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Extras Episódio 16

O LADO DA ACUSAÇÃO

O ano é 1996. Mesmo após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que derrubou parte do processo, as famílias das vítimas estão mais organizadas do que nunca. Na luta por justiça, elas conseguiram ser ouvidas em Brasília, na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

Enquanto isso, a fase de instrução judicial finalmente se encerrava, com o depoimento das testemunhas de defesa. Mas, então, os familiares dos meninos foram surpreendidos, no que parecia ser mais um passo em direção à impunidade. Em decisão de 03 de dezembro de 1996, o juiz responsável pelo processo, Paulo Roberto Ferreira Vieira, decidiu impronunciar todos os réus. Ou seja, o magistrado não acreditava que havia indícios suficientes para que os acusados fossem levados a júri popular.

Uma das passagens mais impactantes da peça elaborada pelo juiz diz o seguinte:

As provas manifestam-se por demais frágeis. São um amontoado de depoimentos sem nexo, sem ligação entre si, sem um mínimo de certeza, que leve ao julgador a segurança necessária para pronunciar o réu.

Diante do clima de impunidade, é claro que as famílias e o Ministério Público não aceitariam a decisão de braços cruzados. As histórias da época dão conta de que o juiz, temendo pela sua segurança, fugiu de Altamira logo após a impronúncia.

Envolvidos no episódio também contam que parentes das vítimas e ativistas locais realizaram um enterro simbólico do magistrado. Não é possível verificar, porém, a veracidade dessa história.

Decisão do juiz Vieira

O primeiro movimento de reação à impronúncia partiu da promotora responsável pelo caso na época, Elaine de Souza Nuayed. O seu pedido de recurso contra a decisão de Vieira foi feito em 20 de dezembro de 1996.

Indignada, ela diz que o juiz repetiu os argumentos do magistrado anterior, José Orlando de Paula Arrifano, que havia pronunciado os acusados:

Como pode o Juiz do feito concluir pela impronúncia dos acusados com os mesmos argumentos que o Juiz anterior pronunciou?

Peça da promotora Elaine Nuayed

A promotora não está errada. De fato, as alegações de ambos são muita parecidas e as testemunhas citadas são quase as mesmas. Esse é um exemplo de como a personalidade de cada magistrado pode influenciar em um processo, o que quebra o mito de que juízes seriam extremamente técnicos ao tomar decisões.

Tanto a assistência de acusação quanto Arrifano entendiam que apenas indícios de autoria seriam necessários para levar os réus a júri. Assim, a certeza ou não da culpa dos suspeitos só viria depois, a partir da opinião dos jurados. 

Pedido de pronúncia da assistência de acusação

Decisão de pronúncia do juiz Arrifano

Essa ideia dá a impressão de que os envolvidos no processo preferem jogar toda a responsabilidade da decisão para pessoas leigas, que sequer poderão refletir com profundidade sobre o turbilhão de informações repassadas no Tribunal do Júri.

Em uma conversa particular com o pesquisador Rubens Pena Júnior, Ivan Mizanzuk mencionou esse assunto. Perguntou se isso seria algo comum no Pará, especialmente em acusações que envolvem poderosos.

Afinal, relevar a falta de provas poderia ser a única forma de responsabilizar essas pessoas, que teriam recursos para manipular o caso nos bastidores. A resposta de Rubens, porém, foi negativa: o processo dos emasculados é atípico justamente porque avançou bastante e teve denúncia.

Mas o que acontece na justiça brasileira é geralmente o contrário, principalmente em regiões desassistidas como o interior do Pará. É inegável que existem pessoas com maior poder aquisitivo que manipulam o judiciário a seu favor e dificilmente chegam a ser denunciadas.

Ainda de acordo com o pesquisador, dependendo da ótica sob a qual o caso dos meninos é analisado, os indícios contra os suspeitos podem ganhar força. “É importante mencionar que, se a gente desconsiderar as falhas do processo e focar nos depoimentos que ele contém, a narrativa da acusação se consubstancia. Porque temos diversas pessoas falando as mesmas coisas, só que sem conseguir provar [nada]. Isso é surreal, pois é como se o fato realmente tivesse acontecido”, afirma Rubens.

Enquanto pesquisava sobre Altamira, Ivan tinha muita curiosidade em ouvir alguém que estivesse do lado da acusação. Contudo, todos os promotores e assistentes contatados se negaram a conceder entrevistas. Alguns sequer retornaram as mensagens enviadas.

