Extras Episódio 31

Os crimes dos emasculados ocorreram em Altamira entre 1989 e 1993. No final de 2003, o mecânico Francisco das Chagas foi preso e, nos anos seguintes, ele confessou ter atacado mais de 40 meninos no Pará e no Maranhão.
Até pouco tempo, o consenso geral era de que Chagas não havia sido acusado formalmente pelo Ministério Público (MP) em Altamira. Mas, então, o advogado e pesquisador Rubens Pena Júnior fez uma descoberta que mudaria essa história: dos 14 inquéritos que as polícias Federal e Civil fizeram em 2004 e 2005 sobre os crimes confessados pelo mecânico no Pará, dois geraram denúncias.
Um deles envolvia o desaparecimento de Tito Mendes Vieira, em 20 de janeiro de 1991. Neste processo, o MP denunciou Chagas em 14 de julho de 2011 – ou seja, 20 anos depois, o que significa que o crime já estava prescrito. A defensoria pública, que representava o acusado, alegou a prescrição e conseguiu a extinção da punibilidade para este caso específico. Até hoje, a família de Tito não tem respostas sobre o que aconteceu com ele.
Mas havia outro crime pelo qual o mecânico foi denunciado: desta vez, pelo ataque ao terceiro sobrevivente, Wandicley Oliveira Pinheiro, ocorrido em setembro de 1990. Como a denúncia foi realizada em 2005, o caso ainda não havia prescrito. Essa talvez poderia ser a única chance de levar Chagas a júri em Altamira.
A DESCOBERTA
Segundo Rubens Pena Júnior, durante a pesquisa do mestrado, ele entrou no site do Tribunal de Justiça e encontrou um campo de consulta unificada de processos. Lá, digitou o nome completo de Chagas, e um resultado apareceu.
Ao clicar na numeração do arquivo, o advogado conseguiu ter acesso a partes do processo. “Era possível visualizar o conteúdo de algumas decisões. Então, eu verifiquei que Francisco das Chagas estava denunciado por um homicídio na forma tentada, e só constavam as iniciais da vítima. Aí eu fui atrás de saber do que esses autos se tratavam”, explicou ele em entrevista ao podcast.
Antes de viajar à Altamira para obter o processo completo, Rubens investigou quem mais teve acesso a ele. O pesquisador verificou que a filha do médico Césio Flávio Caldas Brandão, chamada Stefany, sabia da existência da denúncia.
Ela havia requerido uma cópia dos autos, que lhe foi concedida à época através de uma advogada correspondente. A filha de Césio, porém, não conseguiu o processo na íntegra, apenas algumas peças. O pedido de Stefany aconteceu no período em que o doutor Roberto Lauria tentava pleitear uma revisão criminal para o médico.
Aqui vale compartilhar um pouco dos bastidores: até o momento em que Rubens fez essa descoberta, a produção do podcast não sabia exatamente o que a Polícia Federal investigou sobre Chagas em Altamira nos anos 2000. Tudo o que a equipe tinha era o relatório da PF sobre o caso de Wandicley, anexado ao pedido de revisão criminal de Césio. O documento produzido pelos agentes federais está disponível aqui:
Relatório final da PF sobre o caso de Wandicley
Já os relatórios dos demais inquéritos não são públicos, por isso não será possível disponibilizá-los na enciclopédia. O que dá para dizer é que todos possuem basicamente as mesmas informações sobre como a PF em 2004 e 2005 chegou à conclusão de que Chagas é o verdadeiro culpado dos crimes no Pará.
A partir da nova descoberta, porém, Rubens precisava ir além. Ele viajou até Altamira com o objetivo de obter o processo completo, o que conseguiu após muito imbróglio. Isso porque, logo de cara, o advogado percebeu que o documento era bastante protegido pelos servidores do Tribunal.
Com o material em mãos, um detalhe inicial já chamou a atenção do pesquisador. “Eu fiquei confuso por diversas circunstâncias. A primeira é que, até então, eu nunca tinha ouvido falar de dois crimes sendo denunciados com a mesma vítima e acusados distintos. E essa é uma situação que aconteceu nesse caso”, comentou Rubens.
Nesse ponto, o advogado se refere ao seguinte: Wandicley foi incluído no processo contra os cinco suspeitos em Altamira – Amailton, Carlos Alberto, Césio, Anísio e Valentina. Um caso, inclusive, que resultou em quatro condenações. Mas, agora, o sobrevivente também era vítima em outra denúncia, desta vez com Chagas como o acusado.
Além disso, outra coisa que surpreendeu Rubens foi a evidente discrepância entre o relatório da PF e o conteúdo da denúncia formalizada pelo MP. “A gente tem um inquérito novo, de 2004, em uma investigação sigilosa realizada pela Polícia Federal, autorizada pelo Ministério da Justiça. E nós temos uma denúncia estadual em que os indícios de autoria partem do processo principal, de 1992, da Polícia Civil”.
Ou seja, enquanto o documento produzido pela PF é robusto, com 61 páginas, e detalha os indícios de autoria de Chagas no caso de Wandicley; a denúncia é curta, com apenas quatro folhas, e segue a linha das investigações realizadas nos anos 90.
O promotor que denunciou Chagas em 2005 foi Afonso Jofrei Macedo Ferro. Ivan Mizanzuk entrou em contato com ele, hoje já aposentado, para entender os motivos da incompatibilidade entre os documentos.
Em uma breve conversa, o ex-promotor disse que, na época, teria ouvido histórias sobre Chagas ser um laranja. Por isso, pretendia chegar na fase de instrução criminal para investigar essa situação, além de conduzir outros procedimentos necessários. Logo após a denúncia, porém, ele foi removido do caso e não pôde mais acompanhá-lo.
Ivan chegou a enviar um e-mail para o advogado com o relatório da PF sobre o caso Wandicley, pois tinha a intenção de entrevistá-lo. Mas ele nunca respondeu a mensagem.
Antes de possíveis especulações, entretanto, é importante esclarecer que, no geral, promotores, delegados e juízes costumam atuar por pouco tempo em Altamira. Não é à toa que há tantos personagens nessa história. Isso certamente atrapalha o andamento dos processos, ainda mais em uma cidade com índices de violência tão altos. No caso de Wandicley, não foi diferente.
No total, Rubens encontrou 12 inquéritos da Polícia Federal contra Chagas, cada um com uma vítima, enviados ao Ministério Público do Pará. Ele não chegou a ter acesso a todos eles, mas descobriu que a maioria acabou arquivada.
“Alguns foram denunciados, outros foram arquivados. Só que com uma observação importante: todos os arquivados antes da denúncia foi pela prescrição, e todos os denunciados prescreveram. Isso é uma coisa incomum”, pontuou o pesquisador.
O relatório da PF anexado à revisão criminal de Césio fala em 14 inquéritos, mas dois deles nunca foram confessados por Chagas: o caso de Renan Santos de Souza e Ednaldo de Souza Teixeira. No fim, restaram 12, mas apenas o de Wandicley continuou em aberto.
O PROCESSO
Mas, afinal, qual o conteúdo do processo do terceiro sobrevivente? No total, Chagas prestou quatro depoimentos específicos sobre o ataque a Wandicley.
Em um deles, de primeiro de abril de 2004, o suspeito fala sobre os deslocamentos que fazia entre o Pará e o Maranhão. Depois que a mãe dele morreu, quando ele ainda era criança, Chagas passou a ser criado por uma tia de nome Maria. Como ela tinha parentes em Altamira, era comum que levasse o sobrinho para lá.
