Wiki do Caso Leandro Bossi

Extras Episódio 04

O corpo de Evandro Ramos Caetano, de 6 anos, foi encontrado em um matagal em Guaratuba, no litoral do Paraná, em 11 de abril de 1992, cinco dias após ter desaparecido. Ele apresentava uma série de mutilações muito específicas: estava em avançado estado de putrefação, escalpelado, sem as mãos e sem os dedos dos pés. Além de tudo isso, também tinha o ventre completamente aberto, com as costelas serradas e sem nenhum dos órgãos internos.

Naquele mesmo matagal, Leandro Bossi foi encontrado quase um ano depois. Apesar de ele ter sumido dois meses antes de Evandro, em fevereiro de 1992, a ossada só foi descoberta em março de 1993. Pelo avançado estado de decomposição, não é possível saber detalhes sobre o tipo de violência que ele pode ter sofrido. Contudo, uma coisa chama a atenção: essa ossada estava sem as mãos.

Logo, foram duas crianças muito parecidas, quase da mesma idade, em uma cidade muito pequena, que desapareceram em datas próximas. Os corpos de ambas foram encontrados no mesmo matagal, a uma distância estimada entre 200 e 400 metros. E os dois estavam sem as mãos.

Apenas entre esses dois crimes, Ivan Mizanzuk já considerava que existiam coincidências demais, o que o levava a crer que a mesma pessoa teria matado ambos os meninos. E ele sempre suspeitou que, se esse fosse mesmo o caso, o assassino muito provavelmente teria feito mais vítimas.

Então, em setembro de 2021, após uma fala do promotor Paulo Markowicz no Grupo de Trabalho do Caso Evandro, realizado pela Secretaria de Justiça do Paraná, ele conheceu o caso de Sandra. E foi quando toda a investigação tomou um novo rumo.

O CASO SANDRINHA

No ano de 1989, Sandra Mateus da Luz tinha 11 anos. Ela morava em Fazenda Rio Grande, na região metropolitana de Curitiba. Na época, essa ainda não era uma cidade independente e fazia parte de Mandirituba.

Para quem não é do Paraná, é importante explicar uma questão geográfica. Se uma pessoa mora no Centro de Curitiba, Fazenda Rio Grande fica a cerca de 30 km de distância para o sul, um trajeto que hoje, de carro, dura entre 50 minutos a uma hora.

A cidade é cortada no meio pela BR-116, e boa parte do município se desenvolveu em torno dessa rodovia, que é marcada por vários postos de gasolina.

Um deles é o chamado Posto 22, que fica no km 122 da BR-116. Esse é um ponto de referência para entender a história da Sandra, pois tudo acontece quase que em torno dele. É um estabelecimento gigante, com estacionamento para caminhoneiros.

Sandra morava a 500 metros ao sul do posto de gasolina, em uma casa bem simples, perto de uma região conhecida como Parque Verde. A residência não tinha luz elétrica e nem água encanada. No inquérito, o seu endereço é registrado como “BR-116, km 122 e meio”.

Mapa de Fazenda Rio Grande 1985

Mapa de Fazenda Rio Grande 2003

*O assassinato de Sandra ocorreu em 1989. As imagens de satélite mais próximas que existem dessa época são de 1985 e de 2003. A resolução da primeira é muito baixa, então disponibilizamos a de 2003 também para melhor visualização. Contudo, é necessário ter em mente que a região mudou muito de 1989 para 2003, sendo a primeira imagem (de 1985) mais próxima da realidade na época do crime.

Ela morava junto com a mãe, a dona Juvelina Marta de Lima, e duas irmãs: Márcia, de 14 anos, e Maria Edileide, de oito anos. Na casa ao lado, morava um casal de tios e uma prima, que também se chamava Márcia e tinha 13 anos. Para diferenciar as duas, Ivan chama uma de Márcia Irmã e a outra de Márcia Prima.

Entre a casa de Sandra e o Posto 22, havia poucas moradias, algumas chácaras e muito mato. Atrás do estabelecimento, ficava localizada a escola municipal Guisela Kuss Rieke, conhecida apenas como “Guisa”. Ivan não conseguiu confirmar se Sandra estudava lá, ou sequer se estava indo para a escola na época.

No dia 4 de junho de 1989, um domingo, acontecia uma festa junina na escola Guisa, que ficava a uns 10 minutos da casa de Sandra a pé. Havia dois caminhos para lá: um pela BR e outro pelo meio do mato.

As duas Márcias, a irmã e a prima da menina, tinham idades próximas, o que as fazia serem mais amigas. Naquele domingo, por volta das 14h, as duas decidiram ir juntas para a festa junina. Mais tarde, em horário difícil de precisar pelos depoimentos tomados, a Márcia Irmã viu chegarem na festa as duas irmãs menores: Sandra e Maria Edileide, de apenas oito anos.

De acordo com os relatos, Sandra aparentava querer ficar na festa, mas a irmã menor reclamava muito do frio. Por causa disso, as duas brigaram, e Sandra se separou dela. As Márcias, irmã e prima, também queriam curtir o evento, até por serem mais velhas, e não estavam afim de cuidar das irmãs menores.

Porém, após Sandra fugir no meio da multidão, Márcia Irmã foi até a pequena Maria Edileide e decidiu que era melhor levá-la para casa junto com a prima. Então, no fim da tarde daquele domingo, todas as meninas voltaram para casa – com exceção de Sandra. Assim que deixou Maria Edileide na residência, a Márcia Irmã resolveu voltar para a festa, para tentar buscar Sandra. A Márcia Prima decidiu ficar em casa.

Nesse meio tempo, Sandra falou com um conhecido seu que estava na festa, um homem que Ivan vai chamar de “João Antônio”. Esse não é o nome verdadeiro, é um pseudônimo por motivo que logo ficará claro.

Ele tinha 40 anos e era vigilante. Segundo o próprio depoimento de João Antônio, Sandra teria dito para ele que havia brigado com as irmãs, e queria que ele a acompanhasse de volta para casa. Ele esperou um pouco e, em seguida, levou-a até o Posto 22, quando Sandra lhe disse que dali poderia ir sozinha.

Ao que tudo indica, Sandra seguiu para casa pela BR, enquanto a irmã Márcia foi pelo caminho do mato. Ou vice-versa. Isso porque, ao chegar, Sandra encontrou a mãe, que lhe disse que a irmã tinha saído atrás dela. A mãe falou para ela não sair mais, mas Sandra a ignorou e caminhou em direção ao Posto 22 – provavelmente na esperança de encontrar a irmã.

Enquanto isso, Márcia foi até a festa e não achou Sandra, que, a esta altura, também estava procurando por ela. Decidiu, então, voltar para casa. Ao chegar, foi informada pela mãe que Sandra havia saído novamente em busca dela. Após o desencontro, Márcia Irmã decidiu não sair mais e esperar por Sandra.

E então, por volta das 20h, uma vizinha chamada Cecília foi para o restaurante do Posto 22 para comprar cigarros. Lá, encontrou Sandra sentada nas escadas. De acordo com o seu depoimento, Cecília chegou a perguntar para a menina o que ela estava fazendo ali sozinha, mas Sandra não respondeu. De acordo com o inquérito, Cecília foi a última pessoa a ver a garota viva.

Geralmente, para tornar o trabalho mais transparente, Ivan costuma disponibilizar partes dos autos de processo e inquérito para que os ouvintes tenham acesso às informações. 

No caso de Sandra, isso não será possível por se tratar de uma investigação arquivada que contém dados sensíveis de pessoas que não podem mais ser acusadas de nada. 

Por isso, para preservar essas pessoas, tanto testemunhas como suspeitos, ele vai usar pseudônimos. Os únicos nomes que vai manter são os da família da Sandra. O próprio nome da Cecília, citado anteriormente, é um pseudônimo.

O inquérito de Sandra não possui boletim de ocorrência sobre o desaparecimento. A mãe, a dona Juvelina, não sabia que tinha que fazer uma denúncia em uma delegacia da Polícia Civil. Nos dias que se sucederam, ela só foi até um posto da Polícia Militar que havia próximo de casa para avisar do desaparecimento da filha, mas não avançou com isso.

E então, chegou o dia 12 de junho de 1989, uma segunda-feira, Dia dos Namorados. Sandra estava desaparecida há nove dias. O senhor Ilário Dolci morava em uma chácara entre a casa da menina e o Posto 22.

Toda manhã, ele tinha o hábito de soltar os cachorros para passear pelo campo. Naquele dia, um dos animais não voltou. Decidiu, então, ir atrás dele. Quando o encontrou, notou que o cão tinha passado para o lado de fora da propriedade, que era demarcada por uma cerca de arame. Ao se aproximar, viu que o cachorro estava em cima do corpo de uma criança. Era Sandra.

O inquérito de Sandra inicia com uma portaria de abertura de investigação após o corpo ter sido encontrado. No documento, está escrito o seguinte:

Chegando ao conhecimento desta Autoridade Policial que, por volta das 8 horas da manhã do dia de hoje, nas proximidades do Km 122 da BR-116, em um terreno baldio, foi encontrado o corpo de uma menor o qual apresentava algumas partes dilaceradas, sendo o corpo identificado como sendo da menor Sandra Mateus Da Luz, de 11 anos de idade.

