Wiki de Altamira

Extras Episódio 28

IMPASSE JUDICIAL

A polícia do Maranhão prendeu Francisco das Chagas em dezembro de 2003, no mesmo período em que o júri de Valentina de Andrade se encerrou. Em março e abril do ano seguinte, o mecânico passou a confessar os casos de São Luís e de Altamira. Mais tarde, foi levado ao Pará para apontar os locais dos crimes.

No mês de setembro de 2004, Cláudio Dalledone Júnior virou advogado de Césio Flávio Caldas Brandão, e a entrevista de Chagas à revista Carta Capital foi publicada. No meio disso tudo, o Ministério Público do Pará se articulou para anular o julgamento de Valentina, enquanto ocorriam as investigações da quebra de incomunicabilidade. 

Matéria da Carta Capital – “Fala o serial killer”

É nesse contexto que aconteceu em Brasília, em novembro de 2004, a já citada audiência na Comissão de Direitos Humanos. Na ocasião, estavam presentes o delegado João Carlos Amorim Diniz, o perito Wilton Carlos Rego, duas promotoras do Maranhão, além dos advogados Dalledone e Jânio Siqueira. Eles eram acompanhados por familiares de Césio, Anísio e Amailton.

O objetivo da reunião era mostrar como a polícia chegou à conclusão de que Chagas seria o verdadeiro autor das mortes em ambos os estados.

Do outro lado, quem colocava dúvidas sobre a culpabilidade do mecânico eram os deputados do PT, que historicamente estiveram ao lado das famílias em Altamira. Em um trecho disponível na transcrição da audiência, José Geraldo Torres da Silva, o Zé Geraldo, fez a seguinte indagação:

A minha pergunta às Promotoras, ao Delegado, aos Deputados, à toda a inteligência desta reunião é a seguinte: se as pessoas que estão presas e a que foi inocentada não são culpadas, se é o mecânico, quem é o assessor do mecânico? Quem são os mandantes do mecânico? Ou será que o mecânico passaria 10, 15 anos matando crianças por iniciativa própria, por sua capacidade? As crianças mortas em Altamira, emasculadas, castradas, não o foram por meio de canivete, de facão e deixada para lá. Não foi um ato praticado por um mecânico qualquer que sabia só consertar motor de carro, mas por pessoas que faziam bem feito, tanto que algumas não morreram, senão teriam morrido todas.

[…]

Delegado, eu disse que suas informações foram muito superficiais, e agora eu as reforço com uma pergunta. A informação que tenho até agora é que o mecânico não encontrou ossada de nenhuma vítima que ele fez em Altamira. Encontrou ou não encontrou? Ou essa ossada, se foi encontrada alguma, ainda está sob análise? 

Em resposta, Diniz explicou que a polícia do Maranhão acompanhou o mecânico em Altamira, onde foram reproduzidos os processos de levantamento dos locais e de recognição visual gráfica. “Esse procedimento foi repetido no Pará. Ele levou [a equipe] a 14 lugares. Se neles foram realmente encontradas algumas das vítimas, só a Polícia Federal de lá pode dizer”.

Em outro momento, o deputado Luiz Couto, do PT da Paraíba, questionou o delegado sobre as linhas de investigação da polícia. Diniz, então, afirmou que inicialmente uma das hipóteses incluía a possibilidade de rituais satânicos. 

Antes de Chagas aparecer, uma equipe do Maranhão inclusive acompanhou alguns dos júris em Belém em busca de pistas: seriam os acusados no Pará também responsáveis pelos crimes no estado vizinho? Para responder a essa pergunta, os policiais tiveram acesso ao material coletado sobre os eventos em Altamira. Na época, a promotora Rosana Cordovil, bastante solícita, colaborou com a troca de informações.

Ao analisar os processos, porém, agora com a prisão do mecânico, a hipótese de seita caía por terra. “Principalmente com a questão das datas, nós provamos que, quando Chagas estava em São Luís, ocorreu crime em São Luís. Quando ele estava no Pará, ocorreu crime no Pará”, relatou Diniz.

Além disso, segundo ele, o estudo das lesões nas vítimas e da ocultação dos cadáveres comprovou similaridades entre as mortes nas duas cidades. “Os corpos eram encontrados no mato, cobertos por palha, e emasculados. Isso é semelhança. Isso é científico. São dados, são indícios”, completou.

Ainda de acordo com o investigador, a partir da descoberta das ossadas e roupas na casa de Chagas, o suspeito não viu outra saída a não ser confessar de forma espontânea. Com o tempo, ele também admitiu ter atacado garotos em Altamira.

“Ele é quem disse o local, os aspectos físicos das crianças, o que elas usavam, o que conversavam com ele, o que carregavam na mão; o local em que as encontrou e em que as deixou. Eu não falei nada para ele, nem o nome das vítimas, pois na lista só tinha as iniciais”, afirmou.

Outra revelação de Diniz sobre as confissões é o fato de que, já preso, o suspeito certa vez assistiu a uma matéria da TV Record sobre os emasculados no Maranhão e no Pará. A reportagem noticiava que pessoas tinham sido presas e condenadas pelas ocorrências em Altamira. Chagas, então, teria chamado os policiais e dito que os detidos de lá eram inocentes, pois ele tinha feito tudo aquilo sozinho. Exatamente a mesma coisa que falou para o jornalista Sérgio Lírio, da Carta Capital. 

Já em relação às investigações, o delegado apontou, durante a audiência, que houve confusão entre a Polícia Federal e a Civil no Pará para saber quem conduziria os trabalhos. No fim, ambas as corporações tiveram envolvimento no caso. 

Ata da audiência da Comissão de Direitos Humanos de 2004

Enquanto isso, no Maranhão, os processos avançaram. Nas fases de instrução judicial, Chagas confessou cada um dos assassinatos que cometeu, sempre acompanhado de um defensor público.

Chagas – Confissões em juízo (2004-2005)

Mas, no Pará, tudo parecia travar no Ministério Público. Após a conclusão das investigações da Polícia Civil e Federal, os promotores de Altamira deveriam receber os relatórios e oferecer denúncias contra o suspeito. Dessa forma, assim como no estado vizinho, teria início a etapa de juízo, com novos interrogatórios perante à justiça. 