Os problemas de memória de Chagas já se tornam evidentes neste relato, a partir da confusão que ele faz sobre a idade que tinha quando a mãe morreu, em 1976. Apesar de dizer que era uma criança de seis ou sete anos na época, a informação não bate ao ser confrontada com a data de nascimento dele, em 1964 – ou seja, ele teria na verdade 12 anos.
As incongruências temporais não param por aí. “Quando você começa a fazer um levantamento de onde ele trabalhou e em quais períodos, é como se ele tivesse vivido 100 anos em 30. Ele tem muito problema em falar datas, o que depois vem se consubstanciar nas análises psiquiátricas”, comentou Rubens.
Depoimento de Chagas para a PF – 01 de abril de 2004
Mais uma vez, esses detalhes da narrativa contrastam com a ideia disseminada nas investigações de que Chagas tinha uma memória perfeita.
Ainda sobre esse assunto, o pesquisador citou o trabalho da professora e doutora em Políticas Públicas, Valdira Barros, que estudou o caso dos meninos emasculados do Maranhão. “Na tese de doutorado, ela explica muito bem que os policiais que trabalharam nessas investigações também tentaram criar um serial killer perfeito. Eles ignoraram os elementos controversos dessa suposta autoria e construíram o criminoso, assim como foi feito no Pará com as pessoas da ‘seita’”.
Por isso, defende ele, há também uma tendência das próprias delegadas que pegaram o caso nos anos 2000 de conduzir o acusado, mesmo que não intencionalmente. Apesar disso, é inegável que as novas investigações sobre Chagas foram mais robustas e eficientes do que aquelas realizadas em Altamira na década de 1990.
Voltando ao processo de Wandicley, Chagas deu mais detalhes sobre como abordou o menino em outro termo de declarações, de junho de 2004. Ele disse não se lembrar da data exata do ocorrido, apenas que era um mês “próximo do fim do ano”, em um dia sem sinal de chuva, com cara de verão.
Na ocasião, ele trabalhava como ajudante de pedreiro de um senhor chamado Raimundo, perto do estádio de Altamira. Segundo o depoimento, Chagas saiu do serviço por volta das 15h30 e, em sua bicicleta vermelha, seguiu até a frente do campo de futebol e viu o pessoal jogar bola.
Ele observou que três meninos brincavam perto do portão e conversavam sobre papagaios. Um deles falou que já tinha ouvido esse tipo de ave na região do Igarapé dos Panelas. O outro garoto, que o suspeito descreve como “moreninho”, retrucou que era longe, que não daria para ir a pé. Foi quando eles pediram a bicicleta de Chagas emprestada.
Como o mecânico não aceitou deixá-la com as crianças, o “moreninho” o chamou para ir junto com ele. O segundo menino também queria ir, mas o pneu da bicicleta estava baixo e não aguentaria os dois.
Chagas e o primeiro garoto foram, então, em direção ao igarapé. De acordo com o suspeito, a criança tinha cerca de 10 anos, cabelos lisos pretos e usava apenas um shorts e uma sandália havaiana.
Ambos seguiram de bicicleta por quatro quilômetros até chegar ao igarapé, no trecho depois da ponte. Eles entraram, então, à esquerda e continuaram até o ponto indicado pelo menino, às margens do curso d’água. Como não ouviram nenhum papagaio, decidiram sentar por ali mesmo e esperar.
Por fim, Chagas afirmou que saiu sozinho do local por volta das 17h30, e que não se lembrava se teria feito algum mal para o garoto. Ele foi direto para casa e não encontrou mais ninguém na região do igarapé.
Depoimento de Chagas para a PF 2 – 05 de junho de 2004
Depoimento de Chagas para a PF 3 – 07 de junho de 2004
Depoimento de Chagas para a PF 4 – 09 de junho de 2004
O menino “moreninho” a que o suspeito se refere é Wandicley. E aqui outros pontos coincidem. “Acho que a primeira observação importante é que, se a gente cruzar os dados do Francisco das Chagas no que ele estava trabalhando nessa época, confere que atuava como ajudante de pedreiro. Então, isso bate com a data em que Wandicley foi emasculado”, observou Rubens.
Por outro lado, o depoimento de Chagas não é nulo de contradições. Um detalhe que o pesquisador estranhou, por exemplo, é a distância de quatro quilômetros descrita no testemunho. Como ele sabia que a medida era exatamente essa entre o estádio e o Igarapé dos Panelas?
E não só isso. O sobrevivente, na verdade, foi emasculado em outro ponto, antes do igarapé, em frente a um terreno baldio. “Uma coisa interessante é que ele [Chagas] diz que, saindo do estádio, entrou para o mato com o Wandicley para a esquerda, e realmente é para a esquerda. Na lateral ali existe um terreno alagado, e lá para dentro há árvores de tucum. Não sei o que aconteceu, mas não é nesse local perto do igarapé”, afirmou o pesquisador.
Como já explicado em episódios passados, em alguns casos, há discrepâncias entre o lugar apontado por Chagas em Altamira e onde as vítimas foram encontradas. Esse, inclusive, é um dos motivos que levam muitas famílias a desconfiar que ele não cometeu os crimes.
É importante ter em mente, porém, que o mecânico está relatando tudo isso depois de ter atacado mais de 40 crianças em dois estados. Não é absurdo imaginar que ele possa confundir os detalhes, por exemplo.
Ao analisar todos os fatores, Rubens acredita que as coincidências são mais fortes. “Essas informações específicas que a Polícia Federal reduz a termo nesse inquérito não continham no processo principal. De alguma forma, elas foram levantadas, seja com Chagas, com os moradores locais ou com o próprio Wandicley. Então, essa é outra investigação, que não aquela anterior”.
Isso, portanto, enfraqueceria a teoria de que Chagas teria sido orientado a confessar os crimes a partir do conteúdo dos primeiros autos. Afinal, parece improvável alguém usar os mesmos argumentos da polícia contra os cinco acusados para, agora, livrá-los da cadeia.
PRÓXIMOS PASSOS
Com o processo em mãos, Rubens verificou o que aconteceu durante a tramitação dele na justiça entre 2005 e 2021 – data da descoberta do documento. Isso significa que o caso já teria passado pela fase de instrução, em que as testemunhas e o próprio denunciado seriam ouvidos, e as provas colhidas.
Infelizmente, no entanto, a trajetória não foi nada simples. O processo passou por vários juízes. Um deles pediu, em 2006, a cópia dos autos de Altamira que resultaram nas quatro condenações. O problema é que a solicitação só foi atendida 10 anos depois, em 2016.
Em relação às testemunhas, a frustração é a mesma. A vítima, Wandicley, e a mãe acabaram dispensados pelo Ministério Público e não foram ouvidos em audiência. A única pessoa a depor é Nelson Monteiro de Souza, que morou com Chagas em Altamira na época dos casos. No depoimento, ele diz que o amigo jamais teria capacidade de cometer os crimes.
A péssima instrução deixou claro que o MP não se preocupou muito com a denúncia, que ainda não havia sido julgada pelo juiz de pronúncia. Por isso, Rubens passou a estudar uma forma do processo avançar antes da prescrição, que ocorre em 2025.
Foi aí que o pesquisador pensou em uma possibilidade: entrar no caso como assistente de acusação. Mas ele só poderia ir em frente com a ideia se o próprio Wandicley o aceitasse como advogado. Rubens, então, conseguiu contato com o sobrevivente. Como a vítima não quer ser localizada, o modo como isso aconteceu não será revelado.