Sandra foi encontrada sem as mãos e escalpelada – fortes semelhanças com o corpo de Evandro Ramos Caetano, em um crime que ocorreria três anos depois em Guaratuba. Mas havia algumas diferenças. Para começar, Evandro estava com o ventre aberto e sem os órgãos internos. Esse não era o caso de Sandra. E, em relação ao escalpo, o ato praticado na menina foi bem mais violento: além do couro cabeludo, toda a máscara facial foi arrancada, ficando apenas o crânio à mostra, sem os olhos.

Ela também não demonstrava o mesmo nível de putrefação de Evandro. Ele ficou sumido por cinco dias até o corpo ser encontrado, e a decomposição estava bem adiantada. Já Sandra havia desaparecido por nove dias, e não apresentava uma putrefação tão avançada. Isso significa que, muito provavelmente, desde que foi sequestrada, a menina ficou presa em algum lugar até ser morta.

Como Ilário Dolci tinha o hábito de soltar os cachorros todos os dias, e pelo estado do local onde o corpo de Sandra foi descoberto, o cadáver provavelmente estava lá por apenas algumas horas até ser achado.

E há mais uma diferença bem importante em relação ao Evandro: a necrópsia no Instituto Médico Legal de Curitiba constatou que Sandra foi violentada sexualmente antes de morrer. Mas não foi encontrado nenhum vestígio de sêmen.

Dadas as diferenças, é importante também dizer que outras semelhanças chamam a atenção.

Primeiro, apesar da ausência de mãos e rosto, o corpo de Sandra estava vestido. Ou seja, assim como Leandro e Evandro, ela estava com as roupas. É importante lembrar que qualquer comparação com a ossada de Leandro fica prejudicada pela falta de informações e pelo avançado estado de decomposição em que ele foi encontrado.

Não há como saber, por exemplo, se as roupas dele tinham vestígios de sangue. O calção que Evandro vestia estava completamente ensanguentado. Já no caso de Sandra, as roupas estavam relativamente limpas, como se o assassino tivesse vestido a vítima após as mutilações.

Por matérias de jornal, é possível saber que próximo à ossada de Leandro foram encontrados os seus chinelos. No caso de Evandro, os chinelos também estavam presentes, mas de uma forma muito peculiar: após a descoberta do corpo, uma varredura foi feita na região em um raio de mais ou menos 40 a 50 metros. Nada foi encontrado na ocasião. No entanto, dias depois, os chinelos surgiram por lá. Ou seja, aparentemente, o assassino voltou ao matagal para se desfazer desses objetos.

Já em relação à Sandra, o corpo foi encontrado em 12 de junho de 1989, e não há nenhuma menção sobre os chinelos terem sido achados no local. Contudo, quase um mês depois, em 7 de julho, o doutor Inácio Raymundo Pensin, o delegado responsável, produziu um ofício dizendo que o calçado deveria ser encaminhado para exame:

Um dos chinelos foi encontrado à beira da estrada secundária, a cerca de 20 metros do local onde foi encontrado o corpo; o outro pé foi encontrado no mesmo terreno baldio que o corpo foi encontrado, a uma distância de uns 10 metros.

O doutor Inácio já é aposentado há muito tempo e não quis dar entrevista. Mas falou com Ivan diversas vezes para tirar algumas dúvidas. Em uma das conversas, o ex-delegado foi questionado sobre quando exatamente os chinelos haviam sido encontrados, pois no inquérito isso não era muito claro. Ele não soube responder.

Pelo inquérito em si, baseando-se nas datas, Ivan tem a impressão de que os chinelos foram achados alguns dias depois, exatamente como no caso de Evandro. E, nas investigações sobre a morte do menino em Guaratuba, não há nenhum laudo que aponte onde os chinelos estavam e a que distância do corpo. Só há uma foto que mostra o matagal e um canal cortando o cenário. Do lado esquerdo do canal, uma seta indica o local onde o cadáver foi jogado. Do lado direito, há duas setas, distantes uma da outra, apontando os lugares onde cada pé do chinelo estava. Ou seja, eles se encontravam longe um do outro. Exatamente como no caso de Sandra.

Foto do matagal indicando local dos chinelos de Evandro

Os corpos dos garotos de Guaratuba foram deixados em um matagal perto das suas casas, apesar de pouco frequentado. O corpo de Sandra estava em um terreno baldio, cercado de vegetação, também próximo de onde a menina morava. Há muitas semelhanças. Mas há também diferenças – e uma delas é bem evidente: o fato de Sandra ser menina.

A FAMÍLIA DE SANDRA

A mãe de Sandra, dona Juvelina, já faleceu. Márcia, a irmã mais velha, não quis dar entrevista. Maria Edileide, a irmã menor, era muito pequena na época e sequer chegou a prestar depoimento no inquérito. Mas, então, Ivan descobriu que Sandra tinha uma irmã mais velha, que em 1989 já não morava com a família há alguns anos.

Sueli Aparecida Lima da Luz Matos tem 52 anos e ainda mora em Fazenda Rio Grande – que na época fazia parte do município de Mandirituba. Durante esse ano de 2023, ela foi a principal fonte de Ivan no esforço em entender melhor a história de Sandrinha e sua família. Leia a transcrição de um trecho da entrevista para o podcast:

Sueli: Bom, eu me casei muito cedo. Casei bem nova, tinha 14 anos. Aí a minha mãe tinha comprado o terreno aqui. Que o meu pai faleceu aí em Curitiba. Ela veio, comprou o terreno, e a gente ficou ali com ela. E eu me envolvi muito cedo… Minha mãe recolhia bastante tipo de pessoas dentro de casa, e eu não aceitava, né? Aí peguei e fui embora, fui viver a minha vida. Aí a minha mãe vendeu os terrenos que tinha ali e foi para Curitiba. Daí, de lá, ela rolou, né? Foi para cá, foi para lá. Então, a minha convivência com a mãe já diminuiu, porque eu a via uma vez por mês, às vezes a cada dois meses, a cada 15 dias, eu ia visitar a minha mãe. Até que perdi uma irmã de doença mesmo, no hospital… Que é abaixo de mim. E depois ela veio morar no Parque Verde, que foi onde aconteceu a tragédia com a minha irmã, com a Sandra.

A irmã que Sueli diz que morreu por doença chamava-se Sônia. Ela faleceu com 15 anos, quando Sueli tinha 17. Isso aconteceu por volta de 1987, antes de Sandra ser assassinada.

Ivan: A senhora nasceu em 1970, então?

Sueli: 1970. Aham.

Ivan: 1970. O seu pai faleceu em que ano?

Sueli: Ai, o ano, agora você me…

Ivan: Quantos anos você tinha?

Sueli: Eu tinha sete anos.

Ivan: Tinha sete anos. Então deve ter sido 1977, mais ou menos.

Sueli: 1977, por aí, né?

Ivan: Então você tinha sete anos. Você só saiu de casa com quantos anos mesmo?

Sueli: Com 14.

Ivan: Com 14 anos que a senhora casa…

Sueli: Que eu casei. Aham. Com o pai dos meus filhos.

Ivan: Isso. Então, 14 anos, foi em 1984…

Sueli: Aham.

Ivan: Casou e saiu de casa. Então, ou seja, você ficou morando ainda uns sete anos com a sua mãe, de 1977 a 1984, dos seus sete aos 14 anos.

Sueli: Isso.

Ivan: Era a dona Juvelina, né?

Sueli: É. Falecida hoje também…

Ivan: Você é a mais velha das irmãs?

Sueli: Sim.

Ivan: Tá. Então, vamos lá, nesse período dos seus sete aos 14 anos, você tinha a Sônia, a Márcia e a Sandra como irmãs.

Sueli: Isso.

Ivan: Eu lembro de uma conversa que a gente teve, que você falou que cuidava mais delas.

Sueli: Era eu, aham.

Ivan: Era você?

Sueli: Era eu mesmo.

Ivan: A sua mãe não cuidava.

Sueli: A mãe cuidava, mas não ligava muito. Era eu que tomava conta das meninas.

Ivan: Aham. O seu pai cuidava antes, quando era vivo?

Sueli: Não. Daí ele trabalhava e a mãe cuidava de nós. Aí era ela, que eu era pequena também, né?

Ivan: Depois que ele faleceu, daí ela…

Sueli: Deu uma abandonada, né?

Ivan: Ela ficou mal com a morte do seu pai, então?

Sueli: É. Deu uma decaída, na verdade, com a morte dele. Ficou com quatro, né? Na verdade… Pequenininhas, nós éramos. E eu era a mais velha… Tinha quatro anos. A Sandra tinha oito meses quando ele faleceu. Eu tinha sete, né?

Ivan: Ele faleceu do quê? Desculpa perguntar…

Sueli: Morreu no trabalho. Ele era mestre de obra. Aí ele pegou uma empresa… Por sinal, que não registrava a carteira nunca. Daí, nessa empresa, ele conseguiu registrar a carteira. E ele fez um barracão para essa empresa em que foi trabalhar. Deu de chave na mão, prontinho. Daí foi limpar um poço, que era poceiro uma época. Era pedreiro, carpinteiro, poceiro… E ele foi limpar um poço para esse patrão que pediu pra ele. Daí ele foi limpar… Nesse poço tinha motor, né? Não sei te dizer também se foi de choque ou se foi de gás, sei que morreu, ele e mais um companheiro dele. Morreu… Que daí ele estava lá embaixo, o outro foi descer… Morreram… Diz que agarrado… Eu não vi, mas diz que não conseguiu nem tirar, assim. Mas meu pai ficou bem roxo. Então, não sei se foi o gás ou se foi o choque…

Ivan: Foi acidente de trabalho, então.

