Wiki do Caso Leandro Bossi

Extras Episódio 01

O ano era 2017. O jornalista Ivan Mizanzuk começava a entrar mais fundo em suas pesquisas sobre a história que pretendia contar, sobre a morte de um garoto chamado Evandro Ramos Caetano, assassinado 25 anos antes, em Guaratuba, no litoral do Paraná, em abril de 1992. Esse caso foi um dos mais conhecidos da crônica policial paranaense, especialmente pela brutalidade do crime.

Evandro sumiu em uma segunda-feira. No sábado, o corpo foi encontrado com uma série de mutilações. Entre uma pesquisa e outra, um nome sempre aparecia: Leandro Bossi. Tudo o que Ivan encontrava sobre ele era muito confuso, mas o que se tinha conhecimento era que esse menino havia desaparecido dois meses antes de Evandro ser morto.

Evandro desapareceu em abril de 1992. Leandro em fevereiro do mesmo ano. Os dois meninos eram muito parecidos e tinham idades próximas. Esses são fatos que chamam a atenção porque Guaratuba não é uma cidade com histórico de crianças desaparecidas. Tampouco mortas. Muito menos assassinadas de forma tão brutal, como o corpo de Evandro demonstrava.

Foi um crime tão chocante que muita gente na época acreditou que ele teria sido morto em um suposto ritual, o que gerou uma série de erros irreparáveis de autoridades do estado do Paraná. 

Sete pessoas foram presas, entre elas a filha e a esposa do prefeito de Guaratuba. Todos eram inocentes que foram torturados para confessar um crime que não cometeram. Toda essa história foi contada em detalhes na quarta temporada do Projeto Humanos, intitulada “O Caso Evandro” – que também virou série do Globoplay.

O fato é que não se sabe quem matou Evandro. E talvez o caso de Leandro Bossi tenha peças importantes para investigar. Na época em que Ivan começou a se aprofundar no que poderia ter ocorrido em Guaratuba no ano de 1992, Leandro ainda é um caso de criança desaparecida. O inquérito é pouco aprofundado. A investigação foi muito precária, e quase ninguém foi ouvido, especialmente no início, que é o momento mais importante.

Em fevereiro de 2017, Ivan saiu da capital Curitiba em direção à Guaratuba, uma viagem de uma hora e meia, mais ou menos. Não era a primeira vez dele na cidade, só que dessa vez, ele não estava indo para visitar a avó mas, sim, para conversar com um homem chamado João Bossi, e seu filho mais velho, Ademir Bossi.

Ivan não demorou a encontrar a casa deles, pois na frente havia uma faixa enorme, onde estava escrito: “Segurança Pública e Sicride, onde está meu filho Leandro Bossi, desaparecido em 15 de fevereiro de 1992? Aguardo resposta”.

João Bossi e Ademir Bossi em frente à casa da família em Guaratuba, em 2017. (Foto: Projeto Humanos)

Matéria do Portal da Cidade de Guaratuba com foto da faixa – “Morte de Leandro Bossi completa 31 anos e família ainda espera respostas”

Sicride é o Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas, delegacia especializada em casos de sequestro criada no Paraná na década de 1990, justamente por causa de casos como o de Leandro. 

Muitos menores desapareceram naquela época. Ivan, que era criança, se lembra bem do medo que tinha de ser sequestrado. De certa forma, ele se interessou por essa história para tentar se livrar desses demônios pessoais. E torcia para que os dois homens com quem iria conversar pudessem ajudá-lo nisso.

Na ocasião, Ivan desceu do carro e foi recebido por eles: João Bossi, um senhor baixinho, de cabelos brancos, e Ademir Bossi, um homem grande, usando um boné. Era uma casa simples, perto da balsa de Guaratuba – ou ferry boat, como os paranaenses costumam chamar.

Um dos assuntos tratados por eles durante a conversa foi sobre a ossada encontrada em 1993, no mesmo matagal onde o corpo de Evandro havia sido achado um ano antes.

Confira abaixo um trecho da conversa de Ivan com João e Ademir:

João Bossi: Aquela outra ossada que era a suposta do Leandro… Isso foi na Rua das Palmeiras, a uns 100 metros de uma casa. Cabelo loiro… Foi encontrado o chinelo que era para ser do Leandro, a sunga que era do Leandro. Tudo igual. […] Aí, quando foi encontrada a ossada, eu fui lá. Eu tive por uns cinco, seis anos na carteira, o cabelo. Depois as pessoas falaram: “isso aqui só vai trazer problemas, dispense”. O cabelo era 100% dele. Tudo.

Ivan: […] Quanto tempo demorou desde que encontraram a ossada, que supostamente era do Leandro porque estava usando as roupas dele, até sair o teste de DNA dizendo que era o corpo de uma menina?

