Extras Episódio 15

COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS
Em 1996, sete anos após os primeiros ataques contra os meninos, o sentimento de impunidade era grande entre as famílias das vítimas. Afinal, os suspeitos apontados pela polícia ainda não haviam sido julgados. A maioria, na verdade, chegou a ser solta por meio de habeas corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal (STF).
Diante desse contexto, o Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses se mobilizou para tentar ser ouvido pelas autoridades em Brasília. A líder do movimento era Rosa Maria Pessoa, mãe de Jaenes, garoto assassinado em 1992.
Depois de muitas idas e vindas ao Congresso, os familiares finalmente tiveram a chance de colocar os políticos a par do que acontecia no Pará: em 15 de outubro de 1996, o Comitê participou de uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
A antropóloga Paula Mendes Lacerda entrevistou Rosa para a produção da sua tese de doutorado sobre a mobilização das famílias dos garotos. A mãe de Jaenes lhe contou que, como havia uma movimentação partidária significativa em Altamira na década de 1990, era relativamente fácil conseguir uma carona de ônibus até o Distrito Federal.
“Por exemplo, ia haver uma manifestação de professores. Aí eles pegavam carona com o ônibus do PT, que levaria os manifestantes para lá. Então, não foram frequentes, mas também não absolutamente excepcionais, os momentos em que a dona Rosa, acompanhada de outras mães, ia até Brasília tentar fazer alguma coisa”, explicou a pesquisadora em entrevista ao podcast.
Quando chegavam lá, os integrantes do Comitê percorriam os gabinetes de políticos conhecidos ou que tinham alguma base na Transamazônica. A ideia era conversar com eles sobre os crimes e sensibilizá-los. Por isso, Rosa sempre andava com um álbum de fotografias com imagens do caso, para mostrá-las quando tinha a oportunidade. Ela mesma, no entanto, nunca via as fotos.
Foi com esse trabalho que o Comitê conseguiu que a audiência pública fosse marcada. A transcrição inteira da sessão está anexada aos autos do processo. Entre os participantes, além de Rosa, estavam o padre Bruno Sechi, a promotora do Pará Elaine de Souza Nuayed, e Wanderlino Nogueira Neto, representante da UNICEF.
O presidente da Comissão na época era o deputado Hélio Bicudo, do PT de São Paulo. Após uma breve introdução realizada por ele, foi a vez de Rosa falar. Finalmente ela pôde compartilhar a sua história e de tantas outras mães e familiares que sofriam com a falta de justiça.
Um dos trechos mais impactantes do discurso da líder do Comitê foi quando ela apontou as diferenças de tratamento que sentia no andamento do processo:
Como os senhores podem ver, temos ali o nosso painel, onde temos duas fotografias de como foram encontradas nossas crianças. É muito difícil sobrevivermos num país como o nosso, onde a omissão está de parabéns, onde o nosso Brasil é o rei da omissão. Isso é muito triste para nós que vivemos neste nosso país, tão rico, tão falado, mas tão omisso por parte de nossas autoridades. Não sei se é porque nós somos famílias pobres. Os acusados são de famílias ricas. Por aí, já se tira que é difícil a nossa caminhada, porque temos bastantes espinhos por esse caminho. Já estiveram presos e já foram soltos. O Supremo Tribunal Federal manteve a prisão, e foi anulada uma parte do processo. O Estado passou por cima dessa ordem – já sabemos. Nós, como mães, comunidade, sabemos que não temos dinheiro. Eles têm dinheiro. Então, estão em liberdade, e nós corremos grande risco de vida, tanto nós quanto nossos filhos.
Segundo Paula Lacerda, a audiência foi um episódio muito importante para a história do Comitê. “Foi o momento em que a luta dos familiares das vítimas conseguiu penetrar um órgão de poder. Apesar dessas visitas [aos políticos] não serem nada de outro mundo para eles, também não era acessível. Então, ter estado naquele lugar e falado para uma plateia de deputados foi, sem dúvida, algo marcante na trajetória dessas pessoas”, completa a pesquisadora.