Sueli: Foi acidente de trabalho, na verdade.

Ivan: Ah, tá. E daí quando… Daí a tua mãe ficou muito mal, quatro filhas para criar…

Sueli: É. Deu uma desnorteada, né?

Ivan: Ela se mantinha como financeiramente? Ela trabalhava? Ela…

Sueli: Não. Até então, ela só era do lar.

Ivan: Era do lar.

Sueli: Era. Daí meu pai faleceu. Como era registrado o meu pai, conseguiram aposentar, deixar pensão para ela. E ela ficou com a pensão, né? A pensão… E daí nesse tempo tinha aqueles abonos, aquelas coisas. Ficou com abono nosso, que daí conforme a gente foi pulando de idade, foi decaindo o dinheiro dela, né? Mas ela vivia até bem, tinha um salário, que daí… Por todos esses anos, ela recebeu. Era pensionista, no caso.

Ivan: Mas vocês passavam dificuldades, assim?

Sueli: Bastante, né? Bastante, né? Que o dinheiro não era muito, né? E muito filho… Demais… Você vê, quatro meninas. Não era fácil. 

Após a morte do pai, com apenas sete anos, Sueli se tornou a principal cuidadora das irmãs. Isso continuou até os 14 anos, quando ela saiu de casa para se casar. 

Nas palavras dela, sua mãe nunca cuidou bem das filhas. A vida era muito instável com ela. Após Sueli sair de casa, Juvelina se mudou para Curitiba com as meninas. Mais tarde, ela e as crianças voltaram para Fazenda Rio Grande. 

Em 1989, quando Sandra morreu, a família já morava lá há cerca de dois anos. Nessa época, Sueli tinha 19 anos e um filho pequeno. Mesmo distante da mãe, ela ainda se preocupava muito com as irmãs. Afinal, Sueli não apenas havia criado as meninas, como também reprovava algumas atitudes da mãe, especialmente em relação a homens.

Sueli: Então, eram os próprios vizinhos que iam para tomar chimarrão, tomar um café, e ela recolhia. E eu ficava brava porque tinha mulher em casa. Eu dizia: “deixa a mulher em casa e vem aqui na casa da minha mãe. A minha mãe não tem homem para você conversar”. Eu pensava. Você veja, eu era menina e pensava assim. “O que quer aqui na minha casa se não tem homem? Só tem a minha mãe e nós, meninas. Não tem que ficar aqui. Se suma”. Eu atropelava realmente.

Ivan: Mas você já dirigia?

Sueli: Não…

Ivan: Atropelava… Você está dizendo…

Sueli: Atropelava os homens de casa…

Ivan: Ah, atropelar de expulsar. Eu imaginei que você estava com um carro e tocou o carro em cima da pessoa…

Sueli: Não… Atropelava de dentro de casa. Eu dizia: “se suma daqui”. Tipo assim, né? “Não tem homem, o que quer aqui, né?”. Era isso.

Ivan: Então, você atropelava no caso de expulsar o pessoal de casa…

Sueli: Isso, aham. “Já dirigia…”. Coitada, eu não tinha nem carrinho de verdade…

OS PRIMEIROS SUSPEITOS

O fato de dona Juvelina levar homens para casa aparece algumas vezes no inquérito de Sandra. Aparentemente, isso a levava a ter uma fama de “mulher fácil”, até mesmo de prostituta. Isso surge em vários momentos no inquérito, através de depoimentos de algumas testemunhas.

A casa tinha apenas um quarto. A mãe dormia com as filhas. Se ela levava homens para dentro, para morar ou dormir com ela, as meninas estariam junto também. Sabendo disso, a polícia começou a olhar para um suspeito em específico. Um homem que Ivan vai chamar deEdson”.

Ivan: Tá. Fala aqui de um homem chamado [nome ocultado], que ela chegou a levar para casa para dormir, e daí…

Sueli: Para dormir, eu não posso te falar. Agora, que ele ia de dia, isso eu sabia que ia. Mas para dormir… Que eu saiba, as meninas também podiam falar, né? Nunca falaram que dormia…

Ivan: É. Ela falou aqui no depoimento, a tua irmã Márcia.

Sueli: Que ele dormia?

Ivan: É, que ele dormia.

Sueli: É. Daí já não é do meu conhecimento, né?

Ivan: Que ele ficou um tempo, assim… Ficou dois, três meses, e parece que roubou a sua mãe…

Sueli: Não é do meu conhecimento. Eu não sabia que tinha homem dentro da casa.

Ivan: Tá.

Sueli: Pelo menos quando eu ia, não estava, né?

Ivan: Nunca viu?

Sueli: Nunca vi. Nem conheço, para você ter uma ideia.

Edson, cujo nome verdadeiro foi ocultado na conversa com Sueli, se tornou suspeito por uma série de motivos. 

Primeiro, porque ele tinha um histórico de doença mental, chegando até a ser internado em algum ponto da vida. Segundo, porque ele teria matado o próprio pai quando era jovem, alegando autodefesa. E terceiro, porque no próprio depoimento, Edson dizia que, certa noite, enquanto dormia, Sandra e Maria Edileide teriam tentado mexer em seu pênis. Ainda de acordo com ele, quando notou a atitude das meninas, afastou-as.

Pouco tempo depois, Edson teria roubado alguns pertences e dinheiro de dona Juvelina, e saído da casa. Mas, também de acordo com o inquérito, o indivíduo tinha um álibi: no dia que Sandra sumiu, ele estaria trabalhando como caseiro em uma chácara distante. Ninguém o viu pela região no dia do desaparecimento. Então, tudo em torno dele ficou apenas na base da suspeita.

Além de Edson, outro homem investigado foi o vigia João Antônio, aquele que saiu da festa junina na escola Guisa para levar Sandra até uma parte do caminho para casa, deixando-a na BR-116. 

Por muito tempo, ele foi o principal suspeito do caso, visto que tinha acabado de se mudar do interior do Paraná para Fazenda Rio Grande e, na cidade de onde veio, tinha uma acusação de estupro – que ele admitia ter cometido.

Só que, neste caso, a vítima era uma mulher maior de idade. Fora isso, de acordo com o inquérito, João Antônio também tinha problemas mentais e chegou a ser internado – assim como o outro suspeito, Edson.

Porém, em alguns dos relatórios, os investigadores comentam que o vigia demonstrava não ter problema algum em admitir os crimes que havia cometido no passado, mas negava veementemente ter praticado qualquer coisa contra Sandra.

Ainda segundo os relatórios, nos dias seguintes à festa, muitas pessoas viram e acompanharam a rotina de João Antônio. Ninguém notou nada de incomum. E isso era importante porque, ao que tudo indicava, Sandra teria ficado presa em algum local. Quem quer que a tenha matado teria que ter alterado a rotina de alguma forma, ou ao menos ter se isolado. Não era o caso dele, pelo menos de acordo com os investigadores.

Tanto o caso de João Antônio quanto o de Edson mostram uma coisa: o fato de ambos terem problemas psiquiátricos foi fundamental para que se tornassem suspeitos. Mas os dois foram descartados justamente porque não havia nada que os ligasse ao crime diretamente.

A impressão que Ivan tem é de que muita coisa do inquérito de Sandra gira em torno de mulheres em relações abusivas e da sexualização de menores, além de muita reprovação e cobrança sobre como uma mulher deve se portar – no caso, a mãe de Sandra, que tinha má fama. Isso aparece em vários depoimentos da investigação e, por isso, Ivan queria entender melhor esse contexto pelas lembranças de Sueli.

Sueli se casou muito nova, com 14 anos. O marido já é falecido, e os dois ficaram juntos até o fim da vida dele. Então, Ivan decidiu começar por essa história:

Ivan: Você queria sair de casa rápido?

Sueli: Não. Não que eu me arrependa, né? Que não me arrependi porque peguei a pessoa certa na vida. Mas não gostaria… Se fosse hoje, não sairia, né?

Ivan: Eu pergunto isso porque você se casou super nova. Eu conheço pessoas que se casaram super novas geralmente porque assim… “Ah, eu não via a hora de sair de casa”.

Sueli: É, não… Na verdade, eu saí não querendo sair. Na verdade, eu era uma menina. Eu casei, eu nem moça era, para você ter uma ideia. Eu fiquei moça, mulher, tudo junto, depois, né? Nem moça era. Então, quando eu saí de casa… Foi pelo fato de a mãe recolher muita pessoa mesmo dentro de casa. E daí eu não aceitava, mas eu não mandava, né? E eu achava errado já. Mas se a mãe recolhia, eu vou fazer o quê?

Ivan: Quando a sua mãe começou a trazer homens para casa?

Sueli: Quando ela veio morar aqui, ela já começou a recolher… Já fazia, né? Tanto que arrumou essa minha irmã, que daí acabou criando sozinha, que esse marido dela quis me pegar. Daí eu contei, fui e contei para essa minha tia…

Ivan: Uma coisa de cada vez, então. Vamos para essa última irmã, a Maria Edileide. Isso aí… A sua mãe já era bem mais velha.

Sueli: Já. Já uma boa idade…

Juvelina nasceu em 1943. Logo, em 1981, quando Maria Edileide nasceu, ela tinha 38 anos – e era mãe solo de quatro meninas. Maria Edileide era a quinta filha, fruto de um novo relacionamento.

*Aqui um aviso de gatilho: Sueli relata como, ainda criança, o companheiro da mãe tentou abusar dela.