Só que havia um problema: pessoas já estavam presas e condenadas pelos crimes, e isso gerava um impasse por parte do judiciário do Pará. Enquanto isso, os advogados de defesa usaram as confissões de Chagas para tentar conseguir habeas corpus para os acusados.

As respostas para esses esforços vieram em dezembro de 2004, um ano após a prisão do mecânico. Césio Flávio Caldas Brandão, Anísio Ferreira de Souza e Amailton Madeira Gomes foram soltos por decisão do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF). O ex-PM Carlos Alberto dos Santos Lima permaneceu detido.

2004-11-28 – Ordem de soltura Césio (HC – STF)

2004-12-13 – Ordem de soltura Amailton e Anísio (TJPA seguindo STF)

Em abril de 2005, porém, todos tiveram prisão decretada em suas apelações. Ainda assim, puderam responder o processo em liberdade até o esgotamento dos recursos. Isso aconteceu em maio de 2009, quando os médicos foram presos novamente.

Aqui é importante esclarecer que, diferente do que parte da imprensa divulgou, Anísio não estava foragido nessa época, morando no Maranhão, seu estado de origem. Juridicamente, ele tinha o direito de se manter em liberdade enquanto recorria do mandado de prisão.

Já Amailton nunca mais foi encontrado. Até hoje ele é considerado foragido pela justiça, com mandado de prisão em aberto válido até 2025.

Em 24 de outubro de 2010, Carlos Alberto faleceu em decorrência de um câncer. Quando a metástase já estava instalada, ele pôde passar os seus últimos dias em casa. 

NOVA AUDIÊNCIA

Mas e Francisco das Chagas? O que aconteceu com os inquéritos policiais que afirmavam que ele era o verdadeiro assassino de Altamira? Onde foram parar os ossos encontrados nos locais que o mecânico apontou lá? Eles foram analisados e identificados?

Essas eram perguntas que também passavam pela cabeça dos familiares dos acusados, especialmente de Amailton, Césio e Anísio. Por isso, após nova mobilização política da bancada evangélica, ocorreu em novembro de 2003 outra audiência na Comissão de Direitos Humanos em Brasília. Dessa vez, a sessão foi presidida pelo deputado Marco Feliciano, que atuava na época como presidente da Comissão.

Anos antes, entre 2008 e 2009, durante a CPI da Pedofilia, o senador Magno Malta havia afirmado que o caso dos emasculados de Altamira não passava de uma grande injustiça contra os acusados. Agora, em 2013, ele mesmo pediu a realização da nova audiência. 

Mas a composição da mesa havia mudado. Da reunião anterior, de 2004, apenas o delegado Diniz se fez presente. Além dele, participaram desse segundo encontro parentes dos acusados: Lucimar, a esposa de Anísio; e Selene e Cláudia, irmãs de Césio.

A escritora e criminóloga Ilana Casoy também foi à audiência em Brasília, para relatar como auxiliou as investigações contra Francisco das Chagas. Na ocasião, ela revelou que entrevistou o mecânico para a produção de uma monografia sobre o caso. 

Monografia de Ilana Casoy

“Eu mesma conversei com Chagas por mais de 60 horas para o meu trabalho de pesquisa. Ele me contou cada crime, não só no Maranhão, como também em Altamira. Vocês podem ver pelo meu tamanho que, nem que eu quisesse, poderia ter forçado o Chagas. Ele é um homem bem forte. Conversamos com muita tranquilidade”, disse Ilana na época.

De acordo com ela, o mecânico admitiu ter cometido 45 crimes nos dois estados, com três sobreviventes e 42 mortos. “Ele pode não lembrar o nome, mas lembra exatamente não só da história de cada criança, como a encontrou e o que falou para ela, como também tem uma memória impressionante da roupa que ela vestia e o que fazia quando a abordou. Os de Altamira são os primeiros crimes dele, que, tecnicamente, são a base de todo o processo criminoso, a base psicológica”, pontuou. 

A escritora também acompanhou a ida de Chagas à Altamira e o processo de reconstituição e análise geográfica. Para ela, a precisão com que ele apontou os locais era surpreendente. “Antes de entrar na mata, e eu tenho isso filmado, ele falou assim ‘aqui eu deixei o menino, na terceira mangueira do lado direito. Foi na terceira mangueira’. E, realmente, ele sabia exatamente até a vegetação que ali se encontrava”.

Mais adiante na reunião, a palavra foi dada à pastora Damares Alves. Ela comentou que conhecia a história de Altamira desde 1999, quando Césio teve uma carta lida na Comissão. Em 2004, a então assessora parlamentar também participou da audiência sobre os emasculados. Agora, nove anos depois, ela se queixava da falta de resultado de toda essa mobilização ao longo dos anos.

“As autoridades do Pará não vieram à audiência, à esta Comissão, como não vieram hoje de novo. Eu lamento. Eu vi o requerimento. Eles também foram convidados e não vieram. Entendo que é difícil admitir que erraram, e erraram feio”, reforçou.

A pastora também fez um discurso inesperado sobre a situação de Amailton. “Ele foi acusado porque acredito que tinha trejeitos. Ali havia uma questão de homofobia, e essa Comissão sabia disso. Esse menino sofreu grandemente na cadeia”. 

De acordo com ela, José Amadeu Gomes inclusive denunciou uma série de torturas pelas quais o filho foi submetido enquanto estava preso. 

Para relembrar, assim como Césio e Anísio, Amailton foi solto por habeas corpus concedido pelo STF no final de 2004. Em 2009, com o esgotamento dos recursos, todos tiveram que voltar à prisão. Diferente dos médicos, entretanto, o filho do fazendeiro permaneceu foragido. 

Em 2013, na audiência, Damares revelou outra informação sobre o que teria acontecido com ele. “Depois [das torturas], ele contraiu Aids e morreu, foragido. A família chora a morte desse menino. Um jovem que tinha um futuro brilhante morreu inocente, acusado, foragido, e os pais não se conformam”, completou.