MENÇÃO À POLÍCIA FEDERAL
Depois de Rosa, os outros convidados também discursaram. Entre eles, membros do Ministério Público que mencionam a atuação da Polícia Federal (PF) no caso e o relatório Monstro de Altamira, que não está nos autos. Esses relatos indicam que nem mesmo eles tinham informações suficientes sobre o trabalho dos agentes federais.
A primeira passagem citando a PF vem do discurso do procurador-geral da Justiça do Estado do Pará na época, Manoel Santino Nascimento Júnior:
Imaginem os senhores que um relatório feito pela Polícia Federal, relatório que tínhamos conhecimento apenas por noticiário ou quando Promotor de Justiça nos dava conhecimento, demorou mais de ano para ser encaminhado ao Ministério Público do Estado.
Ora, se a Polícia Federal estava apenas colaborando nas investigações, mas o Estado do Pará não vive sob intervenção federal, não poderia a Polícia Federal agir de modo próprio, carreando prova para os autos. Teria que ter um intercâmbio com o Ministério Público do Estado, o único capaz de levar essas provas e produzi-las no curso da instrução processual para buscar a punição dos culpados.
Além disso, Santino afirma que o relatório da PF só chegou em suas mãos dois meses antes da audiência – ou seja, em agosto de 1996. Uma possível justificativa é apresentada logo em seguida pelo procurador da República do Estado do Pará, José Augusto Torres Potiguar. Segundo ele, o documento demorou para ser entregue porque havia sido concluído há pouco tempo.
Isso, porém, não faz sentido. De acordo com o próprio Comitê, a operação da Polícia Federal que levou às prisões dos acusados ocorreu entre maio e junho de 1993. Em uma reportagem da época produzida pelo programa Domingo 10, há uma imagem do documento com a seguinte data: 24 de setembro de 1993. Também é possível ver no papel a assinatura do agente José Carlos de Souza Machado, intitulado “Chefe de Equipe”. Contudo, não existe nenhuma menção ao delegado responsável, o que seria imprescindível em relatórios como esse.
Por que, então, o procurador do Pará dizia que o documento foi concluído por volta de agosto de 1996? Apesar da falta de uma resposta concreta para isso, algumas pistas surgiram ao longo da pesquisa para o podcast.
Como mencionado nos últimos episódios, após 1993, a PF atuou em Altamira em pelo menos outras duas ocasiões: em dezembro de 1994, no caso da adolescente Eudilene Pereira da Costa; e em outubro de 1995, na investigação relacionada à Valdete Rodrigues Barroso.
Portanto, é provável que em 1996 os agentes estivessem redigindo uma nova versão do relatório, a partir das informações atualizadas que coletaram. Essa suposição encontra fundamento em uma matéria do jornal O Globo de 10 de novembro de 1998. O jornalista responsável, Amaury Ribeiro Jr., diz ter tido acesso ao documento da PF e, por conta disso, traz detalhes que não estão presentes nos autos:
Um relatório confidencial da PF, ao qual o GLOBO teve acesso, traz em suas 88 páginas testemunhos que tentam ajudar a esclarecer por que crimes praticados contra pelo menos 26 crianças, de 8 a 12 anos, em Altamira, entre 89 e 93, tornaram-se símbolo da impunidade. A PF investigou a hipótese de as crianças terem sido vítimas de uma seita de magia negra com apoio de políticos, médicos, advogados, e uma juíza, policiais civis e militares e soldados e oficiais do exército. Apesar de o relatório não ser conclusivo sobre a motivação, denuncia a precariedade dos laudos e da investigação feita pela Polícia Civil, e sugere que uma ação orquestrada para abafar o caso conseguiu fazer com que os acusados até hoje não tenham sido julgados. Eles estariam sob o comando de Valentina de Andrade, acusada de magia negra em Guaratuba.
[…]
Constam do relatório da PF suspeitas contra pelo menos outras 20 pessoas que teriam tentado atrapalhar as investigações.
Matéria do jornal O Globo – “Impunidade e mistério nos crimes em Altamira”
A produção do Projeto Humanos entrou em contato com o jornalista Amaury Jr. para saber se ele possuía uma cópia do relatório ao qual teve acesso. Infelizmente, ele não tinha.
De acordo com a reportagem, o documento datava de 18 de abril de 1996, o que difere da imagem que aparece no programa Domingo 10. Essa nova data se aproxima das citadas pelos procuradores do Pará na Comissão de Direitos Humanos em Brasília.