Ivan: Daí ela [Juvelina] se casou? Chegou a se casar?

Sueli: Não. Ela só viveu com esse cara que ela arrumou…

Ivan: Você morava com ela?

Sueli: Eu morava com ela ainda.

Ivan: Você morava com ela. Você morava com ela. Trouxe esse cara… E daí ele ficou quanto tempo na casa de vocês?

Sueli: Ah, ele deve ter ficado… Acho que uns dois anos com a minha mãe. A minha mãe engravidou, aí ele quis abusar de mim, na verdade… Quis mesmo… E eu era…

Ivan: Você tinha quantos anos?

Sueli: Nossa, eu tinha… Acho que uns 10, 11 anos por aí…

Ivan: E ele tentou te abusar?

Sueli: Aham. Tentou. Daí ele mentiu para ela que foi me cobrir. Mas eu dormia de roupa apertada, né? Calção jeans, calça jeans, coisa assim… Que eu tinha medo, né? Eu tinha medo. Os outros falavam as coisas, e eu tinha medo. Aí ele veio querer desabotoar o meu calção, eu chamei a mãe, fiz um escândalo. Daí a mãe meio que acreditou não acreditando, que ele falou que tinha ido me cobrir e ela acreditou nele. Eu falei: “não, eu não fico mais aqui”. Eu fui na casa dessa minha falecida tia e contei a história para ela. Falei o que tinha acontecido, aí ela foi lá, conversou com a minha mãe e falou: “ou você manda ele embora daqui ou eu denuncio você, e você vai perder todas as meninas”. Aí ela optou em sumir com ele de casa e ficar com nós, né?

Ivan: Grávida.

Sueli: Não, ela já tinha a menina. Já tinha a menina. Já tinha. Era bem novinha a menina. Ela criou sozinha também a menina.

Ivan: Sim. E o cara sumiu?

Sueli: Sumiu. Daí nunca mais… Nunca mais… Nunca deu uma lata de leite, resumindo, né? Criou sozinha a menina.

Ivan: Criou sozinha. Você tinha quantos anos quando nasceu a Maria Edileide?

Sueli: Eu devia ter uns nove, nove para 10 anos já… Que ele ficou uns dois anos com ela, né?

Ivan: Então foi um dos primeiros, assim, que ela se relacionou?

Sueli: É. Tinha outros homens. Mas que ela ficou, foi esse. É… Que daí ela até engravidou.

Ivan: Daí engravidou, e você acabou cuidando também da Maria Edileide, provavelmente.

Sueli: Daí eu cuidei… Até que eu fiquei… Até os 14, eu que cuidei, também ajudava…

Ivan: Também ajudava. E daí todas as meninas ajudavam também? Você, a Márcia…

Sueli: É, a Sônia, que era a maiorzinha também, dois anos só de diferença. É o tal assim: uma fazia uma coisa, a outra fazia outra. Mas quem mais fazia era eu mesmo, né?

Ivan: Então, por um tempo, foram cinco filhas juntas, uma cuidando da outra…

Sueli: É.

Ivan: Tá. Você também tinha quem cuidasse de você?

Sueli: Não.

Ivan: Não. Você que…

Sueli: Eu que me cuidava e tinha que cuidar das irmãs…

Ivan: Nem a Sônia conseguia ajudar muito, assim…

Sueli: Não. Porque ela era novinha, eu também, né? Dois anos, mas são dois anos, né?

Ivan: É. Quando você tem 11 anos, ela vai ter nove…

Sueli: É. Bem criança, né?

Ivan: Mas você amadureceu muito. Com sete anos já ter que…

Sueli: Muito. Muito, muito, muito. Muito. Amadureci muito. Eu amadureci muito rápido, né? De verdade, assim, cresci vendo coisas erradas, e tive que aprender que não poderia ser daquela forma que estava acontecendo. Eu já cresci vendo assim: eu vou ser diferente, né? Porque isso não pode, isso não é assim que faz, tem que fazer diferente. Então, cresci, amadureci muito menina.

A ROTINA DAS MENINAS

No inquérito de Sandra há muitas menções de que Juvelina deixava as filhas soltas. Há relatos de pessoas que viam as meninas tomando banho nuas em um lago que ficava na beira da estrada, perto do Posto 22, onde havia muitos caminhoneiros.

As meninas também passavam bastante tempo nesse posto. Aparentemente, conseguiam algum dinheiro com os motoristas de caminhão. 

Ivan chegou a conversar com alguns funcionários antigos do estabelecimento para entender se, naquela época, havia algum problema com prostituição infantil. Eles negaram. Falaram que havia, sim, prostitutas pela área, mas que eram maiores de idade. Nada de menores.

Ainda assim, com base nas dúvidas que os depoimentos no inquérito levantavam, havia a suspeita de que Sandra poderia estar se prostituindo. E que, de repente, ela poderia ter sido levada por algum caminhoneiro.

Ivan: Existe nos depoimentos, e eu não sei dizer… A impressão que eu tenho é que é uma época que acham que menina de 10, 11 anos, já está afim de transar, por exemplo. E falam muito, assim, das meninas serem desinibidas, da mãe ter um comportamento que não é legal, sabe? Está sempre chamando homem… E dá a impressão em alguma passagem aqui que a Sandra poderia estar envolvida com prostituição. Você acha isso possível?

Sueli: Não. De maneira nenhuma. Ela não. Nem ela, nem a outra… Para você ter uma ideia… Que falar é fácil, né? O povo fala muito, né? O povo fala. E como é menina… Menina é exibida mesmo, menina é exibida, pronto e acabou. Mas… Portanto… Que depois de tudo o que aconteceu, que nem eu já te falei, a Márcia [irmã] veio morar comigo, e casou… Saiu casada da minha casa, e quem tirou a virgindade foi o marido. Então, de maneira nenhuma a outra era, né? De maneira nenhuma. Se essa que vivia junto, que era a mais velha, era moça… Imagina as outras, que eram meninas, né? Então, nisso eu boto a mão no fogo pela menina lá.

Ivan: Elas podiam pedir dinheiro para caminhoneiro?

Sueli: Podiam…

Ivan: Isso sim. Isso acontecia.

Sueli: Ah, falaram que sim, mas eu também não posso dizer que é verdade. Mas podia pedir. Criança pede mesmo, né?

Ivan: É. Eu tinha… Eu conversei com alguns funcionários antigos do posto, e falaram que era muito comum criança ir lá para pegar, por exemplo, graxa, óleo para vender, óleo velho, coisa assim. Você não lembra de a Sandra ter alguma…

Sueli: Não.

Ivan: Ou das tuas irmãs fazerem alguma coisa assim parecida?

Sueli: Não. Nunca nem fiquei sabendo. Que nem eu estou falando, nunca nem fiquei sabendo que elas pediam dinheiro, mas isso era possível, lógico.

Ivan: Isso era possível.

Sueli: Possível.

Ivan: Pela condição que viviam…

Sueli: Pela condição que viviam… “Me dá um dinheirinho?”. Podia. Podia. Que elas eram sem maldade, né? Criança não vê maldade nessas coisas. Então, podia aqui pedir um dinheiro, mas não que ela se prostituísse para pegar o dinheiro, daí é mentira. Daí eu desafirmo. Desafirmo por ter cuidado dessa minha irmã, da Márcia, que ela saiu casada de dentro da minha casa, e o marido falou para mim que pegou e era virgem. Então, se ela era virgem, imagina as outras duas, que eram meninas. E ela já era mais mocinha.

Ivan: Aham. E a sua mãe? Alguma chance de ela ter feito programa na época, alguma coisa assim?

Sueli: Não. Acredito que não. A minha mãe não, não. A minha mãe era bem de boa, sobre isso era. Sem chance.

Ivan: Gostava de um homem, ia lá…

Sueli: É, nada, nada a ver. De pegar… Era mais fácil ela dar o dinheiro para o homem ainda.

Ivan: Aham…

Sueli: Coitada. Era mais fácil ela te ajudar do que ela tomar de você, tá bom? Aham… [Risos] Verdade, aham.

Em um episódio futuro, Ivan esclarecerá melhor a questão da aparente sexualização das crianças existente neste caso, pois esse parece ser um ponto importante da investigação.

Ivan: Ela [Sandra] desapareceu no domingo. Quando você ficou sabendo?

Sueli: Então, eu trabalhava, na verdade… O meu marido trabalhava de segunda a sexta, e no sábado e domingo eu trabalhava. Daí ele cuidava do Leandro para mim, o meu marido.

Leandro é o filho de Sueli com seu falecido marido.

Sueli: No domingo… Por isso que eu falo para você… Ele tinha três anos… Que ele fez três anos no domingo, que elas vieram ver ele. Veio a minha mãe e a Sandra. A Márcia, a Maria Edileide e a prima… Diz que já estavam nessa festa.

Ivan: Quando é o aniversário dele?

Sueli: É no dia 3 de junho.

Ivan: 3 de junho?

Sueli: Ele tinha feito três anos.

Ivan: Tá. Aham.

Sueli: Ele tinha completado três aninhos no domingo, e a mãe veio ver ele. E eu não vi nem a mãe, nem a irmã, porque eu estava trabalhando.

Ivan: Aham. Então estava só o teu marido.

Sueli: Só o meu marido cuidando, aham.

Ivan: O teu marido estava cuidando aqui, estava tendo… Estava tendo festa de aniversário?

