Por muitos anos, Ivan Mizanzuk viu várias matérias que citavam a escritora e criminóloga Ilana Casoy como alguém que auxiliou a Polícia Civil do Maranhão nas investigações sobre Francisco das Chagas. Da mesma forma, ele também ouviu falar das longas horas de conversa que ela teria gravado com o mecânico. Mas faltavam materiais mais aprofundados sobre isso.
Ivan espera que a entrevista que conduziu com a escritora, junto com a roteirista Tainá Muhringer, possa preencher essa lacuna para pesquisadores futuros.
A transcrição da entrevista está disponível abaixo:
Ivan: Quando você começou a se dedicar a estudar crimes e crimes seriais?
Ilana: Quando eu tinha uns três anos de idade, que eu ouvi que o Kennedy foi assassinado. Não, brincadeira. Eu acho que quem estuda isso estudou sempre, de alguma maneira. Se interessou, investigou, pesquisou, leu ficção, leu caso real. Acho que são várias fases que a gente passa no nosso crescimento. Então, para quem gosta da intriga, de quão intrigante é a mente humana, resolver crime é quase um hobby, né? Eu acho que é natural em algumas pessoas, não em todas, essa curiosidade. Aí quando não conseguimos sanar a curiosidade e descobrimos só na meia-idade que não vamos sanar mesmo, tentamos o caminho mais formal. Sou formada em administração de empresas, que aparentemente não tinha nada com isso. Mas na minha vida, em campo, foi muito útil na questão de gestão de investigação, gestão de equipes, e de pesquisa. E, autodidaticamente, eu busquei vários caminhos. Fui parte do Núcleo Forense de Psiquiatria e Psicologia do Hospital das Clínicas, e fiz estágio na perícia. Teve um momento que um grande psiquiatra de lá, o Sérgio Rigonatti, e o Paulo Hidalgo Pepino, outro famoso acadêmico, com muita doçura me falaram “você precisa formalizar esse conhecimento de alguma maneira”. Então, a única vez que teve no IBCCRIM [Instituto Brasileiro de Ciências Criminais] pós-graduação em Criminologia, eu me inscrevi. Não sei se eles imaginaram que alguém que não fez Direito ia querer fazer isso, mas eu fiz. E foi de uma riqueza porque o IBCCRIM conta com nomes da Sociologia, do Direito, da Psicologia. É impressionante as cabeças que conduziram os dois anos de pós-graduação. Foi maravilhoso pra mim. Grandes nomes, grandes pessoas.
Ivan: Mas nessa época você já tinha livros escritos sobre serial killers, né?
Ilana: Tinha. Mas eu precisava formalizar esse conhecimento. E foi bom, eu aprendi muito. Não é só formalizar. Mas, por exemplo, quando escolhi a minha tese, teve uma discussão. Claro que ela foi sobre o Chagas, o caso do Chagas. Já aí teve uma discussão. Quem ia me orientar? Porque um dos mestres lá também falou “quem vai te orientar num assunto que você conhece melhor do que todo mundo? Como vai ser essa orientação?”. “Você é inorientável”, brincou comigo. Eu falei “acho bom eu ser porque já faz um ano e meio que eu estou aqui. Agora não é hora de me dizer que não dá, né?”. Um professor, o Rafael Mafei, maravilhoso, que fez História e também Direito, é meu leitor. Ele foi fazer Direito e se interessou pelo caso do Maníaco do Parque, olha só. E acompanhou todo o meu trabalho, tinha lido os meus livros. Ele falou “eu vou te orientar pra adaptar teu o conhecimento pra uma linguagem acadêmica”.
Ivan: Sim. […] Alguns anos atrás, no meu podcast antigo, o Anticast, eu chamei pra entrevista um cara que tinha feito uma tese de doutorado sobre o Febrônio Índio do Brasil. E a gente falava sobre como deve ter sido difícil pra você fazer o livro “Serial Killers no Brasil”, porque você não tem…
Ilana: Foi…
Ivan: Não tinha uma enciclopédia de serial killers brasileiros, né?
Ilana: Nada. Nada, nada. Não. Não tinha. Não tem ainda hoje. Não tem essa figura jurídica, não existe. E na época não tinha nem conhecimento informal. Isso era uma coisa de Hollywood. Eu ouvi de um delegado, nunca me esqueço… Ele falava pra mim “doutora, esse negócio aí é de Hollywood, a senhora está doida. Isso não existe aqui no Brasil não”.
Ivan: Conta pra mim um pouquinho dessa tua história, dessa pesquisa. Quando ela começou e quando você disse assim “ok, existe essa figura chamada serial killer, que a história da criminologia no Brasil ainda não está atendendo, não está falando, e eu quero fazer”? Que ano foi? Quando foi isso?
Ilana: Ivan, não dá pra fazer isso porque assim… Por exemplo, pelas poucas notícias do Chagas que saíam no jornal na época, em Altamira e depois no Maranhão, a minha cabeça já dizia “gente, isso aqui é o mesmo cara”. Ninguém carrega a fantasia do outro. Tudo bem que a fantasia é matar… Vamos dizer, eu vou matar ruivas. Mas o jeito que eu vou fazer isso… Mesmo não sabendo nada, pra quem já tinha um conhecimento literário, enfim, de tudo, já batia. E eu nem pensava ainda em escrever sobre isso. Eu fico louca porque no eixo Rio-São Paulo razoavelmente você acompanha o caso, mas quando é fora desse eixo, não sai notícia, cara. Você não sabe mais. Você não sabe. E naquela época, década de 80 e 90… A juventude hoje nem imagina o que é viver sem Google, sem arquivos digitalizados. Você não tem pra quem perguntar. Então não existe esse momento assim “daí eu quis”. Pra escrever sobre serial killer também. Já me perguntaram “como você escolheu esse nicho de mercado?”. Nem nicho, nem mercado. Não faço a menor ideia. Eu sempre escrevi. Sempre foi o meu canal a escrita. E eu sempre quis escrever. Só que a minha geração não tinha muito essa… “Ah, eu vou ser escritor”. Então, eu fiz o que eu tinha que fazer, estudei o que eu tinha que estudar. Escrever era um hobby. Escrevi roteiro pra vídeo institucional, aprendi… Foi um caminho bacana. Aí quando você chega… Vocês são bem jovens. Não sei quantos anos você tem, Ivan. Quantos anos você tem?
Ivan: Tenho 39.
Ilana: Então, essa virada é importante, dos 38, 39. O que eu queria ter feito, não fiz e ainda dá? Porque assim, bailarina já não ia rolar, né? Mas a escrita poderia ser sim, que era um sonho. Eu já estava numa época financeiramente mais confortável. Então fui experimentar. Aí meu pai, sábio pai, falou “escolhe um assunto que você gosta”. Eu escolhi um assunto que eu gostava.
Ivan: Sim. Então, pelo o que você está me falando, eu tenho a impressão… Isso já vai entrando na nossa pauta mesmo… Você gostava do tema serial killers, mas não tinha…
Ilana: Não, eu gostava do tema crime, tá?
Ivan: Crime, crime.
Ilana: Eu gostava do crime. E o serial killer me chamava a atenção porque é um crime de repetição. Porque um crime que envolve legítima defesa ou vingança, você pode não concordar, mas até entende o que aconteceu ali, quando tem motivo. E a minha tese da pós-graduação é exatamente sobre isso. Quando um crime é sem motivo, você não tem nem por onde começar a investigar. Você não tem o fator principal de solução do crime. A polícia começa por onde? Por quê? Por que essa pessoa foi assassinada? No caso do serial killer, é totalmente simbólico. Não tem o porquê, está dentro da cabeça o porquê. Não está aberto ao público. Então eu peguei o extremo. Vou pegar o extremo porque talvez entendendo o extremo, eu entenda todo o resto. Claro que não, né? É separado, é isolado. São casos que não se misturam com os casos com motivo.
Ivan: Mas você era um peixinho fora d’água, assim? Não tinha gente fazendo isso no Brasil.
Ilana: Sei lá. Não tinha. Hoje eu sei. Mas não foi uma pergunta. Eu aluguei uma salinha e tirei o meu ano sabático. Meus filhos já eram adolescentes, quase adultos. E eu não tinha pressa, não tinha nada. Eu estava aprendendo ali, me divertindo.
Tainá: Pegando esse seu background histórico, eu queria saber se você sabe quando o conceito de serial killer começou a ser conhecido pela mídia, pelas pessoas.
Ilana: Olha, no Brasil, eu vou te dar uma data muito forte pra mim. Em 98, a gente tem o caso do Maníaco do Parque. No primeiro julgamento do Maníaco do Parque, o promotor era o Edilson Mougenot Bonfim. Eu nunca tinha ido num júri. Eu fui nesse, tá? Porque eu já pesquisava no Museu do Crime, no Tribunal de Justiça. Toda vez que parava o júri, o Edilson Mougenot Bonfim vinha conversar com jornalistas, e eu me encostava ali pra ouvir o que ele estava falando. E aí, na frente de alguns jornalistas, eu questionei qual era a tradução. Se era um serial killer, como ia chamar no Brasil? Eu acabei fazendo uma pergunta junto ali. E ele mesmo falou “olha, é uma boa pergunta. A gente, por enquanto, está usando serial killer”. Depois ele até escreveu um livro. Vai ser assassino em série? Vai ser matador em série? Não se está falando ainda. E a gente brincou “vamos esperar o Jornal Nacional porque ele é craque em estabelecer um padrão”. Na época, o Jornal Nacional estabeleceu serial killer. Então, beleza. Ficou, né? Mas hoje tanto faz. Eu acho que esse momento do Maníaco do Parque é o caso que vai ordenar e sugerir esse entendimento de uma maneira mais forte. Agora, de lá pra cá, muita água rolou debaixo dessa ponte. Gente que achava fantasioso, polícia que não acreditava. O próprio caso do Chagas tinha 30 pessoas presas por crimes isolados. Foi uma guerra. “O Maranhão não vai ter um serial killer. Não venha aqui com essa conversa. Cada caso é um caso”.
Ivan: Eu acho isso muito interessante porque mostra como na época esse conceito era desconhecido. Tanto no caso de Guaratuba, que nós não sabemos quem fez, mas tudo indica que também havia um serial killer ali, como quando você vê Altamira e Maranhão. As autoridades estão mais propensas a acreditar numa seita satânica do que numa morte causada por um assassino apenas.
Ilana: No mundo inteiro a seita satânica cria um universo imaginário muito importante. É fácil, é palatável pra mente humana pensar em seita.
Ivan: Tem o ritual…
Ilana: Depois me conte quantos crimes de verdade de seitas você conhece, tá? Porque eu tenho dificuldade. Tenho dificuldade.
Ivan: Acho que o pessoal lembra muito do Charles Manson, né? Tem toda uma discussão se aquilo é uma seita ou não, mas o que acontece muito nesses casos é um indivíduo ter uma visão mística e ritualizá-la nas mortes. Se ele tiver seguidores e tal… Mas geralmente é um grupo muito pequeno, não chega a ser uma coisa organizada. O que a gente nota nos casos de Altamira e Guaratuba é essa ideia, essa narrativa de que existe uma organização secreta com figuras poderosas que estão cometendo esses crimes contra crianças por algum motivo.