Segundo o pesquisador, Wandicley se assustou com a notícia da denúncia contra Chagas. “Ele ficou muito chateado com o fato de ser vítima de novo em um processo do qual nem tinha conhecimento. E, pior ainda, existia outra pessoa sendo acusada que não estava entre aquelas que foram ao Tribunal do Júri”.
Rubens contou que ganhar a confiança do sobrevivente foi um processo demorado e de muito diálogo – o que é compreensível diante de todo o horror que ele viveu. Ao falar a verdade e explicar como poderia ajudar no caso, o advogado conseguiu estabelecer uma boa relação tanto com a vítima quanto com os seus familiares. Eles chegaram até a se encontrar pessoalmente, e Rubens se tornou oficialmente advogado de Wandicley.
ENTREVISTA COM WANDICLEY
A partir desse momento, Ivan pediu a Rubens para que Wandicley lhe concedesse uma entrevista, caso se sentisse confortável. Para garantir a segurança e tranquilidade da vítima, ficou combinado que o pesquisador acompanharia tudo, como seu advogado.
Após meses de negociações, um dia Rubens foi à Altamira. Na ocasião, o sobrevivente aceitou conversar com Ivan via Skype. Hoje com 41 anos, ele é uma pessoa simples e reservada, que só quer viver em paz com a família que formou.
Mesmo sendo um assunto bastante difícil, Wandicley decidiu falar. E, finalmente, muitas dúvidas poderiam ser esclarecidas.
Afinal, como o episódio 20 mostra, os seus relatos ao longo do caso possuem muitas contradições. Alguns deles, inclusive, citam o possível envolvimento de mais pessoas no ataque.
Primeiro depoimento de Wandicley
Retrato falado com base na descrição de Wandicley
Segundo depoimento de Wandicley
Auto de reconhecimento de Rotílio por Wandicley
Terceiro depoimento de Wandicley
Auto de reconhecimento de Aldenor por Wandicley
Quarto depoimento de Wandicley
Depoimento de Wandicley no júri de Amailton e Carlos Alberto
Depoimento de Wandicley no júri de Anísio
Depoimento de Wandicley no júri de Césio
Depoimento de Wandicley no júri de Valentina
Na conversa com Ivan, Wandicley tentou descrever o que lembra do dia 23 de setembro de 1990, quando foi atacado. Leia abaixo partes da transcrição da entrevista:
Ivan: Você lembra onde estava? Com quem estava?
Wandicley: Eu estava perto do estádio, estava eu e o meu primo. Ele [o criminoso] chegou lá, me abordou e perguntou se eu queria tirar ninho de papagaio. Eu falei que sim. Eu fui com ele. Meu primo falou que não era pra eu ir, mas eu fui. Chegando lá no local, ele mandou eu continuar na frente dele. E eu perguntei “onde é?”. Ele falou “é bem aqui perto”. De repente, ele botou um pano no meu rosto, não sei o que era, com um cheiro bem forte, e eu desmaiei.
Ivan: Apagou. O que aconteceu quando você acordou? Você tem noção de quanto tempo passou?
Wandicley: O tanto de tempo que eu passei lá eu não tenho noção não. Sei que acordei e continuei andando lá pra pista. Eu ouvi o barulho dos carros passando. Aí [pensei] “é pra cá a pista”. Segui andando e cheguei num certo lugar lá. Tinha uma mulher estendendo roupa no varal. Eu parei pra pedir ajuda pra me levar pro hospital.
[…]
Ivan: Nos depoimentos que você prestou ainda criança, você cita que tinha quatro pessoas, uma pessoa e mais três depois. Você pode explicar isso pra mim?
Wandicley: Olha, eu não tenho certeza que eu… Porque quando aconteceu isso lá, eu estava dopado, bem dizer, né? Sinceramente, eu não tenho certeza não.
Ivan: Só pra deixar isso bem claro, que isso é importante pra gente. Nos seus depoimentos durante esses anos aparecia sempre a seguinte história: um homem levou você pro mato, e lá você encontrou outras três pessoas, que via por debaixo de uma venda nos olhos. Você diz agora, então, que não se lembra disso?
Wandicley: Não. Não foi assim não.
Ivan: Você tem uma explicação do porquê nos seus depoimentos tem essa história?
Wandicley: Não.
[…]
Ivan: Nos júris você já era adulto e deu quatro depoimentos. Em todos você também falava sobre mais pessoas lá no dia em que foi atacado. O que aconteceu nos júris?
Wandicley: Uma coisa que eu falei no júri lá… Eu falei que eu não tinha certeza. Até porque eu estava tipo dopado no mato, eu não tinha certeza mesmo.
Ivan: Você tem alguma explicação de como é possível que tenham colocado no teu depoimento escrito que tinha mais pessoas? Você tem alguma explicação pra isso?
Wandicley: Não, não tenho nenhuma. Não sei por que mesmo.
Ivan: Você cita também nos júris que reconheceu o Carlos Alberto como sendo uma das pessoas que teriam te atacado. Você realmente reconheceu o Carlos Alberto?
Wandicley: Na verdade, quando eu olhei pra ele, eu não tinha bem certeza não, mas ele se parece muito com aquele outro. Bastante mesmo.
Ivan: A questão é que o Carlos Alberto já é a terceira pessoa que você reconhece pelos autos do processo. O primeiro foi o Rotílio, aquele morador de rua que morreu no início de 92.
Wandicley: Vou falar a verdade. Aquele Rotílio eu nem cheguei a ver. Na verdade, eu não morava nem aqui, eu morava em Belém quando aconteceu isso. Eu nem cheguei a ver, eu só ouvi o comentário lá em Belém disso aí. Eu nunca cheguei a ver esse rapaz, nunca fiquei cara a cara com ele, nunca nem vi ele.
Ivan: Certo. A gente tem aqui o depoimento de um auto de reconhecimento seu, do dia 8 de janeiro de 92. Acredito que o Rubens já deve ter te mostrado esse documento, que tem a sua assinatura ali, dizendo que reconhece o Rotílio. O que você está me dizendo agora é que isso não aconteceu?
Rubens: O Wandicley, meu cliente, não estava em Belém no ato da prisão do Rotílio. Esse depoimento que consta nos autos nunca foi assinado por ele, porque ele nunca esteve presente em Altamira nessa época. Ele passou a residir em Belém logo após o crime e ficou por lá. Nunca retornou à Altamira.
[…]
Ivan: Então, dia 8 de janeiro de 92… Esse auto de reconhecimento aqui com o Wandicley não aconteceu?
Rubens: Não aconteceu.
Ivan: E a assinatura dele? E dessas outras pessoas? Temos explicação pra isso?
Rubens: Absolutamente. Muito provavelmente tudo foi forjado porque ele não tinha como estar em Altamira e em Belém ao mesmo tempo.
Ivan: Temos como comprovar que o Wandicley estava em Belém nesse período?
Rubens: Sim. Ele tinha residência fixa lá, junto com o pai. Ele estava em tratamento médico.
Ivan: De que ano até que ano o Wandicley morou em Belém?
Wandicley: Desde o acontecido. Dos nove até uns 30 e poucos anos, por aí.
[…]
Ivan: Existe outro reconhecimento, datado de 30 de junho de 93, em que o Wandicley, de acordo com os autos, reconhece em Belém, através de fotos, a figura de um homem chamado Aldenor Ferreira Cardoso. Eu queria saber se você lembra dessas fotos sendo apresentadas pelo delegado Éder Mauro.
Wandicley: Não lembro não.
