Extras Episódio 27

MAURÍCIO SOUZA
Em 27 de dezembro de 1992, em Altamira, Maurício Farias de Souza saiu bem cedo de casa. O garoto, de 13 anos, trabalhava com uma senhora vendendo salgados e recebia o pagamento toda sexta-feira.
Naquela ocasião, porém, a patroa pediu para que ele fosse buscar o dinheiro na casa dela no fim de semana. E assim ele fez. A mãe de Maurício, Maria Carolina Farias, tem gravado na memória o momento em que o filho se despediu dela pela última vez.
“Ele levantou e disse ‘mamãe, faz uma canjica para nós’”, contou ela em entrevista a Ivan Mizanzuk e Rubens Pena Júnior em novembro de 2021, durante a ida deles à Altamira.
Ela respondeu para o filho que já tinha alguns ingredientes em casa, mas faltava açúcar. Ele, então, se prontificou: “Mamãe, eu vou receber o dinheiro lá na casa da dona Emília para comprar o açúcar”, e Maria Carolina assentiu.
Depois disso, o garoto lhe confidenciou que teve um pesadelo naquela noite. “Ele sonhou com um cachorro. Disse que o bicho corria atrás dele, e ele subia em uma árvore. Ele falou ‘mamãe, eu gritava tanto por socorro e a senhora não me socorria’”, relatou Maria Carolina, bastante emocionada.
Ela aproveitou o momento para alertar Maurício a ter cuidado na rua. Muitas crianças já haviam desaparecido, e as famílias viviam com medo. Se ele visse qualquer movimentação estranha, um carro se aproximando ou alguém suspeito, o conselho era um só: correr para longe.
Antes de deixar a casa, o menino sentou na cama e ouviu a canção “Chuva no Telhado”, gravada pela dupla Leandro e Leonardo. “Ele ouviu aquela música todinha. Quando terminou, levantou e saiu”, lembrou a mãe.
O garoto, porém, não voltou mais. Desesperada, junto de amigos e parentes, Maria Carolina buscou pelo filho. Eles falaram com a dona Emília, que devia dinheiro a Maurício. Ao ser questionada, ela disse que não viu o menino naquele dia. Em seguida, os familiares conversaram com o seu Antônio, um homem que vendia salgados na região. Nada. Nenhuma pista.
Passaram a noite acordados. No dia seguinte, foram à delegacia fazer o Boletim de Ocorrência. Antes de registrar o sumiço, os policiais sugeriram que a família procurasse Maurício na casa de conhecidos em cidades vizinhas. Eles acataram a ideia e viajaram para lá, mas não encontraram nada. Voltaram, então, para finalizar o B.O.
Maurício é um dos desaparecidos em Altamira na época dos crimes contra crianças. Apesar do registro na delegacia, a polícia não abriu inquérito para investigar o caso.
Maria Carolina até hoje busca respostas sobre o que aconteceu com o seu filho. Ela integrava o Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses, e foi bastante atuante nos júris de Belém.
Nos anos 90, ela chegou a participar de algumas reuniões com a Polícia Federal (PF). E havia um agente em específico de quem ela se lembrava bem: José Carlos de Souza Machado. Em um desses encontros, ambos tiveram uma discussão na frente de todo mundo.
O estopim do desentendimento foi uma pergunta do policial para Maria Carolina. “Até quando você vai ficar lutando por esse processo?”, questionou ele.
“Eu parei. Eu parei naquele momento. Aí eu disse ‘por que você está me fazendo essa pergunta? Você tem certeza que quer a resposta?’. Eu nunca tive medo nem vergonha de ninguém. Eu sou feia, eu sou preta, eu sou fraca de condição, mas sou um ser humano como outro qualquer. Eu sou como um advogado, como um engenheiro. A diferença é que ele tem a condição dele e eu tenho a minha”, desabafou.
Naquele momento, 11 pessoas em volta da mesa de reunião acompanhavam a cena. “Se eu perguntei é porque quero a resposta”, retrucou José Carlos.
“Eu falei ‘você vai ter ela agora’, e levantei o dedo. Aí eu disse ‘eu não vou retirar esse processo do Fórum enquanto não souber o que aconteceu com o meu filho”, reforçou a mãe de Maurício.
CHAGAS E OS CRIMES EM ALTAMIRA
O mecânico Francisco das Chagas foi preso no Maranhão em dezembro de 2003. Em março do ano seguinte, a polícia encontrou na casa dele corpos enterrados e objetos de algumas vítimas. A partir de então, o suspeito passou a confessar os assassinatos que cometeu no estado desde 1991.
Mas, antes mesmo de admitir os crimes, ele revelou para os investigadores que havia morado em Altamira. Esse detalhe chamou a atenção das autoridades.
Paralelo a isso, como mencionado anteriormente, o governo federal emitiu uma resolução que permitia a atuação da PF em casos de violência contra crianças em todo o Brasil. A portaria, assinada pelo então Secretário Especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, data de 24 de setembro de 2003.
Resolução assinada por Nilmário Miranda
Nessa época, em meio aos júris em Belém, a informação divulgada pela imprensa era de que 19 meninos teriam sido vítimas da seita, mas apenas cinco casos acabaram incluídos no processo. Os réus Césio, Anísio, Amailton, Carlos Alberto e Valentina estavam sendo julgados justamente por essas ocorrências: três mortos e dois sobreviventes.
Ou seja, faltava o desfecho de outros 14 crimes. Por isso, as famílias de Altamira pressionavam as autoridades em busca de respostas, demanda que Nilmário Miranda pretendia atender por meio da resolução.
