Extras Episódio 22

Durante a produção da temporada anterior do Projeto Humanos, Ivan Mizanzuk encontrou uma informação bastante curiosa: no fim de 2003, o caso Leandro Bossi saiu das mãos da Polícia Civil do Paraná e passou a ser responsabilidade da Polícia Federal (PF).
O inquérito da PF sobre o desaparecimento do garoto abre com uma resolução do então secretário especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda. O documento, de 24 de setembro de 2003, defende a tese de que a “seita satânica” estaria por trás de diferentes crimes contra crianças em todo o país. Por fim, ele recomenda:
[…] a abertura das investigações, pela Polícia Federal, em todos os Estados onde houve indícios da nefanda prática de sequestro, tortura, emasculação e morte contra indefesos meninos, que foram imolados em várias partes do território nacional, por inspiração da seita LUS.
Resolução de Nilmário Miranda no inquérito da PF
Ao ver esse documento pela primeira vez, ainda no caso Evandro, Ivan elaborou algumas perguntas: por que a PF assumiu as investigações sobre Leandro Bossi em 2003? Por que havia uma resolução do secretário especial de Direitos Humanos no inquérito? Por que o Lineamento Universal Superior (LUS) foi citado como suspeito se o grupo já havia sido investigado na época do crime, e nenhuma prova havia sido encontrada?
Todas as peças só começaram a se encaixar quando o Projeto Humanos entrou no caso dos meninos emasculados de Altamira.
Como já mencionado nesta temporada, um pouco antes do início dos júris, em agosto de 2003, a imprensa falava na existência de 19 vítimas no Pará, enquanto apenas cinco delas foram incluídas no processo. Os julgamentos, então, se tornaram o contexto perfeito para que as autoridades pressionassem pela investigação dos 14 casos restantes.
Somavam-se também a eles os crimes registrados em outros estados, como os emasculados do Maranhão, e contra os garotos Evandro Ramos Caetano e Leandro Bossi, no Paraná.
Por conta da presença de Valentina de Andrade na lista de réus, os representantes do governo federal que assistiam aos júris acreditavam no possível envolvimento do LUS nesses eventos.
Após a condenação dos homens, o julgamento de Valentina foi marcado para 22 de setembro de 2003, mas acabou adiado devido a uma mudança na equipe da defesa. Dois dias depois, Nilmário Miranda lançou a resolução mencionada, dando poderes para a PF apurar todos os crimes que poderiam ter ligação com o Lineamento. Foi assim que o caso Leandro Bossi parou nas mãos dos agentes federais.
No fim, porém, não houve nenhum avanço significativo nas investigações da PF que pudesse auxiliar na resolução do crime contra Leandro.
SUPOSTA FUGA DE VALENTINA
Em 24 de setembro de 2003, Valentina completou 20 dias presa. Ela foi detida por ordem do juiz Ronaldo Valle após uma suposta tentativa de fuga para a Argentina. A defesa, por outro lado, sempre negou que isso tenha acontecido.
Segundo o advogado Cláudio Dalledone Júnior, o mentor Arnaldo Faivro Busato Filho, que acompanhava o caso, sempre foi muito correto e jamais sugeriria que a cliente fugisse. “O Arnaldo Busato é um dos caras mais ‘caretas’ do ponto de vista de qualquer… Ele nunca faria isso, sabe? Não existia isso”, garantiu em entrevista ao podcast.
Ao analisar a prisão, é preciso logo de início esclarecer que, ao contrário da impressão de muitos, Valentina não foi detida pela Polícia Federal. Na realidade, ela se apresentou ao juiz no último dia do júri de Anísio Ferreira de Souza, junto com advogados. Na ocasião, o magistrado decretou a prisão preventiva da acusada por conta das informações que recebeu dos agentes da PF, que estavam organizadas em quatro documentos.
O primeiro é um comunicado produzido em setembro, período do júri de Anísio. Na época, o advogado Américo Leal disse que Valentina não compareceu ao tribunal porque estava doente. Esse memorando mostra que um delegado da PF de Londrina, no Paraná, realizou diligências na casa da ré e em clínicas médicas da região na tentativa de encontrá-la, mas não obteve sucesso.
O segundo é um relatório assinado por um agente da PF de São Paulo que trabalhava no aeroporto de Guarulhos. Ele também se refere a acontecimentos de 2 de setembro de 2003, uma terça-feira, o primeiro dia de julgamento de Anísio.
;Em resumo, o policial explica que, pela manhã, Valentina foi reconhecida no aeroporto, acompanhada de dois argentinos, um homem e uma mulher. A suspeita era de que ela tentaria embarcar para Buenos Aires. Ao ser identificado, porém, o trio fugiu às pressas:
Diante das circunstâncias do local e do andamento das operações de fiscalização migratória, a passageira suspeita, acompanhada de um casal, temendo por sua identificação e demais consequências, evadiu-se repentinamente do local.
