Wiki de Altamira

Extras Episódio 21

Em 10 de setembro de 2003, o Tribunal do Júri em Belém considerou Césio Flávio Caldas Brandão culpado pelos crimes em Altamira. Antes dele, também foram condenados Amailton Madeira Gomes, Carlos Alberto dos Santos Lima e Anísio Ferreira de Souza

Agora, o único julgamento que faltava era o de Valentina de Andrade, que estava presa desde 4 de setembro, após uma suposta tentativa de fuga.

Naquele momento, quem conduzia mais de perto a defesa da ré eram os advogados Américo Leal e Arthemio Leal, de Belém. Desde junho de 2003, no entanto, o doutor Arnaldo Faivro Busato Filho, de Curitiba, também auxiliava no caso. Ele já havia trabalhado para Valentina no ano de 1992, quando ela foi considerada suspeita no desaparecimento de Leandro Bossi.

Busato entrou para a equipe de defesa depois da saída de Marco Antônio Sadeck, que acompanhou o processo de Altamira desde o início. O escritório de Sadeck ficava em São Paulo e quem o ajudava no caso era o advogado Frederick Wassef

Após muitas idas e vindas e pedidos de adiamento, o júri de Valentina finalmente foi marcado para 22 de setembro – 12 dias após a condenação de Césio. Durante todo esse período, ela permaneceria presa. 

BASTIDORES ANTES DO JÚRI

Enquanto isso, a Polícia Federal (PF) continuava a operar nos bastidores, conduzindo inclusive novas diligências. Por motivos que não constam nos autos, em 15 de setembro de 2003, agentes realizaram uma busca e apreensão no hospital onde Césio trabalhava em Altamira. Lá, encontraram um cofre, que funcionava como um arquivo morto, com algumas folhas ponto e uma agenda do médico.

Esses documentos foram tema de debate na imprensa, que chegou a afirmar que a testemunha Liliane Tabosa Arraes teria mentido no júri. Exemplo disso é uma reportagem do jornal O Liberal, de 19 de setembro:

Entre os papéis encontrados pela PF no Hospital de Altamira, estão as fichas de pontos dos anos de 1989 e 1992, que comprovam que Liliane estava de plantão quando o Segundo Sobrevivente e Wandicley deram entrada no hospital. Há também anotações que teriam sido feitas de próprio punho, onde a médica informa a internação das crianças.

O assistente de acusação Clodomir Araújo disse que a médica Liliane Tabosa pode passar de testemunha de defesa para co-autora do crime, principalmente diante da pressão pela reabertura do caso dos meninos emasculados em Altamira, com novos indiciamentos.

Matéria do jornal O Liberal – “Novas provas confirmam perjúrio de médica”

Apesar do estardalhaço na mídia, essa reportagem apresenta uma série de equívocos. Primeiro, não há no processo nenhum documento que comprove a entrada dos sobreviventes no hospital. O auto de apreensão da PF, porém, menciona esses registros e detalha as informações de cada paciente.

Independente disso, sabe-se que o Segundo Sobrevivente foi atendido no hospital de Altamira em 17 de novembro de 1989; enquanto Wandicley Oliveira Pinheiro deu entrada no local em 23 de setembro de 1990. As datas batem com a descrição da PF.

Com base nisso, é possível partir para a análise dos cartões ponto apreendidos. Segundo a matéria do jornal O Liberal, a médica Liliane Tabosa mentiu ao dizer que não atendeu nenhum dos sobreviventes.

Em entrevista para o podcast, ela afirmou que estava de férias na época do ataque ao Segundo Sobrevivente, em novembro de 1989. Por outro lado, a folha ponto mostra que o seu período de descanso foi alguns meses antes, entre 4 de setembro e 3 de outubro daquele ano. 

A vítima, contudo, foi atacada em 17 de novembro. Nessa data específica e também no dia anterior, o cartão atesta que a médica de fato não estava no hospital – o que indica que ela provavelmente tirou folga na ocasião. Portanto, a matéria estava errada ao afirmar que Liliane atendeu o Segundo Sobrevivente

Já no caso de Wandicley, o equívoco é ainda mais grosseiro. Ele deu entrada no hospital em 23 de setembro de 1990, mas na ficha de Liliane está claro que ela estava de licença maternidade neste período. Mais especificamente, de 23 de julho a 19 de novembro.

