Extras Episódio 17

PREPARAÇÃO PARA O JÚRI
A fase de instrução do processo do caso dos meninos de Altamira se encerrou em 1996. Os júris, no entanto, só aconteceriam sete anos depois, em 2003. Por conta da passagem de tempo, o julgamento era visto pela imprensa como uma espécie de reparação histórica. Era uma chance de não deixar crimes tão horríveis saírem impunes. Todas as complexidades, nuances, furos e problemas da investigação foram deixados de lado pela mídia. O tom das reportagens era sempre no sentido de ressaltar que finalmente a justiça seria feita.
Após muitas idas e vindas, o júri dos acusados pelos crimes em Altamira foi marcado para o mês de agosto de 2003, em Belém do Pará. A princípio, os cinco réus seriam julgados juntos: Valentina de Andrade, Amailton Madeira Gomes, Carlos Alberto dos Santos Lima, Césio Flávio Caldas Brandão e Anísio Ferreira de Souza.
Os preparativos para o julgamento se intensificaram meses antes, com defesa e acusação juntando materiais ao processo, e as equipes de advogados passando por constantes rearranjos.
Até a primeira metade de 2003, a defesa de Valentina era composta por Marco Antônio Sadeck e Frederick Wassef, ambos de São Paulo. Por volta de junho, no entanto, Sadeck teve um problema de saúde. Por isso, a ré pediu para que ele enviasse todo os documentos do caso para outro defensor: Arnaldo Faivro Busato Filho, que já a havia representado em 1992 no caso Leandro Bossi. Eventualmente, também por questão de saúde, o próprio Wassef deixaria de atuar de forma mais ativa no processo e ofereceria apenas assistências pontuais.
Em 15 de agosto de 2003, 12 dias antes da data do júri, Busato informou ao juiz responsável, Ronaldo Valle, que não poderia comparecer no plenário porque já tinha outro julgamento marcado. No ofício, ele explicou que havia assumido o caso de Valentina há pouco tempo e pediu para que a sessão dela fosse adiada.
Ofício de Busato ao juiz Ronaldo Valle de 15 de agosto de 2003
O juiz respondeu três dias depois e indeferiu o pedido do advogado, alegando que a data do júri já estava decidida desde maio daquele ano. Além disso, afirmou que decretaria a prisão preventiva de Valentina caso ela não se apresentasse à justiça.
Resposta de Ronaldo Valle de 18 de agosto de 2003
Diante da declaração do juiz, a acusada viu-se obrigada a mudar novamente a equipe de defesa. Ela contratou, então, o advogado Américo Leal, que já conhecia o processo por ter representado Amailton, e Arthemio Medeiros Lins Leal.
Já do lado da acusação, entrava em cena a doutora Rosana Cordovil, uma jovem e promissora promotora de Belém que tinha agora em mãos o maior caso da sua vida. Ela contava com o auxílio de dois advogados de renome da região, que atuariam como assistentes no júri: Clodomir Araújo e Clodomir Araújo Júnior, seu filho.
A cada semana que passava, novos documentos eram anexados ao processo. As peças que mais geraram impacto nessa fase estavam do lado da acusação. Em 21 de agosto, por exemplo, a promotoria juntou nos autos uma série de materiais apreendidos no consultório do cirurgião Lourival Barbalho, em Belém. Na época dos crimes, ele realizou, de forma gratuita, uma série de cirurgias reparatórias em dois sobreviventes. Além disso, era também conhecido por ser irmão de Jader Barbalho, ex-governador do Pará e atual senador.
O médico nunca havia se pronunciado nos autos, e os materiais anexados pela acusação são praticamente os únicos registros do parecer dele sobre o caso. A intenção da promotoria é bastante óbvia: reafirmar a declaração de testemunhas e jornais da época de que as emasculações tinham precisão cirúrgica. As próprias famílias das vítimas sempre criticaram os laudos do caso justamente por não incluírem esse detalhe. Elas contestavam o médico legista Armando Aragão, que examinou os corpos e atestou que os cortes eram lineares, mas concluiu que isso não significava necessariamente a atuação de cirurgiões.
