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Extras Episódio 30

A TERCEIRA REVELAÇÃO

No episódio anterior, o podcast prometeu trazer à tona três revelações sobre a equipe da Polícia Federal (PF) que foi para Altamira na década de 1990. Duas já foram abordadas: o que levou os agentes até lá, e o conteúdo do relatório que eles produziram em 1996.

A terceira é referente ao marceneiro e ex-bate-pau Edmilson da Silva Frazão, uma das principais testemunhas de acusação. Em 2022, Ivan Mizanzuk conseguiu entrevistá-lo por telefone, e o que ele disse tem potencial para mudar essa história para sempre.

Ao longo da conversa, o objetivo era entender a história dos depoimentos que ele deu durante o processo. Segundo Frazão, tudo começou com a interferência de um delegado da Polícia Civil de Altamira, chamado por ele apenas de “Edir”.

Na época, Edmilson, que era bate-pau, não tinha um bom relacionamento com o investigador. O motivo recorrente dos conflitos entre ambos estaria ligado aos problemas que o marceneiro tinha com a justiça. Naquele período, vários clientes acusavam Frazão de sumir com os móveis que tinham deixado para ele restaurar.

Por isso, de acordo com Edmilson, não era incomum que Edir o chantageasse e até o prendesse na delegacia. Esse era o cenário quando a polícia começou a receber informações sobre os ataques aos meninos em Altamira.

“Eles [policiais federais] chegaram até a minha pessoa justamente através do doutor Edir”, explicou ele em entrevista ao podcast. “Aconteceu um fato com uma criança que escapou, e eles levaram essa criança para Belém. Como a gente morava bem próximo [do local do ataque], vimos todo aquele movimento ali. E ele [Edir] chegou e nos pressionou, entendeu?”, completou.

Na ocasião, o investigador teria dito que, se não encontrasse os autores dos crimes, chamaria a Polícia Federal para auxiliá-lo. E acrescentou que, se Frazão tivesse qualquer informação, deveria passar para os agentes.

Ivan perguntou se isso aconteceu antes ou depois da época que o entrevistado saiu de Altamira, e ele respondeu que foi posteriormente. No início da década de 1990, o marceneiro teria fugido da cidade após receber ameaças, pois sabia de uma série de crimes cometidos por policiais e bate-paus. Esses delitos, porém, não estavam relacionados aos casos dos meninos emasculados. Toda a história da fuga e perseguição é narrada em detalhes no primeiro depoimento que ele prestou.

Primeiro depoimento de Edmilson da Silva Frazão

Transcrição do primeiro depoimento de Edmilson

Cerca de um ano depois, Frazão retornou ao município. Teria, então, sido nessa época que Edir o pressionou para falar com a Polícia Federal sobre os crimes de emasculação, o que ele acabou aceitando. 

“Eles [agentes da PF] disseram ‘você vai envolver esse povo aí e nós vamos te dar imunidade em troca. Quem sabe, até uma vida melhor fora daqui’. Eu tinha 20 anos de idade, uma mulher e um filho de oito meses vivendo em um quartinho de vila. Agora, você está ali, rodeado por uns caras daqueles, todos armados. Vai fazer o quê? Você treme na base, né?”.

Resultado: Edmilson disse sim para a proposta e passou a prestar os depoimentos, falando o que os policiais queriam ouvir. “Eu era obrigado a falar, está entendendo? Fui obrigado, sempre fui obrigado a falar. Agora, se tem alguma coisa relacionada à minha pessoa, se eles me deram proteção ou algo assim, eu confesso que até agora não recebi nada em troca. Muito pelo contrário. Tive problemas e criei inimizades”.

Segundo depoimento de Edmilson

Nesse ponto, o marceneiro foi mais claro ainda: ressaltou que os “tais membros da seita” são inocentes e que tudo não passou de uma narrativa inventada pela polícia. “Quem praticou todos esses crimes, toda essa barbaridade, foi o Francisco das Chagas. Desde o princípio, ele cometeu esses homicídios e, infelizmente, a polícia na época não fez nada para chegar até esse homem, por incrível que pareça”.

