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Extras Episódio 23

GUERRA DE NARRATIVAS

O júri de Valentina de Andrade começou em 19 de novembro de 2003. No primeiro dia, a acusação exibiu as duas fitas VHS apreendidas pela Polícia Federal (PF): a da arma com a frase da ré sobre “vampirinhos” e a cena teatral que se assemelharia a um ritual de emasculação.

Fotos dos capuzes encontrados na casa da acusada em Londrina, no Paraná, também foram apresentadas aos jurados. Vale lembrar que a polícia colheu esse material em 1992 e, de alguma maneira inexplicável, ele acabou transferido para o Pará no ano seguinte, junto com outros pertences do Lineamento Universal Superior (LUS). 

Ainda no primeiro dia de júri, Valentina foi interrogada por quase duas horas. Ela se declarou inocente de todas as acusações. Assim como nos outros julgamentos, os familiares das vítimas e os observadores federais acompanhavam tudo. Já do outro lado, estavam argentinos do LUS e pessoas próximas da acusada. 

Enquanto os moradores de Altamira contavam com a ajuda de entidades de caridade para se manter em Belém, o grupo de apoio à líder do Lineamento dispunha de condições mais robustas. Eles filmavam o julgamento e mantinham uma página na internet para divulgar informações sobre o caso – o que, em 2003, era algo impressionante. 

É nesse ponto que o conflito de narrativas entre acusação e defesa se expande para além do processo em si. Em entrevistas posteriores ao júri, o advogado Cláudio Dalledone Júnior chegou a dizer que estranhava o fato de famílias pobres possuírem tanta estrutura para permanecer na capital. À noite, por exemplo, após as sessões, não era incomum que ocorressem atrações culturais para entretê-las.

Somado a esse fator está a antiga história de que o estado do Pará e o próprio governo federal tinham interesse em apoiar os familiares de Altamira, trazendo uma solução exemplar para os crimes. Isso porque a violência contra os menores teria ameaçado o repasse de dinheiro de órgãos internacionais envolvidos na preservação de direitos indígenas e da floresta amazônica.

Para Ivan Mizanzuk, é difícil acreditar que as famílias das vítimas recebiam tanto dinheiro assim. Afinal, era evidente que elas passavam por enormes empecilhos e recebiam ajuda por solidariedade. 

No entanto, esse conflito de narrativas escancara uma questão mais complexa. Quem explica melhor é a antropóloga Paula Mendes Lacerda, que produziu uma tese de doutorado focada nas famílias e nos movimentos sociais em torno da causa dos emasculados.

“Essa situação de antagonismo entre as vítimas e aqueles que defendiam os réus fez com que cada um dos lados achasse que o outro era muito mais poderoso. Que era muito mais poderoso do que talvez fosse, era muito mais rico. E o poder se converte na posse de bens e tecnologias”, disse ela em entrevista ao podcast.

Ela ressaltou que, apesar disso, a batalha não deixava de ser assimétrica, considerando as reais condições das famílias de Altamira. Alguns boatos, para a pesquisadora, chegavam a ser absurdos. Um deles foi compartilhado pelo delegado Brivaldo Pinto Soares Filho durante a entrevista que concedeu para a produção da tese. Na ocasião, ele afirmou que Rosa Maria Pessoa, mãe de Jaenes, havia recebido uma espécie de “cala boca” com dinheiro para não continuar a se envolver no caso. 

“É muito chocante que esse conjunto de boatos e estratégias para deslegitimar [a causa] tenha sido lançado quando é flagrantemente contrastante com a realidade material que essas pessoas vivem, né? Mas é parte disso, desse universo simbólico de antagonismo e disputas em que você tenta construir o outro como muito mais forte, muito mais poderoso”, completou.

Por outro lado, os defensores da ré viam como oposição todo um mecanismo composto pelo governo estadual e federal, além de entidades internacionais. “A narrativa do Dalledone é de que ele era um advogado jovem, ambicioso, e estava contra tudo e contra todos no estado do Pará. Ele fala que o carro dele foi apedrejado, que ele era hostilizado nos restaurantes… Era ele contra a Unicef, contra todos os direitos humanos do mundo, o que é uma forma dele valorizar o próprio trabalho e o sucesso que teve como advogado”, comentou Paula Lacerda.