Em primeiro de abril de 2004, por meio dessa autorização, agentes da Polícia Federal foram até São Luís, no Maranhão, para interrogar Chagas.
Nesse ponto da história, a investigação dos emasculados de Altamira pela PF estava nas mãos da jovem delegada Daniele Gossenheimer Rodrigues. Esse detalhe é importante pois os trabalhos agora seriam conduzidos por pessoas que vinham de outra época da corporação.
Elas eram diferentes, por exemplo, de José Carlos de Souza Machado, chefe das operações na cidade durante a década de 1990, que já estava aposentado. Ele foi formado nos anos 70, no contexto da ditadura militar, assim como boa parte dos policiais que o acompanharam no caso de Altamira.
No período de redemocratização do Brasil, havia uma disputa interna na Polícia Federal. Os militares queriam que a instituição continuasse na mão deles, enquanto outras pessoas preferiam que ela fosse chefiada por delegados de carreira.
Essa disputa fica evidente, por exemplo, na lista de diretores gerais da PF no início da década de 1990. Entre julho de 1993 e fevereiro de 1995, quem ocupou o cargo foi Wilson Brandi Romão, um militar. Depois dele, assumiu Vicente Chelotti, um delegado de carreira. Desde então, apenas essa categoria passou a atuar na função.
Lista de diretores gerais da Polícia Federal
“A Polícia Federal tal como se conhece hoje, embora tenha outra origem, se reestrutura depois de 1988”, explicou Alexandre Dupeyrat, ministro da justiça em 1994, em entrevista ao Projeto Humanos.
Segundo ele, foi a partir daí que a PF passou por um intenso processo de profissionalização. “Eu acho que, com a chegada do Chelotti, houve um avanço na estabilização do corpo profissional da instituição”, completou.
Em 2004, a delegada Daniele Gossenheimer fazia parte dessa nova leva de investigadores de carreira, não contaminados pela ditadura militar. Quando ela interroga Chagas pela primeira vez, o interesse é um só: entender a história de vida dele em Altamira.
À ela, o mecânico deu detalhes sobre a sua infância, criação e pessoas com quem se relacionou. A princípio, ele negou ter cometido os assassinatos no Pará, embora já tenha confessado os casos no Maranhão.
No depoimento, ele disse sofrer com “esquecimentos temporários” desde que pegou malária na primeira vez que foi para o Garimpo da Ressaca, em Altamira, em 1982. Na ocasião, Chagas teria sido acometido por uma febre forte, que, segundo ele, deu início aos episódios de confusão mental.
Justamente por isso, de acordo com o suspeito, ele não se lembrava de ter cometido os crimes em Altamira, mas concordava em ser levado até lá para estimular a memória.
Interrogatório de Chagas conduzido pela delegada Daniele
Essa postura de Chagas mostra como eram as suas confissões. Ele sempre dizia não se recordar de nada e, à medida que as conversas avançavam, passava a dar detalhes dos casos – como se o fluxo de pensamento o ajudasse a se lembrar dos eventos.
O mecânico admitiu, inicialmente, três assassinatos: o de Jonnathan Silva Vieira e dos dois meninos cujas ossadas foram encontradas na casa dele. No decorrer dos depoimentos seguintes, ele chegou ao total de 30 vítimas no Maranhão.
Os problemas relativos à memória foram abordados em episódios anteriores, mas neste caso não é diferente. Por isso, o trabalho da Polícia Civil do Maranhão não se baseou apenas nos interrogatórios do suspeito. As provas materiais encontradas na residência em que ele vivia, além do estudo da geografia do crime, foram fundamentais para a resolução dos casos em São Luís.
Tudo isso foi retomado pelo delegado João Carlos Amorim Diniz, encarregado pelas investigações no estado. Ele cruzou esses dados com as descrições fornecidas por Chagas sobre os locais, roupas das vítimas e conversas que tinha com elas. Com isso, o investigador conseguiu identificar cada uma das crianças que o mecânico dizia ter matado.
Detalhes sobre esse trabalho estão disponíveis no relatório final produzido por Diniz em novembro de 2004, que pode ser lido aqui:
Relatório final produzido pelo delegado Diniz
Em matérias de imprensa da época, muitas vezes policiais afirmam que “Chagas lembrava de tudo, dava detalhes de tudo”. Isso é e não é verdade. Essas declarações dão a entender que o mecânico tinha uma memória perfeita, mas a realidade é outra: ao ler os seus relatos ou ouvir as suas gravações, fica evidente que ele lembra das coisas enquanto fala, e é sempre entrecortado pelo o que chama de “surtos de esquecimento”. Foram necessários vários interrogatórios para que o suspeito fornecesse todas as informações necessárias à polícia.
Então, por exemplo, Chagas raramente lembrava dos nomes das vítimas. Nas confissões, ele sempre as descreve dentro de um contexto, como “o menino do suquinho” ou “o menino da bicicleta”. Os policiais comparavam esses detalhes com os relatos de familiares das crianças e, a partir da análise geográfica e cronológica da vida do mecânico, conseguiam identificar os garotos.
Afinal, o acusado tinha um método: ele sempre agia dentro de um território delimitado, que conhecia bem. Esse, inclusive, é um perfil de serial killer bastante conhecido hoje.
Mas, em 2004, não havia no Brasil especialistas nessa área da criminologia. Por conta disso, o delegado Diniz decidiu buscar ajuda. Foi então que ele entrou em contato com a escritora Ilana Casoy. Em 2002, ela havia acabado de lançar um livro sobre o tema.