A matéria do Globo é o máximo que existe de informações sobre o conteúdo do relatório de 88 páginas da Polícia Federal. Vários detalhes, como a suspeita em cima do fazendeiro Vantuil Estevão de Souza ou a morte de Rosa Souza Coelho, batem com as histórias contadas pelas famílias das vítimas. São afirmações encontradas no processo sempre na boca de outras pessoas, nunca de agentes da PF.
Na mesma audiência em outubro de 1996, a promotora responsável pelo caso na época, Elaine de Souza Nuayed, dá uma declaração interessante sobre a leitura do relatório:
Depois de ler, entendi por bem que não deve ser apensado, porque o relatório da Polícia Federal, para mim, não sei se para os senhores que já leram, também o Dr. Potiguar, é uma peça que coloca mais em dúvida a autoria ou as autorias do processo.
Não é possível saber o que a promotora quis dizer com isso. Pode ser que ela entendia que o documento era fraco, não tinha muito fundamento. Ou que as investigações da PF jogavam suspeitas sobre muitas pessoas e tornavam o caso complexo demais.
De qualquer forma, tudo indica que existiram ao menos dois relatórios da Operação Monstro de Altamira: um de 1993 e outro de 1996. Nenhum deles está presente nos autos.
Outra pista sobre o misterioso trabalho da Polícia Federal em Altamira foi levantada pelo ouvinte Matheus Stefanello. Ele enviou um e-mail para o Projeto Humanos citando um artigo da Revista do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, edição número 38, publicada em 2004. Ela pode ser acessada aqui.
O texto, da pesquisadora Márcia Canário de Oliveira Gomes, chama-se “Tortura e Segurança Pública no Brasil”. Segundo a biografia que a revista traz, a autora era graduada em Relações Internacionais e atuava como assistente de investigação e supervisão no SOS-Tortura, do Movimento Nacional de Direitos Humanos.
Um trecho da publicação fala sobre o caso de Altamira e inclui uma citação direta do relatório da PF. A passagem menciona Rotílio Francisco do Rosário, suspeito preso no início de 1992, quando Judirley da Cunha Chipaia foi encontrado morto:
Na realidade, Rotílio, com a complacência do Judiciário e do Ministério Público, foi torturado até a morte. A Polícia tinha conhecimento de que era inocente, pois Rotílio com certeza não tinha o dom da onipresença, não poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo. Era inocente!
Com a interrupção das investigações da morte de Judirley, importantes pistas deixaram de ser seguidas, proporcionando um tempo para os criminosos deixarem a poeira baixar e retomarem a sanha em 1º de outubro de 1992, com a morte de Jaenes da Silva Pessoa.
Esse pequeno trecho é o único resquício, até o momento, de uma citação direta do documento da PF. Aqui, duas coisas chamam a atenção:
– Os agentes foram bastante enfáticos em dizer que Rotílio havia sido vítima de tortura, com a complacência de juízes e promotores de Altamira. É uma acusação grave, que não aparece em lugar nenhum do processo. A causa oficial da morte do suspeito havia sido cirrose, mas essa explicação nunca foi aceita por ninguém.
– O segundo fator interessante é como o relatório é creditado. A autora diz que ele data de 1995, o que sugere uma outra versão do documento, além dos já citados.
A produção procurou a pesquisadora Márcia Canário, mas ela informou que não possui o relatório. Vale lembrar que o texto publicado na revista já tem quase 20 anos.
Por meses Ivan Mizanzuk esteve em contato com o Ministério da Justiça e com a Superintendência da Polícia Federal do Pará. Apesar do esforço, ninguém conseguiu ajudá-lo a localizar o documento. A explicação que mais ouvia era a de que muito provavelmente o relatório havia se perdido para sempre.
Ele também tentou obter respostas via Lei de Acesso à Informação. Em retorno, recebeu a seguinte mensagem: “em decorrência do tempo passado, não há nada nos arquivos”.
Já o Departamento da Polícia Federal em Brasília respondeu de forma mais completa:
Prezado,
Informa-se que o atual sistema da polícia federal não possui ferramenta que permite extrair informações contidas em documentos no período de 1989-1996.