Entre as estratégias de Dalledone estava o uso de uma câmera, instalada na sua bancada, para registrar todo o julgamento. Era um equipamento emprestado do pai que, segundo o advogado, ajudou a resguardar todo o trabalho diante de um ambiente bastante hostil. 

A defesa de Valentina tinha um acordo: Arnaldo Faivro Busato Filho participaria da abertura da sessão; enquanto que nos dias seguintes, dedicados às milhares de folhas processuais juntadas pela defesa, os procedimentos seriam acompanhados por Dalledone e o colega Caio Fortes de Matheus

Em meio ao clima de tensão, a expectativa em relação às testemunhas só aumentava. Era a primeira vez que o marceneiro Edmilson da Silva Frazão, que tinha o depoimento mais forte contra a ré, falaria no tribunal. O relato dava conta de que, no início da década de 1990, ele teria presenciado um culto macabro na chácara do médico Anísio Ferreira de Souza, liderado por Valentina. 

A acusação queria que Edmilson participasse do julgamento de todos os réus, mas ele só foi localizado para o da líder do LUS. Protegido por agentes da Polícia Federal, o marceneiro seria a grande novidade da promotoria, uma vez que os demais arrolados já haviam prestado depoimento nos júris anteriores.

Do lado da defesa, os destaques eram o delegado Brivaldo, que investigou a morte de Jaenes no fim de 1992, e José Carlos de Souza Machado, agente da PF responsável pelo relatório “Operação Monstro de Altamira”.

Aqui vai um detalhe importante: quando se inicia um júri, os jurados e testemunhas precisam permanecer incomunicáveis, para se ter certeza de que não serão influenciados por elementos externos. Isso significa que eles não podem conversar com pessoas de fora, assistir TV ou ler jornais – enfim, nada que traga informações sobre o que acontece no tribunal. Todos ficam isolados em hotéis pagos com dinheiro público.

O problema é que a defesa pretendia estender o julgamento indefinidamente. Por quanto tempo, então, jurados e testemunhas ficariam longe da família, amigos e afazeres diários? Como já era de se esperar, isso gerou receios, e o primeiro a se manifestar foi o agente aposentado José Carlos, que pediu para não depor.

O ex-policial federal deveria comparecer ao plenário na primeira sessão, mas só apareceu no segundo dia, o que era uma irregularidade. Por isso, a promotoria temia que, se ele fosse ouvido e Valentina acabasse condenada, os defensores da ré entrassem com um recurso pedindo a nulidade do júri.

No fim, acusação e defesa chegaram a um acordo: José Carlos seria ouvido como um “informante”. Ou seja, ele não precisava mais permanecer incomunicável e não tinha o compromisso de dizer apenas a verdade. Ao mesmo tempo, ambas as partes do júri concordaram em não requerer qualquer tipo de nulidade referente a essa questão.

Acordo entre acusação e defesa sobre o depoimento de José Carlos

Outras testemunhas da defesa tentaram manobras parecidas. Brivaldo, por exemplo, teve inicialmente o pedido negado, mas conseguiu mudar de categoria mais tarde no processo. 

Ainda sobre as pessoas arroladas, antes mesmo do júri, a acusação solicitou a substituição de dois nomes: o lavrador Agostinho José da Costa e a conselheira tutelar Sueli de Oliveira Matos, que não tinham, em seus relatos, nenhum elemento incriminatório específico contra Valentina. 

No lugar de ambos, a promotoria sugeriu Edmilson Frazão, que finalmente havia sido localizado, e Eli Pacheco de Queiroz, que nunca tinha falado nos autos. O juiz Ronaldo Valle permitiu que Sueli fosse substituída por Frazão, mas negou o outro pedido.

Eli Pacheco era funcionário do hotel onde Valentina se hospedou em Altamira em 1987, com um grupo de argentinos. Uma matéria do jornal O Liberal, de 21 de novembro de 2003, descreve qual seria o teor do depoimento dele, caso tivesse sido aceito pelo juiz:

Segundo Eli, entre 86 e 88 (ele não soube precisar o ano), Valentina e uma caravana de oito pessoas estiveram em Altamira hospedados no hotel Paulista e não apenas no Xingu. O grupo que estava com Valentina, contou Eli, era oriundo de Londrina. Entre os presentes, o agricultor disse ainda que havia uma pessoa que falava espanhol. “O marido de Valentina”, ressaltou. 