“Quando apareceu um suspeito, eu tive que procurar aprender mais sobre ele. Então, entrei na internet e botei o termo ‘serial killer’. Apareceu uma porção de coisas lá, entre elas, o nome dela [Ilana]. Eu entrei no site, peguei o telefone e liguei. Expliquei o que estava acontecendo, pedi sigilo, e solicitei que ela me orientasse no que sabia sobre o assunto”, explicou Diniz na audiência da Comissão de Direitos Humanos realizada em novembro de 2004.
Na ocasião, ele foi questionado sobre o motivo pelo qual não procurou o auxílio de alguém da polícia, em vez de ir atrás de uma escritora. A resposta, segundo o delegado, era simples: ele não encontrou ninguém que tivesse conhecimento sobre o tema.
Ata de audiência da Comissão de Direitos Humanos em 2004
EXAME PSICOLÓGICO
Como já mencionado no episódio passado, a delegada Edilúcia Chaves Trindade, responsável pela prisão de Chagas, pediu que ele fosse avaliado por um psicólogo. O laudo, produzido pelo doutor Carlos Leal em 18 de dezembro de 2003, afirma:
Devido a não-estruturação dos mecanismos reativos e inibitórios, vive em constante tentativa de repressão dos desejos primários, em auto-vigília permanente e persecutoriedade, visando a preservação interna e externa, negação da sexualidade e não afirmação social, que se apresenta em forma de falsa brandura, tranquilidade e ponderação, utilizados como forma de distanciamento do grande mal que, em seu mundo psíquico, é sua identidade sexual não aceita.
[…]
Outro aspecto muito relevante da sua sexualidade é a necessidade permanente de atrair o perfil infantil e submisso, já que neste tipo de relacionamento interpessoal e sexual não precisa abrir mão de recursos elaborados para conquistar, compartilhar, ceder, aprender com o outro, rever-se e manter relações estáveis, podendo ser desta forma, após o envolvimento e domínio do atraído, hostil e perverso, já que a partir destes mecanismos de defesa nega e recalca o próprio desejo, acreditando que assim purifica-se do grande mal e volta a ser novamente honrado frente a auto-imagem realizada.
É ainda portador de um acentuado desejo de domínio, presunção, onipotência e superestima, com concomitante rebaixado senso de autocrítica, autopunição e culpa; por isso o infantil, o submisso, imaturo e indefeso o atrai muito, pois não o ameaça e o satisfaz nas suas perspectivas de dominância, agressividade, hostilidade e homoerotismo.
O laudo conclui que Chagas possui “personalidade psicopática, com homoerotismo fixado no infantil, e psicose esquizoparanóide latente”.
Primeiro laudo psicológico de Chagas
Posteriormente, o mecânico passou por outra avaliação psicológica. Dessa vez, o procedimento foi requisitado por Diniz, já após as confissões. Dois profissionais de São Paulo conduziram o exame: Maria Adelaide de Freitas Caires e Antônio de Pádua Serafim.
A roteirista do Projeto Humanos, Tainá Muhringer, que trabalhou com Ivan Mizanzuk nesta temporada, entrevistou Serafim sobre as sessões com Chagas. O psicólogo passou por uma semana inteira de interação com o mecânico, com conversas que duravam até 10 horas por dia.
Uma das primeiras características que Serafim percebeu no suspeito é a chamada obsessividade. “O que é isso? Ele tem uma linha de pensamento que você não consegue quebrar. Ele estabelece a sequência, a forma de pensar, a ideia que tem sobre as coisas, e tem que ser daquele jeito. Isso a gente não encontra só no Chagas, mas em vários indivíduos que mataram mais de uma pessoa com uma certa ritualização”, disse o psicólogo.
É necessário não confundir esse traço mais metódico da personalidade de Chagas com o Transtorno Obsessivo Compulsivo, que é um distúrbio psiquiátrico de ansiedade.
Além disso, Serafim também notou como certos acontecimentos podem ter impactado o rumo que a vida do mecânico tomou. Aos 15 ou 16 anos, Chagas foi trabalhar no garimpo como “olheiro”. Ele era responsável por dedurar aqueles que escondiam as pepitas que encontravam. Como consequência, esses indivíduos eram punidos com violência.
“Quando você fica muito exposto a essas questões, isso se consolida como uma normalidade. Esse é um fator ambiental que pode ser muito negativo dependendo das características da pessoa. E o Chagas tinha essa vivência. Tinha também as histórias de rigidez da avó e da mãe, que usavam da violência”, completou o psicólogo.
Tudo isso se traduz em uma insensibilidade aparente por parte do suspeito. Segundo Serafim, Chagas é extremamente autocentrado e tem dificuldade em enxergar o mal que causa ao outro. Ao falar dos crimes, por exemplo, ele fazia questão de deixar claro que jamais pegou nenhuma criança à força. É como se assumisse a autoria dos casos, mas não a responsabilidade por eles. É como se a culpa não fosse dele. Em nenhum momento ele conseguia expressar qualquer sinal de sofrimento pelas vítimas.
Sobre o motivo da emasculação, o mecânico alegou ao psicólogo que, com a retirada do pênis, “o menino chegava no céu e virava anjo, pois não possuía mais sexo”. O que ele fazia com os órgãos depois, porém, jamais ficou claro para a polícia. Esse foi um detalhe que Chagas nunca revelou. Ele disse apenas que os enterrava.
Pelo nível de ritualização dos crimes, no entanto, Serafim tem uma suspeita. “A literatura nos traz que vários indivíduos com essas características, que chegam no nível de mortes como o atribuído ao Chagas, de 42 crianças, desenvolvem a antropofagia. Ou seja, comem partes do corpo. A gente sempre ficou na dúvida se ele já estava nesse estágio. Ele disse que não”, comentou.