João: Olha, isso aí demorou um bocado. Não me lembro quanto, mas demorou um tempo…

Ivan: Tipo um mês, dois meses?

João: Não. Muito mais. Até parecia que tinha caído no esquecimento. Até que um belo dia… Mas isso já tinha, ó…

Ivan: Então, na tua cabeça, por todo esse tempo o Leandro estava morto?

João: Sim, pois foi encontrada a cabeça. Foi encontrada a cabeça, chinelo, zorba, o cabelo. Daí vai lá… Não, não é. Então não é, pronto. Concordo. Beleza, então. Parabéns, não é? Então, ok.

Ivan: O corpo não dava para reconhecer. Podia ser qualquer…

João: Não. Só tinha… Aqui. Só o esqueleto. Só a cabeça…

Ivan: Era o esqueleto sem pele, sem nada?

João: Não. Só a cabeça pura, só o crânio.

Ivan: E as peças de roupa jogadas, como se alguém tivesse colocado tudo em um lugar e jogado?

João: Isso. Um disfarce.

Ivan: Tipo montado.

João: Apodreceu aqui. Mas, espera aí, daqui àquela casa… Me desculpe...

Ivan: E você tinha certeza de que a zorba era do Leandro? O chinelo também?

João: Disso eu tinha certeza. Mas daí só que eu olhava bem assim… Meu Deus, será que é o meu filho? Não, enquanto não for atestado com DNA provado… Vamos fazer o seguinte: vamos rezar em nome do falecido. Não importa quem é. Aí o Parreira invocou comigo: “Está querendo que seja o Leandro?”. “Não. Eu não quero que seja. Mas, meu Deus, está aqui a zorba, está aqui o chinelo, está aqui o cabelo. É tudo dele. Libera para a gente esses restos mortais, para a gente…”.

[…]

A pessoa a quem João Bossi se refere é José Marcos Parreira, que foi diretor do Instituto Médico Legal (IML) de Curitiba, em 1993. Ivan tentou conversar com Parreira para verificar essa história, mas a família informou que ele já estava com idade avançada, apresentava problemas de saúde e não gostava de falar do assunto.

O que Ivan conseguiu descobrir é que a ossada não possuía só o crânio, como João lembrava. Ela estava incompleta, mas tinha mais de 50 ossos. A localização atual dela é desconhecida. É possível que esteja enterrada em algum cemitério de Curitiba como uma criança indigente.

Outra coisa é que o exame de DNA de 1994, atestando que a ossada poderia ser de uma menina, era na verdade um falso negativo. Um novo teste em 2022 provou que ela era mesmo de Leandro Bossi.

Laudo de exame de DNA de Leandro Bossi – 1994 

Laudo de exame de DNA de Leandro Bossi – 2022

João e Ademir morreram pouco antes de conseguirem a resposta que tanto queriam. Mas a família Bossi ainda tem perguntas. E essa busca continua especialmente através de uma pessoa que nem tinha nascido quando Leandro desapareceu: Lucas Steffen Bossi.

Quando Lucas nasceu em 1993, Leandro já estava desaparecido há mais de um ano. Seus pais, João Bossi e Roseli Steffen, se esforçaram para dar as condições que podiam para ele seguir os seus sonhos. Morou em Guaratuba, Matinhos, Curitiba e Balneário Camboriú, onde fez faculdade de arquitetura. Lucas é fruto do segundo casamento de João. Leandro é do primeiro, filho de Paulina Bossi.

Do primeiro casamento, nasceram Ademir e Leandro. Do segundo, com Roseli, nasceram Neli, Lucas e Gabriela. De um relacionamento anterior, Roseli já possuía outra filha, Cristiane, que tinha a mesma idade de Leandro. Com exceção de João e Ademir, todas essas pessoas estão vivas e querem respostas.

Família Bossi realizava festas de aniversário para Leandro mesmo após o desaparecimento. (Foto: Arquivo pessoal)

Por várias circunstâncias, Lucas virou aquele que mais se coloca à frente desses esforços. Apesar de nunca ter conhecido o irmão mais velho, a história de Leandro sempre fez parte da sua vida de alguma forma.

“Olha, a primeira lembrança que eu tenho sobre isso vem da terceira série, falando com a minha professora. Eu lembro como se fosse hoje, sabe? Ela leu o meu sobrenome na chamada, ficou curiosa, e no intervalo quis perguntar e saber mais. Então, é como eu lembro do primeiro momento em que comecei a falar sobre essa história. E, a partir daí, as coisas foram me acompanhando. Quanto mais eu vou crescendo, mais chegam conversas em que eu tenho que contar que o Leandro Bossi era meu irmão e como rolava isso tudo de lá para cá”, disse Lucas em entrevista ao podcast.