Ata da audiência da Comissão de Direitos Humanos de 2013

O caso dos meninos emasculados tem pelo menos quatro fases bem distintas. A primeira é o período dos crimes, entre 1989 e 1993. A segunda envolve a suspeita de envolvimento de uma seita satânica e a mobilização política das famílias das vítimas. 

A terceira fase engloba o que acontece a partir dos júris de 2003, quando Valentina de Andrade ganha um protagonismo que não possuía até então. Já a quarta etapa inclui as consequências da prisão de Chagas no Maranhão. Todos esses períodos são bastante politizados, graças à movimentação das pessoas que clamavam por justiça – um desejo totalmente compreensível. 

No entanto, nesta última fase, o caso ganhou um caráter de politização antagônica. Do lado das famílias dos meninos estavam os setores progressistas da sociedade, historicamente ligados à esquerda, que acreditavam que Chagas seria uma invenção dos poderosos membros da seita. Do outro lado, as esferas mais conservadoras, conhecidas como de direita, defendiam a inocência dos acusados, considerados vítimas de homofobia e perseguição religiosa.

Em outras palavras, é uma situação que dá um nó em qualquer noção mais dura que se tenha sobre direita e esquerda no Brasil. E o cenário fica mais confuso quando analisamos o material disponibilizado em uma reportagem especial sobre Altamira e Maranhão produzida pela TV Record. Com duas horas de duração, ela foi ao ar em 2020 no programa Repórter Record Investigação.

Nela, os jornalistas entrevistam o ex-delegado Éder Mauro, que não quis conversar com Ivan Mizanzuk para a produção do podcast. No canal do YouTube do programa, há trechos extras que não foram ao ar na matéria da TV. Em um deles, o então investigador acusa Frederick Wassef, advogado de Valentina nos anos 90, de tentar suborná-lo. 

Na época em que Ivan falou com Wassef para esta temporada do Projeto Humanos, ele não tinha conhecimento do suposto suborno denunciado por Éder Mauro. Mesmo assim, conseguiu questioná-lo de forma mais geral sobre o então delegado, que também é próximo do ex-presidente Jair Bolsonaro. 

Oficialmente, Mauro e Wassef possuem visões contraditórias sobre a autoria dos crimes. Enquanto o primeiro trabalhou para prender os “membros da seita”, o segundo acredita que Chagas foi o único responsável pelos ataques aos meninos.

Ao podcast, o ex-advogado de Valentina se disse surpreso com a postura do colega. Isso porque, na época, quando conversava com Éder Mauro, a opinião dele parecia ser outra. 

“Por várias vezes ele me externou que tinha convicção de que não existia seita satânica nenhuma. Várias vezes ele me disse que quem articulava tudo era a Polícia Federal. É claro que, se você for falar com ele hoje, provavelmente ele vai negar, mas eu me recordo perfeitamente. Não tenho nada contra ele, eu o respeito, é um policial e fez o trabalho dele”, comentou.

Wassef ainda acrescentou que, hoje em dia, não tem contato com o ex-delegado.

Voltando à audiência de 2013, a criminóloga Ilana Casoy e o delegado Diniz aproveitaram a ocasião para apresentar uma hipótese acerca do lavrador Agostinho José da Costa, testemunha que teria visto Césio sair da mata com um facão sujo de sangue.

Eles apresentaram fotografias do médico e do mecânico, e apontaram semelhanças físicas entre os dois. A reportagem especial da TV Record também aborda a teoria de que Agostinho, na verdade, avistou Chagas naquele dia, e não Césio.

Repórter Record Investigação – Parte 1

Repórter Record Investigação – Parte 2

Nessa época, o médico já estava com outro recurso, tentando uma revisão criminal. O advogado que lhe auxiliava era Roberto Lauria. Diante das novas provas, ele solicitava que Césio fosse absolvido ou, em última hipótese, passasse por um novo júri, que apresentasse a história de Chagas aos jurados. Em março de 2014, porém, o Tribunal de Justiça do Pará negou o pedido. 

Dois meses depois, os repórteres Evandro Siqueira e Maurício Ferraz produziram para o Fantástico uma longa matéria sobre a situação dos condenados. 

A reportagem expõe as provas da polícia que indicam a autoria de Chagas. Césio e Anísio, ainda na prisão, concederam entrevista aos jornalistas. Ambos reiteraram não serem responsáveis pelos crimes e se disseram vítimas de uma grande injustiça. 

Além disso, a matéria exibe um vídeo do próprio mecânico assumindo a culpa. “Falei para livrar a barra de quem está lá pagando por uma coisa que não cometeu, que é muito triste”, disse.

Como contraponto, Rosana Cordovil afirmou aos repórteres não ter dúvida de que os médicos tiveram envolvimento nos casos. “Tenho certeza absoluta porque estudei esse processo profundamente. Analisei todas as provas existentes contra Anísio e Césio, e são provas robustas, mais do que suficientes para a condenação dos dois”.

A mesma opinião é compartilhada por Rosa Maria Pessoa, mãe de uma das vítimas, também ouvida na ocasião. “Isso não entra na minha cabeça, que o Chagas tenha feito sozinho. Ele sozinho não”, comentou.

A reportagem ainda apresenta uma declaração oficial da PF sobre o caso. Isso é importante porque foi a própria corporação que, na década de 90, apontou a autoria dos supostos membros da seita. Na nova fase de investigação, nos anos 2000, a equipe policial era outra, e o suspeito também. Com base nisso, a nota enviada para o Fantástico em 2014 foi a seguinte:

A Polícia Federal afirma que foram usadas modernas técnicas de investigação e algumas delas empregadas em investigações de assassinos em série nos Estados Unidos, e que reitera suas conclusões sobre o caso. 

Ou seja, agora a PF assegurava: o mecânico era o verdadeiro assassino. E, diferente das antigas operações, que não estão registradas nos autos, nos trabalhos recentes tudo foi devidamente documentado.

Mas, afinal, qual o resultado dessa nova atuação dos agentes federais?

Segundo a matéria, Chagas teria sido indiciado por 12 mortes no Pará. Essa informação, no entanto, não procede: na verdade, ele confessou 14 casos no estado, sendo 11 mortos e três sobreviventes. 