Não à toa, como a própria médica disse no episódio 19 do podcast, nenhuma dessas acusações jamais foi provada. 

O que mais chamou a atenção da Polícia Federal, no entanto, não foram essas fichas ponto, mas sim uma agenda de Césio, também guardada no cofre. Ela não está anexada nos autos, mas é descrita em um ofício da delegada Maria das Graças Malheiros Monteiro, que conduziu a busca e apreensão. O documento é endereçado ao Superintendente da PF Néder Duarte:

No cofre do hospital foi localizada uma agenda, identificada como sendo do médico CÉSIO FLÁVIO CALDAS BRANDÃO. Há nela uma anotação, do dia 7 de Setembro de 1992, onde se lê: “6 novilhos castrados”.

Existem muitas anotações de caráter pessoal, mas nenhuma que se relacione à pecuária. Há que ser levantado se, nessa data, já havia sido emasculado esse número de crianças. Fiz averiguações no próprio hospital, para obter informações se o médico citado era criador de gado, sendo que todos foram unânimes em dizer que desconheciam que o mesmo fosse pecuarista. 

A associação feita pela Polícia Federal é clara: a frase “seis novilhos castrados” seria uma referência ao caso dos meninos emasculados.

Busca e apreensão no Hospital da Fundação Sesp

Em 30 de setembro de 2003, o Ministério Público (MP) pediu ao juiz Ronaldo Valle a realização de um exame grafotécnico na agenda, para determinar se a letra era ou não de Césio. A essa altura, o médico já havia sido condenado e estava preso há dias. Pouco tempo depois, a requisição do MP foi aceita pelo magistrado.

Em outubro, Valle solicitou que o superintendente do sistema penal conduzisse o médico ao Instituto de Criminalística, para a colheita de padrões grafotécnicos. 

Deferimento do juiz Valle

Um dia antes do exame, porém, o advogado Jânio Siqueira apresentou uma petição com duras críticas à Polícia Federal. Em todo o processo, essa é provavelmente uma das únicas vezes em que ações da corporação são diretamente desaprovadas por um personagem da defesa. Um trecho do documento afirma:

É indisfarçável que a APREENSÃO da AGENDA PARTICULAR do RÉU foi um espetáculo deprimente de ILEGALIDADE e ABUSO DE PODER em pleno Estado Democrático de Direito, vez que foi resultado de BUSCA E APREENSÃO feita SEM QUALQUER ORDEM OU AMPARO JUDICIAL, constituindo-se numa autêntica e vergonhosa PROVA ILÍCITA, cujo DESENTRANHAMENTO DOS AUTOS deveria, inclusive, ter sido ordenado por obrigação por esse respeitável juízo, mas cuja “teimosia judicial” contaminará de NULIDADE TOTAL E ABSOLUTA, agora de uma vez por todas, esse esdrúxulo e medieval Processo-Crime.

[…]

Meritíssimo Juiz, evidente que o RÉU-REQUERENTE NÃO ESTÁ OBRIGADO A PRODUZIR PROVAS CONTRA SI MESMO. E, assim, o REQUERENTE SE ARROGA DESDE JÁ O DIREITO DE SE RECUSAR A PRODUZIR PADRÕES GRÁFICOS DE SEU PRÓPRIO PUNHO, VISANDO A COMPARAÇÃO GRÁFICO-PERICIAL, SE O REFERIDO EXAME PERICIAL-GRAFOTÉCNICO NÃO FOR ACOMPANHADO POR UM ASSISTENTE TÉCNICO DE SUA ESTRITA CONFIANÇA, e cujo nome já se acha indicado nesta petição.

Petição de Jânio Siqueira

O perito citado na petição era o doutor Ari Ferreira Fontana, de Curitiba. Ele estava em Belém naquele período trabalhando com a defesa de Valentina. Ao final do documento, Siqueira ainda listou cinco perguntas que ele gostaria que Fontana respondesse após o exame. 

