Wiki de Altamira

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Durante todos os anos em que investigou a morte de Evandro Ramos Caetano, Ivan Mizanzuk sempre teve esperanças de encontrar respostas em outro caso bastante semelhante: o desaparecimento do menino Leandro Bossi, também abordado na temporada anterior do Projeto Humanos. O garoto, de sete anos, sumiu no dia 15 de fevereiro de 1992 em Guaratuba, no litoral do Paraná, e nunca foi encontrado.

Durante as investigações na época, um grupo de suspeitos surgiu. Matérias de imprensa apontavam Valentina de Andrade como a líder de uma seita chamada Lineamento Universal Superior, a LUS, formada por ela e o marido argentino José Alfredo Teruggi. Na ocasião do desaparecimento de Leandro, o casal e seus seguidores argentinos se hospedaram no hotel em Guaratuba onde a mãe do garoto, Paulina Bossi, trabalhava. Valentina foi investigada como suspeita e chegou a ter um pedido de prisão preventiva aberto contra ela, assim como Teruggi. Mas a polícia do Paraná não conseguiu provas concretas e ela nunca foi formalmente acusada de participação nos casos Evandro e Leandro. 

No período em que foi suspeita, no entanto, o nome de Valentina cruzou o país e passou a aparecer na imprensa conectado a seitas satânicas que aparentemente operavam em todo o território nacional. Matérias descreviam mortes de crianças no Maranhão, Goiás, Mato Grosso do Sul e também no Pará – mais especificamente, na cidade de Altamira, localizada na região oeste do estado.

Sabendo dessa suposta relação, ouvintes do Projeto Humanos mandaram inúmeros e-mails para Ivan, e um deles se destacou: o do advogado e pesquisador Rubens Pena Júnior, mestrando em Antropologia sobre o caso dos meninos de Altamira. Foi ele quem ajudou o jornalista a mergulhar de vez nessa história. O trabalho dele, assim como o de Paula Mendes Lacerda, foi essencial para o desenvolvimento desta temporada do podcast.

JAENES PESSOA

Nos anos em que Ivan Mizanzuk se debruçou sobre o caso dos meninos de Altamira, uma questão sempre surgia: por onde começar? A partir de quando? De quem? 

Partindo do princípio de que a proposta é entender como um caso judicial é montado, a linha cronológica apresentada aqui segue a lógica do processo. Desse modo, a história começa no dia primeiro de outubro de 1992, uma quinta-feira.

Na ocasião, os 70 mil habitantes de Altamira preparavam-se para as eleições municipais que ocorreriam no sábado, dia 3. Enquanto a cidade só falava sobre a disputa entre os candidatos, o menino Jaenes da Silva Pessoa, de 13 anos, fazia a sua rotina de sempre. Ele estudava à tarde e, durante as manhãs, por volta das 10 horas, ajudava o pai a soltar os gados da propriedade.

Juarez Gomes Pessoa, o pai de Jaenes, era natural do estado do Ceará, tinha 38 anos e havia chegado em Altamira na década de 1970. Semianalfabeto, de origem muito humilde, foi para a cidade trabalhar na fazenda do primo, José Amadeu Gomes – mais conhecido como Amadeu, que se mudou para o município anos antes e conseguiu enriquecer. Além de fazendeiro, ele também era dono de um posto de gasolina famoso em Altamira, o Posto Gomes.

Apesar de Juarez ter se instalado na fazenda do primo, o gado que Jaenes cuidava todas as manhãs pertencia ao seu pai. Juarez era casado com a professora Rosa Maria Pessoa. O casal tinha quatro filhos e Jaenes era o mais velho, nascido em Altamira no dia 12 de junho de 1979.

Naquela manhã de quinta-feira, o garoto saiu para ajudar com o gado, como fazia todos os dias. Uma senhora que estava ali por perto viu o menino subir na cancela e pular para dentro para tratar de seus afazeres. Na ocasião, Juarez foi ao centro da cidade pela parte da manhã. Chegou em casa ao meio-dia, mas seu filho ainda não tinha voltado. Acabou tirando um cochilo e acordou por volta das 13h30. Nesse momento, os seus outros filhos já saíam para procurar pelo irmão.

A notícia do desaparecimento se espalhou rápido e logo familiares e amigos se juntaram à busca. Enquanto isso, Amadeu Gomes, o fazendeiro primo de Juarez, foi até a polícia comunicar o sumiço do menino. 

A procura por Jaenes durou o dia todo. Na sexta-feira, ela continuou, mas não havia sinal do garoto em lugar nenhum. Parentes, amigos, autoridades, todos estavam preocupados e com medo de que o pior poderia ter acontecido. 