Reportagem do Fantástico sobre os condenados em Altamira

OSSADAS EM ALTAMIRA

De acordo com notícias divulgadas anos antes, quando Chagas esteve em Altamira, ossadas teriam sido descobertas em dois lugares que ele apontou para a polícia. O que aconteceu com elas?

Todos os inquéritos que consideravam Chagas como o assassino no Pará foram arquivados. O Ministério Público de lá nunca ofereceu denúncia contra ele, e os casos acabaram prescrevendo.

Durante a pesquisa para esta temporada, Ivan Mizanzuk conseguiu obter a maior parte dos inquéritos em que o mecânico foi investigado em Altamira. Alguns são da Polícia Civil e outros da Federal. O curioso é que nenhum deles cita os tais ossos. 

Já nos autos do processo original dos emasculados, especialmente nos pedidos de revisão criminal de Césio, há a menção de que as ossadas teriam sido analisadas. O resultado divulgado pela imprensa, segundo esses documentos, era de que o material coletado pertencia na verdade a animais.

A produção do Projeto Humanos não conseguiu encontrar reportagens ou laudos sobre isso. Oficialmente, nos autos, não existem registros desses ossos, nem nada que indique a realização de uma perícia. 

O caminho foi, então, questionar algumas pessoas sobre o assunto. Uma das respostas veio do ex-advogado de Valentina, Frederick Wassef. Ele acredita que houve um acerto entre as autoridades, para que a verdade não fosse desmascarada. 

“É óbvio que devem ter ocorrido novas fraudes, e trocaram os restos mortais humanos por ossos de animais, para dizer que esse cidadão [Chagas] mentiu, para manter a farsa. Amigo, o Pará e inúmeras autoridades foram longe demais por muitos anos. Então, quando a coisa chega em um nível desse, a verdade a ninguém interessa”, afirmou.

É preciso esclarecer que não há qualquer indicação de que isso realmente tenha acontecido. Como dito aqui, a equipe da Polícia Federal dos anos 2000 era nova, e tinha justamente apontado Chagas como o verdadeiro assassino. Seria possível, então, que alguém de dentro da corporação atrapalhasse as investigações? 

Foi então que Ivan, ao olhar de perto os inquéritos da PF, encontrou um nome: Iracema Soares de Jesus, agente que fazia parte da equipe da delegada Daniele Gossenheimer Rodrigues em 2004. A mesma policial que trabalhou com José Carlos de Souza Machado anos antes, na década de 1990. Assim como ele, Iracema tinha bastante proximidade com as famílias das vítimas. 

A produção do podcast entrou em contato com a doutora Daniele, e também com a profissional que a sucedeu, Virgínia Vieira Rodrigues, mas nenhuma pôde conceder entrevista. Assim como o delegado Neyvaldo Costa, da Polícia Civil, ambas acreditavam que Chagas era o autor dos crimes. 

Ivan conversou algumas vezes com Neyvaldo e o convidou para participar do podcast, mas não conseguiu acertar o encontro por questão de agenda. Em outubro de 2022, ele faleceu aos 60 anos de idade, em decorrência de um câncer que enfrentava há muitos anos.

A agente Iracema, hoje aposentada, também se recusou a dar entrevista, assim como todo e qualquer policial federal que atuou nas investigações da década de 1990. 

Mas, então, um agente da PF aceitou conversar com Ivan: Benilton Ferreira da Silva, que foi designado em 2003 para auxiliar no caso dos meninos emasculados do Maranhão. Para entender como ele entra na história, é preciso voltar para 2001, quando foi realizado o pleito para denunciar o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, diante das inúmeras mortes de crianças no estado. 

A partir daí, esses crimes passaram a ganhar maior atenção a nível federal, o que resultou na criação de uma força-tarefa para investigá-los. A equipe, criada em abril de 2003 e liderada pelo delegado Diniz, contava com promotores, investigadores, policiais militares e o agente federal Benilton.

Entre agosto e novembro do mesmo ano, Diniz e Benilton acompanharam os júris em Belém – e, pelo menos um deles, presencialmente. Eles tiveram todo o apoio e colaboração da Polícia Federal do Pará e da promotora Rosana Cordovil. Afinal, até aquele momento, o pessoal do Maranhão não descartava a possibilidade da suposta seita ser responsável pelas mortes nos dois estados.

Só que a força-tarefa não encontrou nenhuma relação entre os acusados de Altamira e os eventos em São Luís e região. No máximo, havia o fato de Anísio ser maranhense, mas nada além disso indicou qualquer envolvimento do médico nos crimes de lá.

De acordo com Benilton, assim que a equipe passou a acreditar na autoria de Chagas, o tratamento cordial das autoridades paraenses mudou. “Aí, meu amigo, quando a gente parou para fazer as nossas reuniões, vimos que estava tudo errado. Tudo errado. Não tinha nada a ver. Eu fiquei logo persona non grata dos colegas da Polícia Federal de lá, porque fui questioná-los. Foi uma confusão. Lá no Maranhão, o Diniz também se tornou persona non grata dos delegados antigos”, disse ele em entrevista ao Projeto Humanos.

Quando Ivan esteve em Altamira em novembro de 2021, muitos envolvidos se recusaram a dar entrevista. Lá, ele notou a quantidade de pessoas que citavam os policiais federais da década de 1990 como os responsáveis por solucionar os casos, e como até hoje esses agentes são próximos dos familiares dos garotos.

Durante a conversa para o podcast, Benilton lembrou de um momento específico que exemplifica essa situação. Durante as investigações sobre Chagas em Altamira, em 2004, os policiais montaram um escritório onde concentravam todas as atividades. Certa vez, o agente descobriu que uma familiar de Judirley da Cunha Chipaia, menino morto em janeiro de 1992, trabalhava lá como auxiliar de serviços gerais.

Benilton ficou preocupado com a proximidade que uma pessoa ligada à vítima tinha com o trabalho da polícia. Isso, de acordo com o agente, é incomum e inclusive prejudicial às investigações, que podem ser facilmente contaminadas.