A resposta de Valle veio no mesmo dia. O magistrado alegou que o advogado de Césio havia cometido um equívoco, já que defensores só poderiam indicar peritos “até o ato da diligência”. Segundo ele, esse não era o caso. Mesmo assim, o juiz aceitou que as indagações de Siqueira fossem respondidas pelo perito designado, Iran B. de Castro, chefe do Setor de Grafodocumentoscopia do Centro de Perícias Científicas Renato Chaves. 

Resposta do juiz Valle a Jânio Siqueira

O exame, marcado para 21 de outubro de 2003, acabou não sendo realizado. No dia 24, o doutor Iran requisitou ao juiz que lhe mandassem manuscritos de Césio da mesma data da agenda, 1992, para fins de comparação. A requisição foi atendida pelo magistrado em 4 de novembro, com o envio de peças do processo que continham a assinatura e anotações do médico. 

Ofício do perito Iran B. de Castro

Resposta do juiz Valle

Juiz Valle determina prazo de 24 horas para a realização do exame

Finalmente, em 7 de novembro, Césio foi levado ao Instituto de Criminalística, mas se recusou a produzir os manuscritos que seriam utilizados na perícia. Quatro dias depois, Iran B. de Castro enviou um novo ofício ao juiz, explicando a conduta do médico.

Ofício de Iran sobre a recusa de Césio

Termo de recusa de Césio

No fim, dois meses após a apreensão, a agenda de Césio não havia sido periciada – o que também não aconteceria no decorrer dos anos seguintes.

A acusação claramente entendeu a recusa como uma admissão de culpa. Mesmo assim, não deu grande importância para isso, uma vez que Césio já estava condenado e preso.

Do lado da defesa, existem algumas explicações. Em primeiro lugar, os advogados e o próprio médico admitem que a agenda realmente era dele, mas suspeitavam que a escrita dos “6 novilhos” seria uma falsificação.

Além disso, é importante considerar que o objeto foi encontrado em 2003. Já fazia 10 anos que Césio não trabalhava mais no hospital, desde a prisão em 1993. Ou seja, talvez os funcionários do local que conversaram com a delegada Maria das Graças na época da apreensão nem conhecessem o médico direito. Por isso, é possível questionar se eles realmente sabiam dizer se o acusado criava gado ou não.

Algumas fontes confirmaram para Ivan Mizanzuk que Césio comprava bezerros na década de 1990. E, quando os animais chegam em uma certa idade, é comum que sejam castrados. Ainda assim, essas mesmas pessoas garantiram que o médico utilizava a agenda apenas para o trabalho no hospital, e dificilmente escreveria algo sobre outros assuntos. Daí a suspeita de que a escrita seria falsa. 

Na opinião de Mizanzuk, a anotação dos “6 novilhos” é bem diferente de outra presente na mesma página, que teria sido feita pelo médico. O pesquisador Rubens Pena Júnior teve acesso à agenda e tirou uma foto da folha:

Independente disso, outra dúvida surge: quantas crianças foram emasculadas até setembro de 1992, data da anotação? Os números batiam? Infelizmente, essa pergunta não pode ser respondida com exatidão, por conta da precariedade do caso. 

Usando o relatório do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses como base, 11 meninos teriam sido vítimas na época, entre mortos, sobreviventes e desaparecidos. Isso, porém, não impediria a Polícia Federal de alegar que Césio teria participado de somente seis crimes, por exemplo. No fim, a agenda pode significar muita ou pouca coisa, só depende do que cada lado acredita.

Por muito tempo, o objeto fez parte dos autos do processo. Ele só foi desentranhado posteriormente, quando a justiça entendeu que essa seria uma prova ilícita. 

