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Extras Episódio 09

INTERROGATÓRIO DE CARLOS ALBERTO

Após Amailton Madeira Gomes e Césio Flávio Caldas Brandão, o ex-policial militar Carlos Alberto dos Santos Lima, o A. Santos, foi o terceiro suspeito a ser interrogado. O delegado Éder Mauro ouviu o acusado em 13 de julho de 1993.

Como já mencionado em episódios anteriores, o rapaz acabou envolvido no caso dos meninos por conta de um relato da conselheira tutelar Sueli de Oliveira Matos, de Macapá. Segundo ela, o próprio A. Santos havia lhe contado que certa vez trabalhou como segurança para José Amadeu Gomes, que ele acreditava ser o mandante dos crimes em Altamira. 

Na ocasião em que foi ouvido por Éder Mauro, Carlos Alberto tinha 26 anos de idade e estava sem advogado. O promotor Sérgio Tibúrcio dos Santos Lima, designado para atuar no caso, acompanhou o depoimento.

Ao delegado e ao promotor, A. Santos disse que havia servido como soldado da Polícia Militar em Altamira entre 1987 e 1989, ano em que saiu da cidade. Ele só retornou para o município em outubro de 1992, onde ficou por pouco tempo, até se mudar novamente em 25 de novembro.

Foi nesse curto período, entre outubro e novembro de 1992, que o jovem de fato trabalhou como segurança na casa da família Gomes. Apesar de Carlos Alberto citar a residência como sendo de Amadeu, o que tecnicamente era verdade, no decorrer do processo descobre-se que o fazendeiro já não morava mais lá.

Antes mesmo de Amailton ser procurado pela polícia, o casamento de Amadeu com Zaila Madeira Gomes já não ia muito bem. Enquanto o caso contra o filho do casal avançava, a união dos dois encerrava-se de vez e, no fim, quem ficou na casa foi Zaila.

Segundo diversos depoimentos, a mãe de Amailton sentia a necessidade de contratar um segurança. Recém-chegado à Altamira, Carlos Alberto foi apresentado à Zaila por um policial militar chamado A. Soares, um conhecido dos dois. Como o ex-PM precisava de emprego, logo aceitou o trabalho na propriedade da família Gomes.

É difícil saber exatamente quanto tempo ele permaneceu na função. Há relatos que falam em seis dias, outros em 10, outros em duas semanas.

O motivo da demissão também diverge. Em depoimento prestado dias depois, Zaila afirmou que soube que Carlos Alberto havia pegado uma faca e cortado os cabelos da sua então esposa, que era menor de idade. Por medo do temperamento do rapaz, ela teria decidido mandá-lo embora.

Depoimento de Zaila Madeira Gomes

Já a versão de A. Santos, descrita em um segundo interrogatório, era outra. Ele comentou que teria sido demitido por ter levado uma mulher para dormir com ele enquanto trabalhava na casa.

De qualquer modo, o depoimento do ex-PM é centrado especificamente nesse curto período de tempo que passou na casa de Zaila. De acordo com ele, a patroa teria dado ordem expressa para não deixar ninguém entrar na propriedade. Para isso, ele fazia a guarda armado e tinha permissão para atirar.

O então segurança descrevia a mãe de Amailton como uma mulher “misteriosa”. Uma das coisas que mais lhe chamava a atenção era o fato de ela não permitir que passassem da cozinha para o quintal, mesmo que não houvesse ninguém na casa.

Carlos Alberto citava também o genro de Zaila, chamado César. Nos autos do processo, não há informações sobre exatamente com quem esse homem seria casado. Além disso, ele nunca prestou nenhum depoimento.

Mas, de acordo com A. Santos, César era responsável por cuidar de vários assuntos na residência de Zaila após o término da união com Amadeu. O ex-PM o descrevia como alguém que tinha “características de ser umbandista”.

No geral, há pelo menos três elementos desse depoimento que são bastante significativos para o delegado Éder Mauro:

– O primeiro refere-se à fama de que a família Gomes era poderosa e perigosa. Em certo trecho, Carlos Alberto dizia que havia armamento pesado guardado no forro da casa e que ele seria controlado por César. Em outra passagem, ele contava que um dos filhos de Amadeu e Zaila teria lhe feito uma proposta para matar alguém, o que acabou recusando. Por fim, afirmava ter ouvido Zaila dizer para alguns visitantes da residência: “Vão tranquilos que, por mais que Amailton esteja envolvido nesses casos, a coisa não vai ficar assim. Ele vai sair e nada vai lhe acontecer”.