Já era fim de tarde quando Ivan saiu da casa de João Bossi naquele dia em 2017. Mas a história nunca mais saiu dele. Tanto é que ele está hoje, em 2023, tentando descobrir o que aconteceu com Leandro e Evandro – e, talvez, com outras crianças que desapareceram no Paraná na época. 

Muita coisa aconteceu desde que Ivan lançou o podcast do Caso Evandro. Muitas informações novas foram descobertas. E agora, ele tem a família Bossi para ajudar a descobrir o que pode ter ocorrido em Guaratuba em 1992. Essa nova temporada do Projeto Humanos é o resultado desses esforços.

O MATAGAL

A ossada de Leandro Bossi foi encontrada em março de 1993 no mesmo matagal onde o corpo de Evandro havia sido encontrado pouco menos de um ano antes, em 1992. Estima-se que a distância entre os dois lugares era entre 200 e 400 metros.

Especialmente na época, esse local era pouco habitado e compreendia uma área de mais ou menos dois quilômetros por 400 metros. Atualmente, ele possui várias casas, mas ainda há ali muita vegetação. 

É um lugar que poderia ser melhor descrito como um grande banhado, que retém muita água. Há vários córregos artificiais feitos na região para levar toda essa água para o mar, e esses córregos funcionam também para delimitar as quadras. Até hoje a região não é asfaltada.

Foto de satélite do matagal onde os corpos foram encontrados – 1985

Foto de satélite do matagal – 2001

Foto de satélite do matagal – 2023

*Imagens de satélite da região extraídas do Google Earth. Não há imagem de 1992. A mais antiga é de 1985, que está com resolução muito baixa. A próxima que existe é de 2001, com melhor resolução. Disponibilizamos as duas para se ter uma ideia de como era uma região pouco desenvolvida em 1992 – diferente de hoje (2023), onde podemos ver muitas casas pelas áreas.

Em 1993, mal existiam as ruas que estão lá hoje, e boa parte dos caminhos dentro da mata eram feitos por picadas – ou seja, por pessoas que passavam pelo local. Essa área toda era muito frequentada por lenhadores, que extraiam madeiras. 

O matagal fica entre duas grandes ruas: a Rua Engenheiro Beltrão e a Rua das Araucárias – que é chamada informalmente pelos moradores de “Rua das Palmeiras”. Não é uma região turística, longe disso. É uma das áreas mais pobres de Guaratuba, e mesmo quem é morador antigo não a conhece muito bem.

E isso já é uma pista importante, pois quem matou Evandro e Leandro conhecia aquela região de alguma forma. No inquérito de Leandro Bossi, não há laudo ou fotos do local onde a ossada foi encontrada, e isso significa que não é possível saber a localização exata dela. Por isso, Ivan precisava obter mais informações, e teria que contar com a memória das pessoas envolvidas no achado.

LOCALIZAÇÃO DA OSSADA

A ossada foi localizada por quatro garotos no final de fevereiro de 1993: Fernando, de 12 anos; Luciano, 13 anos; Ismael, 14 anos; e Aristides, 15 anos. Eles brincavam de caçar lagartos na região. 

Em certo momento, o cachorro que os acompanhava entrou correndo no mato. Eles foram atrás e encontraram o que parecia ser uma bola enterrada no chão. Enfiaram um facão na terra e, quando viram, não era uma bola. Era um crânio. Se assustaram e saíram correndo de lá. Mas, apesar do susto, os garotos não deram muita importância e continuaram as brincadeiras.

Alguns dias depois, um deles acabou falando para um adulto sobre o que haviam encontrado no matagal. Esse falou para outro, e assim foi até que, no dia 4 de março de 1993, uma dessas pessoas decidiu ir até o local descrito para verificar, acompanhada de um dos garotos.

O primeiro adulto a ver a ossada após a descoberta dos meninos foi um homem chamado Leocádio Miranda.

Ivan Mizanzuk encontrou Leocádio neste ano, 2023, quando ele estava trabalhando no bar do qual é dono em Guaratuba. O relato dessa testemunha é muito importante por dois motivos. Primeiro porque, pela falta de laudo de local, não existem dados concretos sobre como era o ambiente onde a ossada de Leandro foi encontrada. 

Segundo porque, pelo o que Ivan pode averiguar, ele não parece ter contado essa história com muita frequência. Leocádio nem sabia direito o que os meninos encontraram. Logo, não ficou sujeito a aumentar essa história com os anos que se passaram.

Um trecho da conversa dele com Ivan está disponível abaixo:

Leocádio Miranda: Eu estava em casa. Eu trabalhava com o meu cunhado. Ele tinha um comércio na época, e eu trabalhava com ele. Eu tinha 21 anos e era conhecido de todos os meninos da rua ali do bairro. Aí chegou o Luciano, menino que sempre ficava lá conversando com a gente, né? Aí ele relatou que eles tinham ido caçar lagarto. Ele, o Aristides, o Ismael, o Fernando. Eles tinham ido em três, quatro piás, caçar na Rua do Azul, no bairro Carvoeiro.