O psicólogo, por outro lado, acredita que isso pode sim ter acontecido. Principalmente porque, de acordo com os estudos, esse tipo de assassino precisa gerar sensações emocionais novas ao cometer os crimes. É por isso que os rituais tendem a evoluir.
A conclusão do exame indicou que Chagas possuía característica obsessiva e de insensibilidade, além da ausência de empatia, o que preenche os critérios da chamada “personalidade antissocial com o agravo de psicopatia”.
O laudo de Antônio Serafim e Maria Adelaide Caires ficou pronto em 7 de outubro de 2004, cinco meses depois das entrevistas com Chagas – realizadas entre 14 e 17 de maio. Nesse período, enquanto estava preso no Maranhão, o mecânico já havia começado a confessar os crimes cometidos em Altamira.
Segundo laudo psicológico de Chagas
OPERAÇÃO MONSTRO DE ALTAMIRA
Aqui vale relembrar que, quando a Polícia Federal foi ao Pará na década de 1990, as investigações tinham o nome de “Operação Monstro de Altamira”. A primeira fase, chefiada pelo agente José Carlos de Souza Machado, foi realizada em 1993.
As informações coletadas, então, foram enviadas para a Polícia Civil. Como consequência, o delegado Éder Mauro prendeu o ex-PM Carlos Alberto dos Santos Lima, e os médicos Anísio Ferreira de Souza e Césio Flávio Caldas Brandão. Amailton Madeira Gomes já estava detido desde novembro de 1992, por conta dos trabalhos conduzidos pelo investigador Brivaldo Pinto Soares Filho.
Em 1994, a segunda fase da operação da PF obteve o relato de Eudilene Pereira da Costa, de 13 anos. A adolescente dizia ter sido testemunha de uma série de crimes contra meninos na cidade.
No ano seguinte, durante a terceira etapa, a equipe de José Carlos focou no testemunho de Valdete Rodrigues Barroso, que relatava ter visto Amailton com um garoto morto dentro de um carro no final da década de 1980.
Agora, em 2004, graças à portaria de Nilmário Miranda, acontecia a quarta fase da Operação Monstro de Altamira – desta vez, sob o comando da delegada Daniele Gossenheimer Rodrigues. Foi ela quem iniciou, pela PF, as investigações que tinham Chagas como suspeito no caso dos meninos emasculados do Pará.
Pouco tempo depois, entretanto, ela teve um problema de saúde e foi substituída pela colega Virgínia Vieira Rodrigues, que também fazia parte do novo corpo de profissionais da corporação.
Essa etapa dos trabalhos envolveu um acordo de cooperação entre vários órgãos: Ministério Público do Pará e do Maranhão, Superintendências da Polícia Federal, e Polícia Civil de ambos os estados.
Em princípio, Chagas confessou 12 assassinatos em Altamira. Alguns desses casos também foram investigados pela Polícia Civil, na figura do delegado Neyvaldo Costa. Ele também foi um dos responsáveis por apurar a quebra de incomunicabilidade no júri de Valentina.
Assim que o mecânico passou a admitir os crimes no Pará, Neyvaldo começou a investigar. Ele conversou com familiares de vítimas, especialmente daquelas que nunca tiveram inquérito aberto, e tentou identificar pessoas que conheciam Chagas na época que ele morou na cidade.
Após os trâmites burocráticos, chegava o momento mais aguardado: era necessário levar o suspeito para Altamira, para que ele apontasse os locais dos crimes. Isso ocorreu em 28 de junho de 2004, como divulgou o jornal Diário do Pará na ocasião:
O mecânico Francisco das Chagas Britto, réu confesso na morte de crianças em Altamira no período dos crimes de emasculação, chega hoje ao Pará, recambiado pelas polícias Federal e Civil do Maranhão. Ele seguirá para o município onde participará das reconstituições dos crimes. Francisco está sob a custódia da polícia maranhense, mas poderá ser preso no Pará também. O delegado Neyvaldo Costa solicitou, no dia 25 passado, a prisão preventiva ao juízo da 3ª Vara de Altamira.
O pedido não criará conflito entre as polícias civis dos dois Estados. Segundo o diretor da Divisão de Investigações e Operações Especiais, Waldir Freire, a vinda de Francisco ao Pará foi possível porque as investigações no Maranhão foram concluídas. Dessa maneira, caso seja decretada a prisão do mecânico, ele ficará sob a responsabilidade da justiça paraense.
Em resumo, havia três hipóteses em torno de Chagas no Pará:
- A primeira é de que ele era o verdadeiro assassino das crianças. Isso significaria que Amailton, Carlos Alberto, Anísio e Césio, que estavam presos após a condenação nos júris, seriam inocentes.
- A segunda tese é de que o mecânico poderia ter ligação com o Lineamento Universal Superior (LUS), o grupo de Valentina. Ou seja, ele teria cometido os crimes junto com outras pessoas, provavelmente os condenados.
- A terceira é de que o suspeito na verdade seria um laranja, que havia recebido algo para assumir os assassinatos em Altamira. As confissões seriam, então, instruídas por possíveis membros do LUS ou indivíduos pagos pela “seita”.
A matéria do Diário do Pará citada acima traz elementos sobre a última hipótese, pois cita um encontro entre Chagas e o advogado de Valentina, Cláudio Dalledone Júnior:
Segundo o delegado Neyvaldo, a conversa que manteve com o mecânico foi de cerca de 3 horas. Em nenhum momento o acusado mostrou-se apreensivo, portando-se normalmente diante do delegado. No diálogo não foi questionado o teor da conversa entre Francisco e o advogado Cláudio Dalledone Júnior, que defendeu Valentina no processo.