– O segundo elemento é referente a suspeitas de envolvimento com o que os investigadores na época acreditavam ser indícios de prática de magia negra. Além de citar uma espécie de reza “desconhecida” que a família fazia quando a situação estava difícil, Carlos Alberto também descreveu uma foto “estranha” que teria encontrado na casa. De acordo com ele, a imagem mostrava um grupo de pessoas vestidas de branco, encapuzadas, formando um círculo, de mãos dadas. No meio, havia um pano vermelho e, sobre ele, um caixão de mais ou menos um metro e meio de comprimento. Ao lado, estava um pequeno altar, com as figuras de Buda, do Preto Velho, São Jorge e uma imagem de Satanás. No ambiente ele viu também velas acesas e garrafas verdes com um líquido escuro dentro, todas etiquetadas.

Levando também em consideração que se tentava estabelecer uma relação entre depravação moral e homossexualidade, há outro trecho do depoimento de A. Santos que se destaca: ele afirma que Zaila seria lésbica. Como já mencionado anteriormente, há várias declarações dessa natureza no processo, mas nenhuma confirmação de que isso seja verdade. Mesmo que fosse, não fica claro exatamente o que essa informação teria a ver com os crimes. A impressão é de que os investigadores tentavam apenas reforçar a ideia de que os Gomes seriam uma família com um histórico do que eles entendiam como “depravação sexual”.

– Enfim, o terceiro elemento importante para as investigações é a fala de Carlos Alberto sobre a atuação de médicos nos crimes em Altamira. Nesse interrogatório, ele deixou claro o comentário na cidade de que o doutor Anísio Ferreira de Souza seria um dos responsáveis por cortar as crianças. E o mais importante: ele era uma das pessoas que frequentava a casa dos Gomes, segundo A. Santos.

Depoimento de Carlos Alberto dos Santos Lima

INTERROGATÓRIO DE ANÍSIO

O interrogatório de Anísio aconteceu no dia 14 de julho de 1993, com a presença de uma advogada. Na época, ele tinha 52 anos de idade – destes, 11 foram dedicados à prática da medicina em Altamira, onde montou uma pequena clínica. A sua especialidade era a ginecologia e obstetrícia, mas acabava fazendo de tudo um pouco.

Como já dito no episódio anterior, há duas visões opostas sobre o doutor Anísio: enquanto alguns o viam como um médico bom e atencioso com pessoas pobres, outros afirmavam que ele tinha uma péssima índole e chegava a cometer crimes durante os atendimentos.

Um dos relatos que denuncia a prática médica do suspeito encontra-se ainda na fase de inquérito da investigação conduzida pelo delegado Brivaldo Pinto Soares Filho. O testemunho é de uma mulher chamada Raimunda Gomes da Silva, na época com 34 anos de idade.

Em depoimento, Raimunda disse que passou por uma cirurgia sem anestesia com o doutor Anísio e que ele lhe retirou um órgão sem a sua permissão. A testemunha não é muito específica em seu relato, mas é possível entender que ela foi esterilizada sem consentimento.

Depoimento de Raimunda Gomes da Silva

Anexado aos autos do processo, há um ofício do Conselho Regional de Medicina do Pará, também datado de 14 de julho de 1993. O documento afirmava que não havia nenhuma denúncia registrada contra o doutor Césio, mas que Anísio, por outro lado, respondia por um inquérito ético-profissional. A investigação tinha sido aberta em virtude de uma denúncia feita pelo Movimento de Mulheres de Altamira. Não há mais detalhes, no entanto, de qual seria o teor dessa acusação. Aqui é importante lembrar que esse grupo de ativistas ajudou a formar as bases do que viria a ser o Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses.

Ofício do Conselho Regional de Medicina do Pará sobre Anísio e Césio

Os incentivos governamentais em políticas de esterilização de mulheres pobres não era algo completamente desconhecido, mas não foram encontradas pesquisas específicas sobre essa questão em Altamira.