O agricultor detalhou que no período que Valentina ficou hospedada no Paulista, ele trabalhava como gerente do hotel. “Eu coordenava as coisas quando os donos viajavam”, disse. Um detalhe, recorda Eli, chamava atenção no comportamento do grupo liderado por Valentina: “Eles ficavam até altas horas da madrugada, na calçada, conversando. A maneira que ela era respeitada também chamava atenção. Valentina era chamada de mamãe, mãezinha, por todos”.

Matéria do jornal O Liberal – “Testemunha dispensada diria o que viu em hotel de Altamira”

Como se nota, o relato de Eli é bastante parecido com o depoimento de Duílio Nolasco Pereira, ex-marido de Valentina que se mudou para Altamira na década de 1970. Em uma reportagem do Jornal Nacional na época do júri, o funcionário do hotel afirmou que o comportamento dos argentinos perante a líder do LUS era “quase como uma obediência militar”. De qualquer forma, não foi permitido que ele fosse ouvido no lugar de Agostinho. 

Acertadas as questões sobre as testemunhas, começou na segunda sessão, uma quinta-feira, a interminável leitura de peças juntadas pela defesa. Àquela altura, todos já sabiam que o júri se estenderia para o final de semana – diferenciando-se dos julgamentos anteriores, que duraram apenas três dias no total.

Enquanto isso, o fundador do LUS na Argentina, Carlos Calvo, concedeu uma entrevista exclusiva à Rede Globo. Ela foi anexada aos autos e está disponível aqui na enciclopédia, com legendas:

Entrevista com Carlos Calvo para a TV Globo

Versão impressa da entrevista de Carlos Calvo

Ao ser questionado sobre o que Valentina quis dizer sobre “se acautelar com as crianças” no livro que escreveu, Calvo responde: 

As crianças, vou explicar de novo, são violentas. Não são todas. Tem gente que é muito violenta. Também não estamos fazendo nada contra as crianças. Ela [Valentina] fala isso num contexto. Ou seja, está explicando os espíritos, como chegam, e fala isso, e como fazer para que a criança se torne melhor. Tem muita criança que é difícil de educar. Então, ela fala como fazer com todo o amor.

Como já mencionado outras vezes no podcast, a obra de Valentina é uma mistura de várias fontes religiosas e místicas. Uma delas seria a visão, defendida por linhas do espiritismo, de que algumas pessoas nascem com o peso energético de encarnações passadas – algo similar ao conceito de carma, também presente em religiões orientais.

De qualquer modo, esse era o tom do julgamento: a acusação exibia trechos de vídeos e outros materiais que seriam evidências de que o Lineamento era uma seita que matava crianças. Já a defesa mostrava milhares de páginas para provar que o LUS era um grupo que acreditava em coisas meio incomuns, mas que não tinha nada de criminoso. Era uma guerra entre o pânico e o tédio.

A leitura já se arrastava por dias, e os jurados e testemunhas começaram a apresentar sinais de cansaço. Arrolada pela defesa, a professora Socorro Patello, que fez o parecer sobre o livro de Valentina, passou mal e pediu para ser dispensada. Enquanto esperava a ocasião em que prestaria depoimento, ela chegou a ser internada em um hospital. A própria ré teve crises de choro e ansiedade, e também precisou de atendimento médico.

Apesar dos recursos impetrados no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a acusada não conseguiu habeas corpus e permaneceu presa. Enquanto Busato estava em Curitiba, no Paraná, Dalledone mantinha o esquema de leitura de peças no júri. Isso se estendeu por quase duas semanas, com jurados e testemunhas isolados em um hotel. 

Então, no 14º dia, as coisas mudaram de rumo. O advogado de Valentina desistiu da cansativa estratégia, para apressar os trabalhos. “A defesa abriu mão das outras peças porque o imprescindível, o essencial do essencial, foi lido e assimilado pelos senhores do júri”, disse Dalledone em entrevista concedida para a TV na época.

TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO

Finalmente chegou o momento das pessoas arroladas serem ouvidas. Das cinco testemunhas de acusação, quatro já haviam prestado depoimento nos julgamentos anteriores: os dois sobreviventes; Lúcia da Cunha Chipaia, irmã de Judirley; e Juarez Gomes Pessoa, pai de Jaenes. 

Agostinho José da Costa acabou dispensado pela promotoria, já que não possuía relevância para o caso de Valentina. Na realidade, nenhum dos nomes na lista tinha algo específico a dizer contra a ré – exceto por Edmilson Frazão, cujo relato era o mais aguardado. 

Durante o depoimento, que durou quatro horas, o marceneiro reconheceu Valentina como uma das participantes de um culto macabro realizado na chácara de Anísio Ferreira de Souza em 1990. De acordo com ele, também estavam no local os já condenados Amailton Madeira Gomes, Carlos Alberto dos Santos Lima e Césio Flávio Caldas Brandão.

A defesa, porém, alega ter conseguido extrair várias contradições ao longo do testemunho. Uma delas, por exemplo, faz referência ao fato de Edmilson dizer que a ré estava de capuz no dia do ritual, em um ambiente iluminado apenas por velas. Diante desse detalhe, Dalledone pergunta como era o cabelo da acusada. 

“Ele [Edmilson] disse: ‘era um cabelo curto e tal’. No final, eu questionei: ‘mas como você viu, com a sala escura e o capuz, o cabelo de Valentina?’. Bum. Desmontou. Desmontou ali”, contou o advogado.

O mentor de Dalledone, Arnaldo Busato, voltou para Belém quando os depoimentos das testemunhas começaram. Por isso, também interrogou Frazão. “No júri, ele disse que as pessoas [da seita] estavam com tridentes. Então, eu fui citando detalhes do imaginário e ele ia confirmando tudo. Se eu dissesse que o próprio demônio apareceu naquele instante com a ponta do rabo, ele confirmaria, porque a coisa era nessa linha”, afirmou em entrevista ao podcast.

Para ele, a entrada da Polícia Federal no caso provocou um desvio nas investigações e consolidou a teoria de seita satânica. “Aí que começam a surgir essas testemunhas, como o Edmilson Frazão, que era cagoete da polícia. Era um indivíduo de péssimos antecedentes e foi plantado ali para dizer que assistiu aos rituais”, completou Busato.

A acusação sobre a fabricação de depoimentos por parte da PF é grave. Mas a defesa tinha motivos para acreditar nisso, como já explicado no episódio 14. Em 1995, Edmilson prestou dois relatos contraditórios ao Ministério Público, após a fase de instrução. No primeiro, ele afirmou que foi coagido pela PF e, por isso, inventou toda a história do culto na chácara de Anísio. Mais tarde, no segundo termo de declarações, ele desmentiu que agentes federais o pressionaram e relatou ter sofrido ameaças da família Gomes e seus advogados.

Depoimento de Edmilson Frazão sobre a pressão da PF

Depoimento de Edmilson Frazão sobre a família Gomes

Nesse contexto, a defesa de Valentina acreditava que o marceneiro havia falado a verdade no primeiro relato, quando denunciou a coação da PF. Contribuíram também para essa tese as diversas contradições e a falta de explicações convincentes durante o depoimento dele no júri.  

Ao compará-lo com os três testemunhos prestados por Frazão no início da década de 1990, fica evidente a mudança em relação a um detalhe específico: as pessoas presentes na tal “missa negra”. Anteriormente, ele cita Anísio, a esposa do médico, o contrabandista Antônio Paraná, Valentina e um rapaz que não soube identificar. 

Já no segundo depoimento, a testemunha afirma que, durante o culto, Anísio teria dito que faltava um homem ali, que seria o ex-PM Carlos Alberto. Por fim, no terceiro, em juízo, o marceneiro é questionado se Césio participou do evento na chácara, e ele responde que não. Mas, agora, no júri, a informação era outra: Edmilson diz, com todas as letras, que o médico estava sim no culto.

Primeiro depoimento de Edmilson Frazão

Transcrição do primeiro depoimento de Edmilson

Segundo depoimento de Edmilson

Depoimento de Edmilson em juízo

Além disso, a descrição da tal “missa negra” é muito mais detalhada nesse depoimento do júri, ao contrário dos testemunhos anteriores. Agora, o marceneiro dizia que, na chácara de Anísio, Valentina declarou que aquela reunião era “especificamente acerca da emasculação de crianças”. Segundo ele, a líder do LUS também explicou como seria o trabalho da seita, citando os demais acusados: Amailton seduziria os meninos, que seriam castrados pelos médicos e mortos pelo ex-PM. 