Matéria do Jornal O Diário do Pará – “Francisco das Chagas chega hoje ao Pará”
Outras reportagens da época também implicavam que Dalledone estaria “combinando algo” com o mecânico, para que ele admitisse os crimes. Como resposta às acusações da imprensa, o advogado enviou ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará uma declaração dizendo que jamais se encontrou com Chagas. No documento, foi anexada a certidão de um escrivão da Polícia Civil do Maranhão, confirmando que nem Dalledone ou nenhum outro representante da líder do LUS teve contato com o suspeito.
Declaração de Dalledone ao TJ do Pará
Contudo, na audiência da Comissão de Direitos Humanos, de novembro de 2004, o delegado Diniz afirmou que recebeu Dalledone na delegacia no mês de janeiro. “Ele quis conhecer o Chagas, e eu o levei à carceragem. Se passamos três minutos lá, foi muito. Ele perguntou o nome do preso, onde morou e trabalhou, e se conhecia o doutor Anísio, uma das pessoas presas [no Pará]. Ele disse que não, que conhecia alguém de nome. Depois, saímos de lá”.
Ou seja, o investigador diz ter presenciado um breve encontro entre Dalledone e Chagas em janeiro de 2004, quando o mecânico ainda não tinha confessado nada. O suspeito só admitiria ter cometido os crimes dali a dois meses, após a polícia encontrar provas na casa dele.
Para aqueles que acreditam que Chagas é um laranja, a implicação disso é a seguinte: haveria um grande complô entre o LUS e policiais civis, federais e membros do Ministério Público do Maranhão. Dalledone seria, portanto, um intermediário no esquema.
Nunca houve nenhuma prova disso. Essas são só suposições e suspeitas veiculadas na imprensa da época. Mas elas permeiam toda a passagem de Chagas por Altamira.
ANÁLISE DE LOCAIS
Em 29 de junho de 2004, dia seguinte à chegada em Altamira, o mecânico foi levado para os locais onde afirmava ter cometido os crimes. Ele estava acompanhado de 15 policiais federais, um defensor público e do perito Wilton Carlos Rego, responsável pelo trabalho de localização geográfica no Maranhão. No Pará, porém, a análise de georreferenciamento foi feita por Gustavo Ota Ueno, que assina os laudos desta parte da investigação.
Estão disponíveis na enciclopédia alguns dos documentos produzidos pela Polícia Federal após a passagem de Chagas por Altamira. Dos 14 casos confessados por ele naquela cidade (três sobreviventes + 11 mortos), tivemos acesso a oito laudos de locais. Eles estão listados na ordem cronológica dos ataques:
03/10/1989 – Ieverilton Rocha dos Santos
20/01/1991 – Tito Mendes Vieira
05/05/1991 – Ailton Nascimento Fonseca
05/1991 a 07/1992 – José Chagas da Silva
13/11/1992 – Klebson Ferreira Caldas
27/03/1993 – Flávio Lopes da Silva
09/09/1993 – Rosinaldo Farias da Silva
Além disso, também incluímos aqui um PDF com dois mapas produzidos com as localidades das vítimas, de acordo com os apontamentos de Chagas. O mapa da primeira página foi produzido pela Polícia Federal. O da segunda página, pela Polícia Civil. Quando comparados, há algumas discrepâncias, o que pode demonstrar diferenças de informações entre as polícias:
Mapa – Vítimas de Chagas em Altamira
Um dia depois desse procedimento, uma matéria do jornal O Diário do Pará relatou a vinda de mais uma pessoa para presenciar as reconstituições: a promotora Rosana Cordovil, que atuou em 2003 nos júris em Belém. A reportagem afirma:
A operação da Polícia Federal de reconhecimento de local, realizada com Francisco das Chagas, que estava prevista para ter a duração de três dias, foi concluída na última terça-feira. Os levantamentos deveriam ter sido acompanhados pela promotora Rosana Cordovil, mas devido à falta de voos, ela não conseguiu chegar ao município a tempo de participar das reconstituições.
Rosana disse que, por não estarem definidas quando serão realizadas as próximas ações da PF em Altamira, seu retorno a Belém deve ser rápido.
A promotora afirmou que mesmo diante do que o mecânico declarou à polícia, assumindo sozinho os crimes em Altamira, acha improvável que ele seja o único autor dos assassinatos. Segundo ela, para que os fatos se tornem contundentes, é preciso que outros elementos de prova sejam juntados ao processo.
Rosana também disse que não acredita na possibilidade dos quatro condenados no processo serem inocentes, por causa das provas constatadas nos autos e das perícias feitas nos corpos das vítimas, que mostraram que os cortes eram cirúrgicos.
Matéria do jornal O Diário do Pará – “Operação de reconhecimento de local está concluída”
INTERROGATÓRIO
Durante a estadia em Altamira, Chagas permaneceu detido no quartel do Exército da cidade, o 51 BIS. Ele chegou em 28 de junho de 2004 e, pouco mais de uma semana depois, em 6 de julho, passou por um novo interrogatório. Quem conduziu o procedimento foi a delegada Virgínia, que havia substituído a colega Daniele.
Esse depoimento é o mais completo que o mecânico deu sobre os casos dos meninos no Pará. São 19 páginas de uma espécie de fluxo de pensamento, em que o suspeito fala livremente, enquanto o escrivão registra tudo. Existem relatos de que o interrogatório foi gravado, mas a produção do Projeto Humanos não teve acesso a esse vídeo.
À doutora Virgínia, Chagas confessa em detalhes cada um dos crimes que cometeu em Altamira. Ele cita 14 casos, número que já havia sido levantado pelo delegado Neyvaldo Costa.