Mas quem, afinal, apontou os suspeitos? Segundo Frazão, o primeiro a fazer isso foi Edir. O delegado aproveitou os desacordos comerciais que o marceneiro tinha para coagi-lo. A ideia era que o bate-pau “criasse uma situação” com alguns nomes citados pelo investigador. Se o obedecesse, Edmilson não precisaria mais se preocupar com os clientes que o denunciavam. 

“Ele [Edir] falou ‘você viu esse cara, você conhece esse cara’. Quer dizer, apontou uma pessoa que até então eu nunca tinha visto. ‘Esse cara é o Amailton, fulano de tal’. E os familiares do Amadeu em Altamira tinham a reputação de serem bravos, temidos. Ele era um dos mais poderosos do lugar”, comentou. 

Ao podcast, Edmilson afirmou que o investigador poderia ter alguma rixa com esses indivíduos. Após Amailton Madeira Gomes, ele mencionou Carlos Alberto dos Santos Lima. “O A. Santos, a princípio, parece que tinha aprontado uma com ele [Edir] na época que era PM. E aí, depois, [o delegado] citou o doutor Anísio, justamente pelo fato de ele querer algo lá da clínica gratuitamente e o médico não ceder”, disse.

De acordo com o marceneiro, o investigador também lhe passou o nome de Césio Flávio Caldas Brandão. Ele não sabe dizer, no entanto, que motivo ou conflito Edir teria contra o médico. “Foram nomes que apareceram para mim e situações que foram criadas. Justamente depois veio o pessoal da PF trazendo todo aquele aparato de pressão psicológica. Porque existe no processo, nos autos… Eu cito na época que fui coagido pelo pessoal”.

Essa situação a que Edmilson se refere foi explicada no episódio 14. É a ocasião em que ele prestou um depoimento ao Ministério Público, alegando que inventou a história do culto devido à pressão de policiais federais. O documento data de 24 de março de 1995.

Depoimento de Edmilson ao MP sobre a pressão da PF

Diante do relato de Frazão, que é um tanto confuso e sem cronologia definida, uma dúvida surgiu na mente de Ivan: Se o marceneiro fugiu de Altamira com medo do delegado Edir, por que, então, eles continuaram a ter contato depois, como se nada tivesse acontecido?

Segundo o ex-bate-pau, na época do seu retorno, a equipe de policiais já não era mais a mesma, e Edir havia deixado o cargo de investigador para atuar como advogado no município. “A conversa que eu tive com ele foi, digamos, em um encontro por acaso. Eu passava próximo à Câmara Municipal e não sabia que o escritório dele era ali. Então, ele me viu e me chamou”, contou.

Como ele não era mais delegado, Edmilson achou que não tinha motivos para ter medo, e aceitou o convite. Aqui, já é preciso adiantar que Ivan tentou entrar em contato com Edir para ouvir a sua versão, mas ele não retornou as mensagens.

Durante o encontro casual, o agora advogado teria falado sobre a história do culto na chácara de Anísio. “Tudo isso aí foi praticamente uma criação dele. Até porque a PF ia para cima dele de qualquer jeito, porque era o delegado da época [dos crimes]. Mas ele não tinha informações para dar e muito menos fazia nada”, disse.

Além disso, de acordo com Frazão, outro fator que complicou a situação do investigador seria a morte de Rotílio Francisco do Rosário – o morador de rua considerado suspeito pela polícia em 1992. “Ele [Edir] estava pegando pessoas que não tinham nada a ver, e encostando pau. Eles chegaram a matar um cidadão lá. O cidadão morreu de tanto apanhar e não tinha nada a ver com a história”.

Quem comandava a delegacia de Altamira quando Rotílio faleceu era o doutor Carlos Augusto Mota Lima que, segundo Edmilson, seria amigo de Edir.