O único envolvido que topou falar foi o advogado Baltazar Tavares, que acompanhou o caso desde o início da década de 1990, quando era estagiário no Centro de Defesa do Menor em Belém. Quem conversou com ele foi a jornalista Isabela Cabral, que faz parte da equipe do Projeto Humanos.

Tavares era ligado ao padre Bruno Sechi, forte liderança religiosa no Pará, que apoiou os movimentos sociais de Altamira. Na época, o advogado atuava na implantação, em todo o estado, de conselhos ligados aos direitos da criança e do adolescente. Por isso, viajava com frequência e tinha contato com muita gente.

Quando a conselheira tutelar Sueli de Oliveira Matos escreveu a carta denunciando Carlos Alberto dos Santos Lima, a informação logo chegou ao conhecimento do Centro de Defesa. A partir de então, o caso dos meninos passou a ser acompanhado de perto pelos integrantes da instituição.

Para isso, o padre Bruno montou uma equipe multidisciplinar de profissionais, com advogados, psicólogos e assistentes sociais, que visitavam familiares das vítimas e prestavam todo o auxílio necessário.

Além disso, houve a criação de um conselho jurídico formado por sete ou oito pessoas, incluindo Tavares, com o objetivo de avaliar o andamento do processo. Em reuniões semanais, os juristas decidiam quais seriam os próximos passos a serem tomados. Nesse contexto, o advogado ajudou a assistência de acusação no pedido de pronúncia dos suspeitos.

Por estar diretamente envolvido no caso e em contato com as famílias dos meninos, Tavares tinha certeza da culpa dos acusados. Ele considerava os relatos das testemunhas bastante categóricos e acreditava que havia indícios suficientes para suspeitar daquelas pessoas.

“Por quê? Por causa da narrativa. Era muita coisa pipocando no ar. Eu costumava ir à paisana para a beira da estrada, me misturar e escutar as conversas. Então, as coisas vinham… Por isso, a gente tinha convicção de que eles estavam envolvidos nisso até o pescoço”, afirma ele ao podcast.

Curiosamente, hoje, três décadas depois, o advogado admite que tem uma percepção diferente do caso. Ele releu algumas partes do processo fornecidas pela produção do Projeto Humanos e se surpreendeu com a falta de provas mais concretas.

“Ali tem uma narrativa que é muito própria da região amazônica, da Transamazônica propriamente dita. É assim: ‘alguém me contou, alguém me disse, alguém me falou’. Mas não tem um que diz ‘eu vi’. Então, hoje, depois de 30 anos, é uma narrativa que não se sustenta juridicamente”, comenta.

Tavares acredita que o clima de medo e desconfiança na cidade contribuiu para a história de que um grupo de poderosos, inatingível pela lei, era responsável pelos crimes. “O Centro de Defesa tinha a convicção de que essas pessoas estavam sendo indicadas nos depoimentos, mas a polícia trabalhava para que não se chegasse nelas”, explica o advogado.

Nesse cenário de descrença nas autoridades, a impronúncia dos acusados foi um baque para as famílias das vítimas e os movimentos sociais de Altamira.

Em 20 de dezembro de 1996, duas semanas após o parecer do juiz Vieira, o Ministério Público entrou com recurso para decorrer da decisão. Por precisar tramitar na segunda instância – ou seja, no Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJ-PA) -, o processo andou com bastante lentidão.

Uma nova peça surge apenas em 27 de agosto de 1997. Assinado pelo procurador de justiça do Pará Francisco Barbosa de Oliveira, o documento defendia que os acusados deveriam ir a julgamento.

Baseado nos depoimentos das testemunhas de acusação, Oliveira traz um apanhado de argumentos contra os suspeitos. Ele inclui, no entanto, informações que não existem no processo e comete erros básicos. A seguir, estão alguns exemplos:

– O procurador menciona o depoimento de Eudilene Pereira da Costa que, em teoria, não poderia ser usado, já que ela não havia sido ouvida em juízo.

– Ele diz, ainda, que o braço de Ana Paula, a suposta funcionária de Anísio Ferreira de Souza, teria sido reconhecido por parentes dela. Mas isso nunca aconteceu. Na realidade, indo mais a fundo, não é possível saber nem se a própria história do braço é verdadeira.

– Contra Anísio, Oliveira cita a testemunha Jeanes da Silva, o menino que teria ouvido do médico a frase: “está bom para ser capado”. Erroneamente, porém, ele fala que o garoto era irmão de Jaenes da Silva Pessoa, assassinado em outubro de 1992. Essa informação não procede.