Ivan: Nesse reconhecimento, o documento diz que o seu pai está presente. Daí são apresentadas várias fotos que aparentam ser de policiais militares ou militares, e é reconhecido esse homem, Aldenor Ferreira Cardoso. Ele vira um dos acusados por conta do reconhecimento feito por foto. Esse é o único momento que o Aldenor aparece, através do reconhecimento que você e o Segundo Sobrevivente fazem. Você, nessa época, também era uma criança. Você não se lembra desse reconhecimento?
Wandicley: Não lembro disso aí não.
Rubens: Existe outro aspecto jurídico que eu gostaria de comentar desses reconhecimentos realizados em 93. Ambos eram menores, mas especificamente o meu cliente não estava acompanhado de um responsável legal. Por mais que estivesse com o pai, ele não poderia ser curador dele porque também não tinha alfabetização. Então, eu acredito que muito provavelmente esse reconhecimento também não tenha ocorrido.
Ivan: Então, o que a gente está entendendo aqui é que, dos dois reconhecimentos anteriores presentes nos autos do processo, a própria pessoa que teoricamente reconheceu, que era uma criança na época, o Wandicley, afirma que não aconteceram esses reconhecimentos. É isso?
Wandicley: Sim.
Então, de acordo com o próprio sobrevivente, nenhum dos reconhecimentos anteriores ao júri teriam ocorrido. Nem de Rotílio, em 1992, nem de Aldenor, em 1993. Wandicley afirma que não estava em Altamira nessa época, pois permaneceu em Belém durante todo o tratamento médico pelo qual passou. Rubens, como seu advogado e tendo estudado o processo, reafirma isso.
No entanto, é preciso deixar claro que alguns indícios em outros depoimentos indicam que o sobrevivente teria passado o início de 1992 em Altamira. Talvez ele visitou parentes na virada do ano, e hoje em dia ninguém mais se lembra disso. Não é possível saber o que de fato aconteceu.
O que dá para dizer é que esse caso tem um histórico de forjar depoimentos. Um deles é o de Edmilson da Silva Frazão, citado no episódio 30. Mas há também os relatos das testemunhas Jeferson Cícero dos Santos e Maria de Nazaré Vieira da Costa, narrados no episódio 5.
Depoimento de Jeferson Cícero dos Santos em juízo
Depoimento de Maria de Nazaré em juízo
Nos autos, as primeiras declarações de Jeferson e Maria diziam que Amailton teria sido visto perto de Altamira em novembro de 1992, quando Klebson foi assassinado. Depois, ambos prestaram novos depoimentos, afirmando que nunca disseram isso e que os testemunhos anteriores haviam sido fabricados.
No decorrer da pesquisa para esta temporada, Ivan ouviu outras histórias nesse sentido. Uma testemunha chegou a relatar explicitamente que nunca deu o depoimento presente nos autos. Infelizmente, essa pessoa depois cortou contato com o podcast, provavelmente por medo das consequências. Por isso, a identidade dela não será revelada.
Diante de tudo isso, não seria surpresa se os reconhecimentos feitos por Wandicley de fato tenham sido forjados.
Voltando para a entrevista, Ivan também perguntou ao sobrevivente sobre outra contradição em seus relatos. Nos primeiros depoimentos, Wandicley afirmou que chegou a desmaiar de dor após o ataque; já no júri, disse que não sentiu nada, nem as pernas, como se estivesse anestesiado.
Ivan: […] Você pode me explicar como isso aqui aparece no júri?
Wandicley: Aí eu não sei não. Só sei falar a verdade. As minhas pernas realmente eu não sentia. Até porque o meu pé estava cheio de espinhos, todo furado, e eu não sentia nada. Nada, nada.
Ivan: Mas será que isso não podia ser por causa do medo, do choque?
Wandicley: Não, não.
Ivan: De você perder tanto sangue? Não?
Wandicley: Não. Eu realmente não estava sentindo nada nas pernas.
Ivan: Eu pergunto isso, Wandicley, porque eu já tive que passar por cirurgia com essa anestesia que falaram aqui no júri, que os médicos teriam anestesiado você… E essa anestesia é muito dolorida, inclusive. Você fica com uma dor nas costas muito grande porque ela dá na base da sua espinha. E a gente não consegue andar por algumas horas. Você diz que conseguia andar. Você não tinha problema pra andar, você só não estava sentindo os seus pés, né?
Wandicley: Isso.
Ivan: Mas você estava sentindo dor nas costas também?
Wandicley: Não, nas costas não.
[…]
Ivan: Então você conseguiu ajuda [para ser socorrido]. Em algum momento, apagou e acordou de novo só em Belém.
Wandicley: Acordei só em Belém.
Ivan: O senhor lembra de algum policial ter tentado conversar com você, pegar alguma informação ou não? Isso aí é um branco pra você?
Wandicley: Não, não. Aí eu não lembro não.
Ivan: O senhor não lembra de um delegado chamado Tavinho?
Wandicley: Não.
Ivan: Ele chegou a fazer um relatório dizendo que falou com você logo no dia seguinte ao ataque, ou no mesmo dia, alguma coisa assim.
Wandicley: Não. Não lembro não.
Ivan aqui se refere a Otávio Torres Filho, na época um escrivão que posteriormente se tornou delegado. Ele produziu um Boletim de Ocorrência dois dias depois de Wandicley ser atacado. Nele, afirmou que, ao conversar com a vítima, percebeu que ela estava em completo estado de choque.
Boletim de Ocorrência do ataque a Wandicley
A vida de Wandicley virou de ponta-cabeça após o crime. Ele passou praticamente a morar no hospital, devido ao intenso tratamento médico que precisava fazer. Pelo mesmo motivo, teve de largar a escola, pois as cirurgias e a recuperação demandavam muito tempo. Até hoje, ele lida com as consequências físicas da agressão que sofreu.
Wandicley: […] Veio mais sofrimento agora, depois de adulto já, que eu tenho que tomar um hormônio, né?
Ivan: Você tem que tomar hormônio pelo resto da sua vida, então?
Wandicley: Isso. É uma coisa que eu encontro muita dificuldade pra comprar e conseguir receita. Isso é difícil. Quando eu não tomo, me dá muito sono, eu emagreço bastante, não dá vontade de fazer nada. É falta de hormônio, né?
Ivan: E você trabalha com o que hoje?
Wandicley: Eu trabalho em fazenda, mexendo com cerca, essas coisas…
Ivan: Ou seja, precisa de força e disposição, e a falta de hormônio te atrapalha até no seu trabalho.
Wandicley: Isso, aham.
Ivan: Então você vai pra Belém logo depois que é atacado e praticamente mora no hospital. Lá no hospital, você não lembra do pessoal vindo perguntar pra você o que aconteceu, fofocando e especulando? Você não lembra de nada disso?
Wandicley: Não. Faziam as perguntas deles, mas era com eles mesmos lá. Mas comigo mesmo não.
Ivan: Tá. Indo direto ao ponto. Você não lembra de, em algum momento, alguém chegar e falar “eu acho que o doutor Anísio está por trás disso, o doutor Césio, ou os Gomes”? Você não se lembra das pessoas especulando isso?
Wandicley: Não, não. Só depois de muitos anos que passaram a comentar em Altamira.
Ivan: Sabe se o seu pai ainda tinha muito contato com o pessoal de Altamira, tentando entender mais coisa?
Wandicley: Eu não sei.