Em tal fuga, tanto a passageira Valentina como o casal que a acompanhava acabaram por abandonar seus documentos de viagem no local.
Os documentos deixados para trás e anexados ao relatório eram os seguintes: o RG de Valentina, e as identidades argentinas de Walter Muñoz – marido dela na época – e de Cláudia Marcela Falciglia, amiga do casal.
Após a fuga, os agentes tentaram segui-los, mas não conseguiram interceptá-los. As diligências, no entanto, continuaram. Segundo o relatório, os suspeitos usaram táxis distintos e seguiram até um posto de gasolina na Avenida Morumbi. Lá, fizeram uma ligação em um telefone público e, um tempo depois, foram apanhados por um homem que dirigia um Fiat Tipo cinza. Ele foi descrito como um indivíduo de aproximadamente 30 anos, com pele branca, cabelos castanhos escuros, compleição física forte, e sem barba nem bigode. A polícia checou os dados do veículo e chegou ao nome de Josephina Beirute Wassef, mãe de Frederick Wassef. Em seguida, os agentes foram até o endereço dela, ainda no bairro Morumbi, e confirmaram algumas informações com o porteiro.
Tudo isso ocorreu no mesmo dia em que Valentina deveria se apresentar no júri, enquanto Américo Leal dizia que ela estava em casa, no Paraná, com problemas de saúde.
Já o terceiro documento produzido pela PF é um memorando sobre o desembarque de Valentina em Belém em 3 de setembro, quarta-feira, onde ela foi recebida por advogados. Por fim, o quarto e último arquivo era um ofício resumindo todas as diligências. Foi com base nele que o juiz Ronaldo Valle decretou a prisão da acusada, como forma de impedir que ela fugisse.
No meio disso tudo, a imprensa publicou algumas informações equivocadas, como o fato de que a líder do LUS teria se hospedado em São Paulo com uma identidade falsa. Ela realmente ficou em um hotel no dia primeiro de setembro, mas o sobrenome que usava vinha do casamento com o argentino Walter Muñoz.
Em 8 de setembro, quatro dias após a prisão, Américo Leal escreveu um pedido de habeas corpus para a ré. O advogado defendeu que ela se apresentou de forma espontânea ao juiz e jamais tentou fugir.
Relatório da PF sobre dia 2 de setembro de Valentina em São Paulo
Ofício da PF explicando sobre tentativa de fuga de Valentina
Informação sobre chegada de Valentina em Belém no dia 3 de setembro
Américo Leal explica que Valentina não estava tentando fugir (contém bilhete de passagem)
Diante de tudo isso, afinal, Valentina tentou fugir ou não? Ao olhar com mais atenção para os documentos da PF, Ivan Mizanzuk encontrou uma importante informação no recibo do hotel onde Valentina e os argentinos estavam hospedados em São Paulo. Nele, há o registro da data e horário de entrada no local: 1h da madrugada do dia primeiro para o dia 2 de setembro. Já a saída foi pouco tempo depois, às 7h da manhã.
Reserva de hotel de Valentina e acompanhantes em Guarulhos
Mas onde o trio estava antes de chegar no aeroporto de Guarulhos e se hospedar no hotel? A resposta está no pedido de habeas corpus elaborado por Américo Leal, que inclui o bilhete aéreo de Valentina:
A Sra Valentina havia estado no exterior (Argentina) ainda no final de semana imediatamente anterior ao início dessa sessão de julgamento, e chegou em São Paulo na data de 2 do corrente. Explica-se: ela tinha ido para aquele país na data de 30 de Agosto (sábado).
Ela na Argentina havia comprado passagem de ida e volta, pois iria retornar àquele país em busca de documentos fornecidos por órgãos públicos que irão servir à sua defesa em plenário. Já que não conseguiu obtê-los por completo, seria necessário retornar à Argentina, mas não o fez, tanto é que sua passagem aérea com o trecho para aquele país continua com data em aberto (cópia em anexo). Assim, deslocou-se ela do aeroporto de Guarulhos para o de Congonhas, de onde tomou o voo para Belém ainda no dia 2. Esse voo faz conexão em Brasília, e naquela capital a Sra Valentina sentiu-se mal, necessitando ali permanecer até do dia 2 para o dia 3. Ainda no dia 3, aportou em Belém, às 13 horas.