Destaca-se ainda que para eventual identificação desta demanda, seria necessária a análise física de milhares de documentos em diversos arquivos em diversas unidades da PF para identificar a informação nos termos solicitados, o que demandaria trabalhos adicionais de análise, interpretação e consolidação de dados e informações.
Seria necessário analisar ainda a eventual existência de arquivos físicos relacionados ao pedido, nas unidades da federação envolvidas, um a um, a fim de identificar parte da informação solicitada e fazer o seu tratamento para responder a solicitação, e ainda, assim, sem o detalhamento por ele pedido; e mesmo com a adoção dessa providência, a informação não seria fidedigna, haja vista que certamente há documentos que não estão mais na PF, não havendo como consultá-los.
[…] Os esforços que seriam realizados para tentativa de atendimento deste pedido esbarrariam no interesse público do Estado em prol da sociedade: vários servidores deixariam de atuar em prol da sociedade, retardando demandas de interesse coletivo e gastando recursos da administração pública para a satisfação no interesse de documentário.
Portanto, o sistema informatizado da polícia federal não possui ferramenta que permite extrair informações contidas no citado período.
O Projeto Humanos também buscou o auxílio da Superintendência da Polícia Federal do Pará. Após meses de procura, o retorno oficial dizia o seguinte:
A Polícia Federal informa que os procedimentos existentes na época eram todos físicos (em papel), juntados manualmente aos autos.
Não havia a digitalização de documentos, o que prejudica sobremaneira qualquer comentário sobre situações da época.
A ausência de documentos que descrevam o trabalho da PF em Altamira é angustiante. Os familiares das vítimas dão o crédito da resolução do caso para os agentes federais, sob a alegação de que eles foram os únicos que os ouviram de verdade. Aparentemente, a investigação do delegado Éder Mauro teve como objetivo apenas validar o que a Polícia Federal fez.
Há, inclusive, atritos políticos entre os envolvidos. Os movimentos sociais de Altamira que lutavam por justiça são historicamente ligados a partidos de esquerda. Éder Mauro, por outro lado, hoje é um notório político de direita, antigo apoiador do presidente Jair Bolsonaro. Nessa mesma linha, pode-se citar também Frederick Wassef, que na época era advogado de Valentina de Andrade.
Transcrição da audiência na Comissão de Direitos Humanos em 1996
AS IDEIAS DE VALENTINA
Em 22 de outubro de 1996, último dia das audiências conduzidas pelo juiz Paulo Roberto Ferreira Vieira, Valentina de Andrade aparece em Altamira para prestar depoimento. Já haviam se passado mais de três anos desde que ela tinha sido citada pela primeira vez no caso. Por isso, o momento era de grande expectativa.
Na ocasião, o que se sabia sobre a líder do Lineamento Universal Superior (LUS) era o seguinte: ela havia sido ligada aos crimes no Pará por Edmilson da Silva Frazão, através do relato sobre o culto na chácara de Anísio Ferreira de Souza. Além disso, era de conhecimento geral que ela chegou a ser suspeita em casos de morte e desaparecimento de crianças no Paraná em 1992. Essas eram as informações que os envolvidos no processo dos emasculados e a imprensa da época possuíam.
Como explicado anteriormente, a primeira vez que a acusada aparece nas investigações de Altamira é no interrogatório de Césio Flávio Caldas Brandão em 12 de julho de 1993. Na época, o delegado Éder Mauro perguntou ao médico se ele conhecia Valentina, ao que ele respondeu negativamente.
Quatro dias depois, Edmilson Frazão prestou depoimento para o investigador Jefferson José Gualberto Neves. Em certo ponto, a testemunha trouxe à tona o tal ritual na chácara, que seria liderado por uma mulher de sotaque paranaense. Na época, a líder do LUS morava em Londrina, considerada a segunda maior cidade do Paraná, atrás apenas da capital, Curitiba.
Em 28 de julho, Edmilson repetiu o relato diante de Éder Mauro e reconheceu Valentina por meio de uma reportagem da revista Veja. A matéria, datada de um ano antes, falava sobre os casos de Guaratuba.