Ivan: Eu te pergunto isso porque tem um depoimento que o seu pai dá, em outubro de 92, em Belém. Você está em tratamento, e ele dá um depoimento. Ele fala sobre um retrato-falado que teria sido feito com base no seu depoimento. Ele diz que um irmão seu correu atrás pra descobrir alguém que poderia se parecer com aquele retrato-falado. Ele chega na figura do Luiz Kapiche Neto, que era um radialista lá de Altamira, próximo da família Gomes. O seu pai nunca comentou isso com você?
Wandicley: Não.
Ivan: Nunca ninguém conversou sobre isso com você?
Wandicley: Não.
O depoimento do pai de Wandicley, citado por Ivan, pode ser acessado aqui:
Depoimento de Cezário Loiola Pinheiro
Ivan: Então você lembra de ser atacado por uma pessoa. Você não sabe dizer de onde veio essa história de mais pessoas, que te amarraram…
Wandicley: Não.
Ivan: Eu sei que o assunto é muito delicado, fique à vontade pra não responder, mas você lembra de ter sido abusado por essa pessoa?
Wandicley: Não, não. Não lembro não.
[…]
Ivan: […] Você sabia que existia um processo correndo em que você é a vítima e que o Francisco das Chagas é o réu?
Wandicley: Não, não sabia não.
Ivan: Nunca te falaram sobre essa investigação?
Wandicley: Nunca.
Ivan: Você sabia quem era o Chagas? Alguém te falou?
Wandicley: Sabia sim. Via falar na televisão, cheguei a ver na televisão, mas não sabia não.
Ivan: Você sabia, então, que prenderam um cara, e esse cara tava falando coisas. Mas nunca te procuraram…
Wandicley: Nunca me procuraram não.
Ivan: Pra dar depoimento, pra fazer reconhecimento?
Wandicley: Nunca.
[…]
Ivan: A Polícia Federal nunca te procurou pra falar sobre isso?
Rubens: Licença, Ivan.
Ivan: Sim.
Rubens: O meu cliente prestou um depoimento à Polícia Federal em 2005 ainda dentro das investigações do inquérito número 107/2004, que originou o processo do Chagas. Ele foi procurado pela delegada Virgínia em 21 de março de 2005.
Ivan: Certo. Você lembra desse depoimento, Wandicley?
Wandicley: Não lembro não.
Ivan: Em 2005, você não se lembra de dar esse depoimento pra ela?
Wandicley: Não. Não lembro não.
Ivan: Você acha que esse depoimento não aconteceu ou você só não está lembrado?
Wandicley: Eu não estou lembrado.
Ivan: O Rubens chegou a te mostrar esse depoimento? As tuas assinaturas, você reconheceu?
Wandicley: Sim.
Ivan: Mas você não lembra dos detalhes do que falou nele.
Wandicley: Não, não. Tem tanta coisa na minha cabeça, que tem horas que dá um branco.
[…]
Ivan: Nesse processo do Chagas, você chegou a ver alguma foto dele? Sabe dizer se ele parece a pessoa que te atacou?
Wandicley: Sim.
Ivan: Você olhou a foto dele?
Wandicley: Parece bastante.
Ivan: Parece bastante. Então você olhou a foto dele e acredita que pode ter sido ele?
Wandicley: Sim. Absoluto.
[…]
Ivan: […] Eu tenho um monte de depoimento seu falando coisas que hoje você está me dizendo que não aconteceram. O que aconteceu nesses depoimentos? Você tem alguma explicação?
Wandicley: Não.
Ivan: Ninguém te disse “fale isso”? E aí hoje dá essa confusão?
Wandicley: Sim.
Ivan: Quem teria falado pra você dizer certas coisas?
[silêncio]
Ivan: Teve alguém que mandou você falar alguma coisa, Wandicley, nesses anos todos?
Wandicley: Tem.
Ivan: Quem?
Wandicley: Foi o… Esqueci o nome do advogado. Como é o nome dele? Eu não estou lembrado do nome dele… É o Clodomir.
Ivan: Clodomir?
Wandicley: Isso.
Ivan: Doutor Clodomir Araújo?
Wandicley: Isso.
Para quem não se lembra, Clodomir Araújo foi o assistente de acusação nos júris de Belém em 2003, ao lado da promotora Rosana Cordovil. Ivan entrou em contato com o advogado para marcar uma entrevista, mas ele recusou o convite.
Ivan: O que ele falava pra você?
Wandicley: Ele sempre mandava falar… “Olha, tu sempre fala isso, só essa palavra aqui, pra ti não falar outra. Só fala isso”. Me orientando. Nós fomos no apartamento dele em Belém e ele ia orientando. Foi tipo um treinamento. Ele dizia, antes de começar o julgamento, o que era pra falar lá no tribunal.
Ivan: O que ele falou? O que ele disse pra você falar no júri?
Wandicley: Um monte de coisa. Nem lembro quase… Um monte de coisa aí…
Ivan: Sobre o Carlos Alberto, por exemplo. Ele mandou você falar do Carlos Alberto?
Wandicley: Do Carlos Alberto eu lembro mesmo. Ele falou uma coisa, que era pra confirmar que era ele.
Ivan: Ele falou pra você “confirma que é o Carlos Alberto que te sequestrou”?
Wandicley: Isso. Sei que no dia lá ele botava a pressão dele. Era pressão mesmo. Eu ficava com aquela coisa na minha cabeça.
[…]
Ivan: O filho dele também te ajudou nisso? O Clodomir Araújo Júnior?
Wandicley: Aham, estavam os dois lá.
Ivan: Os dois disseram “fala que foi o Carlos Alberto”?
Wandicley: Aham.
Ivan: Eles também disseram pra falar dessa questão da sedação? “Diga que você não sentia os seus pés”?
Wandicley: Não, não. Isso aí aconteceu porque eu não sentia mesmo.
[…]
Ivan: Você lembra de mais alguma coisa que ele falou pra você, que tinha que falar no júri?
Wandicley: Não. Não lembro não.
Ivan: Por que ele falou pra você reconhecer o Carlos Alberto?
Wandicley: Eu não sei.
Ivan: Você não sabe dizer? Ele nunca te explicou?
Wandicley: Não, não sei o porquê.
[…]
Ivan: Eu estou te perguntando isso, Wandicley, porque é algo bem grave, tá? Um assistente de acusação falando pra uma vítima dizer “você tem que reconhecer essa pessoa”. Esse reconhecimento tinha que ter partido de você, não dele. Você entende isso?
Wandicley: Entendo sim.
Ivan: E você está me dizendo que não partiu de você, partiu do assistente de acusação.
Wandicley: Aham.
[…]
Ivan: Deixa eu aproveitar, então, pra fazer uma pergunta. No depoimento do júri do Césio, um dos médicos, você até faz uma menção sobre outras pessoas que estariam ali naquele momento. Só que dessa vez é diferente. Você fala que uma pessoa te levou pro mato, te atacou, e você apagou. Quando você acordou, viu outras pessoas. Será que nesse momento, quando você era criança, também teve pressão pra dizer que teve mais pessoas te atacando?
Wandicley: Não, não. Não teve pressão nenhuma não. Eu falo mesmo. O que eu lembro que falei é que essa pessoa me levou mesmo lá… E eu não vi mais pessoas. Se eu falei, eu não lembro não, porque eu estava dopado. Só se foi no primeiro dia que me levaram pro hospital que falaram isso, porque eu não lembro de falar isso.
Ivan: Você não lembra, de repente, de quando você acordou, ter visto mais pessoas?
Wandicley: Não, não.