De acordo com o advogado, Valentina foi para a Argentina em 30 de agosto, um sábado, para buscar documentos que seriam utilizados no júri. Na segunda-feira, voltou para o Brasil e desembarcou no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Chegou de madrugada e se hospedou em um hotel para passar a noite. Pela manhã, segundo a Polícia Federal, ela teria tentado pegar outro avião para retornar a Buenos Aires. Mas se ela quisesse realmente fugir, não faria mais sentido já ter ficado lá? Por que se dar ao trabalho de passar uma madrugada em terras brasileiras? Justamente por isso, Ivan Mizanzuk hoje tende a acreditar que a líder do LUS não tentou sair do país para escapar da justiça.
Então, o que realmente aconteceu na manhã de 2 de setembro, quando Valentina e os argentinos foram reconhecidos no aeroporto de Guarulhos e deixaram documentos de identidade para trás?
Após visitar o apartamento da mãe de Wassef, Valentina finalmente embarcou para Belém em um voo que saía do aeroporto de Congonhas, com conexão em Brasília. Pouco antes de entrar no avião, a ré se encontrou com o advogado Busato no hotel onde ele estava hospedado.
“Ela nunca foi para Buenos Aires. Ela foi espontaneamente para Belém e se apresentou ao juiz Ronaldo Valle sabendo que seria presa, porque preferiu enfrentar o processo e o júri. Ela sabia exatamente o que aconteceria”, relatou Busato em entrevista ao podcast.
Uma questão, porém, continua sem resposta: Valentina e os argentinos de fato foram para o aeroporto de Guarulhos e deixaram os documentos lá. Por que eles voltaram ao local? Será que mudaram de ideia nas poucas horas que ficaram no Brasil?
Sobre isso, algumas fontes, que preferiram não se identificar, afirmaram ao podcast que existiam advogados na equipe de defesa com um verdadeiro temor da Polícia Federal. Eles tinham medo que a ré estivesse sendo seguida, grampeada, vigiada, e pudesse ser presa a qualquer momento a caminho de Belém. Com o objetivo de evitar isso a todo custo, um dos defensores teria sugerido que ela tentasse despistar a PF, indo até o aeroporto e deixando as identidades no guichê de check in.
Se realmente essa era a intenção, não deu certo, como se pode notar. Não é possível confirmar a veracidade dessa história, mas ela mostra uma desorganização da defesa, com cada advogado em um canto diferente do país. É o que relatou Cláudio Dalledone Júnior ao Projeto Humanos. Ele lembra, por exemplo, de uma ligação nada amistosa com o colega Américo Leal.
“Eu disse ‘isso aqui está uma baderna, uma bagunça. Por isso que todo mundo foi condenado. Não juntam [materiais], vão de qualquer jeito e os caras estão levando. Tem como organizar e tocar isso aqui diferente’. Enquanto isso, as armações contra a defesa eram diuturnas. Coisas absurdas aconteceram ali. Absurdas”, comentou.
De acordo com Busato, em meio a tudo isso, um dos grandes desafios dos defensores era enfrentar o fanatismo religioso e persecutório que contaminou a acusação. Exemplo disso é a tal história de que o corpo de Jaenes da Silva Pessoa, morto em outubro de 1992, teria sangrado durante o velório na presença de Anísio. Para os familiares da vítima, aquilo indicava que o médico de fato era o assassino.
Pela primeira vez, a produção do podcast ouviu uma explicação sobre a origem dessa crença. “Esse tipo de estratégia acusatória remonta à Idade Média, ao chamado judicium feretri, em que o cadáver era colocado perante os suspeitos. Se ele emanasse sangue diante de um deles, isso seria considerado uma prova evidente da autoria do crime. Esse procedimento foi muito adotado até o século 16, quando um jurista e teólogo fez alguns experimentos e comprovou que isso raramente funcionava”, explicou Busato.
Segundo ele, o judicium feretri surgiu da leitura do Velho Testamento, especificamente do trecho que faz referência ao assassinato de Abel por Caim. “O sangue de Abel, vox sanguinis, acusou Caim. Então, o confronto entre cadáver e suspeito sempre foi um critério de obtenção de indícios para fins de tortura e sacrifício de pessoas envolvidas nos mais diversos crimes. E você vê no inquérito que o pai do Jaenes fala que isso aconteceu. De onde ele tirou isso?”, questionou.
Para o advogado, o uso de elementos como esse no caso dos emasculados evidencia uma forte influência da Igreja Católica sobre os familiares das vítimas e o próprio processo. “Quando você não encontra uma explicação racional para um fato, você busca uma solução irracional, misteriosa, religiosa. E aí surge espaço para a intervenção desse fundamentalismo, que marcou muito o julgamento. Os padres e o bispo juntos lá, a promotora falando que tinha que haver condenação porque ali era a terra de Nossa Senhora de Nazaré… E a Valentina tendo escrito o livro ‘Deus, a Grande Farsa’”.