Se as incongruências não bastassem, a defesa ainda tinha outra carta na manga. Pouco antes de Frazão ser ouvido em plenário, os advogados tentaram juntar aos autos a ficha criminal dele. Isso, porém, não seria possível, pois o prazo para anexar novos materiais já havia se encerrado. Mesmo sem essa entrada oficial no processo, os jurados ficaram sabendo que a testemunha de acusação tinha uma série de problemas com a justiça, desde estelionato até violência contra a mulher. Essa era uma forma de desmoralizá-la diante do Conselho de Sentença. 

Para Arnaldo Busato, essas questões poderiam, inclusive, servir de explicação para o surgimento de Edmilson Frazão no processo. “Ele era um indivíduo pessimamente visto na região e passou a contar com proteção da Polícia Federal. Ele tinha óbvios interesses em mentir a pedido de pessoas interessadas na incriminação da Valentina. E é perfeitamente entendível o motivo que o levou a isso”, afirmou ao podcast.

De acordo com o advogado, a fabricação de relatos também inclui pessoas como Maria da Conceição da Silva e Francisca de Souza Oliveira, mencionadas no episódio 21. Elas apareceram pela primeira vez nos autos pouco antes do júri da ré. Ambas diziam ter visto Valentina em Altamira na época dos crimes. “São testemunhas falsas cooptadas para mentir em juízo, cometer o crime de falso testemunho e incriminar pessoas inocentes”, defendeu Busato.

Termo de declaração de Maria da Conceição da Silva

Termo de declaração de Francisca de Souza Oliveira

No fim, um dos depoimentos mais importantes para fortalecer a ideia de que as emasculações eram cometidas por um grupo de pessoas partia de Wandicley Oliveira Pinheiro, o terceiro sobrevivente. Isso porque ele relatava ter visto, no dia do ataque, quatro pares de pernas através da venda que tapava os seus olhos. 

Conforme demonstrado no episódio 20, quando comparadas, as declarações de Wandicley são marcadas por profundas contradições. Mesmo assim, durante o julgamento, é possível notar que a defesa de Valentina não explorou isso. No máximo, pediu para confirmar que, em 1992, a vítima chegou a reconhecer Rotílio Francisco do Rosário como o agressor.

Primeiro depoimento de Wandicley Oliveira Pinheiro

Retrato falado com base na descrição de Wandicley

Segundo depoimento de Wandicley

Terceiro depoimento de Wandicley

Auto de reconhecimento de Aldenor por Wandicley

Quarto depoimento de Wandicley

Auto de reconhecimento de Rotílio por Wandicley

Segundo Busato, não havia necessidade de enfrentar Wandicley porque ele não acusava a ré diretamente. “Ele não verbalizava uma versão que apontasse para a Valentina. Mas, sobretudo, nós tínhamos álibis muito bem estabelecidos para cada um daqueles fatos apontados pela acusação. Em todas aquelas ocasiões, ela estava ou em Curitiba, em Londrina ou em Buenos Aires”.

O advogado defende que a versão de autoria intelectual surgiu justamente por causa dos álibis. “Antes, a Valentina participava ativamente, inclusive liderava a ação naqueles rituais satânicos na chácara do Anísio. De repente, ela não participava mais porque ficou evidente que estava a milhares de quilômetros de distância. Mas aí que ficou pior e mais clara a fragilidade das teses acusatórias. E, essa segunda tese, de que ela comandaria tudo à distância, não tinha respaldo nenhum”, argumentou Busato.

TESTEMUNHAS DE DEFESA

Após as testemunhas de acusação, os jurados ouviram as pessoas arroladas pela defesa. A primeira a falar foi a professora Socorro Patello, que produziu uma análise do livro de Valentina, “Deus, a Grande Farsa”. Em plenário, ela afirmou que a obra não possuía nenhum elemento incriminatório e que as declarações consideradas polêmicas foram tiradas de contexto. “É a mesma coisa que destacar uma frase de Saramago e dizer que ele fundou uma seita satânica”, disse.