Ilana: Pra…?
Ivan: Pra… É. Nunca é explicado, né?
Ilana: Então, aí fica tudo resolvido, né? O ser humano fica salvaguardado. A gente tem uma história mirabolante, e aí foi isso que aconteceu, infelizmente, porque se juntam pessoas que jamais tinham se encontrado, não eram nem amigas. E convenceu. Na época, convenceu.
[…]
Ilana: O meu diferencial no caso do Chagas, Ivan, é que eu conversei com o Chagas. Isso é diferente de montar uma tese. Eu conversei com ele por 60, 70 horas. Não foi uma entrevista jornalística. Então, ele me contou… Eu sei tudo da infância dele. Não só do crime. O crime é um recorte, um pedaço, um momento da vida dessa pessoa, mas eu quero entender o todo. Conversar com ele e saber por ele a história, o que aconteceu ali, foi primordial. E eu também levo uma vantagem, que eu acho que é primordial: eu não sou polícia e não sou perícia, não sou nem psiquiatra nem psicóloga, ou advogada. Então, é um lugar que eles ainda não têm uma narrativa pronta, porque em geral eles têm uma narrativa pronta. Me lembro muito do Chico Picadinho, o Francisco Costa Rocha. Ele tem um discurso de Freud pra todos da área psi, pra mãe dele, que o abandonou… A mãe branca, a mãe preta… Aí ele tem o discurso pra condenar a área jurídica, sobre o código penal, o artigo que ele foi colocado. Essas pessoas têm narrativas construídas. Como eu estou num lugar fora da caixa e não existe uma narrativa pronta, o cara tem que falar. Não resta outra alternativa a não ser falar. Falar ainda mais improvisado, mais real.
Ivan: O Chagas foi preso em dezembro de 2003, mas você já conhecia o caso dos meninos emasculados de Altamira e do Maranhão antes. Então, eu queria que você falasse…
Ilana: Do jornal, como todo mundo. Do jornal.
Ivan: Mas você tinha arquivos em casa? Você ficava olhando pra aquilo e dizendo “é a mesma pessoa, e eu vou começar a olhar isso”, antes do Chagas aparecer?
Ilana: Não. Na época que eu tinha escrito o “Louco ou Cruel”… Estava escrevendo “Made in Brazil” nessa época. Eu não achava nada. Eu não imaginava ainda uma vida na prática como conhecedora desse assunto, tá? Eu imaginava uma vida literária. Eu não tinha um plano. Quando chega o início de 2004… Aliás, foi no meu aniversário que chegou o e-mail do Diniz e do Benilton se apresentando, falando que estavam responsáveis por essa investigação no Maranhão, e perguntando se eu poderia colaborar com o meu conhecimento. Eles tinham lido o meu livro e achavam que na época só eu no Brasil estava falando de crimes em série. Foi muito interessante. Eu fiquei bem impactada porque era uma decisão. Vou pular? Vou atravessar essa linha? Vou pra vida real? Antes eu não tinha tido essa experiência. E aí resolvi que sim. Essa foi a minha primeira investigação de caso real usando todo o conhecimento que já envolvia metodologia de investigação pra crimes em série.
Ivan: Eu estou lendo aqui uma parte da fala do Diniz na Comissão de Direitos Humanos de 18 de novembro de 2004. E ele diz aqui “eu entrei em contato com a Ilana em fevereiro desse ano porque eu precisava…”.
Ilana: 19 de fevereiro…
Ivan: “Eu precisava de subsídio a respeito do que é um serial killer e o que ele faz, porque eu também não sabia. Eu já tinha noção do que era um serial killer, mas como não tinha suspeito, deixei essa linha de investigação um pouco de lado. Quando apareceu um suspeito, o Chagas, que foi preso em dezembro, eu tive que procurar pra aprender mais sobre ele. Então entrei na internet e botei o nome ‘serial killer’, daí apareceu o nome da Ilana”.
Ilana: E o Benilton, que era responsável na força-tarefa pela Polícia Federal, era meu leitor. Ele que participa da história da marmita, do que tinha na marmita do menino de Altamira…
Tainá: Qual é a história da marmita, Ilana? Se puder contar pra gente.
Ilana: A história da marmita. Tudo a gente checa, né? Tem mil possibilidades, gente. O cara pode estar assumindo crime que não é dele. E Altamira era uma discussão. Como comprovar que o Chagas era mesmo o autor? Uma das provas foi a seguinte… Tinha um menino… Eu esqueci o nome do menino. Mas o pai dele está na plantação, e todo o dia a avó faz uma marmita pra ele levar pro pai almoçar. O garoto vai levar a marmita pro pai e, nesse caminho, segundo o próprio Chagas, ele é abordado, assassinado e emasculado. O Chagas descreve a conversa com o menino, e eu não tenho como comprovar nada. Mas aí me ocorre uma ideia que era a seguinte: “Chagas, conta pra mim o que tinha na marmita”. E ele falou a comida que tinha na marmita, que eu já não me lembro mais. Mas ele na época contou. Aí o Benilton localizou a avó desse menino, que fez a marmita, e perguntou “vó, o que tinha na marmita?”. E a avó confirma o que o Chagas falou, o que pra nós é uma grande prova de que o cara sabe e está confessando um crime.
Ivan: O Diniz entra em contato com você em fevereiro de 2004 falando “nós temos um suspeito de ser um serial killer, eu preciso saber o que é um serial killer”. Ele te envia documentos? Qual é o próximo passo?
Ilana: Ele tinha uma fita VHS com as entrevistas dele com o Chagas, os interrogatórios. O Chagas já estava preso e negava peremptoriamente qualquer crime. O Diniz estava falando mais do crime do Jonnathan, que era o último, né? Em 6 de dezembro, se não me engano. É de onde o Diniz sempre sai, do Jonnathan. E ele nega, diz que não, que Deus sabe a verdade, que ele é inocente, que isso é uma injustiça e tal. O Diniz me mandou essa fita pra eu olhar quem era o Chagas. Eu não sabia nada. Então eu pude ver o comportamento dele, tanto verbal quanto corporal. E o Diniz também tem isso gravado pra registro de que o Chagas estava íntegro fisicamente. E ele me mandou cópia de todos os casos, tá? Todos os casos, com laudo de local e de necropsia.
Ivan: Deixa eu só esclarecer essa dúvida. O Diniz perguntou o que você precisa, e daí você falou “eu preciso de laudos”?
Ilana: Não. Eu acho que ele não perguntou o que eu precisava. Eu acho que foi uma conversa, e aí eu posso ter falado “sem ver, sem ouvir, não dá pra dar uma opinião”. Então a gente combinou ali. Eu não lembro mais, Ivan. Era uma questão sob sigilo, evidentemente. É muito sério, né? Meu uso era científico. Ele me enviou por Sedex essa fita VHS e esses processos todos em vários estágios diferentes. E aí eu chamei pra me ajudar o André Ribeiro Morrone, na época um grande médico legista aqui de São Paulo, que eu conheci no caso Richthofen e que é dono de um saber muito importante, pra juntos analisarmos as necropsias e os laudos de local.
Ivan: E eram documentos de Altamira e do Maranhão? Ou só do Maranhão?
Ilana: Só Maranhão. Isso era só no Maranhão, tá? É onde o Diniz estava investigando com o Benilton. Claro que o Diniz já tinha uma investigação muito importante a essa altura, mostrando que nos períodos em que morrem crianças no Maranhão, Chagas estava no Maranhão. Então, ele já tinha essa prova circunstancial, vamos dizer. Os crimes do Maranhão, no começo, quando o Chagas ainda morava em Altamira, só aconteceram nas datas em que ele veio pro Maranhão. E depois passam a ser em um lapso de tempo mais estreito quando ele se muda definitivamente pro Maranhão. E já existia essa dúvida. Essa dúvida já era presente. Agora, quais são os casos? O Diniz me mandou esse material, e as minhas paredes ficaram igual filme, com um quadro imenso. Nesse estudo, já eram citadas as crianças de Altamira, mas ainda sem documentação. Ele me mandou os casos de crianças que constavam na força-tarefa, crianças assassinadas no Maranhão. Desses, depois do meu estudo junto com o André, a gente já eliminou três ou quatro que não tinham nada a ver, não tinham o mesmo padrão, longe de ter o mesmo padrão. Inclusive, depois foi interessante confirmar com o Chagas porque em alguns casos que eu citei, ele falou “minha nossa, mas eu não mato assim, isso é horrível, não é assim que eu mato”. De fato, ele mata de uma outra maneira. Tinha um caso de Codó, que depois houve uma discordância também com a promotoria, que quis colocar no rol de casos do Chagas, e que eu, particularmente, não concordei. Era uma criança que estava amarrada. Pra mim, era um copycat. Aí fizemos essa limpa, ficamos com um número mais reduzido de casos. Eu já conversava direto com o Diniz e com o Benilton quando fui pro Maranhão. Fui explicar essa conexão tanto pros peritos da Polícia Científica do Maranhão quanto pra uma outra conferência de juízes. Eu dei uma palestra lá. A perícia foi especialmente contundente à minha palestra porque muitos peritos ali presentes tinham feito locais de crime do Chagas. E aí quando eu conectei a questão das moitas de tucum, que estavam presentes em cada local de crime, todo mundo disse “mas tinha mesmo. Nem sei se eu pus isso no laudo, mas eu me lembro”. Teve uma interação importante de informações também. Porque o perfil criminal é uma coisa muito dinâmica. Não é uma coisa estática. A informação que vem da perícia, da polícia, vai te alimentando pra você refinar o trabalho que está fazendo. É dinâmico isso, né? Quando uma profiler participa de uma força-tarefa, está chegando informação a todo tempo. Você tem que estar atento. O perito não é uma máquina fotográfica. Às vezes ele tem um caderno de rascunho. Muitos usaram isso. Eles foram buscar nos seus cadernos de rascunho coisas que anotaram. Quem acharia importante colocar num laudo de local que tinha moita de tucum? Quando o Chagas confessa e fala da importância da moita de tucum, que ela representava o número de mutilações, isso vai ficar crucial, né? Vamos lá, vamos buscar a informação, ver se confere. Então eu fui pra lá.
[…]
Ilana: Você sabe que eu sou sobrinha do Boris [Casoy], né? Foi a única vez na vida que o Boris ligou pra mim e falou “cuidado, cuidado. Você está desagradando muita gente com essa tese de serial killer. Muita gente vai ficar descontente. Porque aí tem assassinos confessos, então não foram eles?”.
Ivan: Sim.
Ilana: E eu levei essa preocupação pro Diniz e pro Benilton, e eu fiquei guardada no Maranhão. Fiquei muito guardada por eles, com muita segurança.
Ivan: Eu queria voltar um pouquinho porque tem uma coisa importante, Ilana, que você me falou uma vez. Em 26 de março de 2004, o Chagas ainda não tinha confessado os crimes, mas já estava preso há quatro meses. Então é feita aquela busca e apreensão na casa dele, e são encontradas ossadas. Eu sei que você tem uma história sobre essa busca.