Rua do Azul é outro nome que os moradores locais dão para a Rua das Araucárias, que também é conhecida como Rua das Palmeiras.

Leocádio: […] Aí o cachorro latiu. Nisso que o cachorro latiu e entrou no mato, eles entraram atrás em um carreirinho de aproximadamente cinco metros, mais ou menos. Aí se depararam com um crânio. Eles acharam que era uma bola. Mas bateram com o facão e viram que era um crânio. Dois saíram correndo, entraram para o mato. Eu acho que foi o Aristides e o outro. Entraram para o mato. Não acharam lagarto, não acharam nada e tal. Aí retornaram para a rua, vieram embora. Aí teve um que parece que comentou com a mãe, que eu soube depois. Mas eu acho que a mãe não deu muita importância, né? Daí o Luciano esteve na parte da noite lá no comércio onde eu trabalhava, morava, tudo. E aí relatou: “nós fomos caçar lagarto na Rua do Azul, assim e tal. Cara, nós achamos um crânio lá”. Ainda falei: “capaz”. “Não, achamos um crânio lá e tal”. Daí acabei ficando curioso e falei assim: “quando você tiver tempo, venha aqui, vamos lá ver?”. Porque acabei ficando curioso, a gente era novo, né? Acho que no outro dia já, ele apareceu lá. Acho que era umas 10, 11 horas. Apareceu lá. “Vamos lá ver, vamos lá ver?”. Nisso eu falei com o meu cunhado, que eu trabalhava com o meu cunhado…

Ivan: O Manuel, né?

Leocádio: Com o Manuel. Aí peguei o carro. Eu tinha um Opala na época. Tinha 21 anos já. As economias… A gente já dava um jeito de comprar um carrinho, né? Eu tinha um Opala. Aí pedi para o meu cunhado, ele deixou, me liberou. Eu peguei o rapazinho e fomos. Ele foi mostrando, foi, foi, foi, foi… Chegamos no lugar lá. Bem matagal mesmo, era bem matagal, um matagal bem fechado. Paramos o carro, descemos. Ele só pegou e apontou assim, daí eu caminhei uns cinco metros mais ou menos. Olhei, aí tinha o crânio no chão… Parecia uns fiozinhos de costela, que eu lembro da época, né? Faz bastante tempo. E tinha folha caída, com a própria natureza, assim. As folhas tampavam aquela ossada ali, e o crânio estava bem esverdeado, com limo escorrido por cima devido ao tempo. Deveria estar há muito tempo ali, em decomposição. Então, estava só a ossada mesmo. A única coisa que eu vi foi o crânio e acho que uns fios de costela, que tinha uns ossinhos pequenos. Aí saí dali e falei para ele: “tem que avisar a polícia”. Trouxe ele de volta no mesmo bairro. Ainda falei para o meu cunhado, para o Manuel, o Manuel Corrêa. Daí ele falou: “não, vai lá na Militar, assim e assim”. Peguei o carro e fui na Militar. Cheguei lá, relatei a história tal e tal. Aí já me liberaram e eu fui para casa. Deu aquele bafafá ali de coisa… Acho que o meu cunhado também foi depois lá ver, mas já tinha polícia e tudo lá. Aí acho que de tardezinha eles me ligaram. Na época a gente tinha telefone residencial, né? O celular não existia na época. Aí ligaram. Eu fui à delegacia, dei depoimento de como foi e tal, como foi o começo de tudo, né? 

Ivan: […] Você lembra de ter visto roupa?

Leocádio: Não. Não vi também. Não lembro se eu vi roupa. Porque, que nem eu te falei, a folhagem tampou, né? A folhagem acabou tampando. Então, só aparecia ali o que estava mais exposto, que era o crânio e os ossos, né?

Ivan: O crânio que foi mexido inclusive pelos meninos quando tiraram o facão…

Leocádio: É. Mas ele não tinha jeito assim, de que tinha sido enterrado. Talvez os meninos só bateram, né? Porque não parecia que tinha sido tirado do lugar. Não parecia. Talvez os meninos só bateram e já viram que não era…

Ivan: Pela sua memória, então, nem parecia que tinha sido enterrado?

Leocádio: Não, não. Não. Pelo tempo, que eu lembro assim, não tinha sido enterrado. Tinha só sido largado.

Ivan se recordou da vez que conversou com a criminóloga Ilana Casoy, e ela lhe deu a dica de falar com a pessoa que encontrou o corpo, pois peritos e legistas veem corpos todos os dias, então às vezes se confundem de um caso para o outro. Mas, segundo Ilana, alguém comum que viu um corpo pela primeira vez guarda uma impressão melhor pelo choque.