No primeiro depoimento que prestou à polícia, em 15 de outubro de 1992, Juarez conta que cerca de 200 pessoas chegaram a integrar o serviço de busca por Jaenes, entre elas, soldados do Exército. Já a polícia não conseguiu prestar o apoio necessário, pois a única viatura da cidade estava ocupada com a segurança das urnas eleitorais. 

Ainda na sexta-feira, o pai do menino conversou com um vizinho que lhe contou um detalhe intrigante: perto das 12h do dia do desaparecimento, ele ouviu três gritos de Jaenes. Na hora, porém, isso não chamou a sua atenção porque pensou que o garoto estivesse apenas tocando o gado.

Sem sucesso, as buscas foram encerradas e retomadas no dia seguinte, 3 de outubro, dia das eleições. Juarez saiu bem cedo com um grupo de 10 pessoas para reiniciar a procura. Após percorrer cerca de um quilômetro, ele ouviu um tiro e gritos apontando que o corpo de Jaenes havia sido encontrado. Ele correu para o local e se deparou com o filho deitado meio curvado, com os pés cruzados e as mãos espalmadas, um pouco levantadas.

De acordo com a própria descrição de Juarez, o corpo do menino tinha um corte no pulso esquerdo, estava com o pescoço bastante inchado e sem o globo ocular esquerdo. Além disso, ele apresentava um corte na região do pênis: o órgão havia sido completamente removido – ou seja, a vítima foi emasculada. 

Logo após o corpo ter sido encontrado, a própria família arranjou um caixão para transportá-lo para casa por volta das 9h30. Em seguida, o cadáver foi enviado ao Hospital da Fundação Nacional de Saúde para ser examinado.

Amadeu Gomes, o fazendeiro e dono do posto, tinha vários irmãos, todos também primos de Juarez. Os mais conhecidos eram Geraldo Gomes, Perilo Gomes, Araquém Gomes e Arnaldo Gomes. Arnaldo era um advogado conhecido na cidade, que na época concorria ao cargo de vereador.

Segundo o depoimento de Juarez, foi Perilo quem levou o médico para examinar o corpo de Jaenes. Mais tarde naquele dia, ele também deu carona para Juarez ir votar em seu primo Arnaldo.

O velório de Jaenes ocorreu no mesmo dia 3 de outubro. O relato de Juarez à polícia traz detalhes importantes sobre o evento. Segundo ele, muitas pessoas participaram da cerimônia de adeus ao menino. Em um certo momento, um conhecido, que Juarez não se lembra exatamente quem era, se aproximou e disse: “o assassino desta criança está aqui no meio de nós pois o cadáver está sangrando”. O pai do garoto, então, olhou para o corpo e notou que havia sangue pingando no chão. Ele achou isso muito estranho porque quando o menino foi encontrado não havia sangue nenhum, nem mesmo na roupa dele.

Ainda no velório, Juarez foi reconfortado por inúmeras pessoas, entre elas, autoridades: o então prefeito da cidade, Armindo Denardin; o prefeito eleito, Maurício Bastazini; e o vice-governador do Pará, Carlos José Oliveira Santos. Este último assegurou ao pai da vítima que falaria com o governador, Jader Barbalho, para que ele enviasse uma comissão à Altamira com o objetivo de investigar o caso e prender o responsável ou responsáveis pelo crime. 

Por conta das eleições, o vice-governador estava na cidade e, como político, havia um motivo para que ele fizesse uma declaração tão contundente a Juarez: Jaenes não era o primeiro garoto que havia sido morto e emasculado na cidade.

OUTRAS VÍTIMAS

Nos autos de processo, há anexado um documento intitulado “Carta Aberta à Comunidade Altamirense”, datado de outubro de 1992. Nela, há uma lista de crianças que foram atacadas na cidade:

  1. José Sidney, foi encontrado morto próximo ao Aeroporto Velho, em julho de 1989;
  2. Segundo Sobrevivente, 8 anos de idade; no dia 11 de novembro de 1990, foi emasculado. Sobreviveu;
  3. Ailton Fonseca do Nascimento, 8 anos de idade; desaparecido em julho de 1991, sendo encontrada só a ossada;
  4. Wandicley Oliveira Pinheiro, no dia 23 de setembro de 1990, foi sequestrado por três pessoas que o amarraram a uma árvore, o emascularam, seviciaram e estupraram. Sobreviveu. Está fazendo tratamento médico;
  5. Judirley da Cunha Chipaia, 13 anos de idade, emasculado e morto no dia primeiro de janeiro deste ano;
  6. Jaenes da Silva Pessoa, 13 anos, desaparecido no dia primeiro de outubro de 1992 e encontrado morto dois dias depois, emasculado e seviciado.”  