Aqui voltamos ao velho problema mencionado desde o primeiro episódio: afinal, quantas vítimas foram atacadas no Pará?
Por algum motivo, na época dos júris em Belém, a imprensa falava em 19 meninos. Os acusados, porém, foram julgados apenas por cinco. Assim, sobrariam 14 que ainda precisavam ser investigados e, por isso, o secretário Nilmário Miranda autorizou a Polícia Federal a agir.
Chagas confessou justamente 14 casos, o que parece bastante conveniente. Mas, na verdade, entre as vítimas citadas por ele estão justamente as cinco que entraram no processo contra os outros acusados.
A publicação do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses, de 1996, enumerou 16 ocorrências: três sobreviventes, oito mortos e cinco desaparecidos. São estes eventos que a Polícia Federal e Civil do Pará investigaram em 2004.
Para cada um deles, as autoridades abriram um novo inquérito. Destes, Chagas confessou 14. Os dois que sobraram não entraram na lista e foram considerados prováveis vítimas de outras situações.
Em uma tabela montada pelos policiais, aparecem 20 crianças de Altamira. Os quatro casos que não tiveram uma nova investigação se tratavam de tentativas de sequestro. O mecânico nunca falou nada sobre eles e, por isso, não foram incluídos nos processos.
Tabela de vítimas montada pela Polícia Federal e Civil
Sobre a confissão de Chagas para a doutora Virgínia, é preciso fazer alguns comentários:
- Primeiro, esse é um dos textos mais fortes que Ivan Mizanzuk já leu. Ele não conseguiu fazer a leitura de uma vez só, e as descrições feitas pelo assassino lhe causaram náuseas.
- Segundo, o mecânico não cita muitos nomes ou datas. Ele menciona objetos e locais, mas detalhes que poderiam elucidar melhor os crimes são raros – e esse é o grande problema do depoimento.
- Terceiro, o interrogatório passa a impressão de que Chagas sequer está confessando na ordem correta. Considerando que os policiais elogiavam a memória dele, essa falta de coerência pode dar a entender que ele estava talvez inventando coisas ou sendo direcionado.
Dados os alertas, o depoimento completo está disponível aqui:
Interrogatório de Chagas pela delegada Virgínia
Pouco depois de ser interrogado, Chagas voltaria a São Luís do Maranhão. Enquanto isso, as buscas nos locais apontados por ele continuavam em Altamira. O objetivo era encontrar qualquer vestígio de crianças desaparecidas no município e que nunca tiveram os seus paradeiros revelados.
O resultado desse trabalho saiu em uma reportagem do Diário do Pará em 7 de julho de 2004. De acordo com a matéria, os peritos teriam achado ossos e roupas em um dos pontos indicados pelo mecânico na rodovia Transamazônica. A suspeita era de que eles pertenciam ao garoto Maurício Farias de Souza, citado no início deste episódio.
No dia seguinte, 8 de julho, novas informações foram divulgadas pelo mesmo jornal:
A precisão com que Francisco das Chagas tem apontado os locais onde teria escondido os corpos das crianças desaparecidas, após terem sido emasculadas e mortas em Altamira, possibilitou que a Polícia Federal encontrasse outros vestígios ontem, 7 de Julho: pedaços de vestimentas e ossos que somente a perícia poderá afirmar se são ou não humanos, segundo declarou o delegado federal Mário Sérgio, que acompanha os trabalhos.
A área onde foram encontrados os ossos na manhã de ontem fica a cerca de meio quilômetro onde aconteceu a escavação da última segunda-feira. Lá, teria sido escondido o corpo de Tito Mendes Vieira, um garoto que desapareceu próximo de sua residência, na rodovia Transamazônica, e foi visto pela última vez às proximidades de sua casa, no igarapé Três Pontes, no dia 20 de janeiro de 1991.
Matéria do Diário do Pará – “Escavações encontram ossos e roupas”
Ou seja, a equipe da Polícia Federal encontrou materiais em dois locais diferentes sugeridos por Chagas, que seriam provavelmente de duas vítimas: Tito, que sumiu em janeiro de 1991, e Maurício, que saiu de casa em dezembro de 1992 e nunca mais foi visto.
As buscas continuaram por alguns dias, mas os peritos não acharam mais nada. O próximo passo era enviar os ossos e peças de roupas encontradas para a perícia.
Matéria do Diário do Pará – “Negada preventiva para mecânico”
Paralelo a isso, aumentava o coro de vozes sobre Chagas ser um bode expiatório do Lineamento. É o que mostra, por exemplo, a declaração do deputado federal José Geraldo Torres da Silva, o Zé Geraldo, ao Diário do Pará em 8 de julho de 2004:
“Tudo foi arquitetado para evitar um novo julgamento da Valentina”, afirma o deputado, dizendo-se convicto da culpabilidade das pessoas que estão presas, sendo uma delas o médico Césio Brandão. “Se não, como explicar os casos de pessoas que foram emasculados e depois sofreram cirurgia?”, indaga Zé Geraldo, ressaltando que, assim como ele, a população de Altamira não acredita no envolvimento do mecânico.
Matéria do Diário do Pará – “Deputado diz que envolvimento de mecânico é farsa”
Ainda nesse período, estava em andamento a investigação da quebra de incomunicabilidade no júri de Valentina, assim como as tentativas do Ministério Público de anular o julgamento.
Como se isso não fosse combustível suficiente para a fogueira, Amailton, Césio e Anísio, que haviam sido condenados, buscavam agora sair da prisão – como ocorreu com outros acusados no Maranhão.
Em setembro de 2004, Césio contratou um novo advogado para auxiliá-lo nessa nova empreitada: Cláudio Dalledone Júnior, que na época já não representava mais Valentina.