Considerando essas coisas, Ivan tende a confiar no relato de Leocádio. De acordo com ele, a ossada estava bem para dentro do mato, em uma mata fechada, sem nenhum caminho que levasse até lá. Havia vegetação em torno dela, como se tivesse crescido ao redor. E a ossada não parecia ter sido enterrada.

Para Ivan, tudo isso é relevante porque mostra mais uma similaridade com o corpo de Evandro. Ele também não foi enterrado. Os dois corpos estavam no mesmo matagal. E havia roupas de Leandro junto com a ossada, assim como o corpo de Evandro também estava com roupas dele.

Mapa da localização do corpo do Evandro

DEPOIMENTO DE PAULINA

No dia seguinte, 5 de março de 1993, Paulina Bossi, a mãe de Leandro, prestou um depoimento na polícia. Confira trechos do documento:

A declarante é mãe de Leandro Bossi, que desapareceu desta cidade no dia 15 de fevereiro de 1992. Neste dia, seu filho trajava camisa de malha com listras amarela, vermelha e branca, calção de cor vermelha, não recordando se o mesmo usava cueca ou não, bem como um par de chinelos de cor azul, marca Samoa, com pequenos desgastes nas tiras. Que em data de ontem, ouviu através do programa ‘Aqui Agora’ que haviam sido encontrados ossos, os quais seriam do menino Leandro. Que por volta das 21h, seu ex-marido [João Bossi] chegou em sua residência para saber o nome do dentista que atendia o Leandro, ocasião em que informou que seria a Dra. Adaíra. Nesta ocasião, seu ex-marido também informou que havia sido achado um crânio, mas que o mesmo não sabia se seria do seu filho.

[…]

Em data de hoje, 5 de março de 93, por volta das 9h30, chegou seu filho mais velho de nome Ademir, pedindo que a declarante viesse até a delegacia, pois os peritos do Instituto de Criminalística haviam encontrado algumas peças de roupas infantis, bem como um par de chinelos, e que então a mesma veio até esta delegacia para reconhecer as referidas peças. Que, ao ver a cueca, achou semelhante com a que seu filho Leandro usava. Que com relação ao calção de banho, a mesma tem alguma dúvida que o mesmo pertença a seu filho. Que com relação ao chinelo, a mesma reconhece como sendo pertencente a seu filho. Que declara também que uma das cuecas de seu filho também sumiu, a qual é semelhante a que viu nesta data nesta delegacia. Que não se recorda a cor da cueca que seu filho usava, pois a que foi achada no local estava muito suja de barro. Que, nesta mesma oportunidade, pediu a seu filho Ademir que fosse até a sua residência para que trouxesse a outra cueca do mesmo tecido, da qual fora lhe apresentada. Que ambas as cuecas são do mesmo tecido, mas com motivos infantis diferentes. Que nesta delegacia percebeu que a cueca encontrada possuía pequenas costuras e a declarante recorda que em uma delas foram feitos pequenos reparos, trabalhos estes costurados manualmente pela declarante.

Depoimento de Paulina – 05 de março de 1993

Então, o que se sabe até aqui é o seguinte: Leandro e Evandro foram deixados de maneiras muito parecidas, sem serem enterrados, com algumas de suas roupas, no mesmo matagal. É bem provável que, quando o corpo de Evandro foi encontrado em abril de 1992, o de Leandro já estivesse lá desde fevereiro.

O corpo de Evandro foi encontrado por lenhadores que passavam pela região e viram urubus sobrevoando a área. Eles seguiram um caminho, uma picada que existia naquela parte do mato, e acharam a criança toda mutilada, poucos dias após o desaparecimento. Mas, se o relato de Leocádio estiver certo, o ponto onde a ossada de Leandro foi encontrada não parecia ser muito visitado. Era mata fechada, e talvez isso fizesse com que as pessoas não reparassem muito por ali.

Contudo, parecia haver uma grande diferença entre os dois meninos: o horário em que desapareceram. Evandro sumiu em uma segunda-feira de manhã, enquanto ia da escola para casa, uma distância de cerca de 100 metros. 

Mas o que se dizia de Leandro é que ele teria desaparecido na noite de um sábado, durante o grande evento que ocorria na cidade naquele dia 15 de fevereiro: o show do cantor Moraes Moreira, na praia central de Guaratuba.

LEANDRO FOI AO SHOW?

De onde vinha essa história do show? Quem a contou? Ivan decidiu olhar isso mais a fundo. 

A certeza é que, na época, João e Paulina já estavam separados há alguns anos. João já tinha um segundo casamento, com Roseli, a mãe de Lucas.