Apesar do fanatismo presente no júri, ele pontua que os tribunais do Santo Ofício atualmente são rejeitados até pelo papa, que condena as medidas utilizadas séculos atrás. “Eu penso que a religião em si nada tem a ver com essas práticas mais de cunho político institucional, de uma época em que a Igreja precisava dominar o mundo e se valia da inquisição e da excomunhão como os seus maiores instrumentos”, concluiu.
MOVIMENTAÇÃO ARGENTINA
Após o adiamento, o júri de Valentina deveria começar em 29 de setembro. Na época, vários argentinos que apoiavam a ré viajaram até Belém para acompanhar as sessões. Eles passaram a realizar protestos em frente ao tribunal, defendendo a inocência da suspeita, e a Polícia Federal logo entrou em ação para tentar expulsá-los do Brasil.
A corporação apresentou como argumento uma lei que proibia estrangeiros de se manifestarem publicamente sobre assuntos de interesse local. Em resposta, Dalledone afirmou à imprensa que entraria com um mandado de segurança para que eles permanecessem em Belém.
A tensão aumentou ainda mais diante da expectativa gerada pela perícia das fitas enviadas ao Ministério Público pela PF. Segundo a polícia, os vídeos eram comprometedores contra Valentina e o grupo LUS.
Já a defesa, representada por Dalledone, exigiu que pudesse apontar dois peritos para acompanhar a análise: Ari Ferreira Fontana e Leocádio Casanova. Além disso, o advogado elaborou uma série de perguntas a serem respondidas no laudo final. Em uma delas, ele quer saber, por exemplo, se o material apreendido pela PF veio de Guaratuba. Essa dúvida, porém, nunca foi respondida.
Perguntas de Dalledone sobre o conteúdo e origem das fitas VHS
Por conta da demora na perícia, o julgamento precisou ser adiado mais uma vez. Agora, a data escolhida era 19 de novembro de 2003. Até lá, apesar dos esforços dos advogados, Valentina permaneceria presa.
De um lado, com muita dificuldade, as famílias das vítimas recebiam ajuda de entidades para se manter em Belém, já em número bastante reduzido, se comparado ao primeiro júri. Do outro, os argentinos buscavam autorização da justiça para permanecer no Brasil, o que conseguiram eventualmente.
A defesa agora ganhava tempo para melhorar as estratégias. Enquanto isso, os seguidores do LUS concediam entrevistas na imprensa para quem estivesse disposto a ouvi-los. Um dos membros, um argentino chamado Sérgio Bonorino, chegou a participar na ocasião do programa “Sem Censura”, da TV Cultura do Pará.
Um trecho de 20 minutos desta conversa está disponível aqui na enciclopédia, graças ao vasto acervo organizado por Dalledone. Na época, os integrantes do Lineamento gravaram tudo o que aparecia na TV sobre o julgamento, e esse material foi guardado pelo advogado. As imagens estão em preto e branco porque eles usaram um vídeo cassete argentino, que tinha outro sistema de cor.
Na entrevista, Sérgio afirma que o LUS não é uma seita, mas sim uma associação civil sem fins lucrativos fundada na Argentina. No Brasil, o grupo seria o mesmo que uma ONG, segundo ele.
Sobre as ideias do Lineamento, o integrante cita a obra de Valentina. “Quem leu o livro interpreta perfeitamente o que a senhora quis dizer. Ela fala de um deus com ‘d’ pequeno, o que a religião católica vê como o demônio; e de um Deus com ‘D’ grande, que a religião católica vê como Deus. Ela fala de universo, que é amor. Então, a relação é muito parecida”, afirmou.
Entrevista com Sérgio Bonorino para a TV Cultura do Pará
ESTRATÉGIAS DA DEFESA
Em 12 de novembro de 2003, uma semana antes do júri, a defesa de Valentina partiu para o ataque. Naquele momento, o processo dos meninos emasculados de Altamira tinha 16 volumes, o que já era considerado numeroso. Mas os defensores da ré decidiram anexar todos os materiais citados no episódio passado: o caso Evandro; uma série de documentos sobre o LUS; o inquérito de Umuarama, no Paraná; notícias sobre mortes e desaparecimentos de crianças no Brasil; e um processo do Lineamento contra o canal de TV que produziu o documentário “Crimes e Rituais”.
A estratégia era deixar claro que, se havia qualquer relação de Valentina com todos os crimes juntados, agora a acusação teria que apontar exatamente onde estavam as provas contra ela. Nessa manobra, o processo passou de 16 para 60 volumes. E os advogados prometeram que todas as milhares de páginas seriam lidas no júri.
Além disso, a defesa também anexou vários vídeos caseiros do LUS, que mostravam palestras sobre ufologia e atividades banais, como festas juninas, jantares, apresentações artísticas e jogos de vôlei. Eram horas e horas de afazeres mundanos. Um ou outro elemento pode ser considerado meio esquisito, como uma dança que Valentina faz com uma mulher encapuzada, que seria uma representação da luta da luz contra as trevas.