Primeiro depoimento de Edmilson da Silva Frazão
Transcrição do primeiro depoimento de Edmilson
Segundo depoimento de Edmilson
Terceiro depoimento de Edmilson
Também em 28 de julho, uma pessoa importante na vida de Valentina prestou depoimento: Duílio Nolasco Pereira, de 61 anos, marido da acusada entre 1953 e 1973. Ele se mudou sozinho para Altamira no início da década de 1970 e, três anos depois, o casal acabou se separando.
De acordo com Duílio, antes do fim da relação, Valentina chegou a visitá-lo na cidade em três ocasiões. A última vez que a viu, no entanto, havia sido em 1987, quando ela apareceu em Altamira com um novo marido, um argentino chamado Roberto. Eles estavam acompanhados de um grupo de pessoas que seguia Valentina e parecia venerá-la como uma líder. Isso chamou a atenção de Duílio, que parecia não reconhecer mais a mulher com quem conviveu por tanto tempo.
Depoimento de Duílio Nolasco Pereira
Cinco anos depois dessa visita, já com outro companheiro, José Alfredo Teruggi, Valentina foi considerada suspeita em Guaratuba. Como consequência, acabou retratada na matéria da revista Veja, que é bastante explorada no episódio 35 do Caso Evandro. Ouça aqui.
Em resumo, a reportagem cita um vídeo caseiro em que a acusada aparece abraçada com Teruggi. Incorporado por uma entidade, ele fala uma frase que seria bastante repercutida pela mídia. Segundo a interpretação da Veja, o argentino teria dito: “mate a criancinha que eu te pedi. Ela é a riqueza energética”.
Essa, entretanto, é uma tradução equivocada. Uma transcrição completa do diálogo do vídeo, com perícia, foi concluída em 28 de setembro de 1992 – ou seja, dois meses após a reportagem da Veja.
O laudo completo tem mais de 100 páginas e boa parte da conversa é de difícil compreensão, pois está ligada à doutrina e ao contexto de vida de Valentina. O trecho citado na matéria está na página 18 da transcrição completa. Segundo a tradução juramentada, a frase correta é: “mas tem criancinhas que são experientes. É a riqueza energética”.
A fala real, porém, não está na reportagem da Veja. Tudo o que os policiais e promotores do Pará sabem, então, é que Teruggi havia dito algo sobre matar crianças.
A publicação da revista também menciona outras informações que circulavam sobre Valentina na época. Uma delas é a busca e apreensão na casa da acusada, realizada em 15 de julho de 1992:
Na casa de Valentina e Teruggi em Londrina foram encontradas centenas de cartas enviadas por supostos adeptos, dois exemplares do livro “Deus, a Grande Farsa”, escrito por Valentina, o diário dela, fitas de vídeo e uma série de desenhos grotescos, com cabeças soltas, e símbolos do ocultismo.
Na matéria, há a foto de duas pessoas com robes pretos e vermelhos, com capuzes sem buracos para os olhos. A legenda diz:
Policiais vestem os camisolões encontrados entre os pertences de Valentina e Teruggi. Pistas surpreendentes.
Os desenhos considerados “grotescos” pela reportagem seriam, na verdade, estudos de capas para o livro “Deus, a Grande Farsa”, escrito por Valentina. A obra conta com uma versão original, que foi anexada aos autos, e outra revisada – feita anos depois, sem o trecho usado pela acusação para sustentar a hipótese de seita que matava crianças.
Essa passagem específica é citada na reportagem da Veja:
“Tenham cuidado com as crianças. Elas são um instrumento inconsciente da grande farsa denominada Deus, e seus nefastos colaborados”, recita na página 129 do livro “Deus, a Grande Farsa”, uma rocambolesca mistura dos princípios da seita com a autobiografia da autora.
Matéria da revista Veja sobre Valentina
Ivan Mizanzuk leu as duas versões do livro de Valentina e chegou a comentar sobre isso no episódio 35 do Caso Evandro. Ele reitera que não há nada no texto que incite as pessoas a cometerem crimes.
As ideias de Valentina são difíceis de serem entendidas, não há uma sistematização clara dos conceitos. Ela mesma sempre afirmou que era semianalfabeta, que não teve educação formal e foi autodidata em tudo o que fez na vida.