O ex-casal João e Paulina teve dois filhos: Ademir, que na época era um adolescente, e Leandro. Em 1992, Ademir e Leandro moravam com a mãe, enquanto o pai vivia com Roseli e seus filhos: Cris e Neli. Lucas ainda não era nascido.

Paulina ainda é viva, e Ivan chegou a conversar com ela. Quem o ajudou nesse contato foi a neta, Mariane. Elas moram juntas em Curitiba. O jornalista tentou convencê-la a dar uma entrevista, mas ela não aceitou. Quando ele perguntou o motivo, ela disse: “mas de que adianta? O que vão falar de mim?”.

Ao conversar com Paulina, Ivan notou que ela tem muita dificuldade de se comunicar. Ela não olha para ninguém diretamente e não tem muitas lembranças do que aconteceu. Ela sorri pouco, mas não é por ser uma pessoa amarga, pelo contrário. A impressão que Ivan teve é que a mãe de Leandro tem uma enorme dificuldade em se expressar, em ser entendida, e essa história é sofrida demais. Ivan diz ter certeza que ela sofre muito, mas talvez não consiga compreender a dimensão que essa história possui.

Em todos esses anos, Paulina foi muito cobrada. Ela deve ter perdido a conta de quantas vezes ouviu ofensas do tipo: “como assim você deixou seu filho solto? Por que só o João Bossi tomou a frente disso?”. Para Ivan, isso é injusto. Todas as crianças viviam soltas em Guaratuba, ainda mais naquela época. Ninguém imaginava que uma tragédia daquele tamanho estava para acontecer.

O jornalista acredita que, no fundo, uma entrevista neste momento só faria Paulina passar por mais um sofrimento desnecessário. E, para piorar o cenário, a polícia não ajudou muito na época. Prova disso é que, apesar de Leandro ter desaparecido em fevereiro de 1992, o primeiro depoimento que ela prestou no inquérito foi apenas no dia 16 de julho daquele ano – ou seja, cinco meses depois. 

Muito provavelmente ela só deu essa declaração porque a polícia decidiu mexer no caso Leandro após as prisões dos sete inocentes, acusados injustamente pela morte de Evandro após sofrerem uma série de torturas. 

E não só isso: Paulina dá seu depoimento com foco nas investigações que começavam em torno de Valentina de Andrade, a autointitulada profetisa de uma filosofia espiritualista que possuía uma série de seguidores na Argentina. Essa parte da história já foi detalhada no episódio 35 da quarta temporada do podcast.

Na época em que Leandro e Evandro desapareceram, Valentina estava com um grande grupo de argentinos em Guaratuba. Por um bom tempo, ela foi apontada pela Polícia do Paraná como líder de uma seita satânica que poderia ter ligação com os sete acusados pelo caso Evandro.

Ivan explicou tudo isso em detalhes nas temporadas passadas, mas acredita ser importante reforçar o seguinte: nenhuma dessas pessoas tem envolvimento algum com as mortes de Evandro e de Leandro. As investigações da época foram todas contaminadas por teorias da conspiração sem qualquer fundamento. 

O que importa é saber que, quando Leandro desapareceu em fevereiro de 1992, Paulina morava em uma região de Guaratuba conhecida como Vila Esperança e trabalhava como camareira no hotel mais chique da cidade, oVillaReal. De casa até o hotel, eram cerca de 40 minutos de caminhada. Era época de férias escolares, então Leandro ia com ela para o trabalho.

O hotel estava cheio de famílias inteiras de hóspedes, e Leandro passava o dia brincando pelas dependências. Isso começou a incomodar o gerente, que não queria que filhos de empregados atrapalhassem os clientes. Por isso, Paulina pediu para que Leandro voltasse para casa e trocasse de roupa. Ou seja, ela queria que ele se vestisse melhor para poder se misturar entre os turistas.

Sobre isso, o depoimento de Paulina diz o seguinte:

A última vez que viu o menino foi por volta das 9h30 no hotel em que trabalha, o hotel VillaReal, pois havia mandado seu filho Leandro até em casa para trocar de roupa, tendo conhecimento que Leandro esteve em casa, pois a roupa que usava estava lá.

O que se tem conhecimento é que Leandro voltou para casa naquela manhã e trocou de roupa. O que aconteceu a partir daí, ninguém sabe ao certo. Neste dia, João estava pescando em alto-mar. Quem viu a situação mais de perto foi Ademir, que trabalhava em um restaurante próximo ao Hotel VillaReal como garçom, de tarde até de madrugada. Então, ele provavelmente estava dormindo naquela manhã.

Quando Ivan entrevistou Ademir, os horários que ele passava eram meio confusos. E ele não prestou nenhum depoimento na época. Mas o que deu para entender é mais ou menos algo assim: Paulina voltou do trabalho à noite e não encontrou Leandro. Achou então que ele poderia estar com Ademir. Quando Ademir chegou em casa de madrugada, Paulina perguntou “cadê o Leandro?”.