Ilana: Tenho. Essa história é super importante porque o Chagas não confessava, e ninguém queria conseguir a confissão dele de uma maneira que não fosse verídica e comprovável. E é por isso que o Diniz me mandou os casos, pra construir esse perfil e planejar uma busca de provas. A gente precisava provar. O que tinha não bastava. Imagina provar em série, né? Eu e o André trabalhamos em tudo o que foi encontrado tanto em local quanto nas necropsias. E eu cheguei à conclusão na elaboração desse perfil que essas partes que o Chagas mutilava, num primeiro momento, eram enterradas. Havia a possibilidade de ele ter enterrado, numa fase depois, os corpos mesmo. Dentro dessa perspectiva, eu pedi pra força-tarefa verificar se na casa do Chagas existia terra de cor diferente. Ou seja, mais recém colocada. E aí o Diniz fundamenta uma busca e apreensão na casa onde o Chagas morava. Enquanto essa burocracia corria de um lado, de outro lado eu planejava juntamente com… Gente, nada eu fiz sozinha, tá? Força-tarefa não é de uma pessoa. É múltiplo, eram várias pessoas pensando. Então a gente começou um planejamento, dentro do meu conhecimento, de como interrogar o Chagas, como fazer isso na hora que tivéssemos a prova. Por quê? Pelo tipo de serial killer como é o Chagas, não adianta você falar pra ele “pense na mãe das crianças.”. Imagina. Não pensou nem nas crianças, vai pensar na mãe? “Ah, você vai se sentir melhor”. Não vai, né? Você tem que ter um planejamento de como interrogar esse cara. Como é eficiente? Que horas é melhor interrogar esse cara? De manhã, à tarde ou à noite? Que tom você usa? Você usa um tom paternal? Você usa um tom professoral? Você põe uma mulher ou um homem? Tinha uma questão que atrapalhou muito também. Um psiquiatra deu uma entrevista na época falando que o Chagas era homoerótico, que ele era homossexual, um louco. E aí ficou mais grave ainda confessar todos esses crimes. Então, você tinha uma série de dificuldades que precisavam ser ultrapassadas. Desde afirmar a masculinidade dele… Isso tudo tem que ser antes porque não adianta você pensar na hora. Porque eu tinha confiança que a gente ia encontrar provas nessa busca. Claro, o sonho máximo seria achar corpos inteiros, como no fim foram encontrados. Mas a gente pensava em ossos, né? Nisso, o André foi muito importante porque tinha que separar o que era ação de animal do que era ação humana. Porque cachorros também levam ossos. Cachorros, animais, a própria fauna do local. No dia da busca e apreensão, esse dia que você citou, teve um pedido meu de não deixar o Chagas ouvir… A mídia toda estava… Foi feito com uma escavadeira, pra você ter ideia. Era o que tínhamos na época. Então, as notícias e os comentários do rádio não chegaram no Chagas nesse dia. Por quê? Porque às vezes os jornalistas não percebem, mas montam a narrativa pra esses indivíduos. Quando eles fazem uma pergunta que parece inocente: “você apanhava da sua mãe?” O cara já fala “opa, isso é importante”. Aí pronto, vai montando as suas desculpas, os seus álibis. Era importante que o Chagas estivesse limpo dessas informações quando esse interrogatório começasse.
[…]
Ilana: Esse foi todo o esquema que a gente montou. A busca e apreensão, a escavação na casa do Chagas, foi o fim dessa estrada. E aí começa o interrogatório planejado. O Chagas, por exemplo, é muito matutino. Então, quando você conversa com ele às 7h, o cara está a milhão por hora. Está acordadíssimo, alerta, defendido. Quando vão chegando 15h, 16h, ele está mais baixo dessa tensão toda. Parece pouca coisa, né? Mas você vai juntando todas essas questões. Teve a questão de reafirmar a masculinidade… E aí começa o interrogatório do Chagas, que eu acompanhei aqui de São Paulo. Eu não estava lá. Era importante também que estivesse com a polícia, né? O Diniz falava comigo três, quatro vezes por dia. A gente foi alinhando. Sempre começava pelo Jonnathan, pra chegar em Altamira. Até que, já tendo informação de tudo o que ele estava respondendo e o que não estava, lá pelo terceiro dia surgiu uma ideia. Gente, ele é muito organizado. Ele é muito metódico. Ele tem um “TOC”, digamos assim. Então surgiu a ideia: “vamos começar pelo começo”. Ele só sabe começar pelo começo. Ele não está sabendo começar pelo fim. Vamos começar por Altamira. Primeiro os meninos de lá, os sobreviventes e tal. É aí que o Chagas começa a falar e vai um por um até os 45 relatos que fez pro Diniz, pra equipe toda da força-tarefa.
Ivan: Eu tenho aqui a linha do tempo. Depois que são encontradas as ossadas na casa dele, no dia 27 de março ele já confessa o Jonnathan e mais oito crianças.
Ilana: É. Mas ainda é confuso, entendeu? Você não conseguia montar com ele. Porque assim, qual é o meu papel nesse planejamento todo? É tentar colocar o cara num túnel, que ele comece a contar tudo.
Ivan: Tem que entrar na lógica dele, no raciocínio dele.
Ilana: Isso. Eu agradeço muito a confiança que o Diniz, o Benilton, a Geraulides tiveram em mim, porque o Chagas realmente não sabia dessas provas. Mas quando ele é confrontado com provas, muda tudo. Por isso que ele começa a falar.
Ivan: Pelo o que você está me falando, é esse processo de tentar entender como funciona a forma de ele relembrar. No final de abril, ou seja, um mês depois, ele começa a confessar Altamira.
Ilana: Acho que aí eu fui… Eu não sei quem te deu a linha do tempo…
Ivan: Eu estou olhando pelo processo e pelas matérias da época, tá?
Ilana: Não, mas a gente teve que sair do começo pra ele chegar… Em 26 de março é a apreensão. Então pode ser primeiro de abril, não sei. Mas é logo quando entendemos que ele vai contar do começo pro fim, que a gente já tinha uma razoável certeza dos crimes de Altamira. Porque a força-tarefa já tinha material dos casos de Altamira. Então ele começa a falar do caso zero.
Ivan: É. Eu vou te falar o que eu tenho aqui, inclusive baseado nas falas da Comissão de Direitos Humanos de 2004. Logo no primeiro interrogatório, quando o Chagas ainda está negando os crimes, ele já fala que morou em Altamira por um tempo. Aí o pessoal já começa…
Ilana: Porque a polícia já tem… O Diniz, super competente, e a equipe de investigação já acham… Porque o Chagas tem consultas no Maranhão. Ele tem uma irmã que mora no Maranhão. Então eles já levantam todo esse trânsito dele, os registros de consulta. O Chagas tem lepra, ele fazia consultas regulares. Isso tudo é comprovado, as idas e vindas, e as mortes nos períodos em que ele está no Maranhão. Com isso ele já tinha sido confrontado, mas não falava nada. Aí quando os corpos são encontrados, ele vai e conta tudo. Mas conta assim… Me dá esse espaço pra eu explicar o seguinte: não é “matei João. Ah, matei…”. Não é isso. Ele conta com riqueza de detalhes toda a abordagem dele com aquela criança específica. Que roupa ela estava usando; o que ele conversou; se era pra catar manga ou açaí, ou caçar passarinho; e onde aquela criança estava no momento da abordagem. Depende da época do ano também. A abordagem não é no local onde ele matou. Ele leva a criança pro local onde tem tudo o que ele precisa. As confissões dele são ricas em detalhes. Algumas, raras, ele não lembra de alguma coisa. Mas ele conta… O menino do supermercado, o Rosinaldo… O Chagas conta a camiseta que ele usava, que era vermelha. Acho que ainda me lembro… A conversa, os saquinhos de supermercado, tudo. Isso não estava nos autos, né? Não constava. São informações que ele está dando.
Tainá: Ilana, nesse momento em que ele começa a falar de Altamira, que informações a Polícia Civil do Maranhão já tinha em mãos sobre os casos de Altamira? E o que foi descoberto pelo Chagas? Como foi esse processo?
Ilana: Tainá, já existia o caso de Altamira. Existe uma maldade cronológica no caso de Altamira que eu acho muito impressionante. Em outubro de 2003, há o julgamento. Acontece o julgamento de Altamira.
Ivan: Em agosto e setembro.
Ilana: Isso. Em dezembro, o Chagas é preso e começa a confessar esses crimes em março, abril. Então, olha que tristeza, né? Se fosse um pouquinho pra lá, um pouquinho pra cá, teria sido outra história. Esses casos lá no Nordeste eram públicos e notórios. Todo mundo que tinha dois neurônios imaginava que eles estavam interligados. Porque é uma fantasia muito específica. O Diniz tinha tudo o que ele podia em casa. Agora, o material de Altamira era muito par… O Maranhão tem 30 vítimas. O material das vítimas também é par… Por que que serial killers escolhem as crianças pobres e não as ricas? Criança é criança. Mas você tem aí uma questão do nosso racismo estrutural, de pessoas que não são procuradas, investigações que não acontecem. E é o que acontece nesse caso. São todos meninos pobres, carentes. Ninguém estava em busca dessas crianças desaparecidas. Na minha apresentação de pós-graduação, eu tinha um mosaico, um slide, com o rosto desses meninos. Porque me incomoda [o termo] “as vítimas”. Gente, eles têm mãe, pai, irmão, rosto, cara, jeito, história. Cada um é um ali. E ficam nublados por esse assunto enorme que é esse caso. Então o Diniz foi pedindo tudo o que podia. Porque quando a gente conduziu o planejamento do interrogatório, eu ainda não tinha feito essa separação de padrão nos casos de Altamira como fiz no Maranhão. Tem alguns casos que você abre e já está tudo na lata, tudo o que você precisa está lá. Tem características do Chagas que são únicas. Por isso que em Codó eu não acredito que seja um caso dele. Além do menino estar amarrado, a emasculação acontece cortando o shorts dele. O que acontece? O Chagas ficou horrorizado com esse caso. Por quê? Se você olhar pra todos os casos dele, muitas crianças são encontradas ainda de shorts. Ele tira a roupa do menino, o emascula e o veste de novo. A emasculação, pra ele, não ocorre dessa forma, por cima. Não é só o fator de arrancar o pênis do menino. Tem mais coisas envolvidas no ritual dele do que puramente a emasculação, entendeu? Gente, tem ação de animal também. “Ah, ele cegou as crianças”. O primeiro lugar onde o urubu vai é o olho. Você tem que começar a entender o que acontece com um corpo numa mata tropical e separar o que é ação de animal e o que não é.
Ivan: O processo de putrefação na floresta amazônica também é outro, né?
Ilana: É outro. Tem que estudar. É bem difícil, bem difícil.
Ivan: Voltando na linha do tempo, o Chagas é preso em dezembro, e em fevereiro você é contatada. Em março, há a busca e apreensão na casa dele e os corpos são encontrados. Um mês depois, ele começa a confessar os crimes. No final de abril, ele já confessa inclusive os de Altamira. É nesse período que você vai pro Maranhão?