[…]
Ivan: Então a gente não sabe dizer de onde veio essa história de que tinha mais pessoas…
Wandicley: Eu não sei de onde surgiu isso daí.
Na sequência, Rubens expôs alguns elementos ao longo do processo que podem ter contribuído para essa tese. Segundo ele, a história do crime praticado em grupo teria surgido a partir do caso de outros meninos após Wandicley – como de Tito Mendes Vieira e Ailton Fonseca do Nascimento.
A partir da narrativa processual desses inquéritos, os delegados que passavam pelas investigações começaram a ventilar a possibilidade dos crimes serem cometidos por mais de um indivíduo. De acordo com o pesquisador, isso é corroborado até mesmo por matérias de jornal da época.
No caso de Ailton, por exemplo, a testemunha Dilurdes Maria da Silva afirma que viu o menino ser abordado por cinco homens. Ela foi ouvida pelo delegado José Maria Alves Pereira em 31 de maio de 1991. Quando esse mesmo investigador supostamente escuta Wandicley dois meses depois, em Belém, ele já está com a ideia fixa de que os crimes foram praticados por um grupo.
Depoimento de Dilurdes Maria da Silva
Outra menção a mais de um agressor aparece na edição do Jornal O Liberal de 25 de setembro de 1990, dois dias após o ataque a Wandicley. A reportagem diz que o sobrevivente foi vítima de dois homens, um “moreno de barba e outro alto”.
Matéria do jornal O Liberal – “Menino foi castrado em Altamira”
Segundo Rubens, tudo isso contraria a narrativa de Wandicley, que sempre afirmou ter sido abordado e levado para o mato por uma única pessoa.
Ivan: Você, Rubens, como advogado e pesquisador desse caso, tem alguma explicação do porquê esses primeiros depoimentos têm o Wandicley falando de quatro pessoas?
Rubens: Na minha compreensão, já existia uma desconfiança por tantos crimes estarem acontecendo no mesmo período de tempo, e por vários termos de declaração em polícia falarem sobre pessoas mal encaradas que eram vistas conversando com essas crianças. Então, eu acredito que, desde os primeiros crimes, já existia essa possibilidade de ser mais de uma pessoa. Isso foi tomando forma, ganhando corpo com o tempo.
[…]
Ivan: Wandicley, eu já estou satisfeito com as informações que você me passou. Tem alguma coisa que você gostaria de falar que nunca te deram espaço?
Wandicley: Na verdade, o que eu queria falar… Eu mesmo gostaria de ficar frente a frente com o Francisco das Chagas.
Ivan: Você acha que conseguiria reconhecer ele melhor frente a frente?
Wandicley: Com certeza.
Ivan: Então você tem interesse que o Francisco das Chagas seja julgado no Pará?
Wandicley: Sim.
Ivan: Você tem alguma ideia do porquê ele nunca foi julgado?
Wandicley: Não. Não tenho essa ideia.
Ivan: Isso sempre foi escondido de você. Nunca foram transparentes.
Wandicley: Nunca.
ALEGAÇÕES FINAIS E DECISÃO
A situação era a seguinte: após descobrir o processo de Wandicley, Rubens conseguiu se tornar advogado da vítima e entrar no caso como assistente de acusação. Já havia se passado muito tempo, e o Ministério Público de Altamira não fez nada. Não chamou testemunhas para prestar depoimento, não interrogou Chagas, sequer ouviu o sobrevivente.
Nessa altura, o processo estava na fase de alegações finais. A acusação deveria elencar as razões pelas quais acreditava que Chagas tinha que ir a júri. A defesa do denunciado, por sua vez, argumentaria contra isso. No fim, um juiz decidiria se havia indícios suficientes para pronunciar o acusado.
Como Rubens é um jovem advogado e estava atendendo Wandicley sem cobrar nada, ele precisava de ajuda. Por isso, através da indicação de um amigo, o pesquisador conseguiu o apoio de Jader Marques, conhecido advogado criminalista do Rio Grande do Sul.
Enquanto Rubens contribuía com o vasto conhecimento sobre o caso, Jader entrava para auxiliá-lo na parte técnica do Direito. A parceria rendeu a entrega das alegações finais do processo, usadas pela acusação para defender a ida de Chagas a júri.
“Eu queria que o Chagas fosse a júri porque ele precisa ser levado a júri. Existem indícios de autoria e materialidade suficientes para que ele seja julgado, pelo menos isso. Se será considerado culpado ou não, eu não sei. Mas na minha compreensão enquanto operador do Direito, isso é um dever do Estado. E é um pleito não só meu, mas dos familiares. Eu escutei isso das famílias de Altamira. ‘Se é ele [o autor], por que não vai a júri?’”, explicou Rubens.
Assim como o pesquisador, Jader Marques também estranhou o modo como o caso de Wandicley foi tratado ao longo dos anos. “O que eu pude observar foi exatamente a ausência de uma série de atitudes, como se o não andamento do processo fosse mais importante do que a sua tramitação regular. Não houve interesse em efetivamente promover a acusação do réu, não houve a realização de provas por parte da acusação”, comentou ele em entrevista ao Projeto Humanos.
A realidade é que, após a denúncia, nada aconteceu, e o processo foi deixado de lado. Prova disso, segundo Jader, é a demora do Ministério Público em atender a intimação para apresentar as alegações finais. “Ela não foi atendida por mais de uma vez, o que não é comum se tratando de um órgão que tem o dever de cumprir prazos”, pontuou.
O MP, na verdade, agiu da forma contrária do que é o esperado. Mesmo que fatores como a troca de juízes ou a sobrecarga de atividades pudessem atrasar os trabalhos, o órgão não pareceu preocupado em pedir mais agilidade e reverter essa situação.
Com a atuação de Rubens e Jader, e a chegada de um novo magistrado na comarca, as coisas finalmente avançaram. O problema é que a possibilidade de finalmente levar Chagas a júri esbarrou na fraquíssima fase de instrução conduzida pelo MP. Por isso, após ler as alegações finais da defesa e da acusação, o juiz entendeu que não havia indícios suficientes de autoria para que o réu fosse pronunciado. Ou seja, o acusado não passaria por um julgamento.
“Nós tínhamos esperança de que ele [o juiz] admitisse a possibilidade de dar confiança à palavra da vítima e jogasse essa hipótese de comprovação das questões para a segunda fase [o júri]. Mas, juridicamente, para a pronúncia, é preciso ter o mínimo de indícios de autoria. E o processo, ao longo de todos esses anos, sequer foi capaz de produzir na instrução o mínimo para que fosse adiante”, relatou Jader.
Depois de tudo isso, para o advogado, a conclusão é uma só: o processo nasceu para ter esse final. “Apesar da enorme quantidade de elementos para que o réu fosse levado a júri, o caso teve o desfecho esperado por todos. Não pela vítima e pela sociedade, que gostariam de ter a correta apreciação dele, e por tantos outros envolvidos injustamente. Mas nós chegamos em uma fase em que, apesar das alegações finais e do diálogo com o magistrado, não foi possível reverter o quadro já instaurado”, finalizou.
Igualmente frustrado com o desfecho do caso, Rubens aproveitou uma de suas últimas conversas com Ivan para destacar outros termos de declarações de Chagas sobre o caso de Wandicley. Depoimentos que poderiam ter sido um ponto de partida para que o Ministério Público produzisse uma boa acusação.