No fim, o doutor Barbalho entregou duas declarações escritas à mão em prontuários médicos. Uma delas, de 21 de agosto de 2003, dava detalhes sobre os procedimentos realizados nos dois sobreviventes. Já o segundo, de 22 de agosto, falava sobre os cortes. O ideal para a acusação seria uma afirmação categórica de que os ferimentos só poderiam ter sido feitos por médicos. O que Barbalho constatou, porém, foi o seguinte:
A lesão que provocou a emasculação total me pareceu ter sido feita por pessoas com habilidade suficiente para produzir uma lesão linear e não contusa.
Como se nota, ele não fala nada específico sobre corte cirúrgico. Uma lesão linear pode ser feita por qualquer pessoa que tenha alguma força e um instrumento bem afiado, capaz de fazer um corte em um só golpe.
Prontuário realizado por Barbalho de 21 de agosto de 2003
Prontuário realizado por Barbalho de 22 de agosto de 2003
Já mencionada aqui, uma matéria do jornal O Liberal de 18 de novembro de 1989 narra o ataque ao Segundo Sobrevivente da seguinte maneira:
O homem tirou um lenço do bolso, onde estava escondida uma navalha, com a qual ele obrigou o menino a tirar a roupa e depois lhe cortou os órgãos genitais com um único golpe.
Matéria do Jornal O Liberal – “Garoto emasculado pelo maníaco”
O Segundo Sobrevivente foi atacado em 16 de novembro de 1989 e encontrado no dia seguinte, completamente emasculado. Na época, ele disse que um homem em uma bicicleta vermelha o convidou para colher mangas em um lugar mais afastado.
A reportagem do jornal O Liberal, de dois dias depois ao ataque, é o primeiro registro sobre o crime contra o menino. Esse é um detalhe importante, já que os outros dois depoimentos que a vítima dá são bem mais distantes da data do ocorrido: o primeiro, na fase de inquérito, é de maio de 1991; enquanto o segundo, em juízo, é prestado em novembro de 1993.
Para se ter uma ideia da decorrência do tempo, quando foi atacada, a criança tinha 10 anos de idade. Ao ser ouvida pela polícia, ela estava prestes a completar 12 anos. Durante esse período, o relato da vítima, que sofria um trauma gigantesco, apresentou algumas mudanças.
Nas declarações oficiais, o Segundo Sobrevivente tende a ser menos descritivo. Ele menciona o convite do desconhecido da bicicleta vermelha e comenta que, em determinado ponto, teve uma camiseta colocada em sua boca, o que o fez desmaiar logo em seguida. De acordo com o relato, quando acordou, horas depois, já estava sangrando. Não há, no entanto, nenhuma menção a um golpe único, como afirma a matéria do Jornal O Liberal.
Depoimento do Segundo Sobrevivente na fase de inquérito
Qual seria, então, a versão mais precisa? Existe aqui um impasse. Por um lado, é possível que a reportagem seja um registro mais detalhado e próximo da realidade, por ter sido divulgada no dia seguinte ao ataque. Afinal, a própria vítima teria contado aos pais o que aconteceu logo que foi encontrado. É possível que, com o passar do tempo e a força do trauma, as suas lembranças se modificaram ou criaram lapsos, o que não é incomum de acontecer em casos de violência contra crianças.
Por outro lado, há a possibilidade da matéria do jornal ter sido mal apurada, por exemplo. Não faltam exemplos desse tipo de problema ao longo da cobertura dos crimes. Todas essas contradições são relevantes para se entender o julgamento dos acusados.
Voltando aos documentos cedidos pelo médico Lourival Barbalho, fica evidente que não há uma menção direta aos cortes cirúrgicos. Mas isso não impediu a promotoria de continuar a usar essa tese, principalmente através de outros materiais entregues pelo cirurgião.