No mesmo mês, a revista Carta Capital publicou uma longa entrevista com Francisco das Chagas, que era inclusive matéria de capa. Escrita pelo jornalista Sérgio Lírio, a reportagem se tornou uma peça importante para todos os advogados que queriam provar a inocência dos condenados nos júris.
São seis páginas de conversa, em que o mecânico tenta relatar a “lógica” por trás dos assassinatos. Assim como nas confissões para a polícia, ele afirma não lembrar de muita coisa e não saber explicar tudo o que fez.
Ivan Mizanzuk entrou em contato com Sérgio Lírio e conseguiu as gravações da entrevista com Chagas. Parte das transcrições estão disponíveis abaixo:
Lírio: Eu queria começar… Que você me contasse um pouco quantas crianças você matou.
Chagas: Aqui no Maranhão são 30. E 11 em Altamira, porque tem três sobreviventes lá, né? São 14.
[…]
Chagas: Eu sempre tinha, assim, uma coisa que… Falava assim na minha memória, na minha cabeça, sei lá.
Lírio: Falava o quê?
Chagas: É… Ficava… Pra fazer aquilo, ficava incentivando… Uma coisa ficava me dizendo… Que, até mesmo depois que… Que surgiu tudo isso aí… Ele ficava perguntando pra mim por que que isso aí tinha acontecido. Coisa absurda. Inclusive eles até me mostraram várias… Várias fotos aí, uma coisa absurda mesmo. Depois que acontecia isso, eu ficava, assim, uma pessoa normal. E aquele negócio fugia da minha memória também.
Como se nota, Chagas diz que uma “voz” lhe mandava fazer tudo. Depois que ele cometia os crimes, ela ia embora, e ele “voltava ao normal”.
À medida que a conversa avança, ele parece se lembrar de mais detalhes.
Lírio: Por que você cortava o pênis das crianças?
Chagas: Senhor, eu não sei… Eu não sei lhe dizer porquê. Eu só sei lhe dizer… Porque… Sempre… Só aconteciam essas coisas num lugar onde tinha, assim, pé de tucum.
Lírio: Tucum?
Chagas: Tucunzeiro. Você sabe o que é, né?
Lírio: Não. O que é tucunzeiro?
Chagas: É, tipo assim, uma palha que é cheia de espinho. Cheia de espinho. Sempre é mais onde tinha essas coisas. E lá mesmo ficava… Era feito e lá mesmo ficava. Era cavado um buraco… Uma vala assim… Tipo assim, uma vala cruzada… E lá mesmo era botado. E quando não era botado lá no pé do tucunzeiro… No meu sentido, aquilo era pra jogar na água.
Lírio: Por quê?
Chagas: Porque… Às vezes, no meu sentido, dava que era pra jogar na água… Toda vez que eu jogava na água, que eu chegava na beira da praia… A maré tava vazando. Toda vez… Que eu fui, que eu chegava na beira da praia, a maré tava vazando.
[…]
Lírio: Deixa eu só deixar uma coisa mais uma vez clara. Desculpe repetir. Quem convidava eram as vítimas? O senhor nunca convidou?
Chagas: Nunca convidei. Parecia que aqueles meninos que encostavam perto de mim… Parecia que aqueles meninos ali eram… Os escolhidos. E eu tinha uma lista.
Lírio: Lista? Como era essa lista?
Chagas: Eu tinha uma lista… Era um… Tipo assim, uma folha de papel. Só que, nessa folha de papel, existiam vários números, vários nomes nessa folha. E eu não sabia. Eu só sei lhe dizer que tinha vários nomes, você tá entendendo? E às vezes… Toda vítima, toda pessoa que era vítima, que eu caçava, na lista tava. Agora, eu não tenho, assim, a lembrança de escrever essa lista. Não sei se na hora daquela confusão da minha cabeça… Eu só sei dizer que tinha uma lista. E essa lista, na véspera de acontecer tudo isso aí, essa revelação, essa lista desapareceu. Ela desapareceu… Sumiu… Só que me perguntaram se eu botei em algum canto… Eu acho que essa lista foi jogada na água, alguma coisa. Mas tinha.
Em diversas confissões, Chagas fala que tinha uma lista com os nomes de vítimas e as datas em que as matou, mas que ela havia sumido. A suspeita da polícia é de que ele tenha se livrado das provas logo após ser chamado para depor no caso Jonnathan, antes de ser preso.
Ao jornalista, o mecânico ainda afirma que a ida para Altamira o ajudou a encontrar “respostas” para o que tinha feito:
Chagas: Olha, no começo o pessoal dizia… Surgiu muitas histórias no começo. Até mesmo a imprensa daqui… Que eu demorei muito a falar com eles… Só porque eles ficavam divulgando coisas que…
Lírio: O que eles divulgaram?
Chagas: Coisa que não era verdade. Diziam que eu comia gente, fazia churrasco de gente… Que eu era um canibal, que eu era um psicopata. Esse monte de conversa, né? Eu não sei a resposta. Mas uma coisa me diz que quando essa resposta vier, vai ser totalmente diferente do que vocês tão dizendo.
Lírio: E quando a resposta veio?
Chagas: Quando essa resposta veio, eu tava em Altamira. Eu tava em Altamira porque tudo lá foi que começou, né? Então, lá também abriu um pouco a minha memória. Lá foi que eu lembrei dessas coisas que eu tô falando pra você aqui. Lá foi onde tudo começou. Então, eu disse que eu queria ir pra onde tudo começou.