Ele resolveu externar tudo isso para a delegada Virgínia, que lhe contou que a ideia de colocar essa pessoa no escritório foi de Iracema, que era amicíssima dos Chipaia. “Ela ia nos cultos de orações deles, chorava junto com a família, essa coisa toda. Aí quando eu mandei tirar a menina de lá, a animosidade aumentou contra mim. A Iracema era bem intencionada. Mas eles erraram e não quiseram voltar atrás”, comentou.

Segundo Benilton, assim como a promotora Rosana Cordovil, Iracema também acreditava na hipótese de que Chagas fazia parte da “seita” de Valentina. Por isso, ele travou diversas discussões com ela e outras pessoas que colocavam a culpa nos “poderosos”.

O agente afirmou que chegou a pressionar funcionários do Ministério Público do Maranhão a realizar uma reunião com o órgão do Pará, mas isso nunca aconteceu. A sensação era de que ninguém queria comprar aquela briga, para evitar gerar um conflito com as autoridades do estado vizinho. 

Já sobre as supostas ossadas descobertas em Altamira, Benilton relatou não ter conhecimento do que ocorreu exatamente, apenas reforçou que os inquéritos não mencionam esse assunto. O policial admitiu, porém, que não descarta a possibilidade de algum tipo de fraude nas análises dos materiais.

“Eu não sei, mas pode ser que não deram atenção [aos ossos] e jogaram fora. Ou pressionaram as delegadas [Virgínia e Daniele] para que não usassem aquilo, que não tinha sentido, que era forçação de barra. Eu acredito. Pela índole do pessoal de lá e pelo estado de espírito deles, pode ser isso aí tranquilamente”, opinou.

Mas, então, o que aconteceu com os materiais coletados? Infelizmente, essa pergunta permanece sem resposta. 

A BICICLETA VERMELHA

Ao buscar por um elemento comum nos relatos do Segundo Sobrevivente e de Wandicley Oliveira Pinheiro, o terceiro atacado, um detalhe ganha destaque: ambos diziam que o agressor tinha uma bicicleta vermelha.

Em 2004, a Polícia Federal finalmente abriu um inquérito para investigar o caso de José Sidney, a primeira vítima em Altamira. Ao ser ouvido pelos policiais, ele também relatou que o homem que o sequestrou usava tal bicicleta. 

Em quase todos os inquéritos abertos no Pará contra Chagas, há o depoimento de Nelson Monteiro de Souza, amigo do mecânico. Os dois chegaram até a morar juntos em Altamira. 

Em seu testemunho, Nelson revelou:

QUE CHAGAS gostava muito de bicicletas, sendo muito cuidadoso com as mesmas, sendo um xodó para ele; QUE CHAGAS gostava muito de bicicletas vermelhas. 

Depoimento de Nelson Monteiro de Souza

Outro relato semelhante presente nos autos é o de Maria Carolina Farias, mãe de Maurício, menino que desapareceu em dezembro de 1992. Em entrevista ao podcast, ela repetiu o que descreveu à polícia no período das investigações. 

Logo após o registro do Boletim de Ocorrência, que ajudou a espalhar a notícia do sumiço pela cidade, Maria Carolina recebeu a visita de uma jovem. Ela dizia ter visto Maurício no dia que ele sumiu, entre as 9h30 e 10h, perto da chamada Estrada do Quatro. E o garoto não estava sozinho. Um rapaz o acompanhava.

“O homem estava vestido com uma bermuda jeans e uma camisa branca, empurrando uma bicicleta vermelha. Ele ia de um lado da rua e o Maurício do outro, mas eles subiam na mesma direção”, descreveu a mãe do menino.

De acordo com ela, a moça descreveu o indivíduo como “moreno, com 1,60 m a 1,65 m de altura”.

No inquérito do desaparecimento de Maurício, comandado pelo delegado Neyvaldo Costa, há uma confissão específica de Chagas sobre o caso. Para relembrar, o garoto havia saído cedo de casa para pegar um dinheiro e comprar açúcar, pois queria que a mãe lhe fizesse canjica, um doce feito com milho. 

Durante o interrogatório a Neyvaldo, o mecânico contou que estava em frente a uma revendedora de carros quando encontrou um ambulante vendendo ‘geladinho’ – ou sacolé. Ele, então, comprou o produto e permaneceu por ali. Neste momento, surgiu na rua um menino de 11 ou 12 anos, moreno, magro, de cabelo preto e liso, que o ficou observando. Chagas ofereceu um geladinho para ele, que aceitou o agrado.

Em seguida, ele comentou com o ambulante que estava com vontade de apanhar milho e, naquele momento, o garoto se prontificou a acompanhá-lo na empreitada. Eles seguiram juntos rumo a uma propriedade na Estrada do Quatro, com o menor sentado no varão da bicicleta do mecânico. 

Quando chegaram em frente a um posto de combustíveis, ambos continuaram o caminho a pé. A partir da descida da ladeira, eles montaram novamente na bicicleta e dobraram à direita na Rodovia Transamazônica, avançando até parar em uma barreira. Nesse ponto, por volta das 12h30, o mecânico pediu para que ambos esperassem por um conhecido dele, que estava na região e poderia encontrá-los ali.

Depois disso, Chagas afirmou não se lembrar de mais nada. Quando deu por si, já estava pedalando a bicicleta, no trajeto de volta. Neste dia, ele usava uma bermuda jeans e uma camisa branca. 

Ao delegado, alegou que em nenhum momento teve a intenção de matar a criança, pois só queria apanhar milho. Mais tarde, ele viu na televisão uma notícia sobre o desaparecimento do garoto, mas não deu muita atenção, já que não se recordava de ter feito algo ruim com ele.

Depoimento de Chagas – caso Maurício

DISCREPÂNCIAS

O detalhe da bicicleta vermelha pode ser considerado um forte indício contra Chagas. No entanto, outros fatores dificultam a identificação do suspeito como o autor dos crimes. 

Um deles, por exemplo, é o fato de que, em 2004, durante a investigação do inquérito de José Sidney, os policiais mostraram uma foto do mecânico para a vítima, mas ela não o reconheceu. Porém, é preciso levar em consideração que, a essa altura, muito tempo já havia se passado desde o ataque, que aconteceu em 1989.