Um dos testemunhos é de 9 de junho de 2004. Nele, o suspeito repetiu as informações já relatadas sobre como abordou o garoto na frente do estádio e o levou até uma área de matagal para caçar papagaio. Alegou que se lembrava de ter saído sozinho de lá e ido direto para casa. Na ocasião, ao ser apresentado com sete fotografias de crianças, ele apontou a de Wandicley como o menino “moreninho” com quem saiu naquele dia.
Em outro depoimento, no mês seguinte, Chagas finalmente deu detalhes do que teria acontecido no mato. O mecânico disse que era comandado por uma “coisa” que aparecia para ele, uma pessoa sem rosto e que flutuava. Ela o mandava machucar os meninos. A ordem era enforcar as vítimas primeiro e cortá-las depois. Assim ele fazia.
Então, procurava um pé de tucum e cavava uma vala na terra em forma de cruz. Colhia um pouco de sangue e colocava no buraco. O modo como o corpo do garoto ficava – de lado ou de bruços – indicava o tempo que ele deveria aguardar para cometer o próximo crime. Poderiam ser três ou seis meses, por exemplo.
Às vezes, a “coisa” dizia para que Chagas deixasse o menino vivo. Foi o que aconteceu no caso de Wandicley. Assim que chegou no mato com a criança, a voz lhe falou para enforcá-la. Ao obedecer, ele ouviu, em seguida, que precisava soltá-la, que não era para ir até o fim.
O mecânico parou e partiu, então, para a emasculação. Posteriormente, após o ritual com a vala e o sangue, ele deixou o local.
De acordo com Rubens, Wandicley não quis saber o que Chagas disse nesses termos de declarações, o que é bastante compreensível. Ele relatou, porém, que se lembra de ter sido deixado dentro de uma vala. Esse é mais um ponto que se conecta com as descrições fornecidas pelo suspeito.
Depoimento de Chagas para a PF – 06 de julho de 2004
Depoimento de Chagas para a PC do Maranhão – 12 de julho de 2004
DESPEDIDAS
Após a impronúncia de Chagas, o doutor Jader saiu do caso. Rubens ainda continuou por um tempo, talvez com um recurso em mente para tentar reverter a decisão.
Enquanto isso, em outras conversas com Wandicley, Ivan percebeu mais um fator doloroso. Se por um lado ele acreditava que quem o atacou foi Chagas, por outro também dizia que não queria contribuir com esforços que tentassem inocentar os condenados no Pará.
Essa confusão, evidente nas contradições de seus depoimentos, é resultado de um trauma que roubou a sua infância e o deixou totalmente desamparado. O pouco de assistência que o sobrevivente recebeu foi fruto da luta incansável da sua família e de outros parentes de vítimas. Uma luta marcada por dores que ninguém deveria sofrer – tudo isso consequência de um Estado que não cuidou dessas pessoas, e de um assassino serial que agiu livremente por 14 anos, em dois estados, sem medo de ser pego.
Se em um primeiro momento Wandicley demonstrava disposição para tentar levar Chagas ao júri, à medida que o tempo foi passando, esse cenário mudou. Reviver tudo é doloroso demais.
Nesses quase três anos de trabalho para esta temporada, Ivan notou que Rubens tinha um hábito: sempre que precisava falar algo que exigia atenção, ele escrevia um texto. No encerramento dessa jornada, isso não poderia ser diferente.
O advogado lhe escreveu tudo o que ocorreu nos últimos meses. Suas palavras tocaram Ivan profundamente, e ele mesmo não teria como se expressar melhor sobre tudo o que ambos fizeram e descobriram juntos. Os sentimentos de Rubens e Ivan são exatamente os mesmos.
O texto completo está disponível abaixo:
O caso dos meninos emasculados de Altamira do meu ponto de vista é uma construção social que envolve inúmeros aspectos, impossíveis de serem compreendidos apenas por um único viés, seja ele científico ou jornalístico. Infelizmente, este constructo surgiu em meio a muito sofrimento, sangue e dor da perda de familiares de pessoas. Atribuir responsabilidades pelo que ocorreu ou mesmo procurar encontrar verdadeiro(s) culpado(s) nunca foi o meu objetivo enquanto pesquisador. Eu já pesquisava o caso muito antes de me tornar advogado e a profissão só me fez ainda mais cético com relação à possibilidade de obter respostas para questões não respondidas. Mas procurarei aqui deixar alguma singela mensagem sobre o resultado da pesquisa (que ainda vai demorar um pouco para ser publicada) e sobre a conclusão do projeto humanos podcast Altamira.
No tempo em que pesquisei sobre Altamira eu tive altos e baixos. Momentos em que fui confrontado com minhas certezas, momentos em que precisei acreditar naquilo que era impossível acreditar, momentos em que o Direito confrontava a Antropologia e vice-versa. Esse exercício me fez chegar à compreensão de que deveríamos (Ivan e Eu no podcast e apenas Eu na pesquisa) fazer um trabalho sério, que proporcionasse às pessoas (que se dispusessem a ouvir/ler) a possibilidade de conhecer a fundo o que estava contido nos autos do processo e posteriormente com o trabalho de campo em Altamira, que permitisse às pessoas conhecer um pouquinho a realidade do caso, na pele, ou melhor, pelos ouvidos.
Nesses longos anos de pesquisa perdi algumas amizades, talvez (quase certeza) pelo meu envolvimento com o caso, sempre não dando ouvidos às pessoas que diziam para não me envolver tanto. Ao fim, acredito que são ossos do ofício, talvez essas amizades perdidas queriam mesmo que eu concordasse com o que diziam e fizesse o que queriam, e eu desde que comecei a mergulhar fundo no caso me condicionei a encontrar a minha própria maneira de examinar a situação.
Ouvi os dois lados. Estive com familiares de vítimas inúmeras vezes. Compartilhei suas dores, suas lágrimas, algumas vezes sua indignação comigo por estar tratando de assunto tão delicado e pessoal. Estive também com os familiares dos acusados, que compartilharam também suas dores, lágrimas e principalmente indignação. Todos estes lados, para mim, formam o polo passivo dos fatos. Todos não tiveram seus direitos resguardados e sofreram arbitrariedades da parte de todos que de uma forma ou de outra se envolveram com a situação. Aqui assumo: minhas arbitrariedades também. Pois muitas vezes precisei tocar a ferida e não tinha remédio possível para apaziguar a dor.
A pesquisa de mestrado que concluí é sobre práticas de poder, o Estado em formato de papel. Já o trabalho com o podcast há muito extrapolou os limites da pesquisa e foi fundo, encontrando respostas, outras nem tanto.
Um dos encontros mais importantes desta trajetória foi com uma das vítimas, de quem quero falar agora e concluir essas palavras. Wandicley (meu amigo e constituinte) hoje já não é mais uma criança, um adolescente, um jovem. O terceiro sobrevivente é um homem, com família. Que também possui suas perguntas não respondidas, e pessoalmente acredito que nunca serão respondidas.
Nesse caminho tentamos levar Francisco das Chagas ao tribunal do Júri em Altamira, pelos crimes contra Wandicley, mas o Estado-Juiz entendeu que não havia provas suficientes para pronunciá-lo ao Tribunal do Júri e o processo foi arquivado definitivamente.
Wandicley tem certeza absoluta de que quem o atacou foi o Maranhense Francisco das Chagas, mas em nenhuma oportunidade falou que acredita serem inocentes as pessoas que foram condenadas. Com exceção de A. Santos (Carlos Alberto Santos de Lima) que disse ser muito parecido com Chagas na época do júri, mas não havia sido ele (Carlos Alberto) que o levara pro mato. Quando Wandicley olha as fotos de Chagas, ele não tem dúvida e até hoje anseia se encontrar com o mesmo para fazer uma pergunta que não quis me dizer qual seria.