Sueli: Não, não tinha festa. Eu estava até trabalhando…

Ivan: Estava trabalhando. Elas vieram dar feliz aniversário.

Sueli: Isso, vieram, aham.

Ivan: Tá. Isso foi num sábado, provavelmente.

Sueli: Não, foi no domingo.

Ivan: Foi no domingo?

Sueli: Que ela veio.

Ivan: Deixa eu só…

Sueli: E no domingo que ela veio na minha casa, que ela sumiu.

Ivan: Deixa eu só confirmar… Calendário 1989… Que daí a gente já tira essa dúvida do dia certinho. Em junho de 1989, o dia 3 era um sábado, 4 era um domingo. Então, a festa do domingo foi no dia 4 mesmo. Mas você trabalhava sábado e domingo.

Sueli: Isso.

Ivan: Tá. Então, você podia estar trabalhando no sábado, elas vieram aqui…

Sueli: Não, ela veio no domingo mesmo.

Ivan: Você tem certeza?

Sueli: Foi no domingo que ela veio.

Ivan: Foi no domingo. Por que você tem certeza que foi no domingo que elas vieram?

Sueli: Porque naquele sábado eu não trabalhei. No dia do aniversário dele, eu estava em casa, né? Então, daí ela não veio no sábado e veio no domingo dar um… A mãe veio trazer um presentinho para ele, né? E eu estava trabalhando no restaurante. Eu trabalhava no restaurante na época.

Ivan: Qual restaurante?

Sueli: Na verdade, eu trabalhava com a dona… Com a dona Ivete… Com a dona Zeli…

Ivan: Dona Zeli.

Sueli: Aham. Que era tipo no [quilômetro] 21 aqui, para o lado de cá.

Ivan: Tá. Então, foi aniversário no sábado, no domingo você está trabalhando. Vem a sua mãe e a Sandra para entregar um presentinho para o Leandro.

Sueli: Isso.

Ivan: Só a sua mãe e a Sandra.

Sueli: Ela e a Sandra.

Sueli não prestou depoimento no inquérito de Sandra. E essa informação de que Sandra e a mãe teriam ido para a casa de Sueli no domingo era nova. Mas isso talvez explique o motivo da menina ter demorado para ir até a festa junina na escola Guisa. 

Afinal, a irmã e a prima foram por volta das 14h. Sandra só foi horas depois, por volta das 17h, provavelmente. Então, é possível que, nesse intervalo, Sandra estivesse visitando Sueli – que não estava em casa – para deixar um presente para Leandro.

Ivan: Daí você ficou sabendo que ia ter uma festa, a festa junina?

Sueli: Eu nem sabia que tinha festa lá nesse dia, né? Porque eu só ficava em casa e daí trabalhava, né? Então, nem sabia que estava tendo festa, o que estava acontecendo no domingo. Eu só cheguei em casa, daí o marido falou que a mãe tinha vindo ali com a Sandra, que tinham trazido presente para ele, e tinham ido embora. Ele fez um café, deu para minha mãe, e elas foram embora. E eu cheguei por volta de 17h, 17h30, que é o horário que eu chegava em casa. E daí fiquei de boa, né? Segunda, terça, quarta, quinta, sexta. Daí não vi mais a mãe. Não pude mais também ir. Chegava o final de semana, eu ia trabalhar. Ela ficou nove dias desaparecida.

Ivan: Quando você ficou sabendo que ela sumiu?

Sueli: Bem no dia que acharam, que fazia nove dias que ela tinha sumido.

Ivan: Você nem sabia que ela tinha sumido.

Sueli: Nem sabia que ela tinha sumido. Não, sabia. A minha mãe veio… Fazia… Acho que… Ela veio no domingo… Ela veio no domingo, e ela sumiu. Daí, no meio da semana, quando foi… Acho que na quarta, por aí, na quarta ou na quinta, a minha mãe veio falar que ela tinha sumido… Se ela não estava lá em casa, né? Mas jamais eu ia ficar com ela tantos dias sem avisar a mãe. Eu falei: “não, aqui não apareceu”. Daí já deu aquele apavoro, né? Onde está a menina? Tantos dias já, né? Daí eu perguntei para a mãe se ela tinha ido na delegacia, ela disse que tinha ido. Então, se ela foi, não precisava eu estar indo. Aí a gente começou a procurar, né? Foi procurar nos matos, e saiu por aqui, saiu para… Quase ficamos todos loucos. E não encontrava, não encontrava. Quando fazia nove dias certinho que ela tinha sumido, vieram atrás de mim para eu reconhecer ela.

Ivan: Como foi nesse dia? Como que… Você estava em casa?

Sueli: Estava. Estava de manhã em casa. A minha tia chegou e falou que tinham achado a Sandra morta.

Ivan: Qual tia?

Sueli: A tia Eva. Foi ela que veio na minha casa.

Tia Eva era vizinha de Sandra, mãe da Márcia Prima.

Sueli: Que era para eu estar indo lá reconhecer, que não tinham achado a mãe, que a mãe não estava em casa, né? Aí eu peguei o meu menino no colo e saí para ir reconhecer a minha irmã. Chegando lá, eu que… No caso, a tia Eva já tinha reconhecido… Eu que reconheci o corpo dela.

Ivan: No local, né?

Sueli: Aham.

A morte de Sandra foi noticiada em vários jornais da época. Em um deles, o Diário Popular, de 13 de junho de 1989, há uma matéria cheia de erros sobre o estado do corpo. Na reportagem é citado, por exemplo, que ela teria sido espancada. Não há sinais disso no laudo de necrópsia.

Mas uma foto na matéria chama a atenção. É Sueli, com 19 anos, com várias pessoas ao seu redor. Ela está segurando no colo seu filho Leandro, de três anos. 

Na imagem, ela tira um pano de cima do corpo da irmã. Em seu rosto, é possível ver a expressão de quem não acredita no que está vendo. E o menino, no seu colo, olha para aquilo também, atento, provavelmente sem conseguir entender o que está acontecendo.

Matéria do Diário Popular – “Menina estuprada e morta a cacetadas” (13 de junho de 1989/capa)

Matéria do Diário Popular – “Criança foi estuprada e morta por espancamento” (13 de junho de 1989/página)

Matéria do Diário Popular – “Prefeito pede ajuda para esclarecer morte da menor” (17 de junho de 1989)

Ivan: Como… Você consegue me dizer como foi chegar no local? Como vocês foram para lá? Vocês foram a pé?

Sueli: Ah, alguém trouxe a minha tia, daí eu fui junto, de carro.

Ivan: Foi de carro.

Sueli: Não me lembro… Não tenho lembrança se foi parente, não tenho lembrança de quem foi. Sei que me levaram e me trouxeram para casa.

Ivan: Aham. Desceram… Estacionou o carro, desceu… O que você viu assim que desceu do carro? Qual a primeira coisa que você viu?

Sueli: Na verdade, era um campo. Um campo, assim, que não tinha casa, não tinha nada, tinha uma chácara do lado. E era tudo campo, mato. E já estava o pessoal lá, que já tinha achado… Daí vem um, vem outro… Estava cheio de gente já, por sinal. Polícia, tudo ali… E daí eu cheguei com o meu menino, para ver realmente se era, e era ela mesmo.

Ivan: Estava com um pano em cima?

Sueli: Acho que era jornal, uma coisa assim…

Ivan: Aham. Daí você olhou… Mas ela estava bem desfigurada. Como você conseguiu reconhecer ela?

Sueli: Na verdade, por causa do cabelo, da roupa… A pele dela… Que as mãos não tinha, né? A pele dela era diferenciada, tipo um courinho de sapo assim, uma pele diferenciada. Pelo pé e pela nuca… Que desfiguraram tudo, mas na parte de trás dava para ver que a minha mãe tinha raspado o cabelo dela, estava nessa altura assim. Tanto da Maria Edileide como o dela, por isso… Por aí que eu reconheci que era ela.

Ivan: Como foi essa história de raspar o cabelo? Você chegou a ver ela de cabelo raspado?

Sueli: Aham.

Ivan: Então ela tinha raspado o cabelo, fazia… Quando foi a última vez que você viu ela? Que você conversou com ela?

Sueli: Fazia umas duas semanas que eu tinha ido na casa da mãe.

Ivan: Então, se ela desapareceu no início de junho, foi ali pela metade de maio…

Sueli: Maio… Que eu estive na casa da mãe.

Ivan: Que você esteve na casa da sua mãe. Daí você viu ela, ela estava de cabelo raspado.

Sueli: Já estava. Mas já estava grandinho já.

Ivan: Aham. Ah, já tinha raspado fazia tempo?

Sueli: Já.

Ivan: Tá. E você chegou a comentar assim: “ah, cabelo raspado”, alguma coisa?

Sueli: É, perguntei por que fez isso com a cabeça das meninas, que tinha feito nas duas. Aí a mãe comentou que era por causa de piolho, que não vencia tirar os piolhos e tinha raspado o cabelo das duas.

Ivan: Aham.

Sueli: Mas já estava grandinho o cabelo das duas…

Ivan: E ela, de cabelo raspado, na sua lembrança, parecia uma menina? Ou ela ficou parecendo mais um menininho?

Sueli: Parecia um menino, né? Porque de cabeça raspada… Não usava roupa adequada, vamos dizer, de menina, né? Se olhasse, falava que era piá… Tanto uma como a outra.

Ivan: Aham. As duas podiam ser.

Sueli: Aham.