De qualquer forma, oficialmente, Chagas nunca foi reconhecido pelos sobreviventes em Altamira. Além disso, há outra questão ainda mais complicada: a polícia não encontrou nenhum corpo nos locais apontados pelo suspeito. 

Para relembrar, o mecânico confessou 14 casos no Pará, sendo três sobreviventes e 11 mortes. Entre os assassinatos, cinco vítimas permaneciam desaparecidas. Se os restos mortais de qualquer uma delas tivessem sido descobertos, provavelmente a história seria outra. No entanto, apenas duas ossadas teriam sido achadas pelos peritos, e há a chance de nenhuma delas ser humana.

Ivan Mizanzuk considera muito difícil que um cadáver pudesse ser encontrado tanto tempo depois naquela região. Altamira é rodeada de vegetação e, nesses mais de 10 anos entre os crimes e a análise dos locais com Chagas, animais poderiam ter mexido nos corpos. Mesmo que esse não fosse o caso, as próprias condições do ambiente seriam capazes de fazer os restos mortais desaparecerem. 

Além de tudo isso, por conta de dificuldades específicas, os peritos não conseguiram escavar alguns dos lugares apontados pelo suspeito. É o caso da vítima José Chagas da Silva, também conhecida como “Pinduquinha”, cujo corpo jamais foi encontrado. Essa é, inclusive, uma das ocorrências mais frágeis de todo o processo.

O pai de Pinduquinha se chamava Francisco das Chagas da Silva, em uma infeliz coincidência com o nome do possível assassino do seu filho. Aqui vale a ressalva: o sobrenome “das Chagas” aparece com frequência nos autos, e parece ser relativamente comum na região. Ao que tudo indica, a irmã de Flávio Lopes da Silva, morto em 1993, teria também tido um companheiro homônimo do mecânico.

O pai de José Chagas foi ouvido pela polícia em 9 de maio de 2004. Na ocasião, ele afirmou que o filho havia sumido entre abril e maio de 1992, ano de eleição. No dia do desaparecimento, Francisco acompanhou José até a chamada ladeira da Saravá, de onde o garoto seguiu sozinho rumo à caixa d’água, perto do mirante, para vender frutas. Essa foi a última vez que viu a criança.

Não é possível saber o que aconteceu com José depois disso. Mesmo o local apontado pelo pai pode ser impreciso, já que ele só prestou depoimento mais de uma década depois do sumiço. Se à época ele chegou a ser ouvido pela polícia, esse testemunho não está no processo.

Sobre o caso de José, o mecânico Francisco das Chagas disse ter encontrado o menino “perto do cruzamento das estradas que vão para Cachoeirinha e Cupiúba”.

Em 8 de julho de 2004, os investigadores iniciaram as buscas pelos restos mortais de José Chagas nos locais indicados. Contudo, segundo o laudo assinado pelo perito federal Gustavo Ota Ueno, as escavações não puderam ser realizadas:

O Perito estimou, de acordo com os meios disponíveis para realização do exame, a área a ser varrida. Porém o signatário considerou o exame prejudicado, pois o local provavelmente situava-se sobre um imenso formigueiro ativo de formigas tracoá, impedindo a equipe de trabalhar por mais de uma hora.

CONCLUSÃO:

O exame da área apontada pessoalmente por Francisco como sendo aquela onde deixou o corpo de José Carlos foi considerado prejudicado e, portanto, não foi possível encontrar qualquer vestígio material que corroborasse a confissão de Francisco. 

Laudo de local – caso José Chagas

Ou seja, a área não foi vastamente analisada pela polícia, o que significa que não é possível afirmar se havia ou não um corpo lá.

Além das crianças desaparecidas, Chagas também indicou locais onde teria deixado as vítimas cujos corpos foram localizados. Um deles era de Klebson Ferreira Caldas, morto em novembro de 1992 e encontrado às margens da Transamazônica. O problema é que, ao ser questionado sobre o lugar referente a esse caso, o mecânico apontou para o lado errado da estrada. 

Esse tipo de equívoco é constante em todo o trabalho de reconhecimento de local feito por Chagas em Altamira. Enquanto no Maranhão os apontamentos foram de uma precisão realmente impressionante, no Pará a história era outra. Lá, essas discrepâncias ajudaram a reforçar a crença de que o mecânico foi instruído a assumir os crimes.

Os agentes envolvidos na investigação justificaram as incongruências destacando as alterações em Altamira desde que Chagas saiu de lá. A cidade cresceu, recebeu construções, e a vegetação local mudou. Afinal, o suspeito voltou para o município uma década depois dos crimes.

No próprio inquérito de Klebson conduzido pela PF, a conclusão do perito Gustavo era a seguinte:

Considerando o tempo decorrido do desaparecimento de Klebson (mais de 11 anos e meio), o aspecto do local na época do desaparecimento e na atualidade, a ação da natureza (crescimento da vegetação), o erro embutido nas leituras de GPS e o possível erro e esquecimento de Francisco ao apontar o local, pode-se afirmar que o local apontado pessoalmente por Francisco é relativamente próximo ao local onde o corpo foi encontrado, segundo a Polícia Civil. Porém, há uma discrepância nos terrenos apontados já que aquele apontado por Francisco e pelo parente da vítima está no lado oposto da Rodovia Transamazônica em relação ao informado pela Polícia Civil. 

Laudo de local – caso Klebson Caldas

Justamente por conta desses erros, é complicado afirmar que Chagas tinha uma memória ótima e precisa. Se ele de fato matou mais de 40 crianças em 15 anos, seria natural que misturasse vítimas, datas e locais. Há indícios disso, por exemplo, na análise do local onde ele disse ter deixado Tito Mendes Vieira, que desapareceu em 1991 e nunca foi encontrado.

O lugar apontado por Chagas é, na verdade, onde o corpo de Klebson foi descoberto. Então, é possível que ele tenha confundido os dois. Não há como saber.

Laudo de local – Tito Vieira

Por fim, há ainda as questões referentes ao próprio suspeito. Depois de passar o ano de 2004 sendo interrogado, confessando e indicando locais, ele decidiu parar de colaborar com as investigações. Passou a dizer que havia sido torturado e coagido, e que não tinha nada a ver com os casos. Atualmente, Francisco das Chagas está preso em Pedrinhas, em São Luís do Maranhão, e não admite mais os crimes.