Em resumo, por conta do medo e da pressão psicológica, Edmilson Frazão aceitou prestar depoimento para a Polícia Civil. Ele disse que não imaginava, entretanto, que Edir fosse realmente contatar os agentes federais. Teria sido por intermédio dele que a equipe de José Carlos de Souza Machado ficou sabendo da história do marceneiro.

Com a entrada da PF, Valentina de Andrade finalmente apareceu no caso. Isso porque, segundo o ex-bate-pau, os agentes o pressionaram para incluí-la na narrativa ao lado de Anísio. Em troca, ele receberia proteção, diante das ameaças que havia sofrido no passado. Por isso, decidiu confirmar em juízo tudo o que havia dito à Polícia Civil.

Depoimento de Edmilson em juízo

Até que, certo dia, o advogado Hercílio Pinto de Carvalho, que representava Amailton na época, procurou Edmilson e o convidou a ir até a sua casa para uma conversa. 

Na ocasião, Hercílio se prontificou a acompanhar o marceneiro até o Ministério Público para que ele contasse toda a verdade. “Ele disse ‘olha, esse pessoal não cometeu nada disso. O povo está indo para a cadeia à toa, vai ser processado e condenado sem dever nada. A gente tem que criar uma situação e uma forma de parar com isso’”, contou Edmilson.

O advogado ainda comentou com Frazão que ele não era a única testemunha que tinha sido pressionada para depor contra os acusados. O marceneiro, então, criou coragem e foi até o MP prestar depoimento, revelando a coação da Polícia Federal.

Como já relatado no episódio 14, apenas quatro dias depois, Edmilson se arrependeu e voltou atrás. Deu outro testemunho, culpando agora o advogado de Amailton pela pressão. O que aconteceu para ele mudar de ideia? 

Frazão explicou que, na ocasião, já tinha combinado uma viagem para São Paulo com o advogado de Valentina, Frederick Wassef, para gravar uma entrevista. Essa mesma história é narrada pelo próprio Wassef ao podcast, também no episódio 14. 

Nesse meio tempo, o marceneiro recebeu a visita de um ex-colega chamado Santana, um bate-pau da polícia. Ele confrontou Edmilson sobre o depoimento que desmentia tudo. Como exatamente essa informação vazou, porém, não se sabe.

A pedido de Edir, o recado de Santana foi direto: “o negócio vai pegar para o teu lado. Você voltou atrás na história, desfez o que falou. Ou você volta lá e diz que foi pressionado ou a coisa pode ficar difícil para o teu lado”. 

Segundo o bate-pau, o ex-delegado ainda deixou claro que, se Edmilson obedecesse, a situação dele melhoraria. Mas, se insistisse em contradizer a história, poderia até ser preso.

“Eu não sabia se, porventura, isso me prejudicaria. Até então, eu não entendia de leis como eles. Eles falavam as coisas, e eu tinha que acreditar. Quer dizer, 28 anos atrás, as coisas eram muito embaçadas, não é como hoje”, disse o marceneiro.

Com a nova ameaça, Edmilson voltou ao Ministério Público.

Depoimento de Edmilson ao MP sobre a pressão de advogados

Sobre a criação da história envolvendo os cinco acusados, o ex-bate-pau deu mais detalhes das razões pelas quais eles teriam sido escolhidos. 

Em relação a Anísio Ferreira de Souza, ele lembra de uma situação que presenciou enquanto trabalhava na clínica do médico. Na época, aos 17 anos, ele ajudava o irmão, de 20, a fazer algumas obras lá. Certo dia, o delegado Edir chegou, junto com outra pessoa, e pediu para fazer um exame. Ele queria, porém, que o atendimento fosse gratuito. 

“Então, eles tiveram uma discussão, um bate-boca. Como se ele [Edir], uma autoridade, tivesse alguma regalia. Onde ele chegasse seria tratado como tal, sendo que ali não era dessa forma”, comentou Frazão.