Depois da professora, era a vez de José Carlos de Souza Machado, o agente aposentado da Polícia Federal, prestar depoimento. Ele havia sido responsável pela missão em Altamira que levou à prisão de todos os acusados em 1993.

No júri, José Carlos relatou que esteve na cidade para investigar os casos em três ocasiões: durante um mês em 1993, dois meses em 1994 e três meses em 1995. De acordo com ele, assim que os agentes se convenceram de que tinham material probatório suficiente, entraram em contato com o governo do Pará por meio da Secretaria de Segurança Pública. O órgão, então, disponibilizou policiais e os documentos que possuíam sobre o caso para conseguir, junto à justiça, o mandado de prisão contra os suspeitos. 

Ainda durante o julgamento, o policial aposentado listou quais seriam as provas mais fortes contra cada um deles:

  • Contra Amailton, seria a suposta fuga de Altamira na época da descoberta dos crimes;
  • Contra Carlos Alberto, o depoimento dos sobreviventes, que o reconheceram nos júris como o agressor;
  • Contra Anísio, relatos de diferentes testemunhas, com quem José Carlos conversou durante a estadia na cidade;
  • Contra Césio, as declarações de Agostinho e o próprio comportamento do acusado;
  • Contra Valentina, os depoimentos de pessoas que a teriam visto em Altamira no fim da década de 1980 e início da década de 1990, além do reconhecimento fotográfico feito por Edmilson Frazão e por uma senhora de nome “Francis”.

Aqui vale um comentário: não há nos autos nenhuma mulher chamada Francis. O mais próximo disso é a testemunha Francisca de Souza Oliveira, que apareceu um pouco antes do júri. Por isso, é possível que elas sejam a mesma pessoa, mas não há nada que comprove essa suspeita.

De acordo com a descrição de José Carlos, Francis tinha entre 28 e 30 anos de idade na época dos casos, pele clara e cabelos escuros. Ela morava em São Paulo, enquanto a mãe residia em Altamira. A narrativa do policial dava conta de que a testemunha viu Valentina durante as visitas que fazia à cidade paraense. E não só isso: Francis teria guiado a acusada até a chácara de Anísio, onde aconteciam os rituais.

O agente aposentado afirmou que todas essas informações foram incluídas em um relatório da Polícia Federal, encaminhado posteriormente ao ministro da Justiça da época, Alexandre Dupeyrat.

Ivan Mizanzuk entrou em contato com Dupeyrat, e o advogado afirmou que jamais recebeu qualquer relatório referente ao caso dos emasculados. 

A PF foi à Altamira pela primeira vez em abril de 1993 e, neste período, o ministro era o já falecido Maurício Corrêa. Dupeyrat passou a exercer o cargo no ano seguinte, quando os agentes conduziam a segunda missão na cidade. Logo, é possível que um contato tenha sido estabelecido com o Ministério da Justiça, mas é evidente que isso não gerou nenhuma lembrança profunda no advogado.

Durante o júri, José Carlos alegou não ter conhecimento sobre o paradeiro do relatório por ele mencionado, que não foi anexado aos autos. Não havia também no processo nenhum depoimento tomado pela PF – o que era estranho, já que o ex-agente reiterou que ouviu várias testemunhas em Altamira. Por isso, a defesa foi incisiva nas perguntas: como, afinal, a polícia registrava as informações levantadas? Onde estavam os documentos com as diligências?

Diante dos questionamentos, o agente aposentado se limitou a dizer que a instrumentalização dos trabalhos foi a entrega do relatório, que ele não sabia onde estava. 

Além disso, Dalledone aproveitou para interrogar José Carlos sobre eventuais ligações que ele poderia ter com a polícia paranaense, já que os objetos apreendidos no caso de Guaratuba foram parar nas mãos da PF no Pará. Um trecho chama a atenção na vaga resposta do agente: ele diz que um colega seu esteve no Paraná e voltou com o material de lá. A testemunha não detalha, no entanto, quem seria essa pessoa e como se deu a comunicação entre as corporações.