Segundo a escritora e criminóloga Ilana Casoy, a mudança de postura do mecânico teria ocorrido pouco antes do primeiro júri no Maranhão, do caso Jonnathan Silva Vieira. Na ocasião, a irmã do acusado, que seria uma das testemunhas, pediu para falar com ele. Nessa época, ela ainda morava em Altamira.

“Quando ela vê o Chagas, conta para ele todo o massacre que vem sofrendo, de quase linchamento e de agressões, e que teve que mudar de casa. Inclusive, o depoimento dela foi com o rosto escondido por uma balaclava, para não ser reconhecida. E ela pede para ele não falar. ‘A nossa família está em Altamira, não fale de Altamira’”, relatou Ilana em entrevista ao podcast. É a partir desse momento, já no próprio júri, que Chagas passa a negar os eventos no Pará. 

Ivan Mizanzuk e a roteirista Tainá Muhringer gravaram uma longa entrevista com a escritora, que será publicada como episódio bônus ao final desta temporada.

Para Ivan, o relato de Ilana encontra respaldo nas horas e horas de confissões gravadas por Chagas. O Projeto Humanos teve acesso aos vídeos produzidos pela Polícia Civil anexados nos autos do Maranhão. Há gravações desde a época em que o suspeito negava tudo até o momento em que é confrontado pelas provas encontradas na casa dele – quando, enfim, começa a admitir os crimes. 

A Polícia Federal também gravou as confissões do mecânico, mas a produção do podcast não teve acesso a elas. Fora isso, há ainda as fitas com a entrevista do acusado ao jornalista Sérgio Lírio, e também à própria Ilana, que conversou com Chagas por cerca de 60 horas. 

Durante dois anos, ele confessou tudo para delegados, promotores, juízes, psicólogos e jornalistas. Repetiu a mesma história por horas e horas, inúmeras vezes. Então, chegou um momento em que ele simplesmente cansou de falar. Isso fica evidente, por exemplo, no júri em que o mecânico é julgado pela morte de Antônio Reis Silva, conhecido como “Carrapato”, uma das vítimas do Maranhão. 

No julgamento, que ocorreu em 2009, Chagas se mostrou bastante impaciente e chegou a se desentender com o juiz. Tudo isso foi gravado e incluído nos autos do processo.

Ao ser interrogado, ele se negou a responder às perguntas do magistrado. “Eu sou revoltado com a justiça. Sabe por quê? Porque o que a justiça do Maranhão está fazendo comigo é coisa de máfia, de corrupção”, diz Chagas.

“O senhor prefere ficar calado?”, questionou o juiz em seguida. “Não vou falar mais nada não”, respondeu o réu.

No decorrer do interrogatório, Chagas negou tudo. Disse que foi pressionado, torturado, que não teve nada a ver com os crimes. O promotor o confrontou com o laudo de exame psicológico, que descreve os casos a partir das confissões do próprio acusado. “Quero dizer que é a minha palavra contra as deles [psicólogos]. Que eu não falei isso para eles. Eu não falei”, retrucou o mecânico.

Durante o júri, o réu também falou especificamente sobre Altamira. Em sua defesa, afirmou que nenhum sobrevivente jamais o reconheceu e que outras cinco pessoas foram presas e condenadas pelos casos de lá.

A estratégia era alegar que ele teria sofrido pressões de policiais, promotores e até de políticos do Maranhão para assumir as ocorrências. Apesar da tentativa, a tática não funcionou e Chagas acabou condenado. Eram muitas as provas contra ele.

Nos longos vídeos de confissão para a Polícia Civil, o mecânico está calmo e fala livremente, dando detalhes dos assassinatos que cometeu. Ao compararmos essa postura com o que ouvimos nas fitas do caso Evandro, em que houve de fato tortura, é notável a diferença no tom. E lá, mesmo os acusados que não tinham advogado denunciaram em poucos dias as agressões que sofreram. 

Já Chagas passou quase dois anos sendo interrogado e avaliado por profissionais de saúde, dando entrevistas e confessando, mesmo na presença de advogados. Portanto, é difícil acreditar na possibilidade de ele ter recebido orientações sobre o que dizer nos depoimentos.

No Maranhão, no total, o mecânico foi condenado por 20 dos 30 crimes que confessou. Os outros 10 ainda não passaram por julgamento – e talvez isso nem aconteça, pois há corpos que nunca foram encontrados. Um deles é o de Jondelvanes Macedo Escórcio, que sumiu em setembro de 1991 e teria sido a primeira vítima no estado.

Com base nas confissões, análise de depoimentos e estudos geográficos, a Polícia Civil concluiu que Chagas foi o responsável pelo desaparecimento e morte do garoto. Porém, como os restos mortais jamais foram localizados, não há materialidade do crime comprovada. Por isso, o suspeito não foi a júri por esse caso específico.

Somando todas as sentenças, o mecânico teve quase 600 anos de prisão decretada. Ele foi preso em dezembro de 2003 e, nessa época, a pena máxima no Brasil era de 30 anos. Em 2019, esse prazo mudou para 40 anos, mas isso não se aplica ao caso de Chagas, uma vez que a nova lei não é retroativa. Logo, em princípio, ele seria solto em dezembro de 2033.

Na consulta do atestado de pena, entretanto, o término da sentença está previsto para 28 de março de 2041. A produção do podcast não conseguiu verificar o motivo pelo qual esta data aparece e, ao que tudo indica, não seria algo simples de se compreender. Casos como o de Chagas, com tantos crimes e condenações, passando por julgamentos que não seguem a linha cronológica dos eventos, são raríssimos. Isso deve complicar até mesmo o cumprimento da pena.

O mecânico tentou passar por um exame de insanidade mental, mas os examinadores concluíram que ele seria sim capaz de entender a gravidade dos seus atos. Por isso, a alegação não avançou.