Porém, a nível nacional, em 1991 houve a criação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre o tema. Presidida pela então deputada federal Benedita da Silva (PT) e com o senador Carlos Patrocínio (PFL) de relator, ela tinha como objetivo examinar a incidência da esterilização em massa de mulheres no Brasil.

O relatório final publicado pelo grupo em 1993 traz dados alarmantes. Segundo o documento, havia no país políticas de controle de natalidade financiadas por recursos de procedência internacional, que contavam com a omissão do governo brasileiro.

Entre esses métodos, estava a esterilização cirúrgica feminina. De acordo com dados do IBGE, em 1986, o Brasil tinha mais de 5,9 milhões de mulheres esterilizadas, o que correspondia a 15,8% das brasileiras de 15 a 54 anos. A Comissão destaca que, naquela época, esse índice era pelo menos três vezes maior que o de países desenvolvidos e superior a quase todas as nações em desenvolvimento.

Muitas vezes, esses procedimentos eram apresentados às mulheres como a única opção contraceptiva disponível e elas não eram devidamente informadas sobre os riscos e a irreversibilidade da laqueadura tubária. Além disso, em diversas partes do país, não era incomum o uso eleitoreiro da esterilização, com a troca de cirurgias por votos.

Em Altamira, relatos pessoais coletados pelo podcast dão conta de que de fato existia uma espécie de diretriz nacional com a intenção de esterilizar mulheres que já eram mães. Uma fonte que preferiu não se identificar contou que passou pela cirurgia logo após um parto, mesmo sem nunca ter pedido tal procedimento.

Ainda segundo o IBGE, novamente com dados de 1986, 68,2% das esterilizações eram realizadas em hospitais, clínicas ou consultórios particulares. No entanto, 59,5% das mulheres entrevistadas declararam que pagaram pela cirurgia. Assim, a CPMI presumiu que boa parte das laqueaduras gratuitas foi indiretamente custeada pelo setor público. Em alguns casos, por “entidades controlistas e políticos”.

Relatório final da CPMI sobre a esterilização de mulheres no Brasil

Diante desse contexto, não seria improvável que a clínica do doutor Anísio fosse um dos lugares que realizavam tais procedimentos. O médico era obstetra, atendia mulheres grávidas, muitas delas pobres, e havia comentários de pacientes sobre supostos atos de violência cometidos por ele durante atendimento.

Dito isto, é importante esclarecer que Anísio sempre negou fazer qualquer tipo de intervenção sem a permissão da paciente.

Nos autos, no entanto, há um forte depoimento que descreve más práticas por parte do médico. A paciente, Alexandrina Silva dos Santos, foi ouvida pelo delegado Éder Mauro em 29 de julho de 1993. Em seu testemunho, ela explicou que estava grávida de nove meses e, quando sentiu as dores do parto, foi até a clínica do doutor Anísio. Lá, ele administrou a anestesia geral e realizou uma cirurgia, mas depois disse à Alexandrina que ela não tinha um bebê na barriga, e sim um cisto. Após a operação, o médico lhe entregou um vidro com um pequeno “caroço” dentro, de cor branca, alegando que havia retirado aquilo dela.

Para tornar tudo ainda mais estranho, Alexandrina declarou que Anísio abriu o seu abdômen formando uma espécie de cruz, talvez para evidenciar um provável ritual, e que outras seis pessoas o acompanharam durante o procedimento.

Depoimento de Alexandrina Silva dos Santos

Ao ouvir um relato tão chocante, Éder Mauro pediu para que uma perícia fosse conduzida tanto na testemunha quanto no acompanhamento pré-natal feito na cidade onde ela morava, Medicilândia. Ao analisar a ficha da paciente, o Instituto Médico Legal concluiu que não era possível afirmar se Alexandrina estava de fato grávida ao se consultar com Anísio. Isso porque, no prontuário todo escrito à mão, não há exames de sangue, de urina ou até mesmo uma ultrassonografia, que poderiam atestar a gestação. Existia no documento apenas a descrição de testes de percepção visual, que informavam o tamanho da barriga e o tempo de gravidez.