Barbalho forneceu à acusação fotos de um dos procedimentos cirúrgicos que realizou no Segundo Sobrevivente. Além disso, disponibilizou um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) produzido por uma de suas orientandas do curso de Medicina da Universidade do Estado do Pará. Na monografia, de 1994, a estudante relata como acompanhou a atuação do médico durante o tratamento da vítima. Ela também narra o estado psicológico e as condições físicas do garoto, que na época tinha 14 anos de idade.
Apesar de ser um documento público, ele não estará disponível aqui na enciclopédia, por expor a vítima. O que importa é analisar o interesse da promotoria em juntar esses materiais ao processo. No júri, eles foram usados com o objetivo de mostrar os cortes sofridos pelo menino, que seriam tão lineares a ponto de que “só poderiam ter sido causadas por um cirurgião”. Nas fotos, essa impressão fica nítida. O problema é que, na verdade, as imagens são datadas de 1993, depois de Barbalho conduzir uma série de procedimentos reparatórios no sobrevivente. Isso quer dizer que os cortes são, na verdade, resultado do trabalho do próprio médico.
Como a convicção da promotoria de que havia a participação de cirurgiões nos crimes era muito forte, essa linha do tempo acaba sendo ignorada. A tese da acusação fica bem clara em uma entrevista concedida por Clodomir Araújo à RBA TV, afiliada da Bandeirantes no Pará. Na ocasião, pouco antes do júri, ele participou do programa Barra Pesada, apresentado por Ronaldo Porto.
“É preciso que se diga que nós temos inclusive um laudo do grande urologista Lourival Barbalho. Ele diz que, da maneira como o corte foi feito, não é possível afirmar que tenha sido um médico, mas sim pessoas com habilidades suficientes”, fala o assistente de acusação.
Enquanto isso, a defesa trabalhava na tese de que as lesões poderiam ser provocadas por qualquer indivíduo que sabia manusear bem um instrumento cortante, como um açougueiro ou um caçador.
Para o podcast, Ivan Mizanzuk conversou com alguns especialistas sobre o assunto. Todos afirmaram não ser possível determinar a profissão do agressor apenas pelos cortes deixados nas vítimas. Segundo eles, qualquer pessoa com alguma habilidade tem a capacidade de causar lesões lineares.
Essas dúvidas, porém, não foram suficientes para desacreditar a profunda crença da acusação no envolvimento dos médicos. Para a promotoria, o relato de testemunhas no júri facilmente corroborariam para confirmar a culpa dos acusados.
No geral, a tese defendida era a seguinte:
- Havia uma seita em Altamira, liderada por Valentina de Andrade, que emasculava e matava meninos para realizar rituais de “magia negra”;
- Os médicos anestesiavam os meninos para, então, realizar os cortes. Os relatos do segundo e do terceiro sobreviventes são importantes neste ponto, uma vez que ambos diziam ter tido um pano enfiado na boca e desmaiado logo em seguida;
- Os rituais eram realizados na presença de várias pessoas. Aqui pesou a declaração de Wandicley Oliveira Pinheiro sobre os pares de pernas que ele teria visto por baixo da venda que tapava seus olhos;
- Poderosos da cidade faziam parte da seita e comandavam os rituais. Amailton seria um deles. O seu pai, José Amadeu Gomes, também estaria envolvido. Em 1995, porém, o Tribunal de Justiça do Pará determinou que ele fosse retirado da lista de réus;
- A seita contava com a ajuda de policiais para manter a segurança dos integrantes. Essa seria a função de Carlos Alberto e Aldenor, o ex-policial militar foragido.
Essa linha de raciocínio da acusação foi extensamente divulgada pela imprensa da época. Durante a entrevista de Clodomir Araújo ao programa Barra Pesada, há um momento bastante revelador sobre como o caso era tratado por boa parte dos jornalistas.
