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Extras Episódio 13

REAÇÃO À IMPRONÚNCIA

Após a fase de juízo, em 18 de março de 1994, o promotor Roberto Pereira Pinho recomendou a impronúncia de todos os réus, com exceção de Valentina de Andrade. De acordo com a análise do representante do Ministério Público, apenas ela deveria ir a júri popular.

A recomendação de Pinho deixou muita gente chocada em Altamira, pois essa não era a decisão esperada. O caso já havia estampado páginas de jornais de grande circulação, sido tema de matérias de TV e ganhado notoriedade nacional. Existia também pressão de fora do país. Durante a pesquisa para esta temporada, vários envolvidos comentaram sobre a exigência de órgãos internacionais de defesa de menores para que o Brasil solucionasse o caso dos emasculados.

Não à toa, os ataques contra crianças no Pará chegaram a ser analisados por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em 1993, cujo relatório foi finalizado em abril do ano seguinte.

A reação à impronúncia dos réus veio da assistência de acusação, 10 dias após as alegações finais do promotor Pinho. Na época, essa função era do advogado Antônio César de Brito Ferreira, que representava os interesses da família de Jaenes da Silva Pessoa, morto em outubro de 1992.

Nesta nova peça, ele pedia que todos os acusados fossem a júri: Amailton Madeira Gomes, José Amadeu Gomes, Carlos Alberto dos Santos Lima, Aldenor Ferreira Cardoso, Anísio Ferreira de Souza, Césio Flávio Caldas Brandão e Valentina de Andrade.

Pedido de pronúncia dos réus pela assistência de acusação

Quase três meses se passaram até o juiz responsável, José Orlando de Paula Arrifano, ler e analisar todas as alegações finais. Finalmente, em 20 de junho de 1994, ele concordou com a assistência de acusação e decidiu que os sete réus deveriam ser julgados pelo Tribunal do Júri. No dia seguinte, o promotor Pinho anunciou o seu afastamento do caso.

Anúncio de afastamento de Roberto Pereira Pinho

A decisão de Arrifano é uma longa peça de 14 páginas. Entre as argumentações do juiz, um trecho se destaca:

Uma coisa é certa. Após a ocorrência das decretações das prisões preventivas e recolhimento de alguns dos denunciados (AMAILTON MADEIRA GOMES, CÉSIO FLÁVIO CALDAS BRANDÃO, ANÍSIO FERREIRA DE SOUZA e CARLOS ALBERTO DOS SANTOS LIMA), os crimes deixaram de ocorrer, sequer desaparecimento de crianças no Município, e quando ocorreu, logo as mesmas foram localizadas nos folguedos próprios da idade.

Decisão do juiz José Orlando de Paula Arrifano

A afirmação de que os casos teriam cessado após as prisões é bastante difundida em reportagens da época ou até mesmo por pessoas que possuem algum conhecimento da história. Essa informação, entretanto, não é verdadeira.

Os suspeitos foram detidos em julho de 1993. De acordo com o relatório do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses, ao menos dois garotos relataram terem sido vítimas de tentativa de sequestro depois das prisões: George, em agosto de 1993, e Gilberto, em setembro do mesmo ano.

ROSINALDO

Mais notório ainda é o desaparecimento do menino Rosinaldo Farias da Silva, de 11 anos, conhecido como “Baixinho”. Ele sumiu em 09 de setembro de 1993 e nunca mais foi encontrado.

O inquérito de Rosinaldo foi anexado aos autos anos depois, curiosamente, a pedido da defesa do médico Césio. Nele, há o depoimento da mãe do menino, Angelita Pinheiro Farias, datado de 13 de setembro de 1993.

Na ocasião, ela conta que dias antes do sumiço do filho, a família recebeu a visita do fazendeiro Vantuil Estevão de Souza, marido da juíza Vera Araújo de Souza. Ele pediu permissão para levar Rosinaldo até a sua fazenda e o pai do garoto deixou. O menino passou oito dias lá e voltou para casa depois do dia 07 de setembro.

Na quinta-feira, dia 09, o filho de Angelita saiu cedo para engraxar sapatos, como fazia normalmente, e não retornou mais. Por volta das 18h, a mãe mandou que procurassem pelo garoto, mas a única pista que acharam foi a caixa de graxa que ele usava, deixada no supermercado Alvorada.