O conteúdo das fitas está disponível abaixo:
TRECHOS LUS 1 – Entrevista Carlos Calvo, conferências etc.
TRECHOS LUS 2 (no final, há a dança de Valentina sobre “Luz contra Trevas”)
TRECHOS LUS 5 (Apresentações de danças diversas)
Entre as gravações, uma das mais interessantes é um depoimento de Roberto Olivera, ex-marido da líder do LUS. No vídeo, o argentino conta como ambos se conheceram em Altamira na década de 1970, enquanto Valentina ainda era casada com Duílio Nolasco Pereira. Ele explica ainda como o casal começou a desenvolver as ideias que mais tarde serviriam para lançar as bases do Lineamento.
O livro de Valentina, “Deus, a Grande Farsa”, também foi juntado na íntegra pela acusação, e a defesa não se opôs. Pelo contrário: exigiu que a obra fosse lida na íntegra durante o júri.
Com essa quantidade de materiais, especulava-se que o julgamento de Valentina poderia levar semanas – diferente dos anteriores, que duraram três dias.
De acordo com Dalledone, a defesa queria mostrar para os jurados que as ideias e atividades do LUS eram inofensivas. “Era um contexto enfadonho, chato e que não tinha nada de magia negra. Era gente brincando, se divertindo, comendo, e a Valentina se manifestando. Naquele cenário, isso foi determinante no julgamento. Uma coisa é você mostrar um trecho pequeno, como fizeram com o livro. E, com relação a ele, decidimos fazer a leitura completa para contextualizar”, disse.
Sobre o conteúdo da obra, o advogado relembrou do parecer realizado em 2001 pela filósofa aposentada Socorro Patello, que foi professora da Universidade Federal do Pará. Na análise, ela conclui que o livro não contém nenhum elemento incriminador. O documento foi anexado nos autos e a professora acabou arrolada como uma das testemunhas de defesa de Valentina.
Análise do livro “Deus, a Grande Farsa”, por Socorro Patello
“Não ler o livro seria suicídio. Seria um verdadeiro suicídio. Nós tínhamos que, se possível, ler da primeira até a última página dos volumes para que os jurados verificassem que toda aquela parafernália não continha sequer um indício contra Valentina”, comentou o advogado Busato.
PERÍCIA NAS FITAS
Em 14 de novembro, a perícia das fitas VHS finalmente ficou pronta. Infelizmente, as gravações anexadas aos autos estavam com defeito e não puderam ser digitalizadas. O conteúdo delas, no entanto, aparece em reportagens da época e no próprio laudo existente nos autos.
O documento falava em duas fitas. A primeira mostra um encontro do Lineamento Universal Superior, com a presença de Valentina. Uma cópia da gravação foi encontrada no acervo de Dalledone e cedida ao Projeto Humanos. Ela é datada de 13 de setembro de 1990 e tem quase três horas de duração.
Nas imagens, há uma sala cheia de membros do LUS, com a líder na frente de todos. Ela está acompanhada do então marido, José Alfredo Teruggi, e do ex-parceiro Roberto Olivera. Apesar da separação anos atrás, ambos continuaram amigos.
O vídeo é separado em partes. Na primeira delas, Valentina conversa com um grupo de pessoas em uma sala pequena, que parece ser um auditório. A líder anda de um lado para o outro, e às vezes os membros do LUS se curvam quando ela passa, em uma espécie de reverência.
Na parede ao fundo há um aviso de “não fumar”, enquanto Valentina segura um cigarro. Ela abraça um homem e dança brevemente com outro. Depois, junto com outra mulher, brinca com Teruggi, e os três riem. Os convidados ao redor aplaudem.
A líder sai momentaneamente e retorna em seguida. Todos, então, se curvam. Ela fala para um homem ao lado de Teruggi: “Olá, papai. Finalmente te encontrei”. Valentina o abraça, e depois eles abraçam Teruggi. A plateia aplaude.
Todos são amigos ali. Eles fazem brincadeiras internas difíceis de serem compreendidas por quem é de fora. Mais adiante, a líder do LUS vai para uma sala maior. Há mais pessoas lá. Ela sobe em um pequeno palco, e ao seu lado estão Teruggi e o ex-companheiro Olivera.
Em um microfone, Valentina discursa de frente para o público, explicando as suas ideias, respondendo perguntas e fazendo piadas. Apesar de ser um encontro casual, é visível que ela ostenta autoridade e admiração por parte dos seguidores, que a chamam de “mama” – ou seja, “mamãe”.
Perto da segunda hora do vídeo, quem começa a falar à plateia é Olivera. Tanto ele quanto Valentina discorrem sobre as chamadas “Verdades”, os ensinamentos que as Individualidades Cósmicas teriam revelado para o casal.