Na conversa com o apresentador Ronaldo Porto, o assistente de acusação fala sobre a atuação da seita satânica em Altamira e cita trechos do livro de Valentina de Andrade como prova do “conluio criminoso”. A obra, “Deus, a Grande Farsa”, já foi discutida no episódio 15 do podcast e está disponível para download aqui.
Para relembrar, o único elemento que relacionava Valentina ao processo de Altamira era o depoimento da testemunha Edmilson da Silva Frazão. Ele afirmava ter visto a líder do Lineamento Universal Superior (LUS) participar de um culto macabro na chácara do médico Anísio – fato que ela sempre negou.
Ao ouvir Araújo, Porto não faz nenhum contraponto e concorda com a versão da promotoria. “Olha, eu não quero ser contra ou a favor de ninguém, mas só esse título aqui, ‘Deus, a Grande Farsa’, já me dá nojo, particularmente”, afirma.
Aqui, é importante pontuar que não existe nos autos do processo nenhuma investigação específica sobre o LUS no Pará. Nenhuma cópia do livro da ré foi encontrada em Altamira. Tudo indica que o que se sabia sobre Valentina vinha da reportagem da Revista Veja de julho de 1992, já mencionada aqui. A ideia de “seita satânica” e “rituais de magia negra” sugeridos pela publicação acabaram por sustentar a tese da promotoria.
O processo dos meninos emasculados de Altamira é focado em apenas cinco vítimas: o segundo e o terceiro sobreviventes, o menino indígena Judirley da Cunha Chipaia, Jaenes da Silva Pessoa e Flávio Lopes da Silva.
Os familiares dessas crianças e de tantas outras que não entraram para o rol oficial de vítimas se mobilizaram para ir até Belém e assistir ao júri. Uma reportagem da TV Globo da época mostra o momento em que muitas pessoas entram no ônibus que fará o trajeto até a capital do estado. Segundo os relatos, essa população, que era pobre, contava com a ajuda de movimentos sociais e outras entidades para se manter na cidade durante os dias de julgamento. Isso incluía gastos com estadia e alimentação, por exemplo. Como em outras ocasiões, quem acompanhava essas famílias e cuidava da segurança era a Polícia Federal.
Nesse período antes do júri, todos os acusados, com exceção do ex-PM Carlos Alberto, estavam em liberdade. Enquanto o povo de Altamira chorava pelos filhos e pedia por justiça, os réus negavam tudo e tentavam defender a sua inocência.
O INÍCIO DO JÚRI
Como previsto, o julgamento começou no dia 27 de Agosto de 2003. Em resumo, o Tribunal do Júri funciona assim: para cada crime julgado, acusação e defesa podem arrolar cinco testemunhas. Naquele momento, como o processo contava com cinco réus e cinco vítimas, cada acusado poderia chamar até 25 pessoas para falar em plenário. Ou seja, se ambas as partes quisessem, mais de uma centena de convocados participariam do júri.
Na prática, contudo, a lista alcançou mais de 40 testemunhas no total, juntando defesa e acusação. Nem todas elas estavam presentes no primeiro dia do julgamento. Mesmo assim, o número era grande: na soma dos dois lados, 19 pessoas deveriam depor. Tudo indicava que o júri seria longo – o que não é comum no Brasil, onde os réus geralmente são julgados em dois ou três dias.
Havia ainda outro problema: na hora das sustentações orais e debates, cada defensor teria que dividir o espaço de fala, o que prejudicaria as suas argumentações. Diante desse cenário, as defesas entraram com um pedido para que o júri fosse desmembrado e os acusados julgados separadamente.
Na véspera da sessão, também no programa Barra Pesada, o advogado Jânio Siqueira, que defendia o médico Césio, reforçou essa demanda para o apresentador Ronaldo Porto. “Nós vamos correr o risco de ter 36 minutos apenas para cada advogado fazer a defesa do seu cliente. Ora, está demonstrado às escâncaras, claramente, um cerceamento de defesa. E a constituição garante a qualquer cidadão, por mais humilde que seja e por mais grave que seja o crime, uma ampla defesa exercitada na sua plenitude”, disse ele.