Para piorar, o investigador também teria rixa com Antônio Paraná, um conhecido contrabandista e traficante de Altamira – que, segundo Edmilson, seria amigo de Anísio. “Por outro lado, o doutor Edir gostava de uma propina, e eles não pagavam, eles não queriam dar aquele… Como quem diz ‘aqui a gente te protege’. Então ele criou essa situação [do culto na chácara]”. 

Mas e a líder do tal ritual? Quem colocou Valentina de Andrade na cena? A resposta, de acordo com a testemunha, é a Polícia Federal. Os agentes já teriam informações sobre ela quando conversaram com o marceneiro. “Eles falaram ‘tem uma mulher que é dona de uma seita, de nome Valentina’, e colocaram a foto dela em cima da mesa. ‘A mulher é essa aqui’. Aí me explicaram tudo direitinho”.

As informações detalhadas surpreenderam até mesmo os defensores da acusada durante o testemunho de Edmilson em juízo. “Os advogados dela ficaram até pasmos e foram para cima do juiz. Como eu sabia o nome completo dela, que eu citei lá?”, disse. 

Na época, ele não sabia nada sobre leis ou direitos, o que piorou a situação. “Não era do meu conhecimento que, se você presta um depoimento para um delegado, em juízo você pode mudá-lo. Porque eu ia mudar. Eu achava que tudo o que se falasse para o delegado, tinha que falar em juízo”, completou.

Todos os elementos do culto, agora com Valentina, teriam sido ideia da Polícia Federal: as velas, as posições, os capuzes e os triângulos. A conversa com os agentes aconteceu na cobertura do hotel onde eles estavam hospedados, de acordo com Frazão.

“Eu tinha que concordar com os caras. ‘Então, vamos fazer assim, você vai prestar depoimento lá na delegacia da Polícia Civil’. Aí eu pensei: se eles foram para colher o meu testemunho, não colheram. Se eu fui para ser ouvido [pela PF], como é que vou dar depoimento para a Civil? Por que eles fizeram isso? Para tirar o deles da reta”, falou.

De acordo com Edmilson, nessa primeira reunião com os agentes, o chefe da missão, José Carlos, estava presente. Essa informação contradiz o que o policial falou no júri de Valentina, quando negou ter tido contato com Frazão e disse ter chegado à líder do LUS através de uma informante chamada Francis. 

OS JÚRIS

O episódio 23 contém matérias afirmando que Edmilson não havia sido localizado para participar dos julgamentos anteriores, mas apenas do de Valentina, ocasião em que estaria sob proteção da Polícia Federal. 

Na conversa com Ivan, a testemunha explicou que estava em Salinas, uma praia no estado do Pará, enquanto aguardava o júri da acusada. O marceneiro afirmou que de fato havia policiais federais presentes no local, comandados pela delegada Daniele Gossenheimer Rodrigues. Na época, a investigadora tinha sido designada para acompanhar os julgamentos em Belém, por isso não chegou a ir à Salinas. Meses depois, ela seria responsável por apurar o envolvimento de Francisco das Chagas nos crimes. 

Segundo Frazão, durante esse tempo, a antiga equipe da PF, liderada por José Carlos, se mostrou bastante preocupada em descobrir a localização dele. Os agentes queriam ir até o local para conversar com a testemunha, mas foram impedidos pelos policiais que respondiam à delegada Daniele. 

“Se eles não tivessem culpa no cartório, você acha que iriam para Salinas? Sair de Belém, encarar 200 quilômetros para chegar em Salinas, e conversar comigo o quê? Então, é porque eles têm rabo preso. Por essa razão, só depois de muitos anos eu estou revelando isso aí. Eu não podia voltar atrás”, comentou Edmilson.

Ao ser questionado sobre o motivo pelo qual não falou nos júris dos homens, Frazão disse que tinha medo do que poderia acontecer com ele. “Eu temia o pessoal do Amailton, a família do Amadeu. Eles, na época, estavam muito agitados. Como são pessoas de um alto poder aquisitivo, vendo aquela tragédia, aquela coisa toda ali… O pessoal da Valentina também, embora morasse distante, tinha contatos em Altamira. Enfim, isso aí é algo que eu temia”.