Ilana: Foi em abril. Deixa eu falar uma coisa importante aqui. Vocês do podcast separam muito Altamira do Maranhão. Exercitem-se, não separem. Isso é uma coisa só, é um fluxo. Não dá pra separar dentro da mente humana, ou do Chagas, os casos de Altamira e os casos do Maranhão. Porque pra ele é um caso. Então ele fala do Maranhão, daí fala de Altamira… Não. É uma coisa. A gente só conseguiu prosseguir com um trabalho eficiente porque entendeu que era uma coisa só. Não tem essa linha geográfica, não existe nesse caso. Tanto que eu fico extremamente frustrada que uma metade tenha que ser julgada pra cá, e a outra pra lá. A gente está 30 anos atrasado dos Estados Unidos, onde a federal lida com crimes sérios porque é nacional. Não fica mais essa linha de uma justiça que cuida de um estado, e outra que cuida de outro. Porque aqui nós estamos falando de um crime enorme que durou décadas, mas que é um só.
Ivan: É bem interessante o que você falou. Você diz que, no caso dos Estados Unidos, o Chagas passaria por um júri só em vez de passar por tantos?
Ilana: Provavelmente. O Gacy, o Dahmer… Aqui, como a gente não tem a figura jurídica, isso não pode acontecer. Não existe a figura em série aqui. Ainda não. Então, está fora de questão.
Ivan: Tá. Me conta como foi essa ida pra falar com o Chagas. Nesse período ele já está confessando tudo.
Ilana: Assim, eu posso não ajudar, mas jamais posso atrapalhar. Isso é uma questão. Então, a pesquisa vem depois do trabalho policial, né? Eu fui pra lá dar essas palestras tanto pro Ministério Público e magistratura quanto pra Polícia Científica, além de conversar com o Chagas. As duas coisas acontecem. Foi a primeira vez que eu fui, não a última. Depois eu fui conversar filmando, mas foi outro momento. Nesse momento, foi a primeira vez que eu tive contato direto com ele e, claro, foi muito interessante. Ele estava muito bem instalado na delegacia, muito bem tratado. Eu até tive uma conversa com outro delegado… Esqueci o nome dele. Ele andava com uma arma na cintura num coldre meio mole, meio inseguro. E o Chagas almoçava com a gente, né? Não estava na cela. Porque, gente, não parece, tá? Ele não tem cara de mau, jeito de mau, ou é mal educado. Não é isso. Ele estava ali colaborando e tal. E aí eu brinquei um dia com esse delegado. Falei “o senhor entendeu que ele matou mais de 40 crianças? Pra ele pegar essa arma que está dando sopa na sua cintura e fazer um espetáculo aqui não é difícil”. É muito estranho, parece ficção, né? Só que não. Então, claro que você tem o impacto porque olha um cara desse, que seria tranquilamente alguém que você colocaria dentro da sua casa pra fazer qualquer serviço. Um cara que conserta bicicleta, tem habilidade. Você está lá sentada pra almoçar, e ele na sua frente. Você fica pensando… Nossa, esses meninos dos quais eu me lembro, que eu conheci o rosto, que eu conheci a história, que eu ouvi em todas as confissões, que agora eu sei o que falaram e o que não disseram, sabe? É difícil você trazer isso pra dentro do mesmo lugar mental, né? Por isso que as linhas divisórias vão sumindo. Por isso que eu falo que o crime é um recorte da vida daquele indivíduo, é um momento. Mas não é a vida dele toda. Se o mau tivesse cara de mau, ninguém sofria dele. Tão perverso e não tem cara de perverso. Então, o Chagas parece uma pessoa normal.
[…]
Ilana: Eu acho que pra mim a maior dificuldade é não julgar. Porque se eu partir pra um julgamento, eu não consigo mais trabalhar nada. Eu não consigo mais saber nada dele. Ele entra numa defensiva. Muita terapia pra mim, né? Eu tenho muita noite insone, pesadelos, porque é tudo muito contraditório. Claro que você vai ganhando treino e aprendendo. Mas o Chagas foi a minha primeira experiência dentro de um caso real. Eu estava no caso Richthofen lá em 2002? Sim. Mas aqui eu estava de peça da força-tarefa, o que era completamente diferente. Eu acompanhei o caso Richthofen como escritora, como pesquisadora. Eu estava fazendo o meu estágio na perícia. Mas aqui não. Aqui eu estava como parte funcional daquele grupo. Então, e a responsabilidade? Você nem dorme… Da responsabilidade… Muitas vidas… Quando eu volto de uma jornada dessas, eu estou exausta, né? “Ah, você fica de cama?” Fico, gente. Fico de cama porque eu estou exausta, tanto emocionalmente quanto fisicamente. É uma maratona. Mas a boa notícia é que no fim teve um resultado incrível. Tudo o que a gente conseguiu foi levado a júri. O Chagas já foi submetido a sei lá quantos júris. Tudo com riqueza de provas e de detalhes, riqueza das confissões dele, coisas inquestionáveis.
Tainá: Ilana, você falou de objetivo. Qual era o seu objetivo quando você foi conversar com o Chagas e quais estratégias, como criminóloga, você usou pra conseguir isso?
Ilana: Eu usei aquilo que eu te contei. Muito você vai percebendo no interrogatório. Tem um momento em que ele está conversando comigo, me respondendo, aí para e fala assim: “falei demais”. É importante você estar completamente focada no que ele está dizendo, que horas ele está pegando a bala de goma que a gente punha lá, o caju… Até hoje pra comer caju eu penso duas vezes. Ele ama caju. Quando ele vai botar a mão no caju, que eu também vou ter que comer pra ele achar que é nosso, você acha que eu não me arrepio? Essa mão que estrangulou quantos meninos? É difícil, gente. E você vai montando estratégias que vão dando certo, escolhendo caminhos e tomando decisões. Eu sempre fui com um psicólogo, tá? A Maria Adelaide Caires ou o Antônio de Pádua Serafim. Ele também esteve comigo. Não lembro se ele falou com o Chagas comigo, mas ele esteve no Maranhão comigo. Por quê? Porque eu não posso causar um breakdown no cara. Gente, acontece. Tem que tomar cuidado psicologicamente também com o que você está cutucando ali. Porque nem sempre está tudo tão claro na cabeça dele. Também não está, né? Você tem que justamente entrar sem julgamento pra entender que, de alguma maneira, pra ele aquilo também é muito… Ele também não sabe por que ele faz isso. Ele também não entende bem o processo dele. Não é como um crime de assalto a banco, que tem todo um planejamento específico. Você usa tudo o que conhece, e de interrogatório eu posso ficar falando aqui uma semana de curso, Tainá. Tem várias estratégias, desde o uso de prova, mudança de tom, até o horário do dia. Ou a quebra de rotina quando o cara pensa que, como ontem acabou às 16h e hoje acabou às 16h, hoje vai acabar às 16h. Você acaba às 11h30, o devolve pra cela e não fala mais nada, só aparece no dia seguinte. Você tem que ter tempo, paciência. Quando ele acha que você vai perguntar do crime, você não vai mais. “Hoje eu não quero falar de crime, quero falar de infância, me conta aí da sua avó”. Que era uma parte importante. O Chagas tem uma história de infância bem trincada, bem complicada. Por exemplo, a questão dos dedos que ele amputa. Não sei se vocês têm essa informação, têm? Por que ele amputa os dedos?
Ivan: O motivo não temos.
Ilana: Eu tenho. O motivo dele qual era? Simbolicamente? Quem criava o Chagas era a avó. Quando ele fazia alguma coisa errada, a avó botava os dedos dele em cima do tampo da mesa, pegava um facão e fingia que ia cortar. “Vou cortar, vou cortar”. E dava a facada na mesa, não no dedo. Esses momentos com a avó, na ameaça de perder os dedos pelo pecado que cometeu, eram horríveis. E aí eu fui entender, por exemplo, por que ele mutilava os dedos de tantos meninos. Porque não é só a emasculação. Vai cortar a mão, vai cortar um dedo, todos os dedos. A gente queria entender tudo. Então, tem que ter paciência. A confissão eu já tinha, muito detalhada. Tem um policial, não vou contar de que estado, que falava pra mim “doutora, a senhora demora muito, me dá meia hora aqui que eu já resolvo”. Não quero em meia hora, né? Eu não tinha prazo. Isso é muito importante pra você checar tudo o que está sendo dito, estudar e usar as estratégias que funcionaram aqui em novos casos.
Ivan: Você pode, então, falar por que o Chagas matava e como era o ritual dele?
Ilana: Ele não me contou. O ritual eu posso. Como ele matava? Por que ele matava? Eu tenho desconfianças. Porque pra mim todos os meninos eram duplas, não eram únicos. Mesmo se não são aqueles que ele matou juntos, eles sempre são em dupla. Eles formam duplas. Essas duplas têm uma simetria de mutilações. Elas formam um. As duas juntas formam um. Dificilmente você consegue conversar com ele se não entender que, pra ele, cada duas significa uma. Ele disse que eu ia amadurecer, ficar mais sabida, daí eu ia entender por que ele matava, mas que estava relacionado ao pecado original. Daí depois eu achei o 14:21, do profeta Isaías. Vamos jogar um Google aqui…
Ivan: Eu vou ler aqui, eu já encontrei. “Preparem um local para matar os filhos dele por causa da iniquidade dos seus antepassados, para que eles não se levantem para herdar a terra e cobri-la de cidades”.
Ilana: E tem a matança das crianças, não tem?
Ivan: “Preparai a matança para os filhos por causa da maldade de seus pais, para que não se levantem e possuam a terra”.
Ilana: Esse é um ponto crucial. Os pais. O Chagas despreza todos os pais das crianças que ele matou. Como pais. Ele foi um menino abandonado por pai e mãe. Essas crianças não eram abandonadas, mas ele… Não estou dizendo que eram maus pais, por favor. Estou dizendo que, na visão dele, eles não estavam de acordo com a régua top de ser pai e mãe. E tem essa relação, o pecado original. Quando você o mata na origem pra não povoar a terra de novos pecadores, né? Porque você vem dessa linhagem, de pais que são pecadores. Então, eu acho que tem essa linha bíblica do Chagas, apesar de ele não ser um cara de frequentar igreja. A avó dele era médium. Ele tinha pavor, e ele tinha pavor de igreja também.
Ivan: Mas essa questão da passagem do Isaías, ele citava?
Ilana: Não. Ele falava do pecado original. Daí quando eu li… Fui tentar entender o Chagas, né? Vamos ler a Bíblia, faz bem. Quando eu achei o Isaías, da matança das crianças pelo pecado dos pais, acendeu… Estamos falando disso. O Benilton me prometeu que, antes de eu morrer, ele vai me levar lá pra confirmar com o Chagas a tese de Isaías. Não sei se ela é verdade. Mas ele agora nega os crimes.