A mobilização das defesas surtiu efeito e, já no primeiro dia de júri, ficou determinado que os cinco réus não seriam julgados juntos. Anísio, Césio e Valentina foram dispensados, e novas sessões foram marcadas para a semana seguinte, a partir do início de setembro. Permaneceram, então, no banco dos réus Amailton e Carlos Alberto.
Assim como em todas as fases de juízo, o ex-PM nunca teve testemunhas de defesa e precisou contar com defensores públicos. Desta vez, foi representado pela doutora Marilda Cantal. Já o filho de Amadeu tinha como advogados Hercílio Pinto de Carvalho e Jânio Siqueira.
Do lado de fora do plenário, a imprensa expunha incansavelmente as teses da acusação e deixava os argumentos da defesa em segundo plano. Isso contribuiu para que o caso se transformasse em algo diferente do que foi apresentado em todo o processo. Valentina, que era quase uma coadjuvante nos autos, virou a grande mente por trás dos crimes. Todos os boatos e indícios absurdos contra Amailton, sobre os livros que ele possuía e até mesmo a sua sexualidade, de repente se tornaram fatos incontestáveis.
É neste contexto que a religião virou um tema central. Durante o interrogatório de Amailton no primeiro dia de júri, uma das perguntas dos jurados envolve justamente a fé praticada pelo réu. “Eu sou católico, mas acredito que existe um ser superior, algo superior”, respondeu o filho de Amadeu. Essa declaração chegou a ser exibida no jornal noturno da TV Liberal, afiliada da Rede Globo no Pará.
O questionamento do jurado é bastante revelador. Ele mostra que o que estava em jogo não era apenas o conteúdo dos autos, mas sim toda a narrativa construída sobre a “seita satânica” liderada por Valentina. Dentro dessa lógica surge a relevância de se descobrir qual era a religião dos acusados.
CONTEXTO POLÍTICO
O primeiro dia do júri, 27 de agosto de 2003, foi marcado pelo processo de desmembramento, pelas falas de aberturas da defesa e acusação, leituras de peças e o depoimento dos dois réus: Amailton e Carlos Alberto. Ambos negaram participação nos crimes.
O julgamento, que recebia atenção da grande mídia, também teve a presença de membros do governo federal. Assim, é relevante relembrar o contexto político da época. O ano era 2003, o primeiro de mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Desde o início dos anos 90, o Partido dos Trabalhadores (PT) no Pará havia sido um importante apoiador nas lutas das famílias das vítimas. Em âmbito federal, até então, todas as questões relacionadas aos direitos humanos eram ligadas ao Ministério da Justiça, por meio do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).
Agora, com o PT, havia sido criada a Secretaria de Direitos Humanos, que tinha status de Ministério. Essa era a primeira vez que isso acontecia no Brasil. Diante da importância que a luta nessa área ganhou na gestão de Lula e do histórico de mobilização dos familiares dos meninos, uma equipe de Brasília foi designada para acompanhar o júri.
Em uma matéria da TV Liberal sobre o primeiro dia do julgamento, dois membros dessa comissão falam ao público: a procuradora federal, Maria Eliane Menezes; e o assessor do Ministério da Justiça, Douglas Martins, que tinha Márcio Thomaz Bastos como ministro. Ambos apresentam um discurso alinhado às demandas dos familiares dos garotos, ao defenderem a inclusão de mais vítimas no processo e reafirmarem a busca por justiça.
A presença desses representantes do governo adiciona uma nova camada para a compreensão das tensões e expectativas que pairavam sob o julgamento. Se, por um lado, as famílias de Altamira se sentiam ouvidas, por outro, os acusados e os jurados certamente percebiam a pressão causada pelos agentes.