REPETIÇÃO DE PERFIL DAS VÍTIMAS

Esse era um detalhe que Ivan não sabia. Quando foi sequestrada e morta, Sandra estava com o cabelo raspado. Então, ela poderia ser confundida com um menino. E não só isso: ela também era loira.

Sueli: Ela foi uma menina bem doentinha, ela teve doença de “mingo”, aquela doença de macaco, que fala… Ela era uma criança que não se desenvolveu normalmente como as outras. Tipo, ela tinha 11 anos, mas, se você olhasse ela, dava para dizer que tinha oito. Oito, nove anos, no máximo, você daria para ela hoje, se você visse ela. Porque ela não se desenvolveu assim, normal, né? Por causa da própria doença que ela teve. Mas era um anjo, né? Era uma criança maravilhosa. Não é que eu não gostava das outras irmãs. Ela, por ser pequenininha, por ver que ficou sem o pai, e eu menina… Eu sempre tive uma cabeça, assim, tão diferenciada dessas meninas de hoje. Então, eu tinha assim, tinha que cuidar muito dela, né? Então, me apeguei muito a ela. Era meu neném, vamos dizer, né? Eu amava demais ela. Demais mesmo, de verdade.

Ivan: Mas vocês tinham brincadeiras?

Sueli: Brincava de boneca com ela. Ela era a nossa boneca, né? Ela era a nossa bonequinha, Deus o livre… E ela era diferenciada, na verdade, porque nós todas temos a pele mais escura, e ela era clarinha, branquinha, tipo polaquinha, ela era… Ela era diferente de nós. Era do mesmo pai, mas puxou pelo lado dos meus avôs paternos, né? Então, ela era bem loirinha.

Ivan: Bem loirinha?

Sueli: Bem loirinha.

Ivan: E a cor do olho?

Sueli: Escuro.

Ivan: Escuro. Mas ela era bem loirinha, branquinha, e o olho escuro…

Sueli: E o olho escuro.

Ivan: E miudinha assim, né?

Sueli: Miudinha.

Então, em junho de 1989, quando foi assassinada, Sandra era loirinha, tinha a pele bem branca, estava com o cabelo raspado e, apesar de ter 11 anos, aparentava ter oito. Aqui, novamente, há a repetição do perfil de vítimas de Guaratuba.

Ivan: Então, você chega lá e… Você chegou a virar o corpo, assim, para ver?

Sueli: Não. Não mexi nela.

Ivan: Não mexeu.

Sueli: Não. Só no cabelo que dava para ver, né?

Ivan: Mas você chegou a tocar, assim?

Sueli: Não, não. Não toquei nela.

Ivan: Não tocou.

Sueli: Não.

Ivan: No local.

Sueli: No local não. Só descobri mesmo, e daí já dava para ver, né?

Ivan: Já dava para ver…

Sueli: Já. É porque na frente não tinha o que ver, né? Não tinha como ver nada. Que tiraram assim, né?

Ivan: Quando você diz “couro de sapo”, da pele dela, era por causa da doença que ela teve?

Sueli: Não sei te dizer se foi por isso, por causa da própria doença que ela teve, mas era diferenciada a pele dela.

Ivan: A pele dela parecia mais rugosa assim?

Sueli: Aham.

Ivan: Tá. Então, você olhou pelo pé…

Sueli: Pelo pé, era ela… Já era ela…

Ivan: Era diferente… “Ah, essa é a pele da Sandra”.

Sueli: É ela mesmo, aham.

Ivan: Mas parecia, assim, se eu visse ela na rua, se ela estivesse ali, por exemplo, eu conseguiria ver que ela tinha algum problema de pele? Ou só se olhasse muito de perto?

Sueli: Não, você via. Já de longe você conseguia ver.

Ivan: E era só nas mãos, nos pés…?

Sueli: Só nas mãos e nos pés.

Ivan: Só nas mãos e nos pés.

Sueli: A diferenciada era a mãozinha dela e os pés.

Ivan: Como ela estava sem as mãos…

Sueli: Daí pelo pé.

Ivan: Só pelo pé.

Sueli: Eu olhei no pé e olhei na… Porque não tinha como dizer que era ela, né? Daquela forma que ela estava. Mas, pelo pé dela e pela nuquinha que dava para ver o cabelo assim, era ela.

Ivan: Você já tinha visto uma pessoa morta antes?

Sueli: Olhe, morta, morta assim, eu nunca… Acho que nem tinha visto. Daquela forma ali, nunca, né?

Ivan: Nunca nem viu, né?

Sueli: Nunca nem vi, né? Nunca tinha visto, nunca nem vou ver mais, Deus o livre…

Ivan: Aham. Eu não consigo nem imaginar o choque que deve ser, assim…

Sueli: Nossa, me deu… Daí eu já logo pensei, não em mim, no piá que estava no meu colo, né? E ele lembra até hoje também.

Ivan: E ele lembra até hoje.

Sueli: Até hoje. Não tem como esquecer, né?

Ivan: Porque você estava pensando… É que, assim, você levou o Leandro porque você não tinha com quem deixar ele.

Sueli: Isso. Não tinha com quem deixar e eu não sabia que ia estar naquele estado. Achei que ia encontrar morta normal, né? Não sabia o estado que ia estar, né?

Ivan: Você achou que ia ter uma menina ali…

Sueli: A minha irmã perfeita, né? Morta, mas perfeita, intacta. Não… Não foi o que eu consegui ver, né, fazer o quê…

Ivan: O que te chamou a atenção quando você olhou, assim, para ela? Além do… A gente já sabe das coisas mais grotescas, mas tinha mais alguma coisa nela que te chamou a atenção?

Sueli: A roupa dela estava tudo no avesso.

Ivan: Aham.

Sueli: Ela estava vestida, tudo normal, mas a blusa estava no avesso, a calça estava no avesso, estava tudo no avesso.

Sueli está falando de memória, então ela errou em um detalhe. Apenas a calça de Sandra estava do avesso. A blusa que vestia estava normal.

Ivan: Ou seja, alguém tirou a roupa…

Sueli: E depois vestiu.

Ivan: E depois vestiu…

Sueli: No avesso.

Ivan: Colocou no avesso.

Sueli: Daí, quando eu vi aquilo, até achei que fosse cachorro, né? Também na época eu pensei… Foi o cachorro que fez tudo isso, decerto, estraçalhou, né? Mas daí estraçalhou, beleza. Mas a mão… Quando eu vi que a mão estava cortada certinha, eu falei… O cachorro ia fazer assim, né? Estava certinho cortada. E as mãos não foram achadas.

Ivan: Mais alguma coisa que passou pela sua cabeça? A questão do cachorro, a questão da roupa…

Sueli: Pois daí o que eu… Na hora, eu nem me lembro o que eu pensei, né? Faz tantos anos isso. Então, na hora, eu nem me lembro o que eu pensei direito. Depois eu fiquei sabendo que ela foi estuprada, mas isso foi só depois, né? Não… Na hora, assim, eu não me lembro o que eu cheguei a pensar, né? Sei que foi uma maldade bem grande, né?

Ivan: Tá. Você chegou a dar entrevista para jornal na época, né?

Sueli: Eu acho que sim.

Ivan: É, nos jornais fala: “a irmã Sueli culpa a mãe…”.

Sueli: Aham. Fiquei brava na época, né? Xinguei bastante a mãe, é verdade.

Ivan: O que a senhora lembra, assim, que os repórteres falavam, perguntavam? Como você respondia?

Sueli: Não me lembro o que eles perguntavam, o que eu respondia também não me lembro, o que eu respondia… Sei que eu fiquei bastante brava com a mãe na época, né?

Ivan: Chegou a brigar com a sua mãe, assim?

Sueli: Não. Não cheguei a brigar, mas fiquei brava. Bastante, né?

Ivan: Aham. Mas chegou a falar para ela assim: “você deixa as crianças soltas”?

Sueli: Falei, falei. Falei bastante.

Ivan: Você lembra dessa conversa?

Sueli: Lembro.

Ivan: Conta para mim como foi.

Sueli: Na verdade, quando foi achada ela, que daí eu fui contar para a mãe o que tinha acontecido, ela já veio me encontrar chorando, eu falei… Falei: “eu avisei tanto a mãe para cuidar das meninas, para não vender o terreno”. Porque eu fiquei muito triste de ela vender aqui o terreno, né? Falei: “não venda, mãe, tem as meninas pequenas para você criar, fique aí”. Então, eu falei: “viu, mãe, você não cuidava, deixava elas fazerem o que queriam, aí ó…”. Então, xinguei bastante a mãe, na verdade, né? Fiquei bem triste com ela um tempo, levou um tempo assim… Eu fiquei meio com raiva da mãe. Porque eu acho que, se cuida, não tinha acontecido. Que nem eu falei: “como que deixam a menina ir sozinha para a festa? Vá junto, então”, né? Já não tem o domínio, então pegue e vá junto, fique olhando as filhas, né?

Ivan: E o que ela falava?

Sueli: Que ela não gostava de ir. “E eu não mando… Elas não são… Tipo, são malcriadas, marotas, não respeitam, vão, né?”. Então, daí eu falei: “ó no que deu, né?”. Agora está tudo bom. Perdemos uma de doença, uma agora… Por não cuidar, que morreu. Porque, se cuidasse, que nem eu falo, se cuidasse, não tinha morrido. Não deixe ir, mete o cacete. “Ah, porque não pode bater”. Não pode bater? Eu bato até hoje se me desobedecer, né? Não tenho medo de nada. Eu educo e pronto, acabou. Não vai… Essa menina mesmo aí…

Aqui, Sueli está se referindo à filha, Shariane, que mora junto com ela e também se tornou mãe recentemente.