Naquela mesma madrugada, eles ligaram para a polícia para registrar o desaparecimento. Ademir fez isso primeiro. João Bossi chegou da pescaria em alto-mar no dia seguinte à tarde. Ficou sabendo do ocorrido e foi para a polícia reformular a queixa, colocando-se como o responsável por Leandro. Só que, tanto para Ademir quanto para João, os policiais teriam dito que era preciso esperar 24 horas para fazer o Boletim de Ocorrência. 

Esse é um dos grandes mitos em torno de casos de pessoas desaparecidas, então é bom deixar claro que não existe essa história de esperar 24 horas. A partir do momento que se notou que a pessoa desapareceu, seja ela menor ou maior de idade, já é possível prestar queixa.

De qualquer forma, o inquérito de Leandro Bossi abre com uma anotação feita à mão. E ela realmente é datada do dia seguinte, 16 de fevereiro de 1992. Nela, está escrito:

Às 22h compareceu a esta regional o Sr. Ademir Bossi. Relata que seu irmão Leandro, de 7 anos, aproximadamente 1 metro e meio, loiro, olhos verdes, meio magro, cabelos lisos, desapareceu provavelmente na praia central em Guaratuba.

A Praia Central é a região onde fica o Hotel VillaReal, e foi também por ali que ocorreu o show do Moraes Moreira. Na folha seguinte do inquérito, há uma portaria datada de dois dias depois, 18 de fevereiro, que diz:

Tendo-se noticiado que a criança esteve participando do show do cantor Moraes Moreira com outros atores, e cujo ato deu-se na praia central à noite, e que a criança foi apresentada no palco para que alguém pudesse reconhecê-la.

Portarias e certidões sobre a abertura de inquérito do caso Leandro Bossi

A portaria continua com uma história que é mais ou menos assim: Leandro estaria no show e, em algum momento, houve a apresentação de um grupo de palhaços. O menino teria chegado a subir no palco e os palhaços teriam perguntado se alguém o reconhecia. 

Em seguida, a suspeita do inquérito é que esse grupo de atores, que era de Curitiba, poderia ter levado Leandro com eles. Mas não há nenhum depoimento tomado, nenhum relatório da polícia, nada.

Poucos dias depois, Paulina Bossi chegou a ser levada até outro grupo de palhaços que se apresentavam em Matinhos, cidade próxima à Guaratuba. Procuraram por Leandro e não encontraram nada.

Como é possível perceber, desde o início do inquérito já aparece a história de que Leandro teria sido visto no show, provavelmente em uma apresentação anterior de um grupo de palhaços. O problema dessa afirmação é que não existe nenhuma testemunha que confirme isso. E em todos esses anos, nunca apareceu ninguém que tenha dito: “eu vi o Leandro naquela noite no show. Ele subiu na hora do grupo de palhaços, eu tenho certeza que era ele”.

Apesar disso, em uma conversa que Ivan teve com Paulina no início de 2023, ela relatou que Leandro estava ansioso para ir ao show. Então, talvez esse tenha sido o início de tudo. O menino queria ir ao evento. Ele sumiu, e Paulina supôs que o filho teria ido ao show.

OS AMIGOS DE LEANDRO

Em 2017, Ivan não sabia que Leandro falava isso para Paulina. Mas chegou a perguntar para João e Ademir se eles conheciam alguém que pudesse confirmar que o garoto foi visto lá. Veja um trecho da entrevista:

Ivan: Quem viu ele no show do Moraes Moreira? Foram os amiguinhos dele?

Ademir: Os amigos dele. Os amigos dele. Agora… A idade deles agora… Não se acha mais…

João: É complicado…

Ademir: Piazinho era tudo igual, uns nenenzinhos, uns menininhos brincando, que sempre saíam de bicicleta. E vão para skate, vão lá na beira da praia, como ia para Guaratuba, ia ali para a beira de praia.

Ivan: Ele tinha sete anos.

Ademir: Tinha sete para oito já.

João: Ia fazer… Desapareceu no sábado, no outro domingo fez aniversário de oito anos.

Leandro desapareceu em 15 de fevereiro. O aniversário dele era no dia 23.

Ivan nunca conseguiu descobrir quem eram os supostos amigos do menino que estariam no show. Mas havia um nome que aparecia nas conversas: Aramis Cândido de Castro. Ele e Leandro tinham a mesma idade, andavam e brincavam juntos. Ele era filho do casal Inês de Souza Castro e Antônio Carlos de Castro, conhecido em Guaratuba pelo apelido “Vinagre”. 