No livro, a autora afirma que existem entidades mais evoluídas, as “individualidades cósmicas”, que estariam interessadas em ajudar a humanidade a se desenvolver. Valentina teria, então, conseguido contatar esses seres através de médiuns. Os intermediários, que faziam as incorporações, eram justamente os seus maridos: os argentinos Roberto Olivera – entre as décadas de 1970 e 1980 – e José Teruggi – entre 1980 e 1990.
Os conhecimentos repassados pelas entidades eram “As Verdades” e, entre as individualidades, a mais poderosa e de inteligência superior chamava-se “Zuita”.
Nesse contexto, a parte que fala sobre “tomar cuidado com as crianças” está ligada à visão pessimista do misticismo demonstrada pela autora. Para ela, tudo no mundo seria perigoso e, por isso, os menores estariam mais suscetíveis às influências de energias nefastas. Assim, não é que se deve temê-los, mas sim tomar conta deles, para que não se tornem um instrumento para o mal.
O livro “Deus, a Grande Farsa” foi lançado entre 1985 e 1986. Mas, antes disso, Roberto Olivera já havia publicado uma obra com os ensinamentos que o casal recebia das entidades, com o nome “O Universo de Zuita”. As ideias são basicamente as mesmas de Valentina, porém bem melhor explicadas e sistematizadas. Fica evidente que Olivera tinha maior erudição e domínio da escrita.
Em “O Universo de Zuita”, Valentina aparece como responsável pela tradução, adaptação e coordenação da obra. Em algumas passagens, ela é creditada por transcrever as mensagens que o marido recebia enquanto estava incorporado.
A publicação dos livros e o jeito com que Valentina era reverenciada pode indicar uma disputa pela autoria das ideias que o casal desenvolveu na década de 1980. Após a separação, a autora de “Deus, a Grande Farsa” casou-se com José Alfredo Teruggi, que nunca escreveu um livro. Ela era vista, agora, como a única líder do grupo.
Todas essas informações sobre as ideias do LUS e a vida de Valentina são fruto de anos de pesquisa de Ivan Mizanzuk. Portanto, é possível afirmar que a Polícia Federal e o Ministério Público do Pará não tinham conhecimento de nada disso na época.
Tudo o que as autoridades sabiam era o que tinha sido retratado na revista Veja: a líder de uma seita maluca escreveu um livro que dizia para as pessoas “tomarem cuidado com as crianças”. Além disso, ela tinha até gravado um vídeo com o marido “ordenando” a morte de menores. A reportagem tem uma série de erros, que são analisados extensamente no já mencionado episódio 35.
MATERIAL APREENDIDO
Nesses anos de pesquisa, desde o caso Evandro, Ivan Mizanzuk tentou várias vezes localizar os materiais apreendidos na casa de Valentina em julho de 1992. O advogado dela na época, Arnaldo Faivro Busato Filho, lhe garantiu que nenhum desses objetos jamais retornou para a residência.
Então, supostamente, eles deveriam estar nos autos do caso Evandro ou de Leandro Bossi. Com a ajuda do advogado Guilherme Lucchesi, Ivan fez buscas nas comarcas de Curitiba e Guaratuba, em delegacias e fóruns, mas sem sucesso. A resposta que recebeu era de que o material havia sido perdido.
Em certo momento, porém, uma pista apareceu nos autos: o advogado de defesa Antonio Figueiredo Basto havia elaborado ofícios pedindo para analisar os objetos apreendidos em Londrina, mas nunca conseguiu vê-los. Como ele entrou no caso em 1994, tudo indica que o sumiço dessas evidências aconteceu em um período de dois anos.
Tudo ficou ainda mais estranho quando Ivan ouviu de algumas pessoas que quem conduziu a busca e apreensão na casa de Valentina teria sido a Polícia Federal. Mas isso não é verdade. No inquérito de Leandro Bossi há o auto que descreve o procedimento, feito pela Polícia Civil. Além disso, até mesmo na foto das pessoas encapuzadas publicada na Veja, é possível ver nitidamente o brasão da instituição ao fundo.
Por que, então, envolvidos no processo de Altamira achavam que isso tinha sido trabalho da PF? Por que o material apreendido não estava em Guaratuba, comarca do caso Leandro Bossi?