[…]
Ilana: Outra coisa, por exemplo. A avó fazia uma lista na parede das contravenções dele, das coisas que ele fazia de errado. Quando chegava no número oito, ele tinha que escolher uma vara de marmelo porque ia apanhar. São coisas que vão marcando. Tinha um abusador. A avó tinha um cara que ficava tomando conta das crianças quando ela ia pra cidade. Pelo o que eu entendi, ele era um abusador também. Você tem várias questões na história do Chagas que vão fazer sentido com a simbologia dele. O ritual dele foi se sofisticando. Então, eu vou dar um apanhado geral, tá? Nos crimes do começo podem faltar algumas coisas e pode ter mais alguma coisa nos crimes do final. O Chagas escolhia essa criança. Eram crianças específicas, não era qualquer uma que você via. Porque era sempre um par com a anterior ou começando uma dupla nova. Ele atraía essa criança pra dentro do mato. Fruta, catar açaí, manga, passarinho. Era sempre uma coisa bem inofensiva. Ele era agradável com as crianças. As crianças não tinham por que temer o Chagas. E é tudo perto da casa dele, tá, gente? Ele escolhe. Provavelmente ele já viu até antes essas crianças ali brincando. Ia atrás dessa criança e aí, no relato dele, num certo momento, ele usava a seguinte frase: “o vento muda”. Ele precisa ter moitas de tucum perto de onde ele mata essas crianças. É a moita de tucum que faz o vento virar, tá? É sempre quando ele encontra as moitas de tucum. Dependendo de quantas moitas, vai ter relação com o número de mutilações que ele vai fazer naquela criança. Ele não se acha cruel porque ele mata a criança com uma gravata muito rápida, uma criança pequena. Ele acha que não provoca sofrimento ao matar essa criança. Ao contrário, né? Está livrando a criança do sofrimento. E aí todas as coisas que ele faz são post mortem. Por isso que ele não se acha cruel. No fim, ele já fazia no chão uma cruz na terra com o dedo. Ele não tinha só as mutilações. Ele fazia um cone com três, cinco ou sete folhas, nunca número par, sempre número ímpar de folhas. Ele furava a criança pra encher de sangue esse cone. Quando a pessoa já morreu e o sangue não está mais fluindo no corpo, não é tão fácil escorrer o sangue, juntar esse sangue. Várias crianças têm vários cortes. Vou chamar de piques. Vários piques na pele que não são das mutilações. As mutilações já não sangrariam. Ele faz esses pequenos cortes e coleta o sangue nesse cone. Aí ele forra a cruz com esse sangue, e é em cima dessa cruz com sangue e com o órgão sexual da criança, no centro dela, que ele vai pôr a vítima. Em outros casos, ele vai levar isso embora. Essa criança vai ser coberta com folhas de palmeira ou similares, e ele põe umas pedras também demarcando esse lugar. Quando não deixa na cruz, ele leva o pênis e outras partes mutiladas até o rio e coloca tudo na água corrente. Ele lava a faca na água corrente desse rio, ou muitas vezes dispensa a faca pra ter outra. Não acho que lá no começo tinha o cone, a coleta de sangue. Eu acho que cada vez ele foi adicionando um comportamento e tornando esse ritual bastante complexo.
Ivan: Até a forma de saber quando fazer a emasculação, né? Porque você tem sobreviventes no início. O relato de um deles diz que ele foi emasculado e desmaiou com o choque, daí acordou ensanguentado.
Ilana: Eles foram emasculados em vários graus de gravidade, esses sobreviventes. É uma escalada, né? E a gente sabe de três. Não sei se tem algum caso antes. Isso é uma coisa que em geral não se denuncia, infelizmente. Mas escalou e aí não parou mais.
Ivan: Tudo o que você está falando bate. No início de 92, quando morre o menino indígena, o Chipaia, ele tem furos no corpo. A família até achava que era tiro.
Ilana: Ele tem. Todos têm, Ivan, todos têm.
Ivan: O Jaenes tem cortes de facão no corpo.
Ilana: Isso. Por isso que eu falo pra você: tem que ter uma coerência entre a perícia e o que o cara está te contando. E tudo o que o Chagas conta tem coerência, o que está constatado cientificamente. Porque ele não sabe explicar pra mim “olha, os cortes são disso”. Ele sabe falar assim “ai, doutora, a senhora sabe como é difícil coletar o sangue, porque não sai”. Eu sei que não sai. O André Morrone sabe que não sai. Ele só sabe porque ele furou as pessoas mortas. Por que uma pessoa leiga saberia disso? Não sabe também. Alguém já experimentou ficar furando morto pra ver se sangra? Claro que não. Então, é coerente.
Tainá: Ilana, eu queria perguntar sobre a questão das violações sexuais, dos abusos sexuais. Porque o Chagas nunca confessa isso, mas quando a gente olha nos inquéritos, em alguns meninos você vai ter…
Ilana: Quantos? Quantos? Fala pra mim quantos.
Tainá: Sinais de… Não vou lembrar de cabeça aqui. São alguns casos…
Ilana: Vai sim, vamos lá. Vai sim, vai lembrar. Me fala na real. Eu estou te provocando porque eu sei… Me fala na real, quantos tem de fato. Não suposição. Não porque está sem shorts, com shorts. Quantos casos de abuso sexual são confirmados na necropsia?
Ivan: Eu vou tentar encontrar aqui, Ilana. Acho que temos um dos interrogatórios do Chagas em que a promotora está falando sobre a amostra de sêmen encontrada que bateu com ele. Eu vou procurar aqui e já te digo.
Ilana: Isso, procura. Procura sim. Porque daí vai ter dois ou três…
Tainá: É. Exatamente.
Ilana: Você tem um universo de 45. Cuidado. Crianças são vítimas de abuso sexual. Eu acho que esse caso que você está citando, Ivan, verifica… Eu acho que é o que não deu pra fazer o DNA, tá?
Ivan: Mas o teu ponto geral, Ilana, é que ele não abusava das vítimas?
Ilana: Não. O meu ponto geral é que isso não fazia parte do ritual dele. Era um ritual de purificação e não um ritual de agressão. Abuso sexual é agressão. Não é sexo, tá? Eu não me lembro de ter uma prova cabal de abuso sexual do Chagas. Eu não me lembro se é uma ou duas, um número muito pequeno no universo de crianças, que têm sinais de abuso. Eu não descarto… Muito menos os familiares… Que 80% dos abusadores estão entre a família, né? Então você não sabe se aquela criança foi abusada antes, depois ou durante.
Tainá: No caso do Jonnathan, por exemplo, o documento diz: “Laudos de análise da ossada apontaram para fraturas no ânus que corroboram a hipótese de violação sexual, tendo amparo num testemunho prestado por Ruan”, que foi o menino que falou que viu. “Além disso, na prisão, o exame teria sido feito no pênis do Chagas, onde lesões encontradas na glande, no sulco balanoprepucial e no freio do pênis do acusado são compatíveis com o trauma local, sugerindo a prática de coito anal”.
Ilana: Mas, Tainá, vamos lá…
Tainá: Esse seria um.
Ilana: Não é cabal. Entende o que eu estou dizendo? Não é assim, desculpa.
Tainá: Claro.
Ilana: Sei lá o que o Chagas fez com o pênis dele. Mas está meio longe, uma coisa e outra coisa. O Jonathan morre em dezembro, e o Chagas começa a confessar em abril.
[…]
Ivan: O Chagas cita em alguns depoimentos pra Polícia Federal uma visão que ele tinha de uma pessoa flutuando. Você chegou a ouvir isso dele? Ou só do vento?
Ilana: É. Principalmente a Adelaide ouviu porque fez o laudo psicológico. O Antônio ouviu. Ele fala dessa voz, desse comando. Não dá pra checar, né? A conclusão de todos da área psi é que ele não é esquizofrênico. Não tem um quadro psicótico, que teria como característica essas alucinações.
Ivan: Ele poderia estar inventando uma história pra justificar ou tentar passar uma pinta…
Ilana: Então, ele fala o tempo todo “podem me examinar, eu não sou doente. Eu não sou, eu nunca fui. Eu não tenho doença nenhuma. Eu não sou louco”. Ele afirma o contrário, entendeu? É complexo.
Ivan: É. Tanto que ele não foi assim classificado, né?
Ilana: Não foi porque não é.
Ivan: O que pra mim é difícil de entender. Porque se a pessoa matou mais de 40 crianças e tem toda uma narrativa em torno disso, pra mim é difícil entender que ela não tem algum descolamento da realidade que é perigoso, sabe? Que ela seria inimputável ou alguma coisa assim.
Ilana: A gente une, ancestralmente, o mal à doença mental. Quando, na realidade estatística, raríssimos doentes mentais matam. É o contrário. O doente mental não é violento. Você tem no Brasil a semi-imputabilidade. Eu acho que tem só em três ou quatro países. Mas o que é a semi-imputabilidade? Eu entendo o que eu estou fazendo, mas eu não tenho controle sobre essa vontade. Mas quando isso da área psiquiátrica é transportado pra lei, pra parte jurídica, a gente tem um problema. Porque a semi-imputabilidade dá o benefício da diminuição da culpabilidade. A inimputabilidade dá total. Você sabe, né? É absolvido e tal. A semi diminui a pena. Então, nenhum promotor quer usar a semi-imputabilidade.
Ivan: Deixa eu te perguntar sobre essa questão das duplas, que eu fiquei curioso. Porque de fato nós temos aqui vários casos de meninos que estavam com amiguinhos, e aí o Chagas chama pra sair. Mas também tem crianças que estavam sozinhas. Só que você está dizendo que tem uma relação com o caso anterior ou com o próximo. Me explica um pouquinho melhor essa dinâmica das duplas?
Ilana: Se eu puder. É difícil. Ele parte de um ritual de purificação, de defesa, de proteção. Então, pra ele, a primeira parte da escolha é: essa criança é protegida ou não é? Essa criança é o elo fraco? Ele escolhe o elo fraco. Ele aborda duas crianças e, se ele consegue separar aquela parte que tem que morrer, aquele é o elo fraco, é o não leal. É o que não ficou. É o que se convenceu rapidamente a deixar o outro. É a visão dele que eu estou dando, tá? Por algum motivo, algumas vezes ele achou o jogo completo dos meninos que ele precisava. Mas, se eu não me engano, tem três ou quatro duplas, eu não lembro de cabeça. Mas são poucas duplas. E o mais significativo é quando ele deixa essa dupla abraçada em cruz, está em cruz a dupla. Ele arruma esses corpos. Tem um significado pra ele de uma dupla formada.
Ivan: Como isso acontece de um caso pro outro? Por exemplo, ele mata uma criança num dia e no mês seguinte ele mata outra. Ele entende que há uma relação dessas duas vítimas?
Ilana: Pra ele é parte de uma só. Porque as mutilações, se você olhar nos pares, são simétricas. Uma completa a outra.
[…]
Ilana: É isso que você tem. A mão do Edivan e a mão do Welson, por exemplo. Você vê que uma você tem a mão direita e outra a mão esquerda. Isso é uma dupla. Esses dois meninos não foram mortos juntos.
Tainá: Ilana, eu queria te perguntar um pouco desse lugar mental do Chagas. Porque, como você falou, ele descreve com riqueza de detalhes, mas me parece que são algumas informações específicas, né? O que a criança estava vestindo, onde ele a encontrou, mas os nomes ele não lembra.