No episódio 15 desta temporada, as ideias do LUS são abordadas com mais detalhes. De qualquer forma, é possível dizer que elas se assemelham com qualquer doutrina esotérica da Nova Era, movimento cultural que surgiu na década de 1960. Essa corrente tinha a tendência de misturar diversas religiões, ideias filosóficas, ufologia, física quântica e misticismos, mas sem muita definição ou aprofundamento.
No vídeo, Valentina e Olivera fazem piadas, e o público ri. Todos parecem se divertir. O áudio nem sempre tem uma boa qualidade, por isso não foi possível transcrever e traduzir tudo para a produção das legendas.
Por volta de 1h40, tudo fica escuro. Esta é a terceira parte da reunião. Agora, os seguidores assistem a um vídeo exibido em uma tela ao fundo. Provavelmente, é uma gravação de Valentina conversando com Individualidades Cósmicas que se incorporaram em Teruggi. Ela e os seus admiradores, a quem chama de “filhos”, tinham o costume de registrar essas interações. A sessão dura cerca de uma hora. Por volta de 2h37, ouvem-se aplausos.
A exibição chega ao fim e as luzes se acendem. A líder do LUS se levanta, abraça e beija o rosto e a testa do ex-companheiro Olivera. Ela se vira, sorri, pega na mão de Teruggi, e eles retornam ao palco. Com o microfone e um cigarro em mãos, Valentina volta a falar sobre a comunicação com as individualidades e as demais ideias do Lineamento.
Vídeo da reunião do Lineamento Universal Superior
Para quem é de fora do grupo, este certamente é um vídeo intrigante. Se você acredita que está diante de um grupo satânico, é inegável que as imagens podem ser assustadoras. Nesta primeira fita, porém, não há nada que seja exatamente incriminador. Segundo a promotoria, o grande trunfo para o caso estava na outra gravação.
O laudo da perícia afirma que a segunda fita era um compilado de vários momentos, com cerca de 46 cortes. Desse vídeo, infelizmente, nenhuma cópia foi encontrada. Mas é possível saber seu conteúdo por meio do que foi reportado pela imprensa e pelo próprio relatório da perícia.
No vídeo, há trechos de outras reuniões similares àquela já descrita, além de jogos de vôlei, danças e apresentações artísticas. Pelas imagens do laudo, tem-se a impressão de que tudo isso ocorreu em um grande encontro do Lineamento, como se fosse um festival.
Dos 46 cortes, dois chamaram a atenção dos acusadores. Um deles é o famoso momento em que Valentina presenteia Teruggi com uma pistola 9 milímetros. Na ocasião, ela fala: “as balas de prata são para matar os vampirinhos”.
Em entrevista à Rede Globo na época do júri, a promotora Rosana Cordovil defende que o termo “vampirinhos” se refere às vítimas. “Foi lido um trecho do livro onde consta que o bebê no ventre da mãe é um vampiro, porque suga as energias maternas. A arma foi dada ao Teruggi para matar crianças”, afirma ela.
A passagem mencionada pela promotora está na página 99 da edição original da obra, em um capítulo no qual Valentina fala sobre gestação e nascimento. Em resumo, dentro da visão pessimista de mundo, a autora explica que o ato de nascer é violento e que a mulher grávida tem as energias sugadas pelo bebê dentro do ventre. Na página 95, lê-se:
O feto ou bebê que ela abrigava em seu ventre NUNCA teve vida própria, pois é impossível que duas Energias resguardem uma só matéria, pois geraria desequilíbrio e briga energética. O bebê respira, se move, vai crescendo, mas sempre alimentado pela Energia da gestante. Ele é um corpo parasita, sem vida própria e sugador energético.
Questões espirituais à parte, Ivan Mizanzuk diz que já ouviu de médicos essa analogia do feto como um parasita, uma vez que a gestante gasta muita energia na produção de uma nova vida. O que Valentina defende, em linhas gerais, é que a Energia individualizada que se materializa no bebê só se concretiza após o corte do cordão umbilical. Logo, dentro do útero, ele ainda não seria uma pessoa de fato. Seguindo esse raciocínio, a líder do LUS chega a ser claramente a favor do aborto, como mostra o trecho a seguir:
Para quem carrega em sua consciência remorsos, culpas, angústias e acusações que desesperam por haverem abortado, propositalmente ou não, pode estar certa de que não cometeu nenhum assassinato. Eu poderia citar ainda muitos exemplos comprobatórios, e referir-me a gestantes mortas em acidentes; o que sucede com o feto quando ela aborta por maus tratos e outros fatos semelhantes, mas realmente, ainda tenho muito que contar e deixarei os detalhes de lado. Mas em quaisquer destas circunstâncias, não culpem nem julguem a ninguém como assassinos, pois estarão cometendo gravíssima injustiça. Mas não pelo revelado iremos aprovar que impeçam a um feto receber vida.