Angelita procurou por Vantuil para saber se ele tinha notícias de Rosinaldo, porém não o encontrou.

Depoimento de Angelita Pinheiro Farias

Já o relato do pai do menino, Raimundo Moreira Silva, dá conta de que Vantuil teria insistido bastante para que o menor fosse trabalhar na fazenda dele por alguns dias. Em um primeiro momento, ele teria negado o pedido do fazendeiro, mas, no fim, acabou cedendo à pressão. O garoto voltou para casa na quarta-feira, 08 de setembro, e sumiu no dia seguinte, após sair para trabalhar como engraxate na frente de um mercado.

Depoimento de Raimundo Moreira Silva

A história de Rosinaldo é importante porque marca um momento crucial dos casos de Altamira. Os principais suspeitos já estavam presos há meses e a fase de inquérito do delegado Éder Mauro havia se encerrado. O Ministério Público tinha acabado de fazer o aditamento à denúncia e ocorriam as preparações para o início da fase de juízo.

E, então, some Rosinaldo. Não apenas isso: ele desaparece depois de passar um tempo trabalhando na propriedade de um poderoso fazendeiro, casado com uma juíza da cidade. Para a família do menino, Vantuil e a esposa se tornaram os principais suspeitos. Eles acreditavam que o casal faria parte da seita que matava e emasculava crianças.

Essa desconfiança foi registrada pela CPI do Congresso que investigava casos de violência e abuso contra crianças. Em novembro de 1993, uma equipe da Comissão viajou até Altamira para conversar com os familiares das vítimas. Neste encontro, eles contaram as tragédias pelas quais passaram e denunciaram o abandono das autoridades.

No relatório da CPI, há um trecho sobre o desaparecimento de Rosinaldo, que cita as suspeitas sobre o fazendeiro e a juíza:

A população crê em envolvimento ou conivência da polícia local e acusa uma juíza, Dra. Vera, e seu marido, o Sr. Vantuil, como os verdadeiros responsáveis, como se expõe a seguir. Também se crê na participação de um médico.

Em setembro do corrente, houve o desaparecimento do menino Rosinaldo, de 10 anos. O jovem desapareceu após ter passado 8 dias na fazenda da Dra. Vera e do Sr. Vantuil. Foi por este levado para casa e desapareceu no dia seguinte, 9 de setembro, quando tinha ido fazer serviço de engraxate no supermercado Alvorada. A mãe do menino suspeita do Sr. Vantuil que, segundo testemunha, após o desaparecimento, estava muito descontrolado e chorava quando foi visitar a família. Não há ainda notícias do menino.

Relatório da CPI

Relatório do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses

Familiares das vítimas e os movimentos sociais de Altamira alegavam que havia uma relação íntima entre os poderosos da cidade: os latifundiários, o judiciário e a polícia. Essa hipótese é descrita em detalhes em uma carta assinada por um homem chamado Cláudio Lopes Ferreira, anexada aos autos. Não há informações, porém, de quem seria essa pessoa.

Carta de Cláudio Lopes Ferreira

O conluio entre os poderosos, que é a principal tese das famílias, é citado no trabalho da pesquisadora Paula Mendes Lacerda, mencionada em episódios anteriores.

“É nisso que a Paula acredita. Que esse caso nunca teve uma solução digna por conta do poder político local. Não se trata de pânico satânico. Nunca se tratou, para ela. Porque há um poder político local hegemônico que se sobrepõe a qualquer tipo de seriedade no trato com a justiça e com as investigações”, afirma o advogado e antropólogo Rubens Pena Júnior em entrevista ao podcast.

Apesar da forte crença das famílias, as suspeitas de que Vantuil e Vera faziam parte da seita não possuem indícios no inquérito. Não há qualquer depoimento ou relatório que aponte uma ligação entre o casal e os demais suspeitos.  

MOVIMENTAÇÃO EM BRASÍLIA

Rosinaldo desapareceu em setembro de 1993, após o fim do inquérito de Éder Mauro. Nos meses seguintes, ocorreu a nova fase de juízo com o doutor Arrifano, que decidiu pela pronúncia dos sete réus em 21 de junho de 1994.

Nesta etapa, um novo advogado de defesa entra em cena, representando o médico Césio. Ele chamava-se Jânio Siqueira e seria o responsável por mudar o andamento do processo naquele momento após a pronúncia.