O que mudou, então, para o júri da líder do LUS teria sido um pedido de Rosa Maria Pessoa, mãe do menino Jaenes, morto em outubro de 1992. Ela entrou em contato com o ex-bate-pau e insistiu que ele prestasse depoimento, a fim de ajudar no caso. Foi aí que a testemunha revelou o seu paradeiro e a PF a conduziu até Salinas. 

Isso leva à outra dúvida: aconteceu alguma coisa nesse período para que Edmilson adicionasse novos detalhes ao depoimento no júri? Afinal, o relato que o marceneiro dá no julgamento tem elementos nunca antes citados no processo. Um deles é a presença de Césio no “culto macabro”. Anteriormente Frazão negou que o médico tivesse participado, mas agora dizia o contrário.

Depoimento de Edmilson no júri de Valentina

A resposta para essa pergunta está em um bilhete que o ex-bate-pau afirma ter recebido enquanto estava em Salinas. A mensagem, supostamente escrita pelos agentes antigos da PF, trazia o que ele deveria falar no júri, entre informações novas e repetidas. 

Ivan perguntou o que Edmilson se lembrava do tal recado, mas ele não conseguiu ser muito específico. “Alguns detalhes sobre posições, entendeu? Como estavam as velas, a forma que eles se vestiam, aquela coisa toda. Como começou, quantas pessoas tinham…”, respondeu.

Segundo Frazão, a chegada do bilhete foi possível porque os agentes da PF que o acompanhavam não teriam feito um bom trabalho de proteção. O marceneiro estranhava, por exemplo, o fato de ser levado para tomar banho na praia com a família, o que deixava todos muito expostos. Além disso, comentou que podia assistir à TV livremente, apesar da regra da não incomunicabilidade do júri, e que a maioria dos policiais nem ficava na mesma casa que ele. 

Ainda que essas ações pudessem ser suspeitas, não havia nenhum policial federal em Salinas que tivesse participado das investigações nos anos 90, de acordo com Edmilson. 

Diante das revelações, Ivan quis saber se o ex-bate-pau se arrependeu do que fez. “Além de não conhecermos os nossos direitos, as pessoas abusavam do poder que tinham. Então, o que acontece? Hoje eu me arrependo muito. Se eu pudesse chegar em cada pessoa, em cada família, e pedir perdão de joelhos, eu faria isso. Mas não canso de falar que não criei essa situação. Porque um cara com 20 anos de idade, sem conhecer chácara, sem conhecer médico, isso ou aquilo, jamais criaria uma situação dessas se não tivesse um mentor por trás disso”.

Para o marceneiro, colaborar com os policiais federais era questão de sobrevivência. Só assim, na visão dele, poderia evitar ser jogado na prisão, devido aos desacordos comerciais que tinha, ou até mesmo ser assassinado. 

Edmilson também achou importante destacar que o relato dele não foi o único a contribuir para condenar os acusados. “Teve outras pessoas que prestaram depoimento. Então, quando eles [PF] chegaram comigo, já sabiam sobre a Valentina, o doutor Anísio, o Césio, Carlos Alberto e Amailton.  E, assim como eles falaram comigo, falaram com os demais. Só que alguns fugiram da cidade, foram embora. Outros foram comprados, pagaram propina para não falar, ou até morreram ”, comentou.

EDMILSON FALA A VERDADE?

Nos meses que se seguiram a essa entrevista, Ivan manteve ocasionalmente contato com Frazão. De tudo o que o marceneiro falou, a maior parte parece fazer sentido. Ele afirma com todas as letras: “o verdadeiro assassino foi Francisco das Chagas, e eu fui pressionado pela Polícia Federal a contar uma história”.

Sobre o depoimento dele, parte da estratégia da defesa de Valentina era desmenti-lo, mostrando que a testemunha tinha vários problemas com a justiça, especialmente por estelionato.