Diante de tudo isso, a questão mais relevante é a seguinte: Por que a PF conduziu uma busca e apreensão no hospital de Altamira cinco dias depois de Césio ser condenado? Uma possível resposta estaria no ofício já citado da delegada Maria das Graças Malheiros Monteiro, de 17 de setembro de 2003:

A diligência realizada no arquivo morto teve por objetivo localizar provas documentais, tais como prontuários médicos ou fichas de atendimento dos menores sobreviventes, folhas de ponto, cartões de ponto etc., tendo sido localizados apenas cartões de ponto de serviços extraordinários, que foram devidamente apreendidos. Inexistem prontuários dos menores Wandicley Oliveira Pinheiro e do Segundo Sobrevivente. Questionado o fato, fui informada que quando o paciente dava entrada no hospital, permanecendo por pouco tempo, isto é, até 24 horas, não era aberto prontuário ou ficha.

Ainda de acordo com a delegada, os materiais apreendidos poderiam solucionar as dúvidas referentes ao depoimento de Liliane Tabosa Arraes no júri. Tudo indica, portanto, que o procedimento realizado pela PF no hospital se deu por conta das alegações de falso testemunho contra a médica. 

Além disso, é curiosa a afirmação de que se o paciente permanecia menos de 24 horas no hospital, não havia registros em prontuário ou ficha. Esse era justamente o caso de Gracinda Lima Guimarães, testemunha de defesa de Césio, que passou por um atendimento de emergência em primeiro de outubro de 1992.

De qualquer forma, apesar de no fim não ter dado em nada, a história da agenda evidencia uma estranha relação entre a Polícia Federal e o Ministério Público na época dos julgamentos. 

SURPRESAS DA ACUSAÇÃO

Césio foi condenado em 10 de setembro de 2003, enquanto o júri de Valentina de Andrade estava marcado para o próximo dia 22.

Antes disso, porém, o Ministério Público requisitou ao juiz Ronaldo Valle que novos materiais enviados pela PF fossem anexados ao processo – na maioria, fitas de vídeo que estavam com os agentes sabe-se lá há quanto tempo. De acordo com o MP, o que as imagens e áudios mostravam eram bastante comprometedores para Valentina. 

Em uma reportagem da Globonews na época, o superintendente Néder Duarte diz que as fitas continham informações sobre os rituais e a iniciação de pessoas na seita. Na mesma matéria, o repórter afirma que os vídeos haviam sido encontrados na casa de Amailton Gomes Madeira – o que seria surpreendente, se fosse verdade. O erro do jornalista, contudo, é justificável, já que ninguém sabia ao certo a origem do material. Como, afinal, a PF teve acesso a ele?

É provável que as fitas fizessem parte dos objetos apreendidos na casa de Valentina em julho de 1992, pela Polícia Civil do Paraná. Uma explicação detalhada sobre esse procedimento está presente no episódio 15 desta temporada. Não há, no entanto, nenhum registro nos autos de como o material foi transferido para o Pará.

O auto de busca e apreensão da Polícia Civil do Paraná fala em 17 fitas VHS. Em terras paraenses, possivelmente, a ideia era guardá-las para serem juntadas próximo à data do júri, para que funcionassem como uma arma secreta da acusação. A defesa, por outro lado, não gostou nada desse fator surpresa.

As duas fitas consideradas mais importantes para o Ministério Público eram descritas da seguinte forma: 

1. DUAS FITAS DE VÍDEO, encaminhadas pela Polícia Federal/Pará (ofício em anexo), gravadas no Sistema Argentino Pal-N, que identificam reuniões da Seita LUS Lineamento Universal Superior, na Argentina, onde aparece a imagem e as orientações da acusada, e que servirão à análise dos jurados;

2. Dispôs-se a Polícia Federal, desde que requisitada por V.Exa, o que ora se requer, a operar a reprodução das fitas, no plenário, naquele sistema Pal-N, no dia do julgamento.

Pedido do MP e ofício da PF sobre a juntada de materiais

Esses materiais por si só já eram suficientes para se dar asas à imaginação. Mas os outros itens listados pelo MP eram tão instigantes quanto. Havia, por exemplo, um documentário de uma rede de TV a cabo argentina sobre “rituais satânicos”, que citava Valentina.