O defensor notou uma irregularidade no processo conduzido pelo juiz Arrifano: em vez de permitir que cada acusado tivesse oito testemunhas, ele decretou que esse número fosse dividido entre os réus. Com essa informação em mãos, Siqueira entrou com um recurso nas cortes superiores. Como naquela época os autos eram todos em papel, o processo inteiro deveria sair de Altamira e ir até Brasília para ser analisado.

Nesse contexto, ao receber um habeas corpus impetrado por um dos réus, o ministro Maurício Corrêa do Supremo Tribunal Federal (STF) se julgou suspeito para analisá-lo. Isso porque, antes de ser nomeado para o STF em dezembro de 1994, ele foi ministro da Justiça durante o governo de Itamar Franco. Segundo relatos da imprensa e do Comitê, teria sido Corrêa quem autorizou a ida da Polícia Federal para Altamira em maio e junho de 1993. Por conta disso, ele se julgou suspeito e fez com que a decisão passasse para o ministro Marco Aurélio Mello.

Maurício Corrêa faleceu em 2012 e, até onde se sabe, ele nunca deu entrevistas mais detalhadas sobre esses eventos.

O momento em que o caso chega à Brasília é repleto de bastidores difíceis de serem confirmados. Várias pessoas mencionam, por exemplo, que o próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teria sido pressionado por órgãos internacionais para que os crimes em Altamira fossem solucionados.

Não fica claro se essa pressão viria da época em que foi presidente (1995-2002) ou do tempo em que ocupou ministérios no governo de Itamar Franco: primeiro, como ministro das Relações Exteriores, entre outubro de 1992 e maio de 1993, e depois como ministro da Fazenda, entre maio de 1993 e março de 1994.

Em entrevista à Paula Lacerda, o padre Sávio Corinaldesi afirma que FHC foi cobrado sobre o caso dos meninos de Altamira durante uma viagem à Roma. Ao retornar ao Brasil, ele teria pedido ao ministro da Justiça para acompanhar as investigações.

Se isso realmente aconteceu, significa que teria que ser no momento em que Maurício Corrêa pediu a intervenção da Polícia Federal, em 1993 – o que faria sentido, pois, na época, FHC era ministro das Relações Exteriores.

O padre Sávio concedeu entrevista ao Projeto Humanos em 2021 e deu mais detalhes sobre essa história. Atualmente, ele mora na Itália e já está com idade avançada e a saúde debilitada.

“Parece que, em uma visita que fez à Itália, Fernando Henrique foi abordado por um jornalista que perguntou ‘e os meninos de Altamira?’. Ele não sabia de nada. Mas, quando voltou, foi obrigado a pedir providências. Foi daí que [o caso] pegou um pouco mais de força. A Polícia Federal nos deu elementos para abrir um processo contra os suspeitos e, então, começou a luta por justiça”, disse Corinaldesi ao podcast.

A produção entrou em contato com o Instituto Fernando Henrique Cardoso para tentar uma entrevista com o ex-presidente. Em uma primeira tentativa, a resposta foi a seguinte:

Obrigado pelo seu convite ao presidente FHC para participar deste importante trabalho. O Presidente agradece seu interesse mas prefere não fazer parte do projeto. Já se vão muitos anos desde o episódio a ser abordado no podcast e ele tem pouca lembrança dos fatos, de modo que não se sente na posição de, atualmente, elaborar sobre este tema.

Apesar da negativa, era preciso verificar a informação sobre as pressões internacionais em cima do caso de Altamira, principalmente ao considerar o contexto histórico da região. Na época, já existia um interesse muito grande na construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Nesse sentido, vender a imagem do local para possíveis investidores tornava-se mais difícil diante dos crimes violentos registrados por lá.

Era frequente a narrativa de que havia muito dinheiro de fora entrando no Brasil, especialmente no estado do Pará, e que a resolução dos casos era uma exigência para que essa ajuda não cessasse.

No início da década de 1990, existe, de fato, um olhar mais atento de organismos internacionais para a região, sobretudo na questão da preservação de direitos dos indígenas.

