabeça… Eu não aceito uma coisa dessas, sabe? Eu acho que ninguém aceita. Mas um adulto ainda… Seja o motivo que for, você ainda pensa assim: “poxa, pôde reagir, pôde tentar se defender”, alguma coisa. […] Agora, a criança não. Primeiro, que ela está ali de mente aberta, ela se entrega, ela vai lá e coisa… E pô, ela vai por causa de um doce, às vezes por causa de uma brincadeira, por causa de uma bola, uma coisa assim tão… Sabe? É uma coisa que não tem como…

Segundo Ivan, a conversa com o doutor Lipinski foi muito esclarecedora para compreender melhor não só as dificuldades técnicas que seu trabalho exigia na época, mas também para entender detalhes do caso que tinham passado batido. Detalhes que são importantes se Ivan quer saber mais sobre o modus operandi do assassino de Evandro, Leandro e possivelmente de Sandra.

O caso Evandro é o que mais possui informações, então é por isso que Ivan achou importante começar por ele. Só que nem sempre as impressões do perito Lipinski eram as mesmas dos médicos legistas. Aliás, nem mesmo entre os peritos eram sempre as mesmas.

O doutor Arthur Conrado Drischel, por exemplo, o perito que assinou o laudo junto com Lipinski, dizia que o corpo de Evandro havia sido colocado naquele matagal poucas horas antes de ser encontrado. Ele acreditava nisso por conta das formas que as folhas estariam. Mas há um problema importante: Drischel não estava no local do crime. Quem estava era o doutor Lipinski. E, por isso, a sua opinião de que o corpo havia sido deixado lá há mais dias torna-se relevante.

Há também a questão da lesão nas costas, que poderia ter sido ocasionada por uma faca ou punhal. Essa lesão sequer consta no laudo de necropsia de Evandro, e a opinião do doutor Francisco, que foi o legista principal, era de que ela teria sido causada por bicada de urubu. Outra diferença substancial é que Lipinski acredita que Evandro teria sido morto justamente por este ferimento das costas – e não por esganadura, como Francisco concluía.

O que Ivan espera é que, ao descobrir mais sobre como Evandro foi morto, possa tentar desvendar o que pode ter acontecido com Leandro, e talvez com Sandra. 

Então, Ivan precisava conferir essas informações com o doutor Francisco, para entender melhor o que o levou àquelas conclusões. E, por sorte, ele ainda está vivo e aceitou conversar.