E, ao que tudo indica, Edmilson não parou naquela época. Em dezembro de 2022, muitos ouvintes marcaram Ivan em uma nova reportagem sobre o ex-bate-pau. A matéria foi divulgada na página do Facebook da rede SBT Altamira, com o título: “Falso pastor é preso por aplicar golpes”. Assista no link abaixo:

Matéria SBT – “Falso pastor é preso por aplicar golpes em Altamira”

Em 2022, quando concedeu entrevista ao Projeto Humanos, Edmilson estava fora da cidade. Não é possível saber, no entanto, o seu exato paradeiro. Atualmente, até onde se sabe, ele permanece preso em Altamira.

Por causa disso, não dá para confirmar se tudo o que ele relatou durante a conversa de fato é verdade. Com certeza há coisas para se duvidar. Infelizmente, Ivan não conseguiu entrar em contato com nenhuma das pessoas citadas pela testemunha para confirmar partes da história narrada. 

Uma coisa, entretanto, é inegável: o que Edmilson contou corresponde com o depoimento que ele prestou em março de 1995, quando tentou desmentir as acusações. O testemunho de Wassef sobre essa época também bate com os detalhes fornecidos pelo marceneiro.

Além disso, a pressão da PF ainda explicaria o motivo pelo qual o ex-bate-pau incluiu Césio na história da chácara durante o júri de Valentina. Com o passar dos anos, ele já não se lembrava do que exatamente tinha dito nas declarações anteriores. Por isso, misturou informações antigas com outras inéditas.

Se Edmilson estiver falando a verdade, a questão que fica é: será que o lavrador Agostinho José da Costa passou pela mesma coisa? Teria ele sido pressionado a identificar Césio? Ou ele realmente teria confundido Chagas com o médico, segundo a teoria de que os dois seriam parecidos? Agostinho já é falecido, por isso não é possível responder a essas dúvidas. 

Aliás, sobre Césio, sempre foi difícil compreender a razão pela qual ele entrou na história. Diferente dos demais acusados, ele não possuía desafetos pela cidade, pelo menos não publicamente.

Anísio, por exemplo, tinha problemas com muitas pessoas e era visto como um médico estranho, além do preconceito que sofria pelo fato de ser espírita. 

Já o ex-PM Carlos Alberto pode ter de fato narrado muita coisa estranha para a conselheira tutelar Sueli de Oliveira Matos, no Amapá. Ele também havia trabalhado como segurança para Zaila Madeira Gomes, mãe de Amailton, por um breve período de tempo – uma família considerada poderosa, em um lugar onde os mais abastados mandam e desmandam. Além do status social, a homofobia colaborou para colocar o filho de Amadeu na mira das investigações.

Valentina, então, nem se fala. Suspeita nos casos de Guaratuba, de repente descobre-se que ela também esteve em Altamira anos antes dos crimes. Isso caiu como uma luva para policiais que queriam prender adoradores do demônio.

“PÉ NA COVA”

Mas e o Césio? Como ele entra nisso tudo? Será que a função que exercia como diretor do hospital passou a impressão de ele ser poderoso? Será que isso, somado à crença nos cortes cirúrgicos, fez o médico virar um alvo?

Não há uma resposta definitiva para essas questões. O mais perto que Ivan chegou de uma solução tem como fonte o jornalista Luiz Antônio da Cunha, mais conhecido em Altamira como “Pé na Cova”. Famoso por denunciar crimes ambientais e contra minorias na região, ele recebia muitas ameaças dos envolvidos, o que lhe rendeu o apelido inusitado. 

Na época do caso dos emasculados, ele atuou ao lado do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses, o que significa que era muito próximo das famílias das vítimas. Logo, Luiz Antônio acredita que os cinco acusados são culpados. De certa forma, as suas histórias são um bom retrato das narrativas que circulam na cidade até os dias de hoje.

Em entrevista ao Projeto Humanos, ele compartilhou a crença de que o caso dos meninos tinha relação com os delitos de grilagem e desmatamento que acometiam a região. 

