0 – Extras Episódio 03 [Prelúdio]

Quando os acusados de Guaratuba foram presos em julho de 1992, a suspeita era de que a suposta seita satânica que sacrificava crianças teria ainda mais membros. Muitos habitantes da cidade correram o risco de ser presos. Até hoje, há quem tenha medo de falar sobre o caso. Por pouco, eles também não entraram na mira dos policiais.
Uma das pessoas que apareceram na mídia na época foi uma senhora moradora de Londrina, no norte do Paraná, que estava no litoral a passeio. Seu nome era Valentina de Andrade, e ela se dizia profetisa de uma filosofia espiritual que misturava uma série de elementos de espiritismo e ufologia.
Ela estava em Guaratuba em fevereiro e abril de 1992, na época dos casos Leandro Bossi e Evandro Ramos Caetano. Quem a acompanhava era o então marido, o argentino José Alfredo Teruggi, e o filho adolescente, Roberto Alexandre Andrade Olivera; além de 30 a 50 seguidores, a maioria argentinos, que faziam parte do grupo Lineamento Universal Superior (LUS). O LUS foi formado na década de 1980 na Argentina a partir das filosofias de Valentina.
SUSPEITAS SOBRE VALENTINA
Após as prisões de julho de 1992, na busca por mais membros da tal “seita satânica”, as autoridades descobriram que, na época dos desaparecimentos das crianças, estava em Guaratuba uma mulher misteriosa, reverenciada por argentinos “esquisitos”. Eles a chamavam de “Mama” e passavam o dia na praia jogando vôlei e confraternizando.
As investigações levaram a polícia a realizar uma busca e apreensão na casa de Valentina, localizada em Londrina. Lá, os policiais encontraram um vídeo em que o marido dela, Teruggi, incorporado, teria dito coisas estranhas. Esse material foi enviado para Guaratuba e Curitiba, e correu pela imprensa de todo o Brasil. De acordo com a Polícia Civil na época, a frase do argentino na gravação seria a seguinte: “matem as criancinhas que te pedi”.
Quando essa fita foi descoberta, os acusados do caso Evandro já negavam os crimes e denunciavam as torturas. Do outro lado, o Ministério Público do Paraná não acreditava em nada nisso e desconfiava que os sete teriam mais comparsas.
É nesse contexto que Valentina entra na história como mais uma suspeita, especialmente no caso Leandro Bossi, menino que desapareceu dois meses antes de Evandro. Muitos achavam que ela era, inclusive, a líder da tal “seita satânica”.
Eventualmente, a perícia realizada no vídeo mostraria que Teruggi não estava falando em matar crianças. A frase verdadeira, em um portunhol meio enrolado, era: “mas tem criancinhas que são experientes”.
Mas, a essa altura, o estrago já estava feito. Revistas, jornais e matérias de TV noticiavam que uma estranha seita do Paraná e da Argentina poderia estar envolvida nos casos de Guaratuba. Afinal, o pai de santo Osvaldo Marcineiro havia dito em certa ocasião que teria sequestrado Leandro e o entregado para uma “loira, gringa e gorda” no aeroporto da cidade. Para as autoridades, essa mulher seria Valentina de Andrade.
Matéria da revista Veja sobre Valentina
Matéria da revista Manchete sobre Valentina
Acontece que, como Ivan Mizanzuk sempre repete no podcast, Valentina não era loira, nem gringa e nem gorda. Em pouco tempo, após grampos telefônicos, interrogatórios, buscas e apreensões, e conflitos entre delegados e promotores, a Polícia Civil do Paraná deixou de lado as investigações contra Valentina. Chegou-se à conclusão, então, que não havia nada contra ela nos casos de Guaratuba.
CRIMES NO NORTE
Em 1993, um ano depois, a líder do LUS foi acusada de fazer parte de uma seita satânica no Norte do país, na cidade de Altamira, interior do Pará. Desde 1989, o município registrava o desaparecimento e morte de vários meninos, com uma marca em comum: eles eram emasculados.
Valentina de Andrade só ficou conhecida na região por causa das matérias divulgadas em rede nacional no ano anterior, 1992, sobre a suspeita do envolvimento dela nos casos de Guaratuba. A partir daí, descobriram que ela esteve em Altamira em algumas ocasiões durante os anos 1970 e uma vez na década de 1980. Logo, as autoridades do Pará concluíram que a líder do LUS teria montado uma célula da seita satânica no Norte do país para matar crianças, assim como tinha feito no Sul. E a sensação da polícia era de que, se ela havia escapado no Paraná, em Altamira seria diferente.