Com as perguntas sobre os casos Evandro e Leandro, o advogado não buscava apenas descobrir detalhes importantes sobre o processo, mas também reforçar que Valentina não tinha nenhum envolvimento neles. Afinal, àquela altura, os crimes em Guaratuba já tinham outras pessoas presas, que passavam por julgamento. De certa forma, o advogado reforçou a culpa das Abagge e dos demais suspeitos para inocentar a líder do LUS.

“Eu tinha essa convicção. Só os tolos e os mortos jamais mudam de opinião. Naquele momento, eu acreditava que existiam sim indícios de autoria contra as Abagge. Depois do júri da Valentina e de um amadurecimento profissional, eu pedi perdão em público para a dona Celina e para a Beatriz. Eu sei da inocência delas”, declarou Dalledone ao podcast.

De qualquer modo, a tática da defesa aqui não era simplesmente dar voz ao ex-agente da PF. A ideia era confrontar o relato dele com o da próxima testemunha ouvida no júri: o delegado Brivaldo Pinto Soares Filho, da Polícia Civil. Ele foi o responsável por investigar a morte de Jaenes da Silva Pessoa em outubro de 1992, e chegou à conclusão de que Amailton estava por trás do crime. Ou seja, as teses de José Carlos e Brivaldo eram intimamente diferentes.

A antropóloga Paula Lacerda entrevistou Brivaldo em 2010 para a sua tese de doutorado. Hoje, ele já é falecido. Para ela, o delegado não acreditava na atuação de uma seita como a descrita pela Polícia Federal. A principal figura, nesse contexto, não seria Valentina – que nem havia aparecido no processo ainda -, mas sim Amailton. 

“Como o Amailton era de uma família poderosa, ele poderia dispor de pessoas que realizassem partes dos serviços, ou talvez até a parte criminosa do serviço. Mas, ainda assim, ele era o mandante e o articulador. Essa questão de uma seita ou de outras pessoas, por mais que Brivaldo tenha recomendado o prosseguimento das investigações, nunca foi algo que o mobilizou”, explicou a pesquisadora sobre a visão defendida pelo delegado.

Essa era a principal contradição que a defesa de Valentina queria expor. Se ela era acusada de comandar uma seita que matava crianças, como é possível que o delegado responsável pela prisão de um dos supostos membros do grupo não acreditasse nessa tese?

A líder do LUS só entrou como suspeita no caso dos emasculados a partir do relato de Edmilson Frazão, que falava no culto macabro na chácara de Anísio. Mas o próprio médico foi um dos suspeitos investigados por Brivaldo. No júri, o delegado disse: 

Que, naquela época, não havia provas indiciárias contra o Dr. Anísio. Que havia várias pessoas ventiladas, aparecendo o nome de Anísio e de outras pessoas que não tinham nomes. Que não havia provas indiciárias contra CARLOS ALBERTO SANTOS, contra ANÍSIO, contra CÉSIO ou contra a Sra VALENTINA, direcionando toda sua investigação sobre AMAILTON. 

O depoimento de Brivaldo no julgamento é dúbio. Por um lado, ele nunca descartou taxativamente a tese da seita. Afirmou apenas que considerava a possibilidade dos órgãos genitais dos meninos serem utilizados em rituais de magia negra, e ressaltou que Amailton estava na Argentina pouco antes de ser preso – o que poderia ser interpretado como uma ligação com Valentina. 

Porém, o fato é que o delegado sempre acreditou mais na ideia de que “gente poderosa cometia crimes de perversão sexual” do que “crimes ritualísticos”. E, quando ele declarou não ter encontrado nada contra Valentina e Anísio, isso serviu à defesa.

Depois de José Carlos e Brivaldo, as outras duas testemunhas chamadas ao plenário foram dois seguidores da acusada, uma mulher brasileira e um homem argentino. Ambos atestam que Valentina era uma pessoa idônea e que o Lineamento não tinha nenhuma ligação com “magia negra”.

A primeira era Mônica Barbel Walther, já citada brevemente no episódio 15 do podcast. Curiosamente, os pais dela estão na famosa matéria da revista Veja, de julho de 1992, usada para o reconhecimento de Valentina por Edmilson Frazão. Na reportagem, eles dizem que a filha, seguidora do LUS, desapareceu após ter tido contato com o grupo. Em seguida, o texto dá a entender que Mônica teria sofrido um tipo de lavagem cerebral ao se filiar à tal seita.