Uma possível resposta aparece no caso dos emasculados. Nos autos, encontra-se um ofício da juíza Elisabete Pereira de Lima datado de 16 de setembro de 1993. O documento é dirigido ao então superintendente da Polícia Federal no Pará, Fábio Caetano:
Considerando os autos da referência, vimos pelo presente requisitar a esta Superintendência todos os procedimentos investigatórios, dados, vestes etc. que por ventura se encontrem em poder dessa Polícia Federal, relativos aos autos acima enunciados.
A palavra que se destaca nesse ofício é “vestes”, que parece se referir justamente aos robes apreendidos durante a investigação do caso Leandro Bossi em 1992.
Ofício da juíza Elisabete pedindo os materiais apreendidos
Além da solicitação à Superintendência da PF, a juíza também pediu que o delegado Éder Mauro anexasse aos autos vários itens – entre eles, o livro “Deus, a Grande Farsa”. Em resposta, o investigador informou à magistrada que a obra estava, na realidade, com a PF.
Ofício da juíza ao delegado Éder Mauro
A partir desses pedidos da juíza, o cenário que se forma é o seguinte: a Polícia Civil do Paraná realizou a busca e apreensão na casa de Valentina em Londrina e enviou o material à Guaratuba.
Em maio e junho de 1993, a Polícia Federal esteve em Altamira para investigar os crimes contra meninos e chegou ao nome de Valentina de Andrade como suspeita. Três meses depois, há o ofício da juíza que sugere que as vestes e outros objetos importantes para o caso estavam em posse da PF no Pará.
O problema é que não há nada no inquérito de Leandro Bossi que mencione a transferência dos materiais. Alguns dizem, por exemplo, que agentes da PF do Pará viajaram até Guaratuba para pegar os objetos. Outros afirmam que eles entraram em contato com policiais do Paraná e pediram que os itens fossem enviados. Há ainda quem fale que o próprio grupo Águia da Polícia Militar garantiu o deslocamento das evidências.
Essas são especulações que não puderam ser comprovadas. Os únicos capazes de dar uma explicação são os agentes da PF envolvidos, mas eles se recusaram a dar entrevista.
O fato é que os objetos retirados da residência de Valentina em 1992 sumiram e parte dele está atualmente no Pará, sem nenhum registro oficial da transferência.
A LÍDER DO LUS É OUVIDA
Toda essa explicação é importante porque, no momento em que a líder do LUS finalmente presta depoimento, tudo o que se sabe sobre ela é bastante superficial. Uma passagem da decisão de pronúncia do juiz Orlando Arrifano, de 20 de junho de 1994, mostra isso:
[Valentina] foi reconhecida pela testemunha EDMILSON DA SILVA FRAZÃO como uma das participantes de um culto ocorrido na chácara do denunciado ANÍSIO. Consta que já esteve envolvida em processo de mesma natureza no Estado do Paraná, e até o presente momento, embora alegado, não ficou definitivamente comprovado a sua exclusão do processo.
Decisão de pronúncia do juiz Arrifano
Diante deste contexto, em 22 de outubro de 1996, aos 65 anos de idade, Valentina foi interrogada pelo juiz Paulo Roberto Ferreira Vieira. Ao magistrado, a líder do LUS negou todas as acusações e disse não conhecer nenhum dos outros acusados.
Sobre as idas e vindas ao Pará, ela explicou que era casada com Duílio desde 1954 quando, na década de 1970, ele decidiu se mudar para Altamira. Ela permaneceu em Londrina, onde ambos moravam, e passou a se comunicar com o esposo por cartas.
Enquanto isso, Duílio trabalhava na construção de um hotel e de um posto de gasolina na cidade. Por volta de 1972, quando as obras foram concluídas, Valentina visitou o marido pela primeira vez. Na ocasião, ela passou alguns dias no município, hospedada no hotel. Desde então, continuou a viajar para Altamira de vez em quando, até se separar de Duílio no final de 1973.