Este foi o tema da última temporada do Projeto Humanos, “Altamira”. Aqui, é preciso ter em mente que, assim como em Guaratuba, Valentina também é inocente nesse caso. Não apenas ela foi absolvida em júri, ocorrido em 2003, como a única testemunha de acusação revelou para Ivan Mizanzuk que foi coagida pela Polícia Federal (PF) a inventar toda a história contra a acusada.
Além disso, as vítimas de Altamira são muito diferentes das do caso de Guaratuba. Evandro foi escalpelado e teve as mãos cortadas, o ventre aberto e os órgãos internos retirados. Já as crianças do Norte foram encontradas emasculadas.
Hoje, nós sabemos que o verdadeiro assassino no Pará era o mecânico Francisco das Chagas, que foi preso no Maranhão no final de 2003. Após a prisão, a polícia fez buscas na casa dele e encontrou corpos enterrados de crianças e objetos das vítimas. Nas confissões, ele relatou que morou em Altamira até 1993 e falou sobre os crimes que cometeu. Chagas disse que matava e emasculava os meninos por ordem de uma voz que ouvia. Segundo essa voz, depois da mutilação, os garotos virariam “anjos”, pois teriam o pecado original removido. No total, o mecânico admitiu ter feito mais de 40 vítimas nos estados do Pará e do Maranhão.
No entanto, para aqueles que não conhecem essas histórias detalhadamente, como muitas autoridades da época, a impressão era de que os casos do Norte e Sul estavam conectados, e que Valentina seria o elo entre eles.
Em 2011, Diógenes Caetano dos Santos Filho escreveu um livro contando a sua versão sobre o Caso Evandro. Nele, o engenheiro menciona que Valentina seria conhecida de Celina Abagge, e que ambas teriam sido vistas juntas em pelo menos quatro ocasiões em Guaratuba no ano de 1992. Ele não cita, porém, quem seria a testemunha desses encontros, e não existe ninguém no processo que confirme essa história.
As polícias Federal e Civil, assim como o Ministério Público do Pará e do Paraná, viraram a vida de Valentina de cabeça para baixo na busca por algo que a ligasse aos crimes – com direito até a grampos telefônicos -, mas nada jamais foi encontrado.
Nós sabemos disso agora, após anos de pesquisa e investigação sobre o Caso Evandro e os Meninos de Altamira. Os crimes do Norte e Sul do país nunca foram juntados oficialmente, mas nos bastidores sempre foram erroneamente encarados como uma coisa só. E essa contaminação só piorou o quadro todo, especialmente quando olhamos para o desaparecimento de Leandro Bossi.
INTERVENÇÃO FEDERAL
Assim como em Guaratuba, o caso dos meninos de Altamira começou com sete suspeitos. No fim, um deles teve as suas acusações retiradas, e o outro nunca foi encontrado para ser preso.
Os cinco acusados restantes foram a júri em Belém, capital do Pará, no ano de 2003. Nos primeiros julgamentos, que ocorreram entre agosto e setembro, quatro réus foram condenados.
Nesse contexto, as famílias de Altamira tinham uma reivindicação importante. O processo original contava com apenas cinco vítimas. Mas os moradores da cidade insistiam que havia muito mais crianças atacadas, entre desaparecidas, assassinadas e as que sofreram tentativa de sequestro. No total, falava-se em 26 casos.
Para atender a essa demanda, o Governo Federal acompanhou os júris de perto. Em setembro de 2003, o então ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, autorizou que a Polícia Federal investigasse os casos não solucionados em Altamira. Não apenas isso: a PF também deveria trabalhar em todo e qualquer crime que envolvesse a suspeita de morte de crianças em “rituais satânicos”.
Com essa força-tarefa, as polícias do Maranhão conseguiram montar a extensa investigação que levou Francisco das Chagas a ser preso e condenado a mais de 300 anos de reclusão na soma dos crimes. Mas esse trabalho só focou no Norte do país, já que o mecânico nunca esteve no Paraná.
A prisão de Chagas aconteceu no fim de dezembro de 2003. Meses antes, na ocasião dos júris em Belém, a PF já estava de olho nos casos de crianças que poderiam ter sido mortas em supostos cultos liderados por Valentina de Andrade. No Norte e Nordeste, a elucidação desses crimes ficou sob responsabilidade de duas jovens delegadas: Daniele Gossenheimer Rodrigues e Virgínia Vieira Rodrigues.
Já no Paraná, os casos em que a líder do LUS era suspeita foram parar nas mãos de um delegado federal chamado Rogério Pereira da Costa – um deles era o desaparecimento de Leandro Bossi.