Esse cenário ganhou ainda mais peso com a presença do próprio secretário de Direitos Humanos da época, Nilmário Miranda, que também deu entrevista ao vivo à TV Liberal durante o júri. “Não só em Altamira, no Brasil inteiro e até fora do país, é uma grande expectativa esse julgamento. Inclusive, nós fizemos questão de garantir que o deslocamento das famílias até aqui tivesse a segurança da Polícia Rodoviária Federal. Foi determinação também do governo federal, para fazer com que elas participassem desse evento”, disse Miranda à TV Liberal.
Tudo isso mostrava que o governo estava empenhado na realização dos júris e se esforçava para garantir que todos pudessem acompanhá-los. Pelas declarações desses agentes federais, uma coisa é clara: segundo as informações que eles recebiam das autoridades do Pará, ninguém tinha dúvida da culpa dos acusados. Esse caso seria, portanto, um exemplo da luta pela defesa dos direitos humanos.
TESTEMUNHAS DE DEFESA
As testemunhas começaram a ser ouvidas no dia seguinte, 28 de agosto de 2003. Neste primeiro júri, 12 pessoas prestaram depoimento – sete de acusação e cinco de defesa. Essas últimas eram todas de Amailton, já que Carlos Alberto não arrolou ninguém.
Os convocados pela defesa de Amailton foram os últimos a falar. Mas, para facilitar a compreensão, serão listados aqui por primeiro:
- Roberto Pereira Pinho: Promotor que recomendou a impronúncia de todos os réus em 1994, com exceção apenas de Valentina de Andrade, por conta das suspeitas no Paraná. No depoimento no júri, ele reafirmou que não via nenhuma prova concreta contra os acusados.
- Terezinha Martins Cavalheri: Testemunha de álibi de Amailton, ela reiterou que ele estava na chácara dela no dia primeiro de janeiro de 1992, justamente no horário em que Judirley da Cunha Chipaia havia sido assassinado.
- Wanderley Gomes Costa: Sobrinho de Terezinha, também serviu como testemunha de álibi. Reforçou, inclusive, que o réu havia lhe dado carona até a chácara, onde ambos passaram a tarde daquele primeiro de janeiro.
- Raimundo Brígido Silveira Neto: Afirmou em júri que presenciou Amadeu ligando para Amailton e pedindo para o filho, que estava em viagem, voltar para casa e falar com a polícia. A ideia era demonstrar que a família Gomes sempre esteve disposta a colaborar com as investigações.
- Antônio Gonçalves de Oliveira: Ex-funcionário de Amadeu, disse que Amailton lhe contou sobre a viagem de moto que pretendia fazer meses antes de ela acontecer. Isso mostrava que o acusado não teria fugido às pressas da cidade após a morte de Jaenes da Silva Pessoa.
TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO
Os autos do processo incluem algumas testemunhas que seriam fortes para a acusação. Uma delas, por exemplo, é a adolescente Loidenne Sabino de Jesus, que prestou depoimento apenas na fase de inquérito do delegado Éder Mauro. Ela dizia ter trabalhado na chácara do médico Anísio e que os filhos dele usavam vestimentas estranhas para assustá-la.
O relato de Loidenne poderia ser relacionado com as declarações de Edmilson da Silva Frazão, que afirmava ter presenciado um culto macabro liderado por Valentina naquela mesma propriedade.
Além de Loidenne, outra testemunha essencial para a promotoria seria Orlandina Silva de Souza, responsável por trazer à tona a história da misteriosa Ana Paula – suposta funcionária de Anísio que desapareceu após ter visto um órgão sexual masculino infantil em um isopor no consultório do médico. De acordo com Orlandina, um tempo depois, um braço decepado foi encontrado próximo ao aeroporto de Altamira, e ela afirma tê-lo reconhecido como sendo da tal amiga. A própria existência de Ana Paula, no entanto, nunca foi comprovada nos autos.