Após o divórcio, Valentina se relacionou com um argentino chamado Roberto Olivera, que havia sido apresentado a ela pelo próprio Duílio. De acordo com a líder do LUS, ela decidiu retornar à cidade anos depois porque queria resolver “algumas sequelas” da separação. Na época, passou dois dias em Altamira, novamente hospedada no hotel do ex-marido. Tudo teria ocorrido bem e, na volta, Duílio chegou a acompanhá-la até o aeroporto.
As informações repassadas por Valentina parecem confrontar o depoimento do ex-esposo. Duílio nunca mencionou ter apresentado a ex a Roberto Olivera, tampouco comentou que a levou para o aeroporto. Pelo contrário, afirmou que ela nem teria se despedido dele.
Além da fase de inquérito, o ex-companheiro de Valentina também foi ouvido em juízo. Entre outras coisas, ele disse que a ex-esposa era católica no período em que foram casados e que ficou surpreso ao saber sobre o livro que ela havia escrito. Por fim, salientou que a última visita dela à Altamira teria sido em 1986 ou 1987 e afirmou não acreditar no envolvimento de Valentina no caso dos emasculados.
A data mencionada por Duílio bate com o depoimento de Valentina ao juiz Vieira. Segundo ela, a última viagem que fez à Altamira foi, de fato, no ano de 1986. Na época, a líder do LUS estava acompanhada do marido, do filho, que ainda era uma criança, e de outros amigos.
A acusada disse que o grupo se reunia para discutir filosofia, religião e questões sobre o universo. A vida que essas pessoas levavam tinha como mote não fazer mal a ninguém e evitar comportamentos que fugissem à dignidade. Além disso, Valentina reiterou que não tinha como objetivo o acúmulo de riquezas e negou a prática de qualquer tipo de violência por parte do grupo.
Afirmou, ainda, que as vestes encontradas na casa dela estavam intactas e jamais haviam sido utilizadas. Elas pertenciam a um grupo de teatro da Argentina, que apresentavam peças sobre temas infantis e da vida como um todo, como o combate entre o bem e o mal.
Valentina salientou também que o livro “Deus, a Grande Farsa” não tratava de “magia negra”, mas sim de respostas para questões debatidas pela humanidade. Negou conhecer Edmilson Frazão e ter participado do culto na chácara descrito por ele.
Em relação ao caso de Guaratuba, a interroganda disse que tudo não passou de uma grande farsa e que ela jamais foi acusada ou processada. Por conta dessas suspeitas, a vida dela se transformou. Foi chamada de bruxa, o seu filho ficou doente, e a sua casa chegou a ser alvo de tiros.
Depoimento de Valentina de Andrade
Com o interrogatório de Valentina, chegava ao fim a terceira fase de juízo do processo. O próximo passo dependia, agora, da decisão do juiz Paulo Roberto Ferreira Vieira: os acusados deveriam ou não ir a julgamento no Tribunal do Júri?
Em 29 de outubro de 1996, a promotora Elaine de Souza Nuayed pediu a pronúncia de todos os réus – inclusive de José Amadeu Gomes, que já deveria estar fora do processo por decisão do Tribunal de Justiça do Pará.
Pedido de pronúncia da promotora Elaine Nuayed
Para a família das vítimas, esse pedido já representava um avanço no processo. Alguns dias depois, em 04 de novembro, a assistência de acusação seguiu os passos da promotora e também solicitou que os acusados fossem a júri. Desta vez, faziam parte dela três advogados de renome no Pará: Antônio César Brito Ferreira, Rosa de Fátima de Souza Corrêa e Ana Celina Bentes Hamoy. Esta última, inclusive, é bastante conhecida pelo ativismo na área de direitos humanos e se envolveu profundamente na luta dos familiares dos meninos.
Pedido de pronúncia da assistência de acusação
Em 03 de dezembro de 1996, o juiz Vieira finalmente deu o seu parecer. Para o espanto de todos, ele decidiu pela impronúncia dos acusados – ou seja, que eles não deveriam ser julgados.
Os efeitos dessa decisão serão discutidos no próximo episódio.
LIVROS PARA DOWNLOAD
Os livros de Valentina de Andrade e de Roberto Olivera estão disponíveis nos links abaixo para download:
Deus, a Grande Farsa (versão original 1985-86) – Valentina de Andrade
Deus, a Grande Farsa (versão revisada 1998) – Valentina de Andrade