O encontro dos povos do Xingu em Altamira em fevereiro de 1989, por exemplo, é um evento que marca essa luta. Foi nessa ocasião em que uma garota indígena chamada Tuíre Kayapó encostou um facão no rosto de um engenheiro branco que anunciava o nome da barragem que planejavam construir: Belo Monte. O momento foi fotografado e a imagem é bastante emblemática até hoje.

Mais um exemplo de que a comunidade internacional estava voltada à Amazônia é a sempre lembrada presença do cantor Sting, da banda The Police, nesse evento. Ele aparece em fotos ao lado do cacique Raoni, uma das mais conhecidas vozes pelos direitos indígenas desde a década de 1970.

É diante deste contexto que, no início de 1992, o menino Judirley da Cunha Chipaia é morto e emasculado. Portanto, não é difícil acreditar que a região onde garotos morriam de forma brutal era palco de pressões internacionais, tanto pelas lutas sociais quanto pelos interesses econômicos na construção da usina de Belo Monte.

Em um segundo contato com o Instituto Fernando Henrique Cardoso, a pergunta enviada pela produção falou exatamente sobre esse tema:

Recebemos a informação de que o governo federal da época estava ciente dos crimes de emasculação e assassinato de crianças em Altamira e, em parte por uma preocupação com a imagem da região diante de potenciais investidores no projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, enviou uma equipe da Polícia Federal para ajudar nas investigações. E que o então ministro Fernando Henrique Cardoso teria participado dessa iniciativa. Foi isso mesmo?

A resposta foi a seguinte:

O Presidente não confirma esta informação que você recebeu.

De qualquer forma, quando os autos chegaram ao STF, quem ficou responsável pela análise foi o então ministro Marco Aurélio Mello. Em 31 de março de 1995, ele julgou que havia irregularidades no caso e mandou que o processo retornasse à fase de instrução. Com isso, concedeu também habeas corpus para os médicos Césio e Anísio, e Amailton. O único que permaneceu preso foi o ex-PM Carlos Alberto – provavelmente porque o defensor designado para ele não fez o pedido.

Decisão do ministro Marco Aurélio

EUDILENE

Após a decisão, os documentos voltam à Altamira em setembro de 1995 para mais uma fase de juízo. Desta vez, há um novo magistrado encarregado, o doutor Paulo Roberto Ferreira Vieira.

Aqui, outras peças são anexadas ao processo. Uma delas conta a história de uma adolescente de 13 anos chamada Eudilene Pereira da Costa. Ela aparece apenas uma vez no processo dos meninos de Altamira a partir de um Termo de Informação. Quem a acompanhou durante o relato em juízo foi a conselheira tutelar Antônia Melo, importante liderança do ativismo social em Altamira.

A menor é ouvida na presença de dois promotores: Domingos Sávio Alves e Ociralva de Souza Farias Tabosa; e quatro policiais federais: José Carlos de Souza Machado, Emanuel José de Jesus, Eulália Maria Tavares e José Maurício Conte Corrêa.

O depoimento de Eudilene é datado de 07 de dezembro de 1994 e possui descrições de violência sexual e mutilações. Com uma infância difícil, ela viveu com os pais até os nove meses de idade e depois foi entregue para a avó paterna, Luzia. Depois que Luzia faleceu, a criança passou pela casa de vários parentes até se estabelecer com o tio Raimundo Pereira da Costa, em maio de 1992. Ele era casado com Maria do Socorro Santos Costa, que era natural de Alagoas.

Segundo Eudilene, em agosto de 1992, a companheira do tio a levou para fazer uma consulta no posto de saúde do bairro da Brasília. Lá, ela foi atendida pelo doutor Césio, que teria lhe dado uma injeção para dormir e, em seguida, a estuprado. Ao acordar, estava machucada entre as pernas e com outras lesões pelo corpo. Assustada, ela se vestiu e saiu do consultório até a sala de espera, onde Socorro a aguardava.

De acordo com a adolescente, isso se repetiu quase que diariamente durante um mês. A tia a levava sempre bem cedo ao posto, por volta das 5h, e a sessão terminava perto das 6h30.

O relato de Eudilene dá conta de que, após as consultas médicas, Maria do Socorro passou a frequentar uma chácara situada na chamada estrada da Betânia. Na propriedade, morava um homem mais velho, branco, de cabelos curtos e grisalhos, de nome José. Ele seria o amante de Socorro.