Sobre o “caroço” no vidro, nenhuma análise pôde ser realizada, uma vez que a própria Alexandrina jogou o conteúdo fora após a cirurgia.

Prontuário médico de Alexandrina

Pedido de perícia nos exames de Alexandrina

Laudo de perícia nos exames de Alexandrina

Olhando para o processo em si, um detalhe é relevante: o depoimento de Alexandrina foi prestado 15 dias após Anísio ser ouvido. Isso quer dizer que, mesmo sem a presença oficial da paciente nos autos, Éder Mauro questionou o médico sobre ela. O suspeito respondeu que não se lembrava dessa mulher em específico, pois eram inúmeros os atendimentos que realizava. Mas, pelo relato, segundo ele, parecia tratar-se de um caso de pseudociese, conhecida como “gravidez psicológica”. Apesar disso, Anísio reiterou que não se recordava de Alexandrina e que nenhum bebê ou criança jamais desapareceu em sua clínica.

Esse trecho é revelador por dois motivos. Primeiro, porque mostra que o testemunho da paciente já havia sido coletado pela Polícia Federal e provavelmente repassado ao delegado Éder Mauro. E, segundo, porque surge uma suspeita ainda mais macabra em torno da figura de Anísio: de que ele seria um médico capaz de retirar o bebê de uma mulher grávida de nove meses e depois mentir para ela. A suspeita, como já mencionada, era de que ele e o grupo de criminosos usariam os corpos de crianças em rituais macabros.

Provavelmente isso explica as perguntas sobre religião feitas para o interrogado. Neste tópico, o suspeito afirmou ser espírita kardecista e admitiu que visitava o terreiro de Mãezinha, mas que não era umbandista. Além disso, ele negou ser um médico que fazia cirurgias espirituais, outro boato que corria pela cidade.

A má fama do doutor Anísio era tão grande em alguns círculos sociais que havia quem desconfiasse que ele nem era formado em medicina. Por outro lado, o ginecologista sempre dizia que esses rumores eram infundados e que ele se graduou na Universidade de Medicina do Estado do Amazonas.

Sobre as suspeitas de envolvimento nos crimes contra os meninos em Altamira, ele também negou tudo. Entre os demais acusados, o único que ele afirmava conhecer era Amadeu Gomes, e apenas de vista, assim como a ex-esposa do fazendeiro, Zaila. Isso devido a uma visita a um paciente que o então casal havia feito em seu consultório. Ele, no entanto, contrariou o depoimento de Carlos Alberto e reforçou que nunca tinha frequentado a casa da família Gomes.

Aqui também é importante relembrar o seguinte: durante interrogatório, Césio comentou que conhecia Anísio porque, certa vez, ele teria ido até o Hospital da Fundação pedir seu apoio na candidatura para vereador nas eleições de 1992. Mas, agora, Anísio afirmava que não conhecia Césio – uma contradição que não passou despercebida por Éder Mauro.

Atrás de mais elementos que pudessem trazer à tona informações sobre o comportamento de Anísio, o investigador ouviu o relato de um garoto de 13 anos de idade, Jeanes da Silva. O depoimento também é datado de 29 de julho de 1993.

À polícia, o adolescente contou sobre quando precisou ser internado na miniclínica do doutor Anísio por causa de um pedaço de madeira que entrou seu braço. O incidente havia ocorrido quase um mês antes, na colônia onde o menino morava com o pai, José da Silva – que também foi ouvido pelo delegado no mesmo dia.

Na época, José conhecia Anísio há quase 20 anos, ainda do tempo que ele morava no Maranhão. Em setembro de 1992, no meio da campanha política, o médico passou pela colônia de José e reconheceu o velho amigo. O pai de Jeanes, então, aproveitou a oportunidade para perguntar se o doutor podia ajudar com a situação do seu filho, que estava com o braço machucado. Ele respondeu prontamente que sim e levou o garoto para ser internado em sua clínica, onde ficou por cerca de duas semanas.

De acordo com Jeanes, o médico só começou a tratá-lo no décimo dia de internamento. Parecia, para ele, que Anísio tinha retirado apenas um pedaço da madeira dali, pois, até aquele momento (10 meses após o ocorrido), ele ainda sentia algo estranho na pele. O menino contou que até o próprio pai precisou remover outros dois fragmentos do membro, que estava inflamado e apresentava secreção.