“Quase todos os fazendeiros trabalham na ilegalidade, na exploração ilegal de madeira. Então, na época que esses crimes [dos emasculados] começaram a acontecer, eu fui colher informações. Havia empresários que tinham participação em irregularidades, e um deles era o tal do Amadeu Gomes. Eu comecei a investigar os casos, e encontrei um filho dele envolvido”, disse.

Ou seja, o próprio jornalista teria auxiliado as investigações e chegado à conclusão de que Amailton poderia ser um suspeito. Ivan não teve como confirmar se Luiz Antônio conversou com o delegado Brivaldo Pinto Soares Filho sobre essa desconfiança na época.

Depois de Jaenes da Silva Pessoa, morto em outubro de 1992, a próxima vítima foi Klebson Ferreira Caldas, atacado no mês seguinte. É aqui que surge uma possível resposta para a entrada de Césio na lista de acusados.

Segundo Luiz Antônio, na ocasião em que o corpo de Klebson foi levado ao hospital, o diretor, Césio, o teria impedido de fotografá-lo. O médico lhe disse que isso só poderia ser feito com a autorização de uma juíza, que chegaria no local às 16h. Quando ele voltou no horário combinado, porém, o cadáver já havia sido retirado para o sepultamento, sem passar por exame. 

Ao questionar um funcionário do hospital, Luiz ficou sabendo que Césio, na verdade, teria encontrado a magistrada às 14h. “E ele marcou comigo às 16h. Eu achei que ele não queria que eu tivesse contato [com o corpo]. Relatei isso à Polícia Federal, pois ela esteve lá e foi na casa dele. E parece que encontrou, no forro, bisturi e outros instrumentos cirúrgicos. Por que ele esconderia? Então, mais um suspeito”, relatou.

Aqui só para esclarecer: no auto de busca e apreensão na casa de Césio, não está especificado que os materiais encontrados estavam escondidos. 

Auto de busca e apreensão na casa de Césio

Também é importante dizer que tanto Jaenes quanto Klebson foram examinados e tiveram laudos necroscópicos produzidos. Apesar disso, as famílias sempre alegaram que os documentos estavam incompletos, e de fato poderiam ser melhores. Se Luiz Antônio confundiu as vítimas, não é possível saber.

De qualquer forma, foi a partir desse evento que o jornalista passou também a desconfiar da juíza Vera Araújo de Souza e do marido dela, o fazendeiro Vantuil. Este último, inclusive, já o havia ameaçado por causa de uma matéria que denunciava um suposto esquema de revenda de carros roubados, do qual o casal faria parte. 

Luiz Antônio disse que enviou todas essas informações à Polícia Federal. Se isso realmente aconteceu, teria sido, então, o episódio das fotos do corpo de Klebson que colocou Césio no radar do repórter e, consequentemente, da PF.

É uma possibilidade. Mas as investigações do jornalista não pararam por aí. Um dia, ele foi até a casa de Anísio, onde diz ter visto um exemplar do livro “Deus, a Grande Farsa” na estante. Isso mesmo, a obra produzida por Valentina de Andrade

“Aí eu fiquei curioso. ‘Depois eu te empresto para ler’ [teria dito Anísio]. Eu estive na casa dele e ele disse que era um jornalista espírita. Então, procurei me informar e tal, e eles eram ligados a essa seita do Lineamento Universal”, completou. O repórter teria folheado o livro, mas não chegou a levá-lo para casa. Depois, o exemplar desapareceu, segundo ele.

Não só isso: Luiz Antônio alega ter presenciado uma das reuniões do grupo, ocorrida na residência de um ex-vereador da cidade, no início dos anos 90. Esse homem mantinha um ferro-velho no bairro Brasília. Na ocasião, o jornalista teria ido deixá-lo em casa quando se deparou com a cena. Estariam lá empresários da cidade, fazendeiros e até o vice-prefeito, junto com Duílio Nolasco Pereira e a própria Valentina de Andrade.

“Eu a vi lá. Eu a vi, e depois a liguei com a matéria lá de Curitiba, que era o caso do prefeito, né?”, afirmou Luiz Antônio, se referindo ao caso Evandro, de Guaratuba. “Fui eu que liguei os fatos. Aí que eu fui saber que ela era namorada do Duílio Nolasco”, completou.