Matéria da revista Veja sobre Valentina

Mas, no júri, a testemunha desmente essa história por completo. Ela diz que nunca foi dada como desaparecida pela família, e que fazia parte do grupo de Valentina na década de 1980, quando todos foram à Altamira. Mônica reforçou que a viagem era apenas a turismo e que ninguém teve contato com os demais acusados.

Interrogatório de Valentina no júri

Depoimentos de testemunhas no júri

VOTOS DOS JURADOS

Após os depoimentos, em 5 de dezembro de 2003, foram realizados os debates finais entre acusação e defesa. A imprensa, os familiares das vítimas e os apoiadores da ré esperavam ansiosamente pelo resultado do júri mais longo da história do Pará. 

Em seguida, os debates deram lugar aos votos dos jurados. Cada um deles, isoladamente, deveria responder a uma série de perguntas referentes à culpabilidade ou não da acusada. No fim, a leitura da sentença, feita pelo juiz Ronaldo Valle, foi transmitida ao vivo pela TV Liberal do Pará: por seis votos a um, a ré foi absolvida. 

Ata e votos do júri de Valentina

Neste momento, Valentina desmaiou e precisou ser carregada às pressas para fora do tribunal. O clima tenso no júri se estendeu após a divulgação do resultado. Reportagens de TV da época mostram que a população ficou revoltada e houve tumulto. O Batalhão de Choque da Polícia Militar foi acionado e se dirigiu até o local para conter os ânimos.

Do lado de fora do Fórum, manifestantes derramaram tinta vermelha nas escadarias e espalharam flores, como forma de protesto. Durante a confusão, uma mulher acabou detida suspeita de apedrejar o carro onde estavam os advogados de Valentina.

Após a sentença, a líder do LUS foi levada até a penitenciária onde estava presa desde setembro, para assinar o alvará de soltura. De lá, seguiu escondida no banco de trás de um carro até um hotel. Na suíte, concedeu uma entrevista exclusiva para a Rede Globo. Ao repórter, ela disse não ter medo de ser investigada novamente. “Com a inocência de sempre, com a verdade de sempre”, completou.

Após as quatro condenações anteriores, esse resultado foi totalmente inesperado. A acusação logo reagiu, afirmando que os jurados teriam sido induzidos ao erro e votado contra as provas do processo. Por isso, o próximo passo seria pedir a anulação do júri.

A promotora Rosana Cordovil ficou tão indignada com a absolvição que considerou parar de atuar em julgamentos. “Não queremos mais participar do Tribunal do Júri, a não ser no caso da Valentina, né? Esse foi o crime mais bárbaro, mais hediondo e cruel com o qual trabalhei. Eu, confiando na justiça e consciente de que as provas do processo eram suficientes, me deparo com uma decisão absurda dessa natureza”, desabafou ela em entrevista à imprensa na época. 

Eventualmente, a promotora voltou atrás e desistiu de abandonar os júris. Ela continuou a trabalhar em julgamentos por muitos anos.

Enquanto isso, a sensação de impunidade aumentou em Altamira e a população resolveu ir às ruas para protestar. Afinal, a violência contra menores, mesmo que não relacionada ao caso dos emasculados, ainda era uma dura realidade. Segundo reportagem da TV Liberal da época, o Conselho Tutelar do município registrou 500 ocorrências em um período de três anos. 

Já em Belém, a acusação preparou o recurso para pedir a anulação do júri. O documento ficou pronto em 11 de dezembro de 2003, seis dias após a leitura da sentença. 

Apelação do MPPA para anular o júri

Os observadores federais que acompanhavam o caso também se movimentaram em Brasília, com a colaboração da Polícia Federal. Eles suspeitavam de uma grave irregularidade no júri de Valentina: os jurados teriam quebrado o isolamento e conversado com pessoas de fora do tribunal, o que é proibido. Se isso fosse verdade, o julgamento poderia ser anulado.

Todos da acusação tinham certeza que a líder do LUS seria condenada. Como isso não aconteceu, muitos passaram a desconfiar que algo estranho ocorreu, e decidiram investigar. 

*Este episódio usou reportagens da Rede Globo, TV Cultura, TV Record, TV Bandeirantes e SBT.