Antes de continuar, uma informação importante: a identidade do menino número 2 da lista foi protegida a pedido da própria vítima, que hoje já é um adulto. Ele entrou em contato com a produção do podcast e solicitou que o seu nome não aparecesse, o que foi respeitado. Por isso, ele sempre será referenciado como “O Segundo Sobrevivente”. 

Entre 1989 e 1992, seis meninos com idade entre oito e 12 anos foram mortos e/ou emasculados em Altamira. As vítimas são listadas na carta como forma de chamar a população para uma passeata com o objetivo de repudiar a negligência do Estado diante dos crimes e pedir por justiça. 

Esse documento foi assinado pelo Movimento Contra a Violência e a Favor da Vida. Não se sabe exatamente quando o grupo foi criado. Pode ter sido logo após a morte de Jaenes ou um pouco antes, depois do assassinato de Judirley da Cunha Chipaia

De qualquer forma, o Movimento Contra a Violência e a Favor da Vida representava a consolidação de mobilizações anteriores, que tomaram forma junto à luta social de mulheres da região. Entre elas, Antônia Melo, que segue como uma importante liderança até hoje. Além disso, o movimento levaria mais tarde à criação do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses, que viria a ser encabeçado por Rosa Pessoa, mãe de Jaenes, e receberia anos depois apoio de grandes órgãos, como a UNICEF.

No entanto, é bom lembrar que a Nova Constituição brasileira, de 1988, ainda engatinhava na época em que os meninos foram atacados. O Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, só foi aprovado em 13 de julho de 1990. Até então, vigorava o chamado “Código de Menores”, lei criada na ditadura militar, que afastava da sociedade menores de idade em situação de pobreza e vulnerabilidade, pois eram vistos como possíveis infratores. Assim, o movimento pedia a proteção para as crianças de Altamira especialmente com base na recente aprovação do ECA.

Como o Estado falhava em cumprir o seu papel, a população se organizava em lutas sociais. No caso do movimento que assinou a carta aberta, além de lideranças de base e familiares dos meninos, havia a presença de líderes religiosos, o que era bastante comum na época. Em Altamira, dois nomes da Igreja Católica se destacavam: o bispo emérito da Prelazia do Xingu, o austríaco Dom Erwin Kräutler, e o padre italiano Sávio Corinaldesi. Ambos eram ligados a missionários adeptos da Teologia da Libertação – uma corrente de pensamento nascida na América Latina na década de 1970 que defende o envolvimento da igreja em lutas sociais, principalmente em prol dos mais pobres. Um terceiro nome que se destacava nesse sentido era o do também italiano Padre Bruno Sechi, forte liderança em Belém, que prestava auxílio ao movimento, mesmo que à distância.

A passeata organizada pelo movimento, no entanto, não foi a primeira tentativa de pedir justiça e proteção para as crianças de Altamira. A cidade se movimentava e formava uma articulação social em torno dos casos desde a emasculação do Segundo Sobrevivente em 1989. Em janeiro de 1992, após a morte de Judirley, também houve uma manifestação no município, encabeçada pelo grupo de mulheres. Na ocasião, cerca de 100 pessoas se reuniram para pedir providências ao Estado. 

Quinta vítima listada na carta, morta e emasculada meses antes de Jaenes, Judirley era membro da importante etnia indígena Xipaya – ao ser registrado no cartório, recebeu o sobrenome escrito na grafia “Chipaia”. Segundo o pai do menino, José Marialves, o crime bárbaro contra o filho chamou a atenção de órgãos como a FUNAI, que ajudou a dar visibilidade à situação na imprensa. 

Em 9 de outubro de 1992, o protesto após a morte de Jaenes teve uma adesão muito maior do que as mobilizações anteriores. Segundo a professora Paula Lacerda, o evento, que aconteceu em frente à escola onde o garoto estudava, contou com aproximadamente 10 mil pessoas. A população, desamparada pela justiça oficial, expressava um grito de indignação há muito tempo contido. 

A carta aberta assinada pelo Movimento Contra a Violência e a Favor da Vida demonstra bem o início de tudo. O nível de negligência e abandono das autoridades era tão grande que sequer havia uma noção do número exato de vítimas até aquele momento. Além disso, o documento possui alguns erros de dados: o Segundo Sobrevivente é citado como tendo sido atacado em 1990, mas na verdade foi um ano antes, em 1989. Outro exemplo é o que se fala da primeira vítima, José Sidney, dada como morta pelo documento. Em matéria de 10 de abril de 1993, da TV Liberal, afiliada da Rede Globo no Pará, o jornalista Emanuel Villaça descobriu que o menino estava vivo. A reportagem chegou a ir ao ar no Jornal Nacional. 