Um dia, estávamos almoçando na beira do Rio Xingu em Altamira e Wandicley me olhou e disse: o dia que eu me encontrar com o Francisco das Chagas, que fez isso comigo, eu tenho uma única pergunta pra fazer para ele. Eu perguntei qual seria a pergunta. Wandicley respondeu: essa pergunta só pode ser feita para ele…
Tentei recorrer da sentença de Impronúncia do Francisco das Chagas, mas não o fiz. Nos momentos finais do prazo a pedido do meu cliente Wandicley, que hoje não se sente mais capaz de suportar tudo de novo, pediu-me que não o fizesse. Que já não acreditava mais na Justiça dos Homens. Juiz, Promotor, Policiais, Júri… sua vida inteira foi isso. Há quase 40 anos e talvez com o ressurgimento do caso mais 40 anos de sofrimento.
Mas o sofrimento nunca há de acabar…
Dona Irene (irmã de Ailton) continua sem saber o que aconteceu com a ossada de seu irmão que foi trazida para Belém e nunca foi devolvida. Provavelmente ela nunca terá a oportunidade de sepultar os restos mortais do irmão. Dona Carolina nunca teve oportunidade de ao menos saber o que houve com Maurício, ou mesmo de sepultar sua ossada muito provavelmente encontrada pelos agentes estatais durante as investigações de 2004. Dona Esther não teve o direito de ter julgado o assassino de seu irmão. E assim, muitos outros familiares de meninos vítimas em Altamira convivem no fim de suas vidas com as dores e incertezas.
Por outro lado…
A mãe de Amailton, Dona Zaíla tem sua sala cheia de fotos do filho falecido, as irmãs choram ao lembrar da alegria do irmão mas relatam continuar com o nó na garganta da injustiça e da dor. Zaila me mostrou uma caixa onde guarda todas as cartas de Amailton enquanto esteve preso, álbuns de fotografias, poemas que ele escrevia. O Sr. Amadeu, pai de Amailton, tem na sua sala um cantil militar que era do filho, um cachimbo que também era do filho e ornamenta sua sala de estar. Não tem fotos expostas, não gosta de lembrar. Mas tem guardada a camisa rasgada de Amailton de quando foi preso e espancado pelos policiais que o prenderam.
A Dona Lucimar vive com os filhos e com a dor de lembrar o calvário que Anísio passou. Vive entre o Maranhão e o Pará, procura viver feliz apesar de tudo, acredita que com a morte o sofrimento do marido se encerrou. A família de Césio também procura esquecer o período sombrio da prisão, hoje, ele é pai-avô de dois netinhos, se dedicam ele e sua esposa Alda a cuidar dos netos e superar dores mais recentes de perdas de familiares importantes pra família. Por onde se vê no dia a dia, Césio está a brincar com as crianças.
Então, com a prescrição de todos os crimes dos meninos emasculados de Altamira. A omissão do Poder Judiciário frente a todas as provas que poderiam levar a respostas. A morte de Amailton Madeira Gomes, a morte de Carlos Alberto dos Santos Lima, a morte de Anísio Ferreira de Souza e Valentina de Andrade. A progressão para o regime Aberto de Césio Flávio Caldas Brandão e a decisão de Wandicley, do primeiro e do segundo sobreviventes de não tocarem mais nesse assunto. Concluo o meu trabalho com o caso dos meninos emasculados de Altamira.
Tenho esperanças de que o registro feito pelo projeto humanos Altamira sirva para a observância das nossas ações pessoais no cumprimento de nossos deveres enquanto cidadãos, o cuidado e a responsabilidade implicada nas acusações e nas defesas seja em qualquer situação que enfrentemos da nossa vida.
Belém do Pará, 24 de janeiro de 2023.
Rubens José Garcia Pena Junior
Ivan Mizanzuk começou a pesquisar sobre o caso dos meninos emasculados de Altamira com uma única coisa em mente: tentar encontrar uma resposta para o que aconteceu com Evandro Ramos Caetano e Leandro Bossi, meninos assassinados em Guaratuba em 1992.
A história que ele sempre ouvia tinha Valentina de Andrade como ponto central. A líder do Lineamento tinha sido suspeita nos casos do Paraná, mas não encontraram provas contra ela. Pouco tempo depois, ela também foi acusada de estar envolvida na morte de crianças no Pará, do outro lado do país.
Ivan descobriu algumas respostas, mas não as que buscava. Ele está convencido de que Valentina não teve nada a ver com esses crimes, e acredita que ela só apareceu como suspeita no Pará justamente por conta da repercussão nacional do caso Evandro. Ele está convencido também de que Chagas é o verdadeiro assassino de Altamira.
Essas são as respostas que o Projeto Humanos encontrou. Infelizmente, ainda não há solução para o que aconteceu em Guaratuba. É por isso que a próxima temporada do podcast será focada em uma nova investigação sobre o caso Leandro Bossi.
Afinal, após a confirmação de que a ossada encontrada em março de 1993 de fato pertencia a ele, é preciso ir atrás de explicações. É com isso que Ivan se ocupará nos próximos meses. A família Bossi quer e merece uma solução para o caso. Ou pelo menos que alguém tente consegui-la.
O trabalho do Projeto Humanos sobre Altamira está encerrado. Independente disso, Ivan ainda tem esperanças de encontrar o relatório da Polícia Federal de 1993, a grande peça que falta nesse quebra-cabeça. Se isso acontecer, ele fará questão de anunciar em um novo episódio.
Quando começou a pesquisar sobre Altamira, assim como muitos ouvintes, Ivan já sabia sobre Francisco de Chagas. Já os motivos que levaram o estado do Pará a não reconhecê-lo como o verdadeiro assassino não estavam claros. Por isso, o desenvolvimento desta temporada foi uma tentativa de mostrar todos os detalhes para o público geral, de uma vez por todas.
Se Chagas nunca foi considerado como o verdadeiro assassino no Pará, Ivan espera que esse trabalho enciclopédico sirva pelo menos como referência e exemplo de que, muitas vezes, a justiça não está interessada na verdade. O caminho para mudar esse cenário é longo, e o trabalho do podcast é apenas uma pequena contribuição.
O Projeto Humanos tem centenas de horas de áudios não utilizados nesta temporada. Áudios de pessoas que sequer foram citadas. A ideia foi focar no que era mais importante para a elucidação da história, tentando responder à seguinte pergunta: se Chagas é o assassino de Altamira, por que nunca foi julgado no Pará?
Ivan espera que tenha encontrado uma resposta. É uma resposta frustrante e dolorosa, mas é uma resposta. E, se serve de algum consolo, mínimo que seja, Francisco das Chagas está cumprindo pena. Ele não saiu impune. E mais nenhuma criança morreu nas suas mãos.
O caso dos meninos emasculados de Altamira tem uma solução real. Mas ele possui uma resposta formal diferente, e mais outras no imaginário. Elas se cruzam em alguns pontos, mas são totalmente diferentes entre si.
Se existe uma coisa em comum em todas elas, é que todos os envolvidos querem descansar. Por mais que as famílias das vítimas defendam que suas dores nunca sejam esquecidas, e que as dos acusados desejem seus nomes limpos, ninguém está mais disposto a enfrentar os dolorosos caminhos de uma suposta justiça.
Então, aqui, Ivan agradece e se despede de Altamira – e torce para que suas crianças tenham algum descanso.
*Este episódio usou reportagens da Rede Globo.