Eudilene afirma que as duas visitavam o local quase todos os dias, principalmente no fim de semana. Também andavam por lá dois médicos, Luiz Antônio Teixeira e Césio Flávio Caldas Brandão; além de um rapaz chamado Pedro Fim; e uma quarta pessoa não identificada, descrita pela menor como sendo um homem indígena.

Em uma das idas à chácara, provavelmente no início de 1993, Eudilene teria visto dois garotos amarrados pelos punhos e tornozelos dentro de uma casinha cercada de arame e madeira. Ela diz ter flagrado também o momento em que o médico Luiz Antônio abusou sexualmente de um dos meninos.

O testemunho de Eudilene fica cada vez mais forte. Em outra ocasião, segundo ela, o indígena, Pedro e Césio arrastaram as duas vítimas pelos cabelos até o mato e usaram alguma substância para que elas desmaiassem. Horas depois, eles teriam retornado manchados de sangue, com os corpos mutilados das vítimas. A adolescente viu que uma delas estava com os olhos furados e sem os órgãos genitais.

Na manhã do dia seguinte, José teria dito para Socorro que não aguentava mais ouvir grito de criança e que contaria tudo para a polícia. Na hora, ela esfaqueou o amante várias vezes até que ele morresse e o enterrou em uma cova rasa ao lado da residência.

A mulher passou, então, a ameaçar Eudilene. Disse que era para a menina ficar calada, pois, caso contrário, Socorro mandaria o seu irmão pistoleiro atrás dela. Após a morte de José, ambas retornaram algumas vezes até a propriedade para buscar frutas, mas o local já estava abandonado.

Eudilene relata que chegou a ser enforcada por Socorro em duas ocasiões, que afirmava que ela “sabia demais e tinha que morrer”. Felizmente, ela conseguiu escapar com vida.

De acordo com a menor, as pessoas que frequentavam a chácara faziam uma espécie de oração em uma língua que ela não entendia. Eles liam trechos de um livro que tinha na capa a inscrição “Magia Negra”.

Ao final do depoimento, Eudilene recebeu algumas fotografias em recortes de jornais e reconheceu o doutor Césio. Além disso, conseguiu identificar aquele que se dizia chamar Pedro Fim: ele era, na verdade, Amailton.

Termo de Informação de Eudilene Pereira da Costa

Todo o testemunho de Eudilene é chocante. Ela se coloca como uma testemunha ocular de uma série de crimes graves, além de alegar também ter sido vítima de estupro pelo doutor Césio. Tudo o que ela fala é um reforço considerável da tese da acusação.

Esse Termo de Informação, entretanto, é a única vez em que Eudilene fala no processo. Ela foi ouvida em 07 de dezembro de 1994. Dois dias depois, a partir de um pedido da promotoria, o juiz Roberto Gonçalves de Moura determinou que buscas e apreensões fossem realizadas em dois lugares: na chácara descrita pela menor e na casa de Socorro. Além disso, o magistrado requisitou que dois médicos acompanhassem o procedimento, para que eventuais corpos encontrados pudessem ser exumados.

Na certidão do mandado de busca e apreensão na chácara, os oficiais de justiça dão a entender que não acharam nada a ser periciado:

Procedemos a busca na referida chácara e deixamos de proceder a apreensão por não ter encontrado o objeto da demanda.

Para a casa de Socorro, o parecer também é confuso:

Certificamos, nós oficiais de justiça, que, em cumprimento ao mandado de Busca e Apreensão, deixamos de dar cumprimento ao mandado de Busca e Apreensão, em virtude de não ter sido apreendido o objeto da demanda, ficando prejudicada a busca no endereço mencionado neste mandado.

Aqui, nada é claro. Não é possível entender se eles não encontraram a residência ou se procuravam por algum objeto específico e que não foi localizado.

Mandado de busca e apreensão na chácara

Certidão do mandado de busca e apreensão na chácara

Juiz requisita a presença de médicos durante as buscas

Mandado de busca e apreensão na casa de Socorro

Certidão do mandado de busca e apreensão na casa de Socorro

O caso de Eudilene se encerra por aqui. Não há depoimento de nenhum dos citados: Socorro, o tio de Eudilene ou de Luiz Antônio Teixeira. Não há diligências no posto de saúde onde a garota diz ter sido atendida por Césio.