A peça, intitulada “Crimes e Rituais”, é visivelmente sensacionalista ao abordar diversos crimes que ocorreram na Argentina, ligando-os à “motivações satânicas”. O programa tem cerca de uma hora de duração, mas o trecho que menciona a líder do Lineamento Universal Superior (LUS) é bem curto, de apenas um minuto e meio.

Nele, há a menção da morte de Evandro Ramos Caetano e da prisão de pessoas que teriam cometido o assassinato em um “ritual de magia negra”. Em seguida, o documentário menciona que Valentina chegou a ser suspeita no caso, mas a polícia não conseguiu encontrar nenhum indício contra ela.

A parte sobre Guaratuba é cheia de erros factuais. Um deles é a tal fita em que José Teruggi, então marido da líder, teria pedido para matar criancinhas. Outro equívoco está na informação de que a mãe de Evandro teria trabalhado no hotel onde Valentina se hospedou na época. Na realidade, a funcionária do local era Paulina Bossi, mãe de Leandro, que desapareceu dois meses antes e sequer é citado no documentário. 

Paulina e Valentina realmente tiveram uma breve conversa na ocasião, quando a mãe do menino pediu auxílio à líder do LUS para encontrar o seu filho. Em resposta, a ré do caso de Altamira disse que infelizmente não tinha como ajudá-la.

Apesar do MP dar a entender que o filme inteiro é uma denúncia contra Valentina, isso não é verdade. Para piorar, o trecho sobre ela é repleto de erros factuais. O documentário completo está disponível abaixo, com legendas em português. O trecho que menciona a líder do LUS começa por volta dos 29 minutos:

Documentário argentino “Crimes e Rituais”

De qualquer forma, a juntada dessas fitas certamente aumentou a percepção do público de que a acusada de fato comandava uma seita satânica.

Outro material anexado foi um CD-ROM com reportagens de diferentes jornais sobre a ré. Entre elas, está uma entrevista com Carlos Calvo, argentino considerado o fundador e presidente do Lineamento Universal Superior. O grupo LUS surgiu no país vizinho como uma entidade civil, a partir das ideias de Valentina. Na prática, porém, ela não tinha nenhuma função formal lá dentro, apesar de ser sempre ouvida e respeitada pelos membros.

Essa relação fica clara em um trecho da entrevista com Calvo, concedida ao jornal O Liberal em 13 de setembro de 2003:

As ideias de Valentina são muito boas, e nos pareceu que seriam para algo que nós pensamos. Ela não é sócia do grupo, é uma ouvinte, uma amiga.

Na ocasião, o fundador do LUS também afirmou que o grupo não era uma seita e não estava ligado a preceitos religiosos, mas sim científicos. Esses princípios faziam referência às ideias de Valentina sobre vida extraterrestre, descritas no livro “Deus, a Grande Farsa”. 

Além disso, Calvo defendeu que nenhum membro do Lineamento cometia crimes, especialmente contra menores, e que até crianças e mulheres grávidas frequentavam as reuniões.

As reportagens do CD-ROM estão disponíveis aqui:

Compilado de matérias do Diário Catarinense sobre Valentina

Entrevista de Carlos Calvo para o Jornal O Liberal

Matéria do jornal O Liberal – “STF nega liberdade para líder da seita”

Matéria do jornal O Liberal – “Relatório da Polícia Federal lança dúvidas sobre tese da defesa de Valentina”

Carlos Calvo chegou a ser cotado como testemunha de defesa de Valentina no júri, mas no fim não prestou nenhum depoimento. Os autos contêm algumas fitas com entrevistas que ele concedeu tanto em 2003 quanto na década de 1980, época da criação do LUS. Você pode assistir aqui:

Fita VHS – Entrevista com Carlos Calvo

A lista de materiais juntados pelo Ministério Público faz ainda menção a um inquérito que investigava o desaparecimento de Leonardo de Mello Silva, de três anos de idade. O menino sumiu na cidade de Umuarama, no interior do Paraná, em 14 de outubro de 2001. 