Ao ouvir essa fita, é impossível não lembrar do que o psicólogo Serafim falou sobre as sessões com o Chagas. De como era difícil conversar com ele e entender o seu raciocínio. Ele divaga diversas vezes. Começa a responder uma pergunta, entra em um assunto novo e só quer saber dele. É cansativo. A todo momento é preciso puxar o tópico anterior.
Após a difícil entrevista com o mecânico, a reportagem de Lírio continua por mais quatro páginas, com declarações de diversos envolvidos nos casos do Pará e do Maranhão. Entre eles, estavam Césio, o delegado Diniz e Rosa Maria Pessoa, mãe de Jaenes, assassinado em outubro de 1992. Ela também era líder do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses.
Leia abaixo um trecho do que Rosa disse para o jornalista:
Para nós, o Chagas, que não existia até a condenação dos acusados, é mais um deles. Eles o entregaram para que ele assuma tudo e venha dizer que os outros são inocentes. Não acreditamos que o Chagas tenha feito tudo sozinho.
Não tem como. Os casos aqui tem indícios muito fortes da presença de outros acusados. As investigações, as testemunhas, apontam para a participação dos que estão presos. Ele não tinha carro, ele não é médico.
Tenho a impressão de que ele era um dos que conduziam os meninos. Seduzia, levava com os outros.
Não queremos inocentes na cadeia, mas não tenho dúvidas. Somente a Deus compete julgar, mas tenho certeza de que eles tiveram participação. A polícia não ia ser tão irresponsável a ponto de colocar inocentes na cadeia. As testemunhas existem, há fatos que realmente levam a todos. Por que a Valentina foi solta? Por que aparece o Chagas? São várias perguntas que ficam. O Pará todo chorou, revoltado com a liberdade de Valentina. De repente, aparece o Chagas. Para nós, é mais uma farsa que aparece.
Matéria da Carta Capital – “Fala o serial killer”
A crença de que Chagas seria membro do LUS e conhecido dos demais acusados é muito forte até hoje entre a população de Altamira. Essa também é a opinião da promotora Rosana Cordovil, por exemplo.
Na entrevista à Carta Capital, o mecânico foi questionado sobre essa suspeita:
Lírio: O senhor sabe que tem pessoas… Por exemplo, em Altamira, pessoas presas, que podem ter sido acusadas pelos mesmos crimes? O senhor conhecia essas pessoas? Conhecia a Valentina, o Anísio… O senhor fez parte de alguma seita?
Chagas: Pra lhe dizer a verdade, eu vou lhe relatar aqui. Até mesmo pela cidade lá ser pequena, e eu morei lá 17 anos… Mas eu não conheço nenhuma dessas pessoas. Nenhuma. O que eu quero lhe dizer é o seguinte: por mais que eles mexam com coisa errada, por esse lado que você terminou de falar… Mas esses casos não têm nada a ver… Esses casos que aconteceram lá em Altamira e aqui não têm nada a ver com esse caso desse pessoal. Se esse pessoal tá preso lá por causa disso… Eles tão presos em vão. Eles tão presos inocentes. Porque eu já fui lá, falei, mostrei os locais, a maioria das datas de quando aconteceu… Eu fiz a minha parte, fui lá e falei. Agora só tá dependendo deles lá, né? Parece que até o trabalho deles lá é diferente do daqui. Não tão querendo nem voltar atrás pra soltar o pessoal não.
Interrogatório – perguntas a Chagas sobre envolvimento com o LUS
Interrogatório de Chagas para a Polícia Civil do Maranhão
Chagas – confissões em juízo 2004-2005
A polícia tentou verificar se existia qualquer vínculo entre Chagas e os acusados em Altamira, mas nada foi encontrado. A cada novo passo das investigações, tanto no Pará quanto no Maranhão, a conclusão parecia ser somente uma: Chagas agia sozinho, e os ataques eram derivados de algum delírio que ele tinha. Algo apenas dele.
Mas, por anos, as pessoas em Altamira ouviram o contrário. Para elas, os crimes só poderiam ter sido cometidos por um grupo de pessoas. Indivíduos que usavam carros para os sequestros, que realizavam cortes cirúrgicos nas vítimas – é importante relembrar que esse último detalhe não possui sustentação nas provas dos autos.
Mesmo assim, essa é uma verdade incontestável para as famílias das vítimas, como ficou claro na conversa que Ivan teve com a dona Maria Carolina Farias, mãe de Maurício. Na ocasião, ela criticou o trabalho do delegado Neyvaldo Costa, que investigou o Chagas em 2004.
Diferente do que o policial teria relatado no inquérito, segundo Maria, ela jamais disse ter certeza de que o mecânico era o assassino das crianças. “Eu tenho a cópia do depoimento que eu dei para ele. Está bem aqui. Se precisar, um dia eu vou com o juiz, com 50 mil advogados, seja com quem for, e mostro a cópia”, afirmou.
Na época, para rebater o delegado, a mãe de Maurício chegou a contatar a imprensa e dar uma entrevista para a TV Liberal. “Eu não descarto a hipótese de ele ter participação. Mas de ele ser… Onde já se viu um cara que é mecânico trabalhar com bisturi? Você está entendendo, meu amigo? Não distorce nada do que eu falo. Porque, se distorcer, eu vou atrás”, completou.
No próximo episódio, as dúvidas em torno de Chagas em Altamira só aumentam. Enquanto isso, os condenados lutam para sair da prisão.
*Este episódio usou reportagens da Rede Globo e da Record.
**Errata:
No podcast, Ivan Mizanzuk disse que o psicólogo que examinou Chagas é Antônio de Pádua Sefarim. O sobrenome dele, na verdade, é Serafim.
A outra errata é sobre a deputada Iriny Lopes. Ela não é de Minas Gerais, mas sim do Espírito Santo.