Aramis faleceu há alguns anos, assassinado. Ivan não possui maiores detalhes sobre a morte dele. De acordo com João Bossi, teria sido algo envolvendo drogas.

Ainda segundo João, Aramis teria visto Leandro no show do Moraes Moreira. Eles estariam em um grupo de quatro amigos. E, depois que Leandro desapareceu, Aramis teria passado a falar a frase: “todo mundo se saiu bem, só o Leandro se fudeu”.

O Projeto Humanos nunca conseguiu confirmar se Aramis realmente teria dito isso. O que se sabe é que há outro fato em torno dele que pode ser muito importante: naquele dia 15 de fevereiro de 1992, Leandro não foi a única criança que desapareceu. Por algumas horas, Aramis também sumiu. Seria possível que esses dois casos tivessem alguma relação?

Quem falou sobre isso foi Lucas Steffen Bossi, o irmão mais novo de Leandro.

Ivan: Já teve muita gente entrando em contato com vocês falando: “eu sei o que aconteceu, foi isso”? Vocês sofrem muito?

Lucas Bossi: Uma única pessoa que pediu para me ligar. Eu não tenho nem registro por mensagem disso. Um dia assim ela me chamou no Facebook e disse que queria conversar comigo, se ela poderia me ligar. Que ela estava desconfortável com uma história. Daí eu falei: “claro, pode me ligar”. Aí ela ligou. […] Como ela me falou? “Lucas, eu na época conhecia uma pessoa que era criança, que conhecia o Leandro”. Ela conversou com uma pessoa que conhecia o Leandro, e conhecia onde o Leandro morava. Foi assim que ela me contou. Daí ela disse assim: “bom, essa pessoa com quem eu falei…”. Ela não me contou quem é… Ela é tipo a fofoqueira me contando a história. Disse assim: “eu conversei com essa pessoa, que hoje é adulta, mas que na época era uma adolescente”. Acho que o pai dela era dono de um mercadinho, e a Paulina, o Ademir e o Leandro moravam na casinha dos fundos. Então, quando a Paulina saía trabalhar e o Ademir saía trabalhar, o Leandro vivia por ali com eles. Às vezes chupava uma bala, ganhava doce ali desse pai dessa pessoa que conversou com essa mulher. E daí, segundo essa mulher, conversando com essa menina, eles lembram muito bem que no dia… Disse em um teor de acusação assim… Que no dia que o Leandro desapareceu, ele não estava desarrumado, a Paulina tinha arrumado ele. Daí eu bem assim: “tá, como você sabe disso?”. “Bom, eu conversei com essa pessoa, e essa pessoa disse que tem certeza, que até brincaram com ele ‘nossa, você está arrumado, tu vai para onde?”. “Eu vou para o show'”, diz que o Leandro falou. Mas, assim, é um disse-que-me-disse.

Ivan: Não, mas é um disse-que-me-disse que… É que o pessoal coloca dentro dessa onda de conspiração e seita satânica, mas vamos olhar pelos fatos. O gerente do hotel estava reclamando que as crianças estavam atrapalhando. A Paulina diz: “Leandro, volta para casa e volta com uma roupa melhor para poder ficar por aqui sem o gerente encher o saco”. O Leandro volta para casa, pega a melhor roupa que tem e sai todo arrumadinho. Os vizinhos olham e dizem: “nossa, você está todo arrumadinho, onde é que você vai?”. A Paulina falou para mim: “o Leandro queria ir ao show”. Então, o Leandro pode ter falado brincando qualquer coisa assim: “vou para o show”. E daí isso começa a virar uma história de que o Leandro foi para o show, sabe? O Leandro disse que queria ir para o show, o Leandro disse que queria ir para o show… Então, assim, veja, pode fazer sentido essa história sim. Seria muito interessante tentar localizar essas pessoas, inclusive.

Lucas: Sim. Ela não deu sigilo, nem nada, mas ela só estava com medo de que essa fosse uma informação muito absurda. Só que não… Na verdade, tu não está acusando ninguém. Só está dizendo que… O tom dela é como se botasse dúvida no que a Paulina falou, sabe?

Ivan: Sei, sei. Porque essa era uma das suspeitas, que a Paulina teria vendido o Leandro, né?

Lucas: Isso, isso. Já rolou essa história, né? Para fazer o pai meu sofrer e tudo mais, essa história…

Ivan: E rolou uma história parecida com o Evandro também. De falar que o pai nem sofreu, onde já se viu…

Lucas: É. Porque todo mundo fala que a Paulina não sofre com a história, ela não fala nada porque esconde alguma coisa. Mas não é bem assim, né? Às vezes as pessoas sofrem diferente.

Então, a partir dessas informações, Ivan tinha duas pistas: a história de Aramis e a história da mulher que teria visto Leandro no dia do desaparecimento. E ele foi atrás disso.