Ilana: Nomes algumas vezes… Você imagina. O cara ficou matando de 1989 até 2003, é muita gente. Mas ele lembra o suficiente pra eu saber… Porque é óbvio que não sou eu que estou dando a criança pra ele. Ele que está me dando a ordem. “Depois desse foi aquele”. “Quem é aquele?”. Porque eu não posso colocar palavra na boca dele, né? “Quem é?”. “Ah, é um menino de camiseta vermelha que estava na porta do supermercado. Ele tinha ido fazer compras, estava com o saquinho na mão, uma sacolinha na mão”. Aí eu vou lá nos meus processos e acho que ele se chamava tal.
Ivan: Esse é um ponto importante que a gente estava tentando localizar e queria confirmar com você. É possível que, dado o tempo que passou, ele confundisse um detalhe de uma vítima com outra? Por exemplo, falar o local de um com o pedaço de roupa do outro.
Ilana: Não é provável porque pra ele tem um sentido. Primeiro que dois são sempre uma história na cabeça dele. E segundo que as histórias se complementam por algum motivo, né? Nem ele sabe. Não adianta fazer uma pergunta objetiva. “Como você seleciona as suas vítimas?”. Oi? Ele não sabe do que eu estou falando. Eu que tenho essa pergunta. Eu preciso decupar pra entender. Então talvez nem ele tenha tão claro qual é o método dele. É intuitivo. Algum lugar da cabeça dele sabe o que ele está procurando.
Ivan: Te ouvindo e lembrando principalmente dos inquéritos da Polícia Federal, eu queria que você me confirmasse ou complementasse uma impressão que eu tenho. Por mais que a gente tivesse agentes da Polícia Federal e o próprio doutor Diniz abertos à possibilidade de que “ok, serial killer não é um crime comum”, na hora de formalizar isso no inquérito não aparecem todas essas nuances. É como se tivesse que formalizar uma coisa muito complexa pra um relatório como é feito naquela época. Ele confessou um crime, está aqui como ele confessou e pronto, acabou. A gente não entra nessas nuances que são super importantes pra entender o caso. Como se o formato do inquérito policial não fosse feito pra um serial killer.
Ilana: Mas não foi feito pra um serial killer não. Não foi feito pra isso tudo que você está querendo. Não precisa ser serial killer. Você não precisa de nada disso pro inquérito policial, pro objetivo dele. Cada um tem que ficar no seu objetivo, né? Você não pode psicologizar dentro de um inquérito policial. Ele tem uma finalidade. Ele vai pro Ministério Público, que vai denunciar ou não. É uma questão de prova, é uma questão de interrogatórios, de depoimentos, de testemunhas. Ele é construído de uma certa maneira. Quando chega no Ministério Público pra essa denúncia ser relatada, é a mesma coisa.
Tainá: Ilana, uma coisa que eu acho interessante é quando você fala, por exemplo, que a gente olha pro caso de Altamira e é o mesmo caso do Maranhão. Eu entendo 100% no sentido de você, tendo a percepção de que foi o Chagas quem fez tudo isso… E você sabe porque você conversou com ele, porque você estuda serial killer…
Ilana: Não, não tenho a percepção. Ele que me falou. Ele que me contou, e tudo bate.
Tainá: Exatamente. Mas, do mesmo jeito, o ponto cego pra gente em Altamira é que a Polícia Civil nunca conseguiu ter essa percepção de olhar pro que estava sendo feito no Maranhão e falar “é o mesmo caso”, sabe?
Ilana: Mas não dá mais.
Tainá: Exatamente.
Ilana: Mas tem erro que você não conserta. Eles já foram longe demais. Você tem condenados, pessoas que sumiram, que morreram, famílias destruídas. E agora, José? O que você faz? Eu ouvi isso de uma grande figura jurídica, não vou te contar quem. Ela falou “já faz tanto tempo, é tão grave tudo, que a pessoa vai sair mais rápido em progressão de regime do que eu vou absolver”. É disso que se trata. Porque é um custo. Não só um custo de dinheiro, que também tem, mas tem todo o custo da credibilidade de uma instituição. Você me desculpa, a Polícia Civil do Pará lá na investigação se atrapalhou loucamente. A Polícia Federal nem vou comentar. Você tem grandes erros cometidos, deduções impossíveis, provas que não são provas, circunstâncias que não aconteceram, depoimentos pressionados. Tem várias questões ali. Quem mais você conhece, além de nós quatro aqui nessa sala, que querem voltar pra isso? Qual é o interesse pras outras pessoas do mundo? A gente é gente encrenqueira, gente chata. Que verdade vocês querem? O que vocês estão buscando? Já está tudo resolvido. De certa forma está, né? O doutor Anísio, que já faleceu, me ligou quando foi pra [prisão] domiciliar. A gente teve uma conversa tão linda, e eu só pedi pra ele “não conta pra ninguém. O senhor fica quieto aí na sua domiciliar porque ninguém está a favor. O mundo está contra. O que tem a ganhar? Nada de comemorar. Comemore no seio familiar”. Eu acho que isso é importante. A gente quer ser feliz ou ter razão? É a velha dúvida filosófica. Muitas vezes na vida é melhor não ter razão, é melhor simplesmente ser feliz.
Ivan: É.
Ilana: Eu acho que ninguém quer enfrentar esses erros cometidos. Olha por quantos anos o Chagas matou. Muitos erros foram cometidos. Não era mesmo um conhecimento geral o crime em série, mas já existia. Bastava ir na sessão da tarde, né, gente? Só ver televisão. Dá pra elaborar um raciocínio. Mas é o que temos. A seita foi uma história ótima pra Altamira, que já não emplaca no Maranhão. Você vê como mudam os tempos. Mudam as mídias, mudam as narrativas. Agora, a pessoa absolvida é justamente a seita. Quem é absolvida nesse processo?
Ivan: A Valentina.
Ilana: É a seita. Mas por quê? Não tem uma prova contra a mulher?
Tainá: Sim.
Ilana: Ninguém conseguiu amarrar essa seita em coisa nenhuma. Aí é a derrocada geral de todo o trabalho que teve em Altamira.
Ivan: Eu queria perguntar, Ilana… A pergunta é super simples e a resposta é bem complexa. Eu quero que você me fale tudo o que você sabe, o que lembra, sobre o momento que o Chagas passa a negar os crimes e por quê.
Ilana: É um arrependimento. Às vezes você é bom e causa um mau resultado. No primeiro júri, que foi do caso Jonnathan, a irmã do Chagas participa. E ela pede pra ver o irmão antes do júri. E aí que muda. Porque quando ela encontra o Chagas… Foi uma humanidade deixar ela ver o irmão, né? Ele ia pra um momento decisivo da vida dele. Mas quando ela vê o Chagas, conta pra ele todo o massacre que vem sofrendo, de quase linchamento, de agressões, e que teve que mudar de casa. Inclusive o depoimento dela foi com o rosto escondido por uma balaclava pra ela não ser reconhecida. E ela pede pra ele não falar. “A nossa família está em Altamira, não fala de Altamira”. É ali no júri que, pra surpresa de todo mundo, ele fala “Altamira? Onde fica mesmo? Não sei do que vocês estão falando”. Então, sei lá, como eu vou chamar isso, né? Não sei. Mas é dali que ele passa a negar Altamira, no próprio início do júri. Apesar disso, é muito rico tudo o que se tem, por isso que eu sou inconformada. É muito rico tudo o que se tem, todas as informações das 45 vítimas desse caso. Em todos os relatos dele não só pra Polícia Federal e Polícia Civil, como pra todas as psicólogas que fizeram os laudos dele. E acho que também tem uma questão da mídia. A gente teve uma desastrosa entrevista de um canal de televisão que mandou o seu decano repórter, e ele acuou o Chagas, que é o jeito errado de fazer o Chagas falar. Ele tem um piti e fala “não vou mais falar”. Por isso que eu tenho esse trato com o Benilton, porque Isaías 14:21 eu ainda vou perguntar pro Chagas um dia. Então é isso, qual é o objetivo? É só meu. Do meu entendimento. Já não vale pra nada. Mas pra mim, pro Benilton, pro Diniz… Eu garanto pra você que a hora que eu estiver sentada com ele… Ele vai falar o que pra mim? “Não fui eu”. Só rindo, né? Claro que não. Ele no máximo vai falar “não quero falar disso”. Mas jamais vai poder negar porque as conversas são horas, horas, horas, horas, dias, dias, dias, vezes, vezes… Não tem como.
Tainá: Ilana, eu tenho uma pergunta… Acho que pode ser importante ter uma resposta um pouco mais técnica pro podcast. A gente ouve muito, quando está lendo os processos e ouvindo os familiares em Altamira, que ninguém acredita que foi o Chagas. Eles falam que ele não poderia ter agido sozinho, que esses crimes não poderiam ter sido cometidos por uma pessoa só. Olhando pros casos que você analisou, existe a hipótese de que os crimes tenham sido cometidos por mais alguém além do Chagas, ou eles foram necessariamente cometidos por uma só pessoa e por quê?
Ilana: Antes eu vou responder a pergunta que você não fez. Por que elas não acreditam? Vamos lá. Existia uma grande campanha na época do julgamento pra condenação de todos os réus daquele júri. Césio, Anísio, Amailton… Existiam ônibus de graça, piquete na porta do júri. Foi um movimento importante. Qualquer uma dessas pessoas que ficaram no piquete e jogaram pedra, ainda sem o julgamento, naqueles que foram condenadas… Se hoje elas acreditarem que foi o Chagas, terão que assumir que cometeram uma maldade terrível. Não são tão boas encarnações como elas pensam que são. É um drama. Eu não estou dizendo que foi consciente. Inclusive eu acho que elas foram muito manipuladas por interesses de vários envolvidos ali. São pessoas que acreditam em autoridades. Quando eu comecei, eu achava que “falou, tá falado”. Falou pra polícia, tá falado, né? A polícia acha, o promotor acha, ele tem razão. São pessoas que foram muito exploradas por esse caso tanto pela mídia, pelas instituições, quanto pelas organizações que também não tinham resposta. Então, eu acho muito difícil voltar atrás pra qualquer uma dessas pessoas.