Segundo a ata do júri de Amailton e Carlos Alberto, Orlandina chegou a comparecer no tribunal no primeiro dia de sessão, mas não depôs. Isso fazia sentido, já que seu relato incriminaria Anísio e não os réus que estavam sendo julgados na ocasião. No segundo dia, quando começaram os depoimentos de testemunhas, ela já não estava mais presente.
Lista de testemunhas – Orlandina presente
Lista de testemunhas – Orlandina ausente
Por motivos desconhecidos, Orlandina nunca mais apareceu nos júris para depor, nem mesmo quando Anísio foi julgado.
Outras testemunhas consideradas importantes para a acusação são: Valdete Rodrigues Barroso, que relatou ter sido ameaçada por um pistoleiro da família Gomes; e Eudilene Pereira da Costa, a adolescente que alegou ter sido abusada pelo médico Césio e ter presenciado a morte de meninos em uma chácara.
Nos meses que antecederam o julgamento, contudo, o Ministério Público teve sérios problemas em localizar essas pessoas. Apesar das dificuldades, a acusação conseguiu juntar um grupo de sete indivíduos a serem ouvidos:
- Agostinho José da Costa: Lavrador, ele relatou ter visto Césio e Amailton próximo ao local onde Jaenes foi morto em outubro de 1992.
- O Segundo Sobrevivente, atacado em 16 de novembro de 1989.
- Wandicley Oliveira Pinheiro, o terceiro sobrevivente, agredido em 23 de setembro de 1990.
- Juarez Gomes Pessoa: Pai de Jaenes. Em plenário, ele contou sobre o dia em que o filho foi assassinado e as suspeitas que possuía em torno de Anísio.
- Lúcia da Cunha Chipaia: Irmã de Judirley. Afirmou que suspeitava principalmente da participação de Amailton nos crimes.
- Maria Edith da Mota Chaves: Disse ter visto um encontro suspeito entre Amadeu, Césio e uma mulher loira, que ela não soube identificar. O objetivo era mostrar ligação entre os acusados.
- Sueli de Oliveira Matos, a conselheira tutelar que escreveu uma carta sobre diversos crimes narrados a ela por Carlos Alberto. Esse foi o único júri em que ela prestou depoimento, justamente por incriminar o ex-PM.
Todas essas testemunhas estavam com muito medo de falar. Sueli, por exemplo, usou um véu e um óculos escuros no plenário, como forma de esconder parte do rosto. Nas imagens de reportagens da época, a conselheira, os dois sobreviventes e Agostinho estão sempre acompanhados de agentes da Polícia Federal.
Os relatos dessas pessoas foram basicamente os mesmos já prestados na fase de juízo. Mas, desde o início do júri, a acusação prometia uma surpresa, e ela viria dos dois sobreviventes.
Várias reportagens da época mostraram um dos momentos mais fortes de todos os júris, quando o Segundo Sobrevivente é questionado sobre o reconhecimento do homem que o sequestrou:
Sobrevivente: Eu tenho a plenitude certeza, a convicção 100%, de que foi o Carlos Alberto.
Juiz: Qual é o Carlos Alberto?
Sobrevivente: [Apontando] Este aqui.
Juiz: De camisa azul?
Sobrevivente: Isso. Com certeza.
O mesmo reconhecimento foi feito também pelo terceiro sobrevivente, Wandicley. Essa afirmação pegou a defesa de surpresa: afinal, eles nunca tinham dito isso antes.
Interrogatório dos réus e depoimentos do júri
Em entrevista ao SBT Belém, a advogada Marilda Cantal chegou a dizer que esses depoimentos seriam fabricados. Apesar da acusação grave, ela tinha vários motivos para suspeitar disso. Afinal, Carlos Alberto já era a terceira pessoa reconhecida pelos sobreviventes ao longo do processo. Esses relatos anteriores serão destrinchados no próximo episódio.
*Este episódio utilizou matérias do SBT, TV Record, TV Bandeirantes e Rede Globo.