Algumas testemunhas relataram terem visto o garoto na fronteira do Brasil com a Argentina, o que foi suficiente para colocar Valentina na mira da polícia. Apesar da suspeita, é importante esclarecer que, já naquela época, as investigações não acharam nada que apontasse o envolvimento dela no crime. 

Em 2006, uma ossada de criança foi encontrada em um sítio localizado em Umuarama. O corpo levou cinco anos para ser devidamente examinado, e somente em 2011 teve a identidade confirmada: os restos mortais eram realmente de Leonardo. Ou seja, a informação de que o menino teria sido visto na fronteira com a Argentina era falsa. Infelizmente, até hoje, o caso é considerado sem solução.

NOVAS TESTEMUNHAS

Em 18 de setembro de 2003, quatro dias antes da data marcada para o júri, o Ministério Público anexou dois novos termos de declarações ao processo. Os depoimentos foram tomados pelo promotor de Altamira, Edmilson Barbosa Leray.

O primeiro é da empregada doméstica Francisca de Souza Oliveira, analfabeta, de 45 anos. Ela conta que, em 1993, trabalhou para uma freira em uma instituição chamada “Irmã Serafina”, no bairro de Brasília, em Altamira. O local, segundo ela, hospedava gestantes, pessoas doentes e moradores da zona rural. 

Tudo ocorria bem quando, no mês de setembro, algo estranho chamou a sua atenção. Ela limpava o quarto da patroa, a Irmã Elza, quando encontrou uma revista com um desenho estranho: um boneco deitado e uma mulher segurando os órgãos sexuais dele. Nesse momento, a freira entrou no cômodo e pediu que a empregada não mexesse nas coisas que estavam na mesa, porque pertenciam à Valentina. 

Francisca ainda relatou que viu a tal Valentina no quarto por cerca de cinco minutos, de uma distância de aproximadamente três metros. Ela só reconheceu a líder do LUS anos mais tarde, ao assistir reportagens de televisão sobre o caso dos meninos emasculados. Foi aí, então, que ela ligou os crimes ao estranho desenho da revista.

Com medo, a empregada não procurou a justiça, mas entrou em contato com Rosa Pessoa, presidente do Comitê de Defesa das Crianças Altamirenses, para relatar o que tinha visto.

Termo de declaração de Francisca de Souza Oliveira

O relato de Francisca não parece ter muita lógica pelo seguinte: em setembro de 1993, quando ela teria visto Valentina, todos os acusados já estavam presos. A líder do LUS era uma suspeita procurada, e nenhuma autoridade conseguia levá-la à Altamira para ser interrogada e presa. Diante de tantos riscos, por que ela iria para o Pará?

Já o segundo termo de declaração era de Maria da Conceição da Silva, de 52 anos, também empregada doméstica e analfabeta. Ao promotor, ela disse que trabalhou na clínica do doutor Anísio Ferreira de Souza, lavando roupas de pacientes, de 1990 a 1992. 

Segundo a doméstica, o médico recebeu a visita de Valentina no consultório em duas ocasiões no ano de 1992. Além disso, os dois também foram vistos juntos por ela em outra oportunidade, na Santa Casa de Altamira.

Assim como Francisca, Maria reconheceu a líder do LUS pela televisão, em matérias que relatavam a tentativa de fuga da suspeita. 

Termo de declaração de Maria da Conceição da Silva

De onde essas testemunhas surgiram? Por que apareciam agora, tão próximo da data do júri? Infelizmente, não é possível responder essas perguntas. O fato é que a acusação até tentou fazer com que Francisca e Maria substituíssem outras duas testemunhas arroladas para o julgamento, mas isso acabou não acontecendo.

Para a defesa de Valentina, algo estava claro: o Ministério Público contava com a ajuda da Polícia Federal para a produção de provas inéditas, a poucos dias do júri. Afinal, tudo isso ocorria paralelamente à apreensão no cofre do hospital que descobriu a agenda de Césio e as folhas ponto. 