A história de Eudilene é combustível para uma série de especulações. Entre elas, o motivo da estranha presença dos policiais federais em seu depoimento. Eram os mesmos agentes que conduziram as investigações em maio e junho de 1993. O que eles faziam agora em Altamira?

As pesquisas sobre o caso indicam que a nova participação da Polícia Federal estava ligada a uma operação provavelmente batizada de “Monstro de Altamira – Fase 2”. A primeira etapa, como se deve imaginar, foi justamente a realizada um ano e meio antes, em 1993.

Mas quem os mandou para lá e por quê? O que fizeram com o relato de Eudilene? Ninguém sabe. A produção tentou contato com todos os agentes citados, mas nenhum quis conceder entrevista.

Um possível complemento para essa história está presente na tese da antropóloga Paula Lacerda. Rosa Maria Pessoa, mãe de Jaenes, disse à pesquisadora que Eudilene quase depôs nos júris.

Segundo Rosa, pouco antes da entrada da jovem em plenário, o Ministério Público teria descoberto que ela havia mudado o nome para “Lurdes”. Com documento diferente do que constava no processo, ela não poderia depor. Deixar de ouvir Eudilene teria sido uma escolha da própria acusação, para não dar margem para a defesa questionar a credibilidade da testemunha.

As pessoas que poderiam confirmar a informação sobre a mudança do nome e a presença de Eudilene no júri não concederam entrevista. O pesquisador Rubens Pena Júnior conseguiu conversar com a conselheira tutelar Antônia Melo, que acompanhou o depoimento de Eudilene na época. Ela disse, porém, não se lembrar desse evento.

CARTA DA ROSA

Talvez o mais relevante da história de Eudilene para a pesquisa seja o fato de que ela marca uma nova passagem da Polícia Federal em Altamira. Em fevereiro de 1995, a ajuda da instituição seria novamente requisitada. Tudo começaria com uma carta de Rosa Pessoa, importante liderança do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses.

No documento, datado de 16 de fevereiro de 1995, ela pede ajuda ao juiz Arrifano para proteger uma mulher chamada Valdete Rodrigues Barroso. De acordo com Rosa, a moça procurou o Comitê para dizer que estava sendo ameaçada por conta de informações sobre o caso dos emasculados que havia repassado à Polícia Federal. A mãe de Jaenes chegou a marcar um encontro com Valdete, no intuito de garantir a segurança da testemunha, mas ela saiu da cidade com os filhos.

Desesperada, a líder do Comitê, então, escreveu para o juiz:

Levamos ao conhecimento de Vossa Excelência estas informações para que determine as medidas cabíveis para garantir a vida dela e dos seus familiares, para identificar o autor ou autores das ameaças e para descobrir quem está interessado, e por quê, nas informações que a senhora Valdete repassou para os investigadores da Polícia Federal. 

A fuga dela nos preocupa em primeiro lugar porque uma pessoa que se esconde, sem querer, acaba facilitando os planos dos perseguidores e dificultando a sua proteção; em segundo lugar, porque o correto andamento do processo precisa de toda a confiança das testemunhas nos valores da Lei e na força da legalidade. Se os inimigos da justiça conseguirem criar pânico entre os que possuem informações, a verdade nunca será alcançada. 

Carta de Rosa Maria Pessoa ao juiz Arrifano

Levaria alguns meses para que a história de Valdete tivesse algum desdobramento. Enquanto isso, mais coisas estranhas ocorriam em Altamira. Elas serão assunto do próximo episódio.

MAPA DOS CRIMES

Para acessar o mapa dos crimes atualizado, clique aqui.

O mapa indica os locais onde as vítimas sobreviventes foram resgatadas (verde), onde os corpos das vítimas fatais foram encontrados (amarelo) e onde os desaparecidos foram vistos pela última vez (roxo). Os locais são aproximados. Também são informadas a idade que os meninos tinham e as datas dos crimes.

Como às vezes há divergências em detalhes entre o que está em documentos policiais e judiciais e o que o Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses indica, foram priorizadas as informações que estão em autos processuais. Já nos casos em que não existem registros oficiais, os dados do Comitê são utilizados. Há ainda casos apontados pelo Comitê cuja localização é desconhecida, portanto, não são apresentados neste mapa.

O mapa exibe a geografia atual de Altamira. Na época do caso dos emasculados, alguns aspectos eram diferentes.