Além de todos esses problemas, o procurador também faz algumas ponderações que explicitavam os seus preconceitos. O fato de Anísio frequentar terreiros de umbanda, por exemplo, era para ele indício de que o médico seria praticante de “magia negra”.

Sobre Valentina, Oliveira menciona o livro “Deus, a Grande Farsa”. Ele considera que a obra vai contra a personalidade de uma pessoa que, assim como a autora, alegava não fazer mal a ninguém e não praticar violência.

De todos os trechos problemáticos dessa peça, um dos mais complicados faz referência ao suspeito Amailton Madeira Gomes:

O próprio acusado Amailton admitiu, em juízo, já ter mantido relações homossexuais. Tal circunstância, induvidosamente, possui caráter relevante, pois demonstra um desvio de personalidade do réu bastante característico das pessoas emocional e psicologicamente perturbadas, o qual, muitas vezes, contribui para o desenvolvimento de índole delinquencial, principalmente, se se comparar aos crimes ora analisados, que, sem sombra de dúvidas, foram cometidos por pessoas totalmente pervertidas.

Peça do procurador Francisco Barbosa de Oliveira

Pouco menos de dois meses depois da manifestação do procurador, em 14 de outubro, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará tomou uma decisão: os réus deveriam ir a júri popular.

Decisão do Tribunal de Justiça do Pará

A partir daí, um novo juiz, Luiz Ernane Ribeiro Malato, assume o processo. Ele já era o quinto magistrado da Comarca de Altamira a conduzir o caso dos meninos.

Enquanto os advogados de defesa entravam com recursos para reverter a pronúncia, os acusados, que estavam soltos por habeas corpus, tentavam seguir com a vida. Como ainda não havia a facilidade do processo digital, a transferência dos documentos do Pará para Brasília demandava muito tempo. Consequentemente, as análises de recursos levaram alguns anos.

Em 19 de dezembro de 2000, o juiz Malato decretou a prisão dos acusados para que eles fossem intimidados da sentença de pronúncia. Matérias da imprensa noticiaram o retorno dos suspeitos para a cadeia. Os ex-PMs Carlos Alberto e Aldenor Ferreira Cardoso não foram localizados, assim como Valentina que, posteriormente, teve a prisão revogada.

Decisão do juiz Malato de prender os acusados

Matéria do jornal O Liberal – “Césio Brandão desembarca em Belém e vai para cela especial”

PREPARAÇÃO PARA O JÚRI

Entre as peças de preparação para o júri, a lista de testemunhas montada pela defesa de Valentina chama a atenção. Nela, há três policiais que poderiam, na verdade, contribuir para a acusação: o delegado Luiz Carlos de Oliveira, responsável pelo caso Leandro Bossi; Éder Mauro, que apontou Valentina como suspeita no Pará; e o agente José Carlos de Souza Machado, que comandou as investigações da Polícia Federal (PF) na Operação Monstro de Altamira.

Além deles, a defesa da ré chamava também como testemunha:

– O próprio juiz Luiz Ernane Ribeiro Malato, que posteriormente alegou não ter condições de depor, por ser o magistrado em exercício.

– O jornalista Raul Thadeu, do jornal O Liberal, que em 1993 escreveu algumas matérias questionando as investigações em Altamira.

– A professora aposentada Socorro Patello, que havia lecionado no curso de Filosofia da Universidade Federal do Pará. Em 14 de maio de 2001, ela produziu uma extensa análise do livro “Deus, a Grande Farsa”, que foi anexada aos autos pela defesa de Valentina.

No documento, ela fornece interessantes reflexões sobre as ideias da líder do Lineamento Universal Superior (LUS). Socorro considera que a obra tem valor literário e científico nulo, mas é valiosa do ponto de vista do estudo da mente humana.

Ela aponta, por exemplo, que as relações afetivas traumáticas da autora – como o abandono do pai e as separações dos maridos – explicam a visão pessimista que ela tem sobre o mundo. Justamente por isso, Valentina teria, então, se voltado para o misticismo:

Na verdade, a autora quer uma nova construção do mundo, um mundo pleno do que ela chama de “Luz, Verdade, Consciência Positiva” e que “ela” fosse a grande orientadora desse um mundo melhor.

[…]

O trabalho foi duro, mas entendo também que se Valentina diz tantos vitupérios, foi porque sua vida trágica ofertou-a exatamente isso. Sua verborragia blasfema é apenas fruto da miséria moral que viveu. Mas é justamente isso que ela abomina e não sabe dizer de outra forma! 