[…]
Ilana: Segunda resposta. Crimes podem ser cometidos por uma, por duas, por dez pessoas. Estamos falando deste caso. Não há nenhuma dúvida pericial, judicial, processual, de que foi o Chagas. Então não tem que falar “pode ser”. Pode tudo. Eu já vi de tudo, gente. Neste caso, é claro, comprovado, fechado, lacrado, quem é o autor, quem estava no local do crime e qual padrão seguiu. Casos conectados pericialmente. Não tem nenhuma dúvida sobre a autoria do Chagas. Então, ‘in dubio pro reo’ ou ‘pro-réus’. In dubio ‘pro-seita’. É deles que a gente não sabe. Então, como é que a gente duvida que não tem prova? E não acredita no que está comprovado cientificamente? A questão aqui não é o que eu acredito ou o que você acredita. Eu sugiro, fortemente, pra quem vive esse drama, que se inteire dos laudos do processo. Simples assim. Pegue, vai ler. Não precisa contratar um advogado. Estuda, vai lá, ouve o podcast. Olha aí que bacana, vai estar um monte de gente falando, todo mundo explicando. E esteja aberto pra assumir com responsabilidade, porém sem culpa… Essas pessoas não têm culpa de terem acusado homens e mulheres errados, mas elas têm uma responsabilidade pela pressão que aconteceu. Mas elas estão desculpadas, elas não sabiam. Foram manipuladas, foram exploradas. Mas há que se ater mais à ciência, às comprovações do que ao discursinho, né? “Ah, isso não se faz… Um só”. Gente, vamos lá, fala sério. Vocês conhecem crianças de 12 anos? 10, 12 anos? Da área periférica do Maranhão? Eu pergunto isso porque, quando eu li o caso que o Diniz me enviou, eu fiz uma imagem dessas crianças com as fotos e tal. Aí eu fui viajar pra Bahia, sei lá por que motivo, e vieram uns menininhos muito pobres na Igreja do Bonfim falar comigo. Eram meninos que pra mim tinham oito anos de idade, nove anos de idade. E aí eu perguntei “quantos anos vocês têm?”. “11, 12, 13”. Oi? Aí eu me dei conta do que é o tamanho de uma criança paupérrima, carente, na área periférica de São Luís do Maranhão ou de Altamira. São crianças pequenas. Quantos vocês acham que precisa pra matar essa criança? Então, não tem lógica esse argumento, né? Se é uma pessoa ou se pode ser mais. Pode tudo. Este caso foi muito bem trabalhado por essa força-tarefa, que foi absurdamente profunda na sua investigação. Vocês têm o material. É um inquérito dos mais perfeitos que eu já vi, completos, com tudo. Você tem perfil geográfico, perfil psicológico, perfil das vítimas, tem vitimologia. Você tem tudo ali da melhor literatura acadêmica sobre o assunto. Aí se realmente você é um negacionista nesse sentido: “ah, não quero…”, bom, tudo bem. Eu te respeito. Você não quer acreditar. Beleza. Mas não vai ser por falta de prova ou comprovação científica, jurídica ou processual. Nenhum processo do Chagas foi anulado por alguma falha que tivesse tido. Não temos nada disso. Temos um caso completamente esclarecido. Só não acredita quem não quer mesmo.
[…]
Ivan: Em relação aos troféus, eu queria perguntar sobre a questão da lista de vítimas que o Chagas dizia que tinha e que perdeu.
Ilana: Tem pior. É bem pior. O Chagas contou pra mim que tirava um dente de cada criança. Cada dente ele embrulhava no nome do menino, e escondia no telhado da casa dele. Só que isso ninguém procurou, e a casa foi demolida, infelizmente, na raiva de ser o Chagas. Isso foi embora com o entulho. Não pude confirmar. Mas por que mesmo ele mentiria? Uma fantasia pós-prisão? Mas, enfim, fica o depoimento de que ele levava um dente de cada criança e o embrulhava num papel com o nome. Ele tinha sim uma lista. Era importante pra ele o nome, e o troféu era esse dente.
Ivan: Eu lembro de uma fala do Diniz na Comissão de Direitos Humanos de 2004, dizendo que naqueles poucos dias em que o Chagas se torna um suspeito, até ser preso, ele pode ter se livrado de alguns troféus que teria em casa. Faz sentido isso pra você?
Ilana: De que tipo de troféu?
Ivan: Pois é…
Tainá: Falam que a hipótese é que ele teria um papel…
Ilana: Acabei de explicar. Acabei de explicar. Ele tinha mesmo esse papel, que ele não tem mais. Isso ele pode ter eliminado. O papel. O que ele não eliminou, Tainá, é um dente de cada criança que guardava embrulhado num papel com o nome dela, escondido no telhado de palha. Isso ninguém achou, ninguém procurou. Quando ele contou isso, já tinham demolido a casa dele e retirado o entulho. Mas a lista ele tinha. A ‘lista santa’, a gente falava. Ele tinha uma lista santa. Essa lista, esse papel onde ele marcava esses nomes, tinha uma força pra ele. Ele achava que esse papel, por ter o nome dessas crianças ‘santas’, ganhava uma força impressionante. Mas ele nunca me disse qual era o objetivo ou o que ia fazer com a lista santa, por exemplo. Força pra…? Poder pra…? A gente não sabe. Veja, tem perguntas que eu não fiz, mas que hoje eu faria. Mas eu estou pensando nisso há 20 anos, hoje com um monte de gente querendo discutir isso. Porque ninguém queria falar disso comigo. Era um crime lá do Nordeste, repercussão zero na imprensa. Mal foi noticiado que houve o júri do Chagas depois. Talvez agora não fosse mais necessário perguntar nada sobre o que foi, mas sim sobre o que significa, né? Na psicanálise tem um termo que eu gosto, que é o ‘split’. Não é que eu estou falando que o Chagas tem split, e não é que ele tenha duas personalidades também, que eu não quero ser mal interpretada. Mas a parte dele da vida dos crimes, na cabeça dele, é muito compartimentalizada em outro lugar que não é a vida cotidiana dele. Ele usa o termo “vou lembrando”, mas na verdade está incorporando dentro dele próprio tudo o que aconteceu. No começo, ele lidava de forma apartada. “Esse não sou eu. Vou negar e vou negar”. Quando ele foi preso, achava que ia escapar. É uma característica bem comum nos matadores em série, nos serial killers. Essa questão de “ninguém sabe o quanto eu sou esperto”. Tanto que ele fala pra mim “um dia a senhora vai entender, vai ter condição de entender”. Acho que ele tinha confiança. Como era uma lista santa, como ele estava a serviço do que acredita ser o bem maior do mundo, ele estaria ileso de qualquer consequência.
Ivan: Quando você faz aquelas longas entrevistas com o Chagas, que você grava com ele, ele já tinha ido pra Altamira ou ainda não?
Ilana: Não. Não tinha chegado ainda a essa parte do processo. O Diniz tinha que fechar a parte do Maranhão pra então… Aí sim entrou a Polícia Federal com os seus psicólogos. Foi todo mundo pra Altamira. O erro médio do Chagas ao definir um local de crime é de 50 centímetros. Pega uma régua. Veja aí o que significam 50 centímetros. É numa mata. Eu entrei com ele na mata. Estava a Polícia Civil, a perícia. Vocês não têm noção do que é andar com o Chagas dentro de uma mata. O Chagas é mateiro. Ele foi algemado. Existia até um risco porque em uma pernada ele deixava todo mundo pra trás. E sabe quantas mangueiras tinha no lugar que eu fui? Como ele sabe que é aquela? Ele sabe a exata localização. “É aqui nessa”. E ele mostra. O perito vai lá com a sua trena, GPS, pega o laudo de local feito à época, e vê uma diferença de 50 centímetros, meio metro. Então é muito impressionante a precisão. E claro que ele vai voltar pra Altamira muitos anos depois, né? A cidade já cresceu. Então, é evidente que qualquer equívoco será compreendido, ou será usado politicamente e não compreendido. É evidente que o erro pode acontecer? É. Mas pela média… Gente, o cara leva as pessoas a 42 locais de crime.
Ivan: Em Altamira, tem uma situação das buscas e apreensões em que a gente lê o seguinte… Eu não sei se você tem alguma informação sobre isso, por isso estou perguntando. A gente lê na imprensa na época que quando o Chagas vai pra alguns locais em Altamira, são encontrados fragmentos de ossos, e esses ossos iriam pra uma perícia, pra análise. Só que eu não encontro nos inquéritos da PF o laudo de DNA, mas vejo uma decisão de um desembargador na revisão criminal do Césio, em que ele está dizendo “saiu na imprensa que eram fragmentos de ossos de animais”. Só que eu não vejo esse laudo, eu não encontro essas matérias. Eu não duvido que elas existam, mas eu não sei. Eu entendo que Altamira também mudou muito. Mas eu já ouvi gente de dentro do caso dizendo “quem fez esses laudos, essas análises, foi a PF no Pará, e a PF no Pará não tinha o menor interesse em fazer a confirmação”.
Ilana: Concordo. É uma boa suposição. É o que eu posso te dizer. É uma boa suposição. Ia servir pra quem? E como o desembargador está dizendo “eu voto contra”… Eu estava na revisão criminal, você sabe, né?
Ivan: Aham.
Ilana: Eu conversei com o Roberto Lauria. Eu que trouxe o Roberto Lauria pro caso porque era necessária uma revisão criminal. Poxa, nem que seja pra pedir outro júri, que é o mínimo que eles merecem, porque são pessoas condenadas antes do assassino confessar os mesmos crimes imediatamente depois. Que não se considerasse os acusados de Altamira sumariamente inocentes acreditando só na confissão, mas que se desse pra eles a oportunidade de um novo júri. Seria mais do que justo. Os jurados jamais ficaram sabendo que existia outra hipótese e não só a da Polícia Civil e Federal nesse caso. Então, agora o desembargador fala de uma notícia que você não acha, ninguém acha laudo, ninguém sabe se tem. Eu não vi essa coleta, eu não estava em Altamira. Eu acho suspeito.
Tainá: Ilana, você pode comentar um pouco como foi essa relação, enquanto você estava lá, entre a Polícia Civil do Maranhão, a Polícia Civil do Pará e a Polícia Federal, no caso do Chagas?
Ilana: Eu posso falar sobre a Civil e a Federal porque a força-tarefa do Maranhão era composta de Civil e Federal. No Maranhão. Não estive na investigação do Pará depois do caso Chagas, da confissão do Chagas. Não os acompanhei. Tudo o que eu sei são conversas internas, então não gostaria de expor ninguém porque eu não estava lá. Não posso separar o que é objetivo do que é interpretação.
Ivan: Você chegou a falar com o doutor Neyvaldo, o delegado?
Ilana: Não.
Ivan: Não? Faleceu esses dias. Não sei se você ficou sabendo.
Ilana: Fiquei sabendo sim. Conheço vários deles. Eu trabalhei no caso do Monstro da Ceasa, que também é bem importante, onde se segue esse protocolo. Quando o delegado Paulo Tamer entende que está lidando com um crime em série, na terceira vítima eles me chamam, e se monta uma força-tarefa com uma equipe. Claro, Ivan, quando eu fui trabalhar nesse caso, ele estava solto, não estava identificado, esse assassino. Eu fiquei um ano passando pelo menos uma semana por mês em Belém por conta desse caso. E realmente conheci muitos dos delegados que trabalharam nos casos de Altamira. Todos sabem que eu trabalhei… Assim, não é um assunto confortável, vamos chamar dessa maneira, né?
Ivan: Sim. Eu entrevistei o doutor Paulo Tamer.
Ilana: Meu amigão.
Ivan: Foi muito incrível a entrevista com ele. Realmente um cara muito…
Ilana: O que ele te falou?
Ivan: Ele falou umas coisas curiosas, né? Primeiro, ele disse “foi um serial killer, foi o Chagas. Infelizmente, nós cometemos muitos erros na época, principalmente a Federal”. Só que a coisa que eu achei mais curiosa é quando chega no Éder Mauro. Ele falou “o Éder Mauro é um grande amigo meu”. Eu disse “mas, doutor, você nunca conversou com o Éder Mauro sobre isso?”. Ele falou “não, nunca conversei”. Sabe? Não vai conversar, não vai conversar.
Ilana: Por isso que eu te falo que não é um assunto… O Éder Mauro hoje é um político, né?
Ivan: É.