Mas no júri de 2009 citado aqui, Chagas tinha um ponto válido: ele realmente nunca foi acusado no Pará. O Ministério Público poderia ter denunciado o suspeito nos casos que ele confessou, e realizado novas diligências para averiguar as informações. No entanto, isso não aconteceu. Os inquéritos foram arquivados e o mecânico jamais foi responsabilizado por nada em Altamira.

CONSEQUÊNCIAS

Em 2015, a ação do advogado Roberto Lauria por uma revisão criminal para Césio Flávio Caldas Brandão foi negada nas instâncias superiores. Assim, o médico permaneceu preso no Pará até 2018, quando conseguiu transferência para o Espírito Santo, a fim de ficar mais perto da família. Durante a pandemia, esteve no regime semi-aberto em uma colônia agrícola.

Em 4 de abril de 2022, Césio recebeu alvará de soltura para cumprir a pena em regime aberto, junto de seus familiares. O médico vive hoje com a esposa e se dedica aos cuidados dos dois netos. Ele não quis gravar entrevista para o podcast, alegando que lutou muito para reconstruir a vida. 

Anísio Ferreira de Souza sofreu três AVCs enquanto estava preso. Com a saúde muito debilitada, diabetes e pressão alta, os problemas pioraram. Em maio de 2020, no auge da pandemia, ele foi internado em estado grave no Hospital da Ordem Terceira, em Belém. 

A família informou que, mesmo com necrose das feridas causadas pela tornozeleira, a justiça não permitiu a retirada do equipamento. O pedido só foi concedido após solicitação por escrito do médico responsável à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP). 

Anísio faleceu em casa no ano de 2020. Ivan Mizanzuk entrou em contato com parentes do médico, mas eles também preferiram não falar no momento.

Esse é o mesmo caso dos familiares de Amailton Madeira Gomes. Em Altamira, muitos acreditam que ele ainda está vivo, morando ali mesmo ou até fora do país, escondido. Mas a família garante que ele morreu e foi enterrado com outro nome. 

De todos os parentes e amigos, Ivan conseguiu falar apenas com Zaila, mãe de Amailton. Durante uma longa conversa, ela disse que o filho era inocente, um bom rapaz, que sofreu pela má fama da família Gomes na cidade. 

A dissertação de mestrado do advogado e pesquisador Rubens Pena Júnior, que auxiliou a produção desta temporada, será dedicada aos familiares dos acusados. Para quem tiver interesse, ela será uma boa fonte de consulta. 

Pelo lado das vítimas, hoje as famílias de Altamira recebem uma compensação do Estado pelo o que as crianças sofreram. De acordo com a pesquisadora Paula Mendes Lacerda, a demanda pela indenização não partiu diretamente dos familiares, mas da assessoria jurídica que os apoiava por meio dos movimentos sociais.

“Se esses crimes ocorreram, foi sem dúvida pela ação de alguns agentes em particular, mas o Estado não deixou de ter responsabilidade pela omissão, pela falta de ação quando seria devido, e pelos anos de morosidade da justiça. Eu entendo que é uma reparação simbólica, mas a nossa política é sobretudo simbólica”, relatou ela ao podcast.

Segundo a pesquisadora, o valor concedido é de um salário mínimo, em uma pensão vitalícia – o que difere da maioria dos casos que ela conhece. Geralmente, o Estado costuma pagar indenizações de um montante bem mais alto, na forma de precatórios. Isso significa que as vítimas demoram a receber a compensação, mas o valor é maior.

Para as famílias de Altamira, apesar da baixa quantia, a pensão representa o resultado de um acúmulo de lutas marcadas pela dor e pela busca por justiça. “A impressão [dos familiares] é que nenhum dinheiro compensa nada, tampouco a morte ou o desaparecimento de um filho. Mas o recebimento dessa indenização está muito conectado com o sofrimento e as memórias ruins do atendimento dos serviços públicos, polícia e justiça, principalmente”, completou Paula.

Claro que nem a maior das compensações financeiras poderia diminuir a dor dessas mães, pais, irmãos e irmãs que perderam um ente querido de uma forma tão cruel. Maria Carolina Farias que o diga. Até hoje, mais de 30 anos depois do desaparecimento do filho Maurício, ela não perde a esperança de descobrir o que aconteceu com ele. 

Uma pista um dia lhe surgiu em um sonho, quando Maria Carolina fez a chamada “prova de Deus”: ficou sete dias sem comer e, em troca, pediu para Deus lhe mostrar como o filho estava, seja vivo ou morto.

“Toda vida eu sonhava com o Maurício do mesmo tamanho que ele saiu de casa. Quando eu fiz a prova de Deus, sonhei com ele bem diferente. Eu sonhei com ele mais alto do que o irmão mais velho. Só que ele vinha em casa, mas não ficava”, contou ela ao Projeto Humanos.

Pela primeira vez, viu Maurício adulto. Ela vislumbrou como ele estaria se o encontrasse vivo, e as consequências disso para todo mundo. “Você já pensou se eu tivesse apontado ‘foi fulano que matou meu filho’? E se de repente ele chega no portão? Eu não vou passar o restinho dos meus dias na cadeia? Vou. Não faço, meu amigo. Eu não falo. Eu não aponto ninguém se não tiver certeza”, completou.

As famílias de Altamira sempre afirmaram que jamais apontaram o dedo para ninguém, apenas acompanharam o trabalho da polícia. Ao mesmo tempo, diante das novas investigações, ninguém acredita na culpa de Chagas. No máximo, se consideram que ele teve algum envolvimento, não pode ter agido sozinho.

Tudo isso é resultado da atuação da PF na cidade, na década de 1990, que acolheu os familiares dos meninos. Da equipe que nunca deixou claro o que fez, que não tem relatórios nos autos e que manteve contato com os familiares mesmo depois de todos esses anos.

Oficialmente, a história acabaria aqui. 

Mas, durante o hiato do podcast, a produção teve acesso a novos documentos relacionados à Polícia Federal. Mais especificamente, sobre o contexto da redemocratização após a ditadura, e as atividades desenvolvidas pelos agentes em Altamira. Chegou a hora de esclarecermos algumas coisas importantes, de uma vez por todas. É o que faremos no próximo episódio.

*Este episódio usou reportagens da Rede Globo.