Sueli: Nossa, não precisou surrar tanto, mas eu conversei muito com ela. A minha filha não era de rua de jeito nenhum. Uma já pelo acontecimento com a minha irmã, eu vou deixar…? Não vai, pronto e acabou. E, se teimar, vai apanhar. É melhor eu dar umas palmadas aqui do que eu achar morta aí…

Ivan reforça que, obviamente, não defende que se bata nos filhos. É óbvio também que dona Juvelina não tem culpa de Sandra ter sido assassinada de forma brutal, mesmo com tantas pessoas julgando o modo como vivia e cuidava das filhas. Tudo parece ser muito mais o resultado do modo de vida precário daquela família, sem muitas condições, assistência e rede de apoio.

Ivan também ressalta que é importante mostrar como era a mentalidade da época sobre a criação dos filhos, sobre a noção de segurança e responsabilidade que se tinha. Então, ao invés de cortar todos esses trechos, ele está sendo fiel ao que Sueli relatou, sobre como ela se sentia e como essa tragédia afetou a si e a sua família.

Sueli: Então, eu briguei muito com a mãe. Briguei, fiquei muito triste com ela. Não cheguei a ficar de mal, mas sempre que eu via ela, falava: “está vendo, mãe, que tristeza, que falta que está fazendo a menina?”. Sempre tocava na mesma… Daí depois larguei mão. Falei… Coitada também, né? Vai fazer o quê… Agora já morreu, não vai voltar, não vai adiantar, né? Mas eu fiquei muito triste na época. Fiquei muito triste.

Ivan: A tua mãe sofreu também com a morte dela?

Sueli: Eu acho que, que nem eu, não. Não. Eu que sofri mais ainda. Eu não vivia com a menina, mas eu sofri muito.

Ivan: Criou ela…

Sueli: É. Sofri muito. Sofro até hoje, né? Era a minha preferida, era essa irmã. Então, sofro muito até hoje. Nunca vou esquecer, né? Mas a mãe… Parece que não dava muita importância, né? Então, a dor mesmo era minha.

Ivan: Você acha que a tua mãe tinha noção, assim, da gravidade do que tinha acontecido?

Sueli: Sei lá, que daí ela nem chegou a ver a irmã…

Ivan: Mas, assim, eu fico pensando o que… Vocês conversavam sobre a Sandra? Sobre a morte da Sandra? Quem podia ter feito… Vocês tentavam ter essas conversas assim ou não?

Sueli: Eu conversei muito com a mãe, perguntava quem vinha, quem não vinha. Daí ela dizia que não vinha muita gente, que era só fulano e sicrano, e que fulano não podia ter feito… Fulano não ia ser capaz de fazer aquilo, né? Então, nunca fiquei realmente sabendo quantos homens frequentavam ou deixaram de frequentar…

Ivan: Então vocês chegaram a conversar… Quem pode ter feito…

Sueli: Bastante, né? Bastante.

Ivan: E ela não conseguia pensar em ninguém?

Sueli: Não. Ela dizia que os que frequentavam a casa dela não tinham sido… Era o que ela passava para mim, né? Eu dizia: “mas como você vai confiar numa pessoa estranha, que você não conhece?”.

Ivan: Sim. E você chegou a ser chamada pela polícia para falar alguma coisa, dar depoimento?

Sueli: Eu não me lembro. Para te falar a verdade, com certeza dei algum depoimento, com certeza.

Ivan: Eu não me lembro de ter depoimento seu aqui…

Sueli: Eu não me lembro também de ter dado depoimento. Se dei, eu não me lembro, né?

Ivan: Tá, sim. E, daí, depois disso, você chegou a conversar com as suas irmãs sobre a Sandra? A sua prima…

Sueli: Bastante, né? Para a gente tentar descobrir o que tinha realmente acontecido, com quem elas tinham conversado, se alguém estranho… Eu fazia muita pergunta, né? “Quem de estranho chegou em vocês? Você não viu nada de errado?”. Como elas tinham bastante conhecido, bastante conhecimento… “Não vimos nada de anormal”. Dizem que não viram nada. Não sei te dizer o que… Se elas falaram a verdade para mim ou não, também não sei dizer, né?

Ivan: Você acha… A Márcia e… As duas Márcias, a tua irmã e a tua prima, você chegou a conversar com elas? O que elas falavam da festa, por exemplo?

Sueli: Na verdade, eu nem… Para te falar a verdade, eu nem sabia que a prima estava junto. Eu sabia que estavam as minhas irmãs, as três irmãs na festa. Eu nem sabia que a prima estava junto. Você falou aquele dia, que eu fiquei sabendo que ela estava junto. Eu nem sabia até então. Tem muita coisa que eu não sei até hoje, né? Nunca fiquei sabendo.

Ivan: Você nem estava convivendo mais ali, né?

Sueli: É muita coisa que aconteceu que eu não fiquei sabendo, não participava de quase nada da vida deles e não fiquei sabendo de mais nada assim…

Ivan: Também tinha um filho pequeno para criar…

Sueli: Também. Tinha que cuidar dele, né? Então, toquei a minha vida, né? Cuidar da minha família…

Ivan: Afetou, de alguma forma, a vida da sua mãe? Que você tenha notado? A morte da Sandra?

Sueli: Pior que não.

Ivan: Continuou do mesmo jeito?

Sueli: Mesma coisa. Mesma coisa. Não afetou em nada. Do mesmo jeito que ela era, ela ficou, e pronto, acabou. E eu que fiquei, na época, muito… Depois disso eu tive depressão, tive um monte de coisa, Deus o livre. Eu, né? Me afetou bastante.

Ivan: Como a tua vida mudou a partir de lá, assim? O que você… Do seu dia a dia, por exemplo…

Sueli: Medo só… Eu tinha muito medo, né? Medo. Medo. Falava: “não deixe ir sozinho para a escola, não deixe ir no mercado…”. Qualquer mãe que tivesse criança, eu dizia: “cuide”, né? Eu fiquei… Fiquei não… Fiquei e estou até hoje… Os meus filhos todos eram rapazes, e eu levava no colégio. Essa menina aí era moça, e eu levava de mão dada no colégio. Tinha vergonha que a mãe fosse levar e buscar, e eu ia, levava e buscava. Nunca larguei ela sozinha. Morria de medo.

Com o tempo, essa história foi perdendo força. A polícia não conseguia desvendar o caso, a família foi crescendo, envelhecendo. Dona Juvelina, a mãe de Sueli e de Sandra, morava com a filha mais nova, Maria Edileide. Certo dia, no final da década de 1990, Sueli foi visitá-la e viu que ela não estava muito bem. Decidiu, então, chamá-la para morar em sua casa.

Sueli cuidou da mãe durante 25 anos.

Ivan: Ficaram mágoas? Deu para resolver tudo isso nesses 25 anos juntas?

Sueli: Não. Daí depois… Não tem muito o que fazer. A menina não ia voltar mesmo, né? Aquela raiva que eu fiquei na época, que eu xinguei, fiz tudo, passou. Era a mãe, né? Tanto que eu preservei, que não deixei nem ela ver a menina. Passou, não, depois… Sem mágoa, sem nada.

Ivan: Vocês chegavam a conversar sobre a Sandra?

Sueli: Nunca mais.

Ivan: Nunca conversavam? Por quê?

Sueli: A minha mãe não tocava no assunto e nem eu. Ninguém.

Ivan: Por quê?

Sueli: Ela não… Para ela, tanto fazia falar, como não, então daí ninguém tocava no assunto, né? Ninguém comentava nada. Nunca foi comentado. Nunca chegamos assim: “ai, vamos discutir sobre isso, será que pegaram…? Será que…?”. Nunca, nunca, nunca. Não conversava mais sobre isso.

Ivan: Mas o… É que eu fico pensando assim… Eu nunca estive na situação de vocês. Por isso que eu estou tentando entender. Porque é uma coisa tão horrível, que é tão chocante, e que não teve uma resposta. Deve ter uma hora que cansa, né? Assim… “Não, a vida tem que continuar”.

Sueli: Exato. Não, no início, a gente queria achar o culpado, mas vai achar como? Que nem eu falei, eu pouco sabia deles. Tinha que achar para a gente ter um pouquinho de felicidade. Pegaram, vai ficar preso, vão matar lá… Isso que eu queria. Eu, se eu mesma pego, acho que eu tinha matado. Realmente, até hoje, se eu souber quem foi e estiver vivo, é capaz de eu matar ainda, né? Na época, eu pensava: “nossa, tinha que achar e fazer a mesma coisa”. Ir tirando aos pouquinhos, né? E eu fiquei assim, com essa dor que… Que nem eu falo, não mato nem uma galinha para comer, não consigo. Se eu matar, eu não como. Mas a pessoa que fez aquilo, se eu pego, acho que eu ajudo a tirar um pedacinho daqui, um pedacinho… Eu ajudo. Mas nunca foi descoberto nada, não tem como você ficar… Eu nunca julguei ninguém porque, quando você não sabe o que aconteceu, você não tem como julgar. Foi para magia negra? Foi um maníaco? Foi um médico? Na época, a gente fica assim, sabe? Foi alguém estudado que fez isso? Será que tirou os órgãos? A gente ficava se perguntando. Mas depois acaba que você começa a rezar e pedir para Deus: “tira essas coisas da minha cabeça, eu preciso viver”. Que nem eu já tinha a minha família, eu tenho que cuidar da minha família. Acaba que Deus vai te conformando com aquilo que aconteceu, e ficou tudo a ver navios. Ninguém fez nada. Nunca foi descoberto nada. E morreu na casca.