Ilana: Foi eleito e tal. Nós vamos levantar essa história pra… Então, sabe? E acho que também o Paulo não é a pessoa certa. Eu acho maravilhoso que ele fala pra você “cometemos muitos erros”. Ele sabe, eu sei, você sabe, a Tainá sabe. Basta ler, né? A gente sabe. Agora, que bom que quem pega o caso do Monstro da Ceasa é o Paulo Tamer, que assume e sabe onde estão os erros da sua investigação anterior e, muito cedo na série de crimes, interrompe a série montando uma equipe que possa sim, com ciência, fazer uma investigação mais competente.
Tainá: Ilana, tenho uma pergunta aqui mais básica, conceitual, mas acho que seria bom a gente ter a sua resposta. Quando a gente olha pros crimes de Altamira, na linha do tempo do Chagas, eles são os primeiros, né? Então, se você pudesse explicar um pouco essa relação entre o ritual de um serial killer e como ao longo do tempo isso vai se complexificando…
Ilana: A gente não sabe se é em todo mundo que acontece isso. Nele aconteceu, né? Porque ele tem uma tendência ao Transtorno Obsessivo Compulsivo. É da personalidade dele, é da característica dele. Ele não está diagnosticado assim, tá? Porque esse nunca foi o foco de nenhum exame do Chagas. O ritual do Chagas começa com três sobreviventes, em que ele nem tenta estrangular, nem nada. Isso não faz parte do relato deles. E vai escalando, como é comum a todos. A escalada da violência é comum. Você vai encontrar isso em todos os primeiros crimes. A gente procura investigar muitos os primeiros porque esse indivíduo está mais despreparado. Está mais na sua natureza. Ele mostra mais, né? E é um aprendizado também. Quanto mais crimes ele comete, mais ele aprende como fazer isso sem levantar suspeitas, sem deixar rastro. A gente sente a escalada de violência que ele teve, a habilidade dele como vai melhorando, até nas próprias mutilações. Mas em nenhum momento elas são cirúrgicas, como muito disse a imprensa de Altamira. Não tem nada a ver. É só olhar a foto, gente. Não requer prática nem habilidade. Não precisa de um perito pra dizer que aquilo não é cirúrgico. Acho graça quando falam de transplante de órgão, eu acho incrível. Quem é quem está transplantando no mundo pênis de crianças? Não dá nem pra entender uma tese dessa.
Ivan: Você falou dos primeiros casos, como ele vai se aperfeiçoando. Mas é uma dúvida que eu sempre tenho sobre o Chagas, e acho que você pode dar a tua interpretação. Ele tinha consciência que estavam procurando pelo emasculador de crianças ou emasculadores de crianças?
Ilana: Não estavam procurando. O Chagas, como tantos serial killers, é um ótimo cidadão. Não há nenhuma suspeita, nem disso e nem de nada. Ele não tem nenhum antecedente criminal que justificasse… Como o Rotílio, né? A polícia procurava alguém com antecedentes, nem procurava alguém como o Chagas. O Chagas passa tão despercebido em toda essa investigação que ele faz o papel do pai do Danielzinho na reconstituição, na reprodução do crime. Porque ele é da invasão. Na sociedade ali das invasões que ele também ocupa, ele vai muito bem, obrigado. Isso não está em pauta pra ele.
Ivan: Aham. Esse é o meu ponto. Ele não tinha medo de ser pego pela polícia. Ele tinha plena certeza: “nunca vão me pegar”. Ele nem tinha noção que tinha cometido um crime.
Ilana: Não é que ele não tinha medo e nem tinha certeza. Não. Quando ele saía do local do crime, segundo a palavra dele, ele não pensava mais nisso. Ele só pensava no próximo, quando cometia o próximo. Ele não viveu esse universo: “nossa, cometi um crime e agora? E se desconfiarem de mim?”. Ele simplesmente negava qualquer envolvimento até pra ele mesmo. “Isso não tem nada a ver comigo”. E cada vez isso foi se solidificando, né? Porque foi se tornando realidade que ele era um cidadão acima de qualquer suspeita e que a investigação não estava indo em nada pra cima dele, em nada. Então por que ele ia estar nervoso? Não deu tempo. Ele ficou nervoso no Jonnathan. Aí ele ficou nervoso.
Tainá: Ilana, em 2005, quando o Chagas vai a júri, ele começa a negar as confissões, falar que foi torturado e que por isso confessou. Eu queria saber se você poderia falar um pouco da sua experiência, de como foi esse processo de conseguir as confissões dele. Se isso que ele fala, de que foi torturado, tem algum amparo ou não.
Ilana: Tem zero amparo. Ele almoçou comigo sem algema. Eu estava lá. Teria visto um hematoma, uma exclusão. Ao contrário, eu ficava admirada com a confiança depositada no bom comportamento dele. O Chagas almoçava na cozinha da delegacia. Nós estávamos no processo de ouvi-lo contar o que aconteceu, um processo “camarada”, de entendê-lo, de não julgá-lo antes do julgamento. Então eu também sou testemunha de que não houve nenhuma violência. Até porque um delegado que vai bater precisa ter todo esse trabalho de me chamar, jura? Delegado que bate não me chama, gente. E ele andava sem algema, era trazido e levado sem algema. Defina tortura, né? Não sei. Claro que ficou muito útil pra ele dizer isso. Mas não tem nem… Inclusive, todo o processo do Chagas, todo o inquérito, foi acompanhado pela promotoria. Então teria que ter um complô, né?
Ivan: E as confissões são muito consistentes também. E são no período de quase um ano. Tem momentos em que ele confessa em juízo, pra vários repórteres também. E não é que ele vai adicionando detalhes. Você vê que ele consegue repetir a história. É até uma coisa curiosa. Quando ele começa a entrar nessa história de que foi torturado, parece que não é um cara muito criativo, né?
Ilana: Ele não é mesmo.
Ivan: Ele não sabe mentir, né? Ele não tem criatividade.
Ilana: Ele sabe.
Ivan: Não, mas ele não consegue desenvolver a mentira.
Ilana: Mas é porque ele não tem elementos, né? É constrangedor. Acaba sendo constrangedor porque ele sabe o que aconteceu, e todo mundo que estava lá sabe também.
Ivan: É. A limitação de mentira do Chagas, pra mim, chega até um ponto que eu vi… A gente tem aqui a gravação do áudio de um júri de 2009, que a vítima era o Antônio Reis Silva, menino emasculado em 91. E ele chega ao ponto simplesmente de dizer “não quero falar sobre isso. Não quero falar mais sobre isso. Estão armando contra mim”.
Ilana: Direito dele. Não acho que ele tivesse esperança de ser de alguma forma absolvido nesse júri. E é uma coisa que a gente às vezes não gosta, mas ele tem o direito de não falar nada que o comprometa. É por isso que a gente precisa de tudo o que ele já falou. Essa é a importância de um bom trabalho de inquérito e de judiciário. Os anos vão passando, ele está lá na cadeia e conversa com outros presos mais experientes, com outra ficha penal, que dão conselhos, que esclarecem sobre os direitos que ele tem pra além do advogado. Então eu acho bem normal que ele não queria falar. Mas do que eu gosto? Quando eu vou ao júri, eu não preciso mesmo que ele fale. O trabalho está feito.
Tainá: Ilana, eu queria dar um salto aqui para 2013, quando acontece a Comissão de Direitos Humanos na qual vocês tentam a soltura do Césio. Eu queria saber o que você lembra e gostaria de contar sobre isso.
Ilana: Eu queria perguntar pra ministra Damares se ela já conseguiu o que prometeu pra Lucimar [viúva de Anísio]. Acho um bom momento. Porque ela prometeu pegar essa bandeira. Nós viajamos até lá, expusemos o caso. O Marco Feliciano estava lá, amigo dela, né? Todo mundo prometeu num momento político mundos e fundos, amparo pra Lucimar. E só eu converso com a Lucimar, desse grupo que estava no Congresso. Não prosseguiu nada.
Ivan: Eu vi uma análise uma vez e quero saber se essa é a sua opinião também, de que a bancada evangélica, assim como no caso da CPI da Pedofilia em 2009, compra essas bandeiras muito por capital político. Mas na hora do vamos ver, de agir, não faz nada de efetivo pra ajudar as famílias. Acha que foi esse o caso aqui também? Se usaram muito pra se promover e não ajudaram a família do Césio, do Anísio…
Ilana: Ah, mas isso em tudo, né? Nós estamos falando do mundo político brasileiro. Não fica reduzido só a essas pessoas. É o modus operandi comum político brasileiro. Casos que são escada pra visibilidade, em que se promete e não se cumpre, gente de todos os partidos… É difícil encontrar pessoas de fato boas. Assim, boa intenção a mim não serve nada. Eu morro de medo de encarnação do bem, morro de medo. As pessoas que se acham uma encarnação do bem me assustam muito. Eu não vou partir pra uma posição política agora porque de nada serve a essas famílias. O que serve é esse podcast. Isto serve.
Ivan: É. Mas como foi essa preparação de 2013? Você recebeu um convite? Porque eu sei que a bancada evangélica já estava do lado do Césio por causa da igreja dele desde o final da década de 90, já estava tentando acompanhar. Tinha um deputado federal que estava do lado dele. Mas 2013 é uma caminhada até lá. Qual era a expectativa do resultado? Num mundo ideal, no que vocês imaginavam que essa Comissão poderia resultar?
Ilana: Reabertura do caso, por favor? Juntar o caso de Altamira com o de São Luís, com os do Maranhão, quem sabe? No entendimento das pessoas de que aqui existe um problema, a gente precisa se reunir e sentar pra tentar solucionar os erros que foram cometidos. Não vamos buscar os culpados dos erros, mas vamos trabalhar pra saná-los. Vamos atender essas pessoas que estão em situação precária. Acho que eu já te contei, Ivan, a história da situação do Anísio, perto dessa revisão criminal. Eu fui visitar o Anísio e o Césio. O Anísio me chamava de “anjo”. Ele dizia que eu era um anjo, que quando eu entrava, entrava a minha luz comigo. E aí ele me pede um favor, se eu poderia lhe arrumar uma consulta médica, porque ele está com um zumbido no ouvido que não passa. Ele chegou a achar que era até uma coisa psiquiátrica. E ele está desesperado porque não consegue dormir, não consegue descansar porque o zumbido não para. E eu, então, saio de lá e falo com o Lauria. O Lauria entra com um caminho processual pra conseguir esse atendimento, e ele é atendido e diagnosticado. Sabe o que ele tinha, Tainá? Como ele dormia no chão batido de terra porque não havia cama, um senhor de mais de 70 anos… Ele tinha formigas andando nos canais auditivos. Esse era o zumbido que ele ouvia. É disso que nós estamos falando. É nesse nível, porque assim, a pena ainda é a sensação da liberdade e não a tortura física. Não é isso que a gente combinou na nossa Constituição. Então, é um caso que me toca muito. O que eu esperava era que pelo menos eles não estivessem submetidos a todo o resto que não à prisão deles, né? Um mínimo de dignidade humana, e que essas pessoas pudessem ouvi-los pra decidir… Tivessem uma oportunidade de se defender diante de uma sociedade que agora já sabia do verdadeiro autor desses crimes. Essa era a minha expectativa. Qualquer ajuda era bem-vinda.