Em uma publicação do Comitê de 1996 – quatro anos depois da morte de Jaenes –, o número inicial de seis vítimas sobe para um total assustador de 26 crianças. Segundo esse registro, elas estavam divididas em quatro grupos principais:

– nove sofreram tentativas de sequestro;

– cinco desapareceram;

– oito foram assassinadas – algumas emasculadas, outras tiveram seus corpos encontrados apenas como ossadas ou em estado avançado de putrefação;

– quatro sobreviveram aos ataques. 

Nesse mesmo relatório do Comitê, um dos sobreviventes é sequer identificado, sendo mencionado apenas como o “Anônimo do Anapu”. A existência de uma vítima sem nome em Anapu, município vizinho, traz à tona a dificuldade de saber quantas crianças foram atacadas não só em Altamira, mas também nos arredores da cidade. É possível que existam vítimas mais antigas que tiveram medo ou vergonha de falar sobre os traumas pelos quais passaram. 

De acordo com a pesquisa de Paula Lacerda, desses 26 casos que ocorreram entre 1989 e 1993, apenas 12 possuem registro ou abertura de inquérito policial. Isso significa que 14 são oficialmente inexistentes. Ora por descaso das autoridades, ora por falta de registro por parte das famílias, seja por medo, por serem analfabetas ou em situação de vulnerabilidade, ou até mesmo por pura descrença na justiça oficial. 

Aqui a pergunta que fica é: como é possível que crianças estejam sendo atacadas, mortas de forma tão violenta, emasculadas, e isso não ter virado um escândalo nacional? Como a situação chegou a esse ponto?

Para Paula Lacerda, a falta de estrutura e cuidado das autoridades é aparente. Mais do que isso, ela é estratégica. “Eu penso que não existe ausência do Estado, é uma seletividade do Estado. Porque é essa seletividade que vai justamente escolher quais inquéritos serão abertos, quais ficarão parados, quais serão movidos e contra quais pessoas. Então, em muitos casos, inclusive casos de assassinatos de lideranças, você vê a polícia agindo não para investigar, mas para proteger aqueles que seriam os mandantes”, diz ela.

Nesse contexto, segundo a professora, é possível falar na existência de uma espécie de consórcio de poderosos estabelecidos fora da estrutura formal do Estado, mas que têm a capacidade de influenciar as ações estatais a seu favor. 

A ideia trazida pela antropóloga sobre uma falta de estrutura intencional pode parecer para alguns algo conspiratório, mas ela explica bem o sentimento da população de Altamira, especialmente em relação a esses casos no início da década de 1990. Isso fica evidente em uma entrevista que a dona Rosa, mãe de Jaenes, concedeu ao programa Repórter Record, que foi ao ar em 2004. Na reportagem, ela ressalta que 15 delegados passaram por Altamira durante a época dos crimes e que as ocorrências desapareciam misteriosamente da delegacia. Ela diz que, dos 26 casos, apenas cinco tiveram inquéritos abertos. A informação foi verificada e confirmada por Ivan Mizanzuk: somente cinco vítimas fazem parte oficialmente do processo. 

O que teria acontecido com as outras investigações? Seria um caso de negligência generalizada e contínua da polícia? Falta de estrutura? O fato é que, dos 71 volumes que compõem o caso de Altamira, em 24 estão contidos os autos do Caso Evandro. A conexão entre essas duas histórias é profunda, ao mesmo tempo que não é tão evidente quanto a imprensa e as autoridades na época davam a entender.

Por trás da conexão entre os dois casos, existe a tese de que havia um grupo poderoso interessado em que esses crimes jamais fossem esclarecidos, e que essas pessoas ocupavam o coração do poder de Altamira. Para entender melhor essa relação, é necessário mergulhar na história da cidade e nos rumos que as investigações tomaram a partir da morte de Jaenes, quando o primeiro suspeito aparece. 

MAPA DOS CRIMES

Para acessar o mapa dos crimes, clique aqui.

O mapa indica os locais onde as vítimas sobreviventes foram resgatadas (verde), onde os corpos das vítimas fatais foram encontrados (amarelo) e onde os desaparecidos foram vistos pela última vez (roxo). Os locais são aproximados. Também são informadas a idade que os meninos tinham e as datas dos crimes.

Como às vezes há divergências em detalhes entre o que está em documentos policiais e judiciais e o que o Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses indica, foram priorizadas as informações que estão em autos processuais. Já nos casos em que não existem registros oficiais, os dados do Comitê são utilizados. Há ainda casos apontados pelo Comitê cuja localização é desconhecida, portanto, não são apresentados neste mapa.

O mapa exibe a geografia atual de Altamira. Na época do caso dos emasculados, alguns aspectos eram diferentes.