REAÇÃO DA DEFESA

Com tantas cartas na manga por parte da promotoria, a defesa de Valentina precisava reagir. Foi então que, em 21 de setembro de 2003, um dia antes do júri, a equipe recebeu um novo membro: Cláudio Dalledone Júnior, um advogado criminalista muito conhecido no estado do Paraná e também no Brasil.

Ainda no início de carreira, ele atuou como assistente de acusação no caso Evandro e representou Diógenes Caetano dos Santos Filho em alguns processos.

Nacionalmente, ele tem fama de defender réus em crimes polêmicos e de grande repercussão, como o goleiro Bruno, condenado pela morte da ex-companheira Eliza Samudio; e do vereador Dr. Jairinho, acusado de matar o enteado, Henry Borel, de quatro anos. 

“Isso não é nenhum mistério, os promotores do júri realmente não gostam da minha presença na banca de defesa”, disse Dalledone em entrevista ao podcast. “Eu não recuo, eu não recuo. E tenho dois diferenciais nesses casos de grande repercussão, que são a investigação defensiva e o trabalho com a imprensa, esclarecendo os fatos e instigando a curiosidade”, completou.

O advogado admitiu, porém, que a fama traz também consequências não tão agradáveis. “Tem momentos que ela me atrapalha. Alguns dizem que se eu estou na causa, é porque o cara é culpado. Isso é ruim e não é verdade”, defendeu. “Eu não recuso nenhum caso, ainda mais se ele tiver uma dificuldade extrema, absurda. Muitos me chamam de maluco, de monstro, advogado do terror ou advogado do diabo por causa disso”.

Dalledone afirmou que sempre focou em crimes mais emblemáticos com o intuito de se projetar na carreira. Isso foi exatamente o que aconteceu no júri da líder do LUS.

Por curiosidade, ele passou a acompanhar pela televisão os julgamentos dos homens acusados em Altamira. Na época, o seu mentor era o advogado Arnaldo Faivro Busato Filho, que estava diretamente envolvido na defesa de Valentina. 

Certo dia, Dalledone encontrou Busato no Tribunal do Júri e, todo animado, perguntou sobre a situação em Belém. A resposta, porém, não foi a esperada. “Eu não via emoção naquele que ia defender uma mulher em um caso de grande repercussão. Essa é a grande verdade. Assim que eu notei isso, eu falei ‘posso ir junto com você? Eu faço a defesa junto com você’. Aquela fração de segundo definiu a minha vida”, comentou. 

O mentor aceitou a ajuda do jovem advogado que, no dia seguinte, já começou a trabalhar no caso.

Enquanto isso, Américo Leal e equipe acompanhavam tudo em Belém, com a ajuda do escritório de Marco Antônio Sadeck e Frederick Wassef, em São Paulo.

Em entrevista ao Projeto Humanos, Wassef comentou que não participou in loco do Tribunal do Júri porque estava tratando um câncer. Como precisou passar por cirurgia e ficar internado, não teve condições de viajar ao Pará.

Sobre a equipe de defensores, Busato explicou ao podcast qual era o papel de cada advogado. De acordo com ele, quando Américo Leal ingressou no time, o objetivo era evitar que Valentina permanecesse presa. 

“O foco era obter a revogação da prisão preventiva, para que ela fosse a julgamento em liberdade. O Américo Leal, advogado muito prestigiado lá, ficou encarregado dessa estratégia. O Fred participou porque era amigo dele, a nível de acompanhar, e o Cláudio só entrou após a definição de que eu faria o júri com exclusividade. E entrou porque eu não poderia estar lá durante os primeiros atos em plenário”, disse.

Ao perguntar para Busato, Dalledone ou Wassef quem comandava a defesa de Valentina, Ivan Mizanzuk encontrou contradições nas respostas. A produção tentou também marcar uma entrevista com Américo Leal, o que não foi possível por questão de agenda.

O fato é que, além da pressão que os advogados em Belém sofriam do Ministério Público e do juiz, havia um conflito de comunicação entre a própria equipe de defesa, segundo Dalledone.