Esse reconhecimento, de acordo com ele, veio de matérias produzidas na época, sobre Valentina e o Lineamento. Reportagens como as das revistas Veja e Manchete, usadas mais tarde para Edmilson Frazão identificar a líder da “missa negra”. E, mais uma vez, tudo isso foi repassado pelo jornalista aos agentes da Polícia Federal. 

Matéria da revista Veja sobre Valentina

Matéria da revista Manchete sobre Valentina

Ivan Mizanzuk não duvida que Luiz Antônio de fato tivesse comunicação direta com a PF. Por estar envolvido com o Comitê, e diante do modo de investigação adotado por José Carlos de Souza Machado, isso não é nada improvável. Ele poderia sim ter falado sobre a retirada repentina do corpo de uma das vítimas do hospital, a passagem de Valentina por Altamira, o fato de Anísio ser espírita e as suspeitas sobre a poderosa família Gomes.

Se o jornalista compartilhou com os agentes que suspeitava de Césio, é possível que a PF tenha localizado Agostinho e o induzido a dizer que o viu saindo do mato com um facão. Afinal, eles procuravam alguém que supostamente teria feito cortes cirúrgicos, que só poderia ser um médico. Se isso de fato aconteceu, não se sabe. Talvez a resposta esteja no relatório produzido em 1993, que o Projeto Humanos não conseguiu obter.

De tudo, o que Ivan não acredita, no entanto, é a história do livro de Valentina na estante de Anísio. Caso isso fosse verdade, seria uma bomba para a acusação, pois comprovaria um vínculo entre essas pessoas. Mas nada foi encontrado. Na casa do médico, a polícia só apreendeu algumas obras que considerava suspeitas, como aquelas que falavam sobre espiritismo. 

Nunca foi confirmada nenhuma conexão entre a líder do LUS e nenhum dos outros acusados. Nada de cartas, telefonemas ou bilhetes. 

Se Ivan tivesse que apostar, diria que Luiz Antônio teria visto outro livro lá e, com o passar dos anos, passou a acreditar que era o escrito de Valentina. Mas, claro, isso é fácil de falar, mais de 30 anos depois, analisando tudo com cuidado e distanciamento – e sabendo da existência de Chagas. Quem viveu o pânico em Altamira entre 1989 e 1993 pode ter um pensamento bem diferente. 

Sobre isso, Paulo Tamer, chefe da Polícia Civil na época, tem as suas conclusões. “Mas foi o Chagas, sem sombra de dúvidas. Os antigos da polícia, que sabiam investigar, se atrapalharam. Aí para tentar resgatar tudo, a gente trabalhou com a Polícia Federal, que foi pior a emenda do que o soneto. Essa é a verdade”, concluiu.

O agente José Carlos de Souza Machado não quis conceder entrevista ao podcast, mas conversou com Ivan por telefone. Na ocasião, ele afirmou ter certeza de que os acusados no Pará são os verdadeiros culpados. Para o policial, Chagas nunca esteve em Altamira e não passa de uma invenção. Essa é a opinião de uma pessoa muito respeitada pelas famílias das vítimas.

Originalmente, esse seria o episódio final desta temporada. Mas, então, um dia, Ivan recebeu uma ligação importantíssima do advogado Rubens Pena Júnior. Ele havia descoberto algo que mudaria todo o planejamento.

Ao longo da pesquisa, a produção do podcast sempre acreditou que o Ministério Público do Pará havia arquivado todas as investigações contra Chagas em Altamira. Só que, naquela ligação, Rubens contou que havia uma exceção: o caso do sobrevivente Wandicley Oliveira Pinheiro resultou em uma denúncia contra o mecânico, e ainda estava em aberto. No próximo episódio, que revelará os detalhes sobre isso, a própria vítima será ouvida. 

*Este episódio usou reportagens da Rede Globo e do SBT.