Ivan: Você falou de médico. Por que… Vocês tinham desconfiança que podia ser médico?

Sueli: Eu pensei na época… Nossa, eu fiquei tentando achar uma solução para aquilo, para fazer uma coisa tão bem feita daquela ali, podia ser alguém com muita experiência, alguém muito estudado, né? Passou mil e quinhentas coisas na minha cabeça. Fizeram para tirar órgão? Tiraram as mãos, consumiram com as mãos, né? Então, a gente fica pensando mil e uma coisas, né? E eu penso até hoje. Não sei o que aconteceu. Se mataram, estupraram e mataram, é um maníaco, né? É uma pessoa assim… Uma pessoa… Isso não pode nem chamar de pessoa, quem faz isso, né? Chamar de pessoa é um crime, né? Que é bárbaro, o que fez foi muito bárbaro.

Ivan: Para encerrar mesmo, se a Sandra não tivesse sido morta, o que você acha que teria acontecido com ela? Como teria sido a vida dela? Ela era inteligente, ela era esperta?

Sueli: Ai, pois é… A minha vontade era que tivesse uma vida que nem eu tenho. Uma vida estável, boa, né? Crescesse, fosse namorar, fosse casar, fosse ter uma família. Poderia estar melhor do que eu hoje. Ou poderia estar pior… Que nem essa, que é a menor, que está largada na cachaça… A gente não sabe o que poderia ser feito. Mas poderia ter morrido com um aninho, um ano e pouco, que quando deu a doença, então… Seria mais fácil, que morreu de doença, né? Mas sofreu…

Ivan: Ela quase morreu com um ano?

Sueli: É. Ela teve doença, né? Essa doença de “mingo”, que eu falei para você. Então, podia ter morrido nessa época já, né? Não morreu e, com 11 anos, mataram.

Ivan: É forte isso, né? Você falou: “poxa, se fosse para morrer, que morresse…”.

Sueli: De doença.

Ivan: De doença, né?

Sueli: Então…

Ivan: Com um ano…

Sueli: É, pronto. Não tinha sofrido, não tinha passado por tudo o que passou, que a vida não foi tão boa para ela também. Que eu sei que não. E daí ainda acabar morrendo dessa maneira, né? Então, tivesse morrido de doença mesmo, lá pequenininha, né?

Ivan: Se você pudesse falar alguma coisa para a Sandra hoje, o que você falaria?

Sueli: Saudade dela.

Ivan: Imagino. Vamos ver o que a gente consegue fazer, então, dona Sueli. Quer deixar algum recado? Alguma lembrança?

Sueli: Meu Deus… Onde ela estiver, ela sabe que eu amo ela até hoje, né? Não tem muito o que falar não. A gente não sabe o que falar, não sabe o que fazer. Mas queria muito saber quem fez, o porquê fez. Mas nunca consegui saber. Mas ela sabe que, de onde ela está, eu amo ela até hoje. Muito.

Ivan: A gente sabe também. Obrigado por falar comigo.

Sueli: De nada…

Ivan: Deixa eu te dar um abraço…

[…]

AS INVESTIGAÇÕES

Quem começou a investigação do assassinato de Sandra foi o doutor Inácio Raymundo Pensin, que na época era delegado de Mandirituba. A investigação foi boa, dentro dos limites que existiam.

Cerca de um mês depois, uma equipe da Delegacia de Homicídios de Curitiba assumiu o caso. Liderados pelo investigador Fernando Souza Vidolin, também fizeram um bom trabalho. Tomaram depoimentos, realizaram diligências, exames, mas nada foi concluído.

Essas investigações demoraram anos. Depois que o doutor Vidolin saiu do caso, o inquérito passou pelas mãos de vários delegados e promotores sem nenhum andamento. Por fim, foi arquivado por falta de provas. Mas há uma coisa muito curiosa nesse caso. E, para isso, é preciso voltar para Guaratuba.

Evandro foi morto em abril de 1992, dois meses depois de Leandro desaparecer. Em julho, com base em uma investigação questionável e confissões falsas feitas sob tortura, sete pessoas foram presas em Guaratuba, acusadas de terem matado Evandro.

No mês seguinte, em agosto, consta no inquérito de Sandra uma declaração do IML do Paraná. Ela é assinada pelos médicos que examinaram o corpo de Evandro, os doutores Francisco Moraes e Silva e Carlos Roberto Ballin.

No documento, eles respondem uma indagação feita pelo diretor do Instituto da época, José Marcos Parreira. Confira um trecho do documento:

Sobre o caso Sandra: apreciando especialmente o laudo de exame e levantamento de local de morte, bem como o laudo de exame de necrópsia, constata-se que o propósito do autor (ou autores) [responsável pela morte de Sandra] foi de natureza sexual, produzindo após a morte mutilações diversas descritas nos documentos supra enumerados com o objetivo de impossibilitar ou dificultar a identificação da vítima e o local de ação mecânica determinante da morte, visto que as lesões predominam na face, pescoço e membros superiores. Comparando com o laudo de exame de necrópsia referente a Evandro Ramos Caetano, informo que, segundo a apreciação analógica e fotográfica do feito, não foi possível estabelecer relação entre esses dois eventos criminosos.

Duas coisas são importantes nessa declaração. A primeira é que, em algum momento, logo após a morte de Evandro, houve dúvida se os casos poderiam ter alguma relação. Mas essa linha de investigação nunca avançou, pois o trabalho em Guaratuba estava totalmente contaminado com a história absurda de ritual satânico. E isso gerou um efeito dominó cujas consequências foram sentidas por anos.

A segunda coisa a se notar é como os médicos legistas da época encararam os dois casos. O fato de Sandra ser uma menina, abusada sexualmente, teria sido o suficiente para eles descartarem qualquer relação com o homicídio de Evandro. Novamente, isso pode ser mais um efeito da história de ritual satânico.

E a contaminação não para por aí. Os crimes de Guaratuba influenciaram diretamente no caso dos meninos emasculados de Altamira, no estado do Pará, que foram mortos entre 1989 e 1993.

Como Ivan explicou no episódio 3 do Prelúdio, Valentina de Andrade, suspeita de estar envolvida nos casos do litoral do Paraná, acabou na mira das investigações também em Altamira. Tudo porque a polícia acreditava que as crianças eram mortas por uma seita satânica liderada por ela. Assim como em Guaratuba, várias pessoas foram detidas no Pará a partir dessa acusação. A maioria delas morreu presa.

Valentina foi julgada em Belém do Pará em 2003 e acabou absolvida. Naquele ano, no calor dos júris, e baseada na crença de uma seita satânica espalhada em células por todo o Brasil, foram abertos vários inquéritos pela Polícia Federal.

Esses inquéritos tinham como objetivo verificar se Valentina estaria envolvida em mortes violentas de crianças pelo país. A partir desse esforço, o desaparecimento de Leandro Bossi acabou sendo investigado por policiais federais, mas sem nenhuma conclusão.

Mas o que poucos sabem é que o caso de Sandra também passou pela PF. O inquérito foi aberto no final de 2003, o que em teoria poderia ser uma nova chance de investigação para solucionar o caso.

Só que o inquérito da PF sobre a Sandra nunca teve isso como propósito. Em seus autos, é bem evidente que os investigadores só queriam descobrir se Valentina de Andrade teria algo a ver com a morte da menina. 

Nenhum depoimento foi tomado. Nenhuma investigação nova foi feita. Mais uma vez, o caso de Sandra caiu no esquecimento até ser novamente arquivado. E uma curiosidade: quem o arquivou no dia 29 de março de 2007 foi o então juiz Sérgio Moro.

O caso Sandrinha abriu novas portas para Ivan. Agora, ele tinha mais elementos para tentar montar esse quebra-cabeça. 

Ainda há muita coisa para se falar sobre ela. Mas antes de tudo, Ivan precisava verificar se fazia sentido colocar a sua história do lado dos casos Leandro e Evandro. Porque, apesar das semelhanças que encontrou, ele não sabe dizer se as lesões que existiam no corpo de Sandra seriam realmente compatíveis ou semelhantes com aquelas encontradas em Leandro e Evandro.

Infelizmente, no caso de Leandro não tem muito o que levantar, dado o fato de que informações importantes sobre a forma como ele foi assassinado se perderam no tempo, em decorrência da decomposição.

Mas o caso de Evandro tinha bastante informação. E, se os crimes estão relacionados, Ivan supõe que, ao estudar melhor o estado do corpo, vai entender o que aconteceu com Leandro. E, em seguida, pode comparar com o que sabe sobre a forma como Sandra foi morta.

Por isso, Ivan decidiu conversar com especialistas: tanto envolvidos da época, que trabalharam nesses casos, quanto pessoas que pudessem lançar um novo olhar sob esses laudos.

E o primeiro passo parecia óbvio: pela falta de informações do caso Leandro, Ivan precisava voltar para Evandro. E dessa vez, sem qualquer contaminação sobre ritual satânico, olhando apenas para como o corpo foi encontrado. Basicamente, começar do zero.

É sobre essa nova parte da investigação que Ivan falará no próximo episódio.