A primeira estratégia seria juntar materiais sobre outros crimes contra crianças em todo o Brasil, que apresentavam ligação com “rituais satânicos”. Entre eles, estavam o caso dos meninos mortos e emasculados no Maranhão, de Evandro Ramos Caetano, Leandro Bossi e Michel Mendes

Outro nome que aparece nesse contexto é o de Donato Brandão, homem acusado de castrar jovens em um “ritual de preparação espiritual” na década de 1990 no Maranhão. Na época, ele fundou uma doutrina chamada Brandanismo, que contava com vários seguidores. A emasculação neste caso, porém, era realizada em adultos. Brandão foi condenado pelos crimes. 

Listar esses casos tinha como objetivo mostrar que esse tipo de delito acontecia em diferentes partes do país, e não havia qualquer prova que ligasse Valentina a eles. “Os movimentos da acusação nos levavam à juntada desses processos para que nós tivéssemos com o que rebater. Se eles mencionassem, eventualmente, que lá em Goiás houve outra situação com uma mulher que falava espanhol e não sei o quê, você tinha que rebater. E, para isso, nós precisávamos ter os autos de onde aquela afirmação saiu”, explicou Busato.

O problema surgiu, de acordo com Dalledone, quando ele viajou até Belém e visitou o escritório de Américo Leal. Os materiais que deveriam ter sido anexados ainda estavam na sala do advogado, um dia antes da sessão que julgaria Valentina. 

“Eu disse ‘desculpa, mas não dá para fazer o júri dessa maneira’. E eu lembro que as ideias se desencontraram entre Arnaldo, Wassef e Américo Leal. Foi então que eu recebi a notícia de que iria fazer o julgamento sozinho”, relatou Dalledone.

Em 22 de setembro de 2003, no meio de todo esse caos, houve uma reviravolta no caso, assim que o júri começou. Os advogados paraenses que defendiam Valentina abandonaram a sessão, fazendo acusações contra o juiz Ronaldo Valle. De acordo com eles, uma pessoa que se identificou como parente do magistrado teria visitado a ré na cadeia e a pressionado para que ela confessasse os crimes. 

O juiz negou a denúncia e alegou que apenas deu ordens para que Valentina fosse transferida para outra penitenciária. Além disso, afirmou que processaria Américo Leal pelas declarações. 

Diante da confusão, a acusada comunicou a nomeação de Dalledone como o seu novo defensor. E, mais uma vez, o julgamento foi adiado, agora para a próxima semana.

O conflito dos advogados de Belém com o magistrado e a situação da juntada de materiais marcaram a saída do escritório de Américo Leal do caso. Mesmo assim, os embates com o juiz Valle se estenderam na imprensa por mais alguns dias. 

Em reportagens, o magistrado disse ter recebido informações de que os advogados de Valentina poderiam dopá-la dentro da prisão, para que ela não pudesse depor, atrapalhando o júri. A equipe de defesa, por outro lado, negou as acusações.

Nenhuma dessas denúncias, no entanto, resultou em uma investigação formal. Na prática, elas só provocaram a saída de Américo Leal do caso e o adiamento do júri.

Apesar do tempo extra, a defesa continuava correndo contra o tempo para anexar todos os materiais necessários e exigir uma rápida perícia nas fitas VHS trazidas pelo Ministério Público. Além disso, Dalledone precisava estudar mais para se familiarizar com o caso.

Diante deste cenário, ele se recorda de um diálogo específico que travou com o assistente de acusação, Clodomir Araújo. “Eu falei para ele ‘não adianta você me pressionar. Pode me pressionar à vontade. De onde eu venho, o vento sopra gelado’. Eu usei essa expressão e vi que ele ficou impactado”, contou.

Olhando para trás, ele finalmente percebeu que a postura que tomou durante todo o júri não tinha a ver com bravura. “Aquilo não era coragem, era falta de consciência do que realmente estava acontecendo. Irresponsabilidade, cara. Eu fui para cima mesmo. Sei lá, as coisas ocorreram dessa maneira porque tinham que ocorrer”, completou.

O início do julgamento de Valentina será tratado em detalhes no próximo episódio.

*Este episódio usou reportagens da Rede Globo, TV Record, TV Bandeirantes e SBT.