É importante lembrar que o trabalho desse investigador teve início meses antes da descoberta sobre Francisco das Chagas. Tudo começou como uma coisa só. Mas a partir do momento em que o mecânico foi preso e passou a ser investigado pelas delegadas no Norte e Nordeste, os casos do Paraná tomaram outro rumo, ainda focado em Valentina. E, mais uma vez, nada foi encontrado contra ela.
CONTEXTO EM GUARATUBA
O momento da entrada da PF em 2003 é central para entendermos o contexto diante dos casos de Guaratuba.
Em 1998, Celina e Beatriz Abagge, esposa e filha do prefeito de Guaratuba, acabaram absolvidas naquele que ficou conhecido como o júri mais longo da história do judiciário brasileiro: foram 34 dias de trabalho realizado em São José dos Pinhais, na Grande Curitiba.
Em 2003, no mesmo período em que ocorriam os julgamentos sobre Altamira, o júri das Abagge foi anulado. Ivan Mizanzuk não considera que isso tenha sido uma coincidência. No mínimo, o momento parecia propício para o Ministério Público e o judiciário continuarem a caça às bruxas.
Também nessa época, prestes a ser julgada em Belém, Valentina passou a aparecer toda hora na imprensa do Paraná como possível envolvida nos crimes de Guaratuba. O tom das matérias era sempre de desconfiança e questionamento sobre a suposta ligação entre a líder do LUS e os acusados no caso Evandro.
Ainda em 2003, Diógenes Caetano dos Santos Filho escreveu uma série de cartas para as autoridades perguntando se seria possível resgatar o corpo de Leandro Bossi do fundo da baía de Guaratuba. Até hoje, ele afirma que seus pedidos foram ignorados. Mas isso não é verdade. Como mencionado antes, o inquérito do desaparecimento conta com estudos sobre a viabilidade de tal operação, o que se mostrou muito difícil.
Em 2004, após uma investigação robusta, a PF no Norte e Nordeste já não tinham mais dúvidas de que Francisco das Chagas era o verdadeiro assassino no Pará e no Maranhão entre os anos de 1989 e 2003.
Enquanto isso se tornava cada vez mais claro para as autoridades do Maranhão, os representantes do Governo Federal que acompanharam os júris de 2003 ainda não estavam a par de tudo. Isso fica evidente no julgamento de Osvaldo Marcineiro, Vicente de Paula Ferreira e Davi dos Santos Soares, em abril de 2004. Dos sete, os três foram os que produziram a maior parte das falsas confissões obtidas sob tortura.
Quem estava presente no júri era o advogado Pedro Montenegro, conhecido por ser defensor de direitos humanos. Ele foi um dos articuladores federais que forneceram apoio aos trabalhos em Belém no ano anterior, e conseguiram fazer com que a PF atuasse em investigações de morte de crianças onde havia a suspeita de rituais liderados por Valentina.
Não custa lembrar: a líder do LUS nunca foi formalmente acusada no Paraná. Isso foi reconhecido pelo próprio doutor Montenegro em 2004, na ocasião dos júris de Osvaldo, Vicente e Davi.
Em entrevista que concedeu para a Rede TV Paraná Educativa, ele diz ter certeza que os crimes de Guaratuba e Altamira estão conectados. “Pela faixa etária das vítimas, o modus operandi e a presença da líder da seita, Valentina de Andrade, que, embora não esteja nos autos do processo do Paraná, estava presente na cidade quando aconteceu a morte de Evandro e o desaparecimento de Leandro”, comentou.
Na mesma ocasião, Montenegro sugeriu ainda a abertura de inquérito para investigar o LUS como organização criminosa. Aqui não custa reforçar que nenhuma das investigações federais resultou em coisa alguma. Além disso, com exceção das vítimas serem crianças do sexo masculino, não há qualquer semelhança entre as mutilações encontradas nos meninos do Pará e Maranhão e nos do Paraná.
Após a descoberta das fitas das torturas e das pesquisas referentes aos crimes de Altamira, Ivan Mizanzuk consegue dizer com segurança: nenhum dos acusados no Norte e no Sul tem qualquer culpa.
Em Altamira, sabe-se quem é o verdadeiro assassino: Francisco das Chagas. Mas e em Guaratuba? O que aconteceu com Evandro e Leandro?
Até pouco tempo atrás, Leandro Bossi ainda era considerado um caso em aberto no Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas da Polícia Civil do Paraná (Sicride).
Então, em 10 de junho de 2022, Ivan recebeu uma ligação. A Secretaria de Segurança Pública do estado faria uma coletiva de imprensa. Isso não é algo exatamente incomum, mas o motivo chamou a atenção de muita gente: havia novidades sobre o caso Leandro Bossi.