Acredito que, por aí, muitos já estarão predispostos a arremessar esse Livro na minha cabeça. Mas como não estou por perto, estarão me julgando – e não sei com quais direitos adquiridos – de capeta, mentirosa, mulher do satanás, e sei lá com quantos adjetivos mais. Mas não me importa em absoluto. Realmente não me importa NADA. E se quiser saber, satanás é você, que julga sem Conhecer, que vive nas trevas, não sabe o que é LUZ, e menos ainda VERDADE.
Mais adiante, Valentina relaciona os bebês no útero como vampiros, no trecho apontado pela promotora:
Existem casos em que a gestante, ao tornar-se mãe, entra em estados anímicos, sentindo depressões, cansaços, apatias etc. A matéria vai definhando, fatos para os quais não encontra explicações. Quando tem sequência este desenrolar de comportamentos, deve-se à Energia da criança que foi por demais utilizada em reencarnações, e guarda em suas Memórias agressividades escondidas, de uma absorvedora, ou vampiro de outras Energias.
Deus, a Grande Farsa (versão original 1985-86) – Valentina de Andrade
Ainda no período do júri, Valentina concedeu entrevista à imprensa para explicar o que quis dizer com a polêmica frase sobre “matar vampirinhos”. “Nós costumamos nos reunir para brincar. Tinha um morcego que andava sempre para lá e para cá, e nós o apelidamos de ‘vampirinho’. Brincando, eu falei ‘isso é para matar vampirinho’”, afirmou.
Apesar de toda a repercussão, o vídeo da pistola era o menos impactante. As imagens consideradas mais importantes para a acusação estavam em outro trecho da fita. Elas faziam referência a uma peça teatral, que a promotoria considerou como uma simulação de emasculação.
Na gravação, várias pessoas assistem ao momento em que um homem finge introduzir uma furadeira na barriga de uma pessoa deitada no chão. Em seguida, ele passa um spray na região da virilha do indivíduo e de lá retira um balão. Para a acusação, o objeto representa os órgãos genitais das vítimas.
Assim como o comentário sobre os “vampirinhos”, Valentina também tentou se defender dessa tese da promotoria. Segundo ela, tudo não passava de uma brincadeira. “Eles estavam brincando. Não é que pôs a furadeira. Era o que tinha lá e eles pegaram. Eles estavam brincando como se fosse uma cura espiritual. Inclusive, a igreja adventista, se não me engano, tem um vídeo que mostra exatamente a mesma brincadeira. Vamos trazer os adventistas aqui para serem incriminados então”, comentou a líder do LUS em entrevista à imprensa.
Apesar da peça teatral parecer suspeita para os acusadores, Ivan Mizanzuk acha difícil que ela de fato simule uma emasculação. Ele acredita que não faz sentido uma suposta seita diabólica encenar os crimes que cometia. Além disso, o instrumento utilizado, uma furadeira, é estranho nesse contexto.
Para finalizar, há também um detalhe deixado de lado pela promotoria: várias pessoas aparecem na gravação, entre os atores da peça e o próprio público. Se de fato a encenação é de um crime ritualístico, todos os presentes deveriam ser identificados e interrogados como possíveis cúmplices. Isso, no entanto, nunca ocorreu. No fim, a fita jamais foi investigada com profundidade e acabou anexada aos autos sem qualquer contexto.
Por outro lado, os defensores sempre afirmaram que o vídeo mostrava uma peça de teatro sem importância, e também nunca desenvolveram essa versão. Nesses casos, é comum lembrar que o ônus da prova é de quem acusa, mas ainda assim Ivan sente que os advogados da ré poderiam ter ido além. Uma ideia, por exemplo, seria a própria defesa identificar os atores, para que explicassem o propósito da peça. Mesmo assim, existia uma grande chance de todo esse trabalho não surtir efeito no júri. Afinal, a própria justificativa de Valentina para a encenação pode ser considerada estranha.
INÍCIO DO JÚRI
O júri de Valentina de Andrade começou em 19 de novembro de 2003. O volume de peças anexadas pela defesa indicava que ele seria extremamente longo. A leitura dos documentos tomaria os primeiros dias, e só depois as testemunhas de defesa e acusação falariam em plenário.
É nesse ponto que as expectativas estavam altas, pois um novo nome entrou na lista da promotoria: Edmilson da Silva Frazão finalmente foi localizado para participar do júri. Principal testemunha contra Valentina, pela primeira vez, ele estaria frente a frente com a ré.