Abomina a maldade, a violência (assassinato, tortura, suplício, brutalidade, maltrato, opressão, o desamor, a desumanidade, etc. e tudo o que significa padecimento, dor e infelicidade). 

Daí a se dizer que este opúsculo contenha qualquer incentivo às ignomínias é imputar uma perversidade onde inexiste! É retroceder ao Tribunal da Inquisição da Idade Média, para condenar a autora por ter crença diferente das demais, apesar de, no fundo, estar fundada na mesma ânsia de amor, solidariedade, e demais virtudes, cujo fim é a felicidade. 

Análise do livro “Deus, a Grande Farsa”, por Socorro Patello

Os júris dos acusados só aconteceriam em 2003 na cidade de Belém. Quem pediu para que os julgamentos não fossem realizados em Altamira foi a defesa de Valentina de Andrade. O desaforamento – a mudança de um fórum para outro – geralmente acontece quando a repercussão do caso é tão grande na comunidade local que pode influenciar a opinião dos jurados.

Pedido de desaforamento do júri feito pela defesa de Valentina

CARLOS ALBERTO

De todos os acusados, a trajetória de Carlos Alberto nesse período de 10 anos entre a prisão e o julgamento é uma das mais difíceis de verificar. Não há nos autos nenhum alvará de soltura dele. Uma possível pista se encontra em uma matéria datada de 13 de setembro de 1995. A reportagem afirma que o ex-PM teria deixado a prisão no mesmo período que Césio, Anísio e Amailton saíram por habeas corpus. Isso, porém, não é confirmado no processo.

Matéria do jornal A Província Do Pará – “Acusados de emascular crianças são liberados”

Na sentença de pronúncia de 14 de outubro de 1997, a desembargadora responsável afirmou que não decretaria a prisão preventiva dos réus. Ela deixou a decisão de emitir ou não novos mandados para o juiz designado para o caso.

Nessa época, José Amadeu Gomes já não estava mais na lista dos réus. Isso significava que apenas Amailton, Césio, Anísio, A. Santos e Valentina iriam a júri popular. O ex-PM Aldenor jamais foi encontrado.

Após a decisão do juiz Malato de prender os acusados, em dezembro de 2000, o paradeiro de Carlos Alberto permaneceu desconhecido por um tempo. Uma notícia de jornal anexada aos autos indica que ele foi encontrado no Presídio do Coqueiro, em Belém, onde estava preso por outros crimes: latrocínio (roubo seguido de morte) e falsidade ideológica. Ele teria sido detido em outubro de 2001.

Matéria – “PM envolvido nas emasculações de Altamira quase era liberado”

Diferente dos demais acusados, que aguardaram o julgamento em liberdade, A. Santos foi o único que continuou detido, provavelmente devido a essas outras acusações.

CÉSIO

Em 19 de novembro de 1999, em meio aos trâmites judiciais, o médico Césio Flávio Caldas Brandão conseguiu ser ouvido em Brasília. Isso teria sido resultado de uma combinação de esforços. Por pertencer à Igreja Presbiteriana do estado do Espírito Santo, Césio conhecia pastores que tinham contato com deputados da bancada evangélica.

Além disso, ele mesmo passou a pedir para falar a favor da sua inocência depois que soube da realização da audiência em 1996.

Três anos depois, o médico finalmente discursou para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Devido a problemas técnicos, a sessão não foi gravada, mas o texto que Césio leu está anexado nos autos.

Após listar uma série de denúncias contra as investigações da polícia, ele conclui:

Querem mostrar ao mundo que resolvem crimes, mas sem dizer que para isso condenam inocentes? O próprio padre Bruno Sechi já havia declarado na imprensa que o processo é falho, mas, mesmo questionado sobre tal declaração, continuou pressionando para que o processo continuasse do jeito que está. Aguardo uma revisão processual séria. Quem é que gostaria de ser acusado de crime que não cometeu, só para que alguém ganhe alguma vantagem nisso?

Texto do Césio para a audiência pública de 1999

A entrada da bancada evangélica em cena torna o caso ainda mais complicado, sobretudo em relação aos fatores políticos. De um lado, famílias de vítimas, amparadas por movimentos sociais historicamente de esquerda, exigem celeridade no processo. Do outro, Césio é apoiado pelos deputados da bancada evangélica, conhecidos pela atuação na direita.

Tudo isso em um caso confuso e mal montado, que ninguém consegue entender direito até os dias de hoje. Mesmo assim, houve julgamento. E essa etapa é assunto do próximo episódio.