Mas, do lado da defesa, havia uma surpresa ainda maior. Entre os convocados, estavam o delegado da Polícia Civil Brivaldo Pinto Soares Filho, responsável pelo inquérito de Jaenes em 1992; e o agente da Polícia Federal José Carlos de Souza Machado, chefe da missão de 1993 que apontou a seita como a culpada pelos crimes.
De acordo com o advogado Dalledone, chamar autoridades como essas é uma estratégia que visa escancarar os problemas e incongruências do trabalho policial.
“Quando você arrola um agente da Polícia Federal e um delegado da Polícia Civil que investigam a mesma coisa e têm narrativas contraditórias, isso pode ser esclarecido ao Conselho de Sentença. É no inquérito policial que você mostra as mazelas, as imperfeições e os defeitos de uma investigação, ainda mais quando você está defendendo um inocente. Porque a Valentina é inocente”, disse o advogado ao Projeto Humanos.
Mas, afinal, como a defesa chegou ao nome de José Carlos, um agente que mal aparece nos autos do processo? Como os advogados sabiam da existência dele? A resposta veio depois de algumas conversas com o time de defensores, com destaque para o relato de Frederick Wassef.
“Como eu cheguei no Zé Carlos? Mas o Zé Carlos era o comandante de toda essa operação. Ele era o cara que participava de tudo o tempo todo. Eu perdi a conta de quantas vezes o encontrei no Fórum de Altamira, entrando e saindo de audiência, e depois no Tribunal de Justiça em Belém do Pará”, disse Wassef.
De acordo com o advogado, em um desses encontros em Altamira, ambos travaram uma discussão acalorada. Enquanto Wassef defendia a inocência de Valentina, o policial insistia na culpa da “seita satânica”.
“Várias vezes, durante as conversas, eu falava para ele: ‘Doutor José, a minha cliente é inocente. Como é que vocês estão levando a cabo uma fraude dessas? Vocês estão acusando uma senhora idosa que mora em Londrina, no Paraná, e que nunca pisou no Pará no período em que esses crimes ocorreram. Vocês tão de brincadeira?’”, descreveu o advogado.
Além disso, cara a cara com José Carlos, Wassef argumentou a favor do livro “Deus, a Grande Farsa”. Ele lembra que a defesa distribuiu o manuscrito para jornalistas e membros do judiciário, a fim de provar que não havia nada de criminoso nele.
Uma das pessoas que recebeu a obra foi o repórter Raul Thadeu, do jornal O Liberal, que escreveu uma longa matéria sobre o conteúdo escrito por Valentina. Na reportagem, de 25 de setembro de 1993, o jornalista afirma que não há nenhum elemento no texto que aponte a autora como líder de uma seita matadora de crianças.
Essa matéria faz parte de uma série de artigos críticos que Raul Thadeu produziu para O Libera na época.
Matéria do jornal O Liberal – “Altamira: fim do frágil inquérito”
“Quando eu tive certeza que eu estava diante de um policial federal que sabia da verdade, mas que divulgava a mentira e fazia de tudo para perseguir e prender inocentes, a temperatura subiu dentro do corredor do Fórum”, comentou Wassef, ainda sobre a discussão com José Carlos.
A briga foi tão feia, segundo ele, que outros colegas tiveram que intervir para conter os ânimos. “Vieram outros advogados para acalmar, porque o policial começou a vir forte para cima de mim, com ameaças veladas e uma série de coisas assim, sabe? Eu fui muito constrangido, não foi brincadeira”, completou.
Wassef ainda afirmou não saber o motivo pelo qual um agente da PF estava todo tempo no Fórum de Altamira acompanhando as audiências. Afinal, ele não era advogado ou promotor e, em teoria, não tinha nenhuma função lá dentro.
“Realmente não era função dele estar lá. Aliás, não era nem caso de Polícia Federal, porque crime de homicídio não é de competência dela. Salvo por determinação do presidente da República ou do ministro da Justiça, uma situação absolutamente excepcional”, finalizou.
A produção do podcast entrou em contato com José Carlos de Souza Machado, para que apresentasse a sua versão dos fatos, mas ele não quis gravar entrevista.
Frederick Wassef não participou do júri de Valentina, e também não atuaria mais no caso dos emasculados. No entanto, foi através dele que a defesa conheceu o agente da Polícia Federal e conseguiu arrolá-lo como testemunha. Na época do julgamento, José Carlos já estava aposentado.
O palco, enfim, estava montado. A acusação tinha vídeos novos e uma importante testemunha contra Valentina. A defesa, por sua vez, apostava na leitura de milhares de páginas e em horas de vídeos enfadonhos de atividades do LUS. Além disso, usava a estratégia de convocar policiais que participaram das investigações.
O julgamento estava só começando.
*Este episódio usou reportagens da Rede Globo, TV Cultura, TV Record, TV Bandeirantes e SBT.