Além de aparentemente não resolver o problema, segundo o adolescente, Anísio perguntava o tempo todo se ele não “queria virar mulherzinha”, inclusive comentando que gostaria de “capá-lo”. Nessas horas, o médico parecia falar sério e o garoto ficava calado, com medo.

Jaenes também relatou que seu pai foi lhe visitar três vezes na clínica, mas que não teve coragem de compartilhar com ele o que realmente estava acontecendo. A única coisa que conseguiu lhe dizer era que não estava sendo medicado. Então, em uma quarta visita, José finalmente buscou o filho no consultório, depois de saber por um conhecido que Anísio era suspeito no caso dos emasculados.

Depoimento de Jeanes da Silva

Depoimento de José da Silva

Assim como no caso de Alexandrina, o médico foi interrogado sobre Jeanes dias antes de o menino entrar oficialmente no processo. Anísio disse que se lembrava do caso e que o garoto ficou apenas alguns dias na clínica. Além disso, afirmou que, após retirar o pedaço de madeira do braço do paciente, o pai dele foi buscá-lo. Negou, contudo, que tenha feito qualquer comentário sobre “capar” o adolescente.

Apesar dos testemunhos de Alexandrina e Jeanes terem sido coletados pela Polícia Federal antes de Éder Mauro, nem tudo partiu dessas investigações. Na época dos trabalhos do delegado Brivaldo, Anísio já aparecia como um potencial suspeito. Como mencionado no episódio anterior, um depoimento bastante desfavorável ao médico foi dado por Domingos de Morais. A testemunha dizia conhecer o doutor já de longa data e que sabia do envolvimento dele na Guerrilha do Araguaia, ao lado do Exército.

Segundo o relato, Anísio teria torturado “vários elementos considerados subversivos” e participado da morte de uma guerrilheira conhecida como Dina. Em relação às informações repassadas por Domingos, o médico negou tudo.

Depoimento de Domingos de Morais

Ainda durante a investigação de Brivaldo, outro ponto se sobressaiu: as oito fotos repetidas de crianças em uma apresentação musical encontradas na casa de Amailton. Uma imagem idêntica também acabou apreendida na residência de Anísio. Para a polícia e o Ministério Público, isso parecia muito suspeito. Ao ser questionado, o médico respondeu que não sabia explicar nada sobre a fotografia, pois esta era a primeira vez que a via.

A explicação para essas fotos veio em 21 de julho de 1993 por meio do interrogatório de José Amadeu Gomes, pai de Amailton. Nesse período, ele também era suspeito de estar envolvido nos crimes de Altamira.

De acordo com o fazendeiro, as imagens foram dadas pela Igreja Metodista para diversos moradores da cidade. Por Amailton ser amigo do filho do pastor, também recebeu cópias desses cartões.

Depoimento de José Amadeu Gomes

Anexado aos autos, há uma declaração da igreja, assinada em cartório, explicando que os postais tinham como objetivo divulgar o trabalho do Instituto Metodista Educacional de Altamira (IMEA). “Todos os alunos o receberam, bem como os seus familiares. Foram distribuídos na cidade e fora dela, usados para correspondência e bilhete no IMEA”, diz o documento.

Ao ser interrogado por Éder Mauro, Anísio afirmava que todas as suspeitas contra ele vinham de um desentendimento que teve com um cabo eleitoral chamado Zamo – que havia sido preso no dia das eleições, em outubro de 1992. O motivo da prisão nunca foi especificado.

Para o médico, foi esse homem quem começou a espalhar na cidade o boato de que ele estava envolvido nas emasculações. “O depoente tem certeza que a pessoa que soltou Zamo deve saber quem matou as crianças, pois acredita que isso foi uma jogada política para tirar o depoente das eleições”, afirma trecho do depoimento.

O cabo eleitoral, porém, nunca falou no processo e, por isso, não é possível saber a sua versão da história.

No segundo depoimento que prestou, já em fase de juízo, Anísio explicou que precisou ir à Manaus logo após as eleições para tratar de assuntos familiares. Ele só retornou para Altamira cerca de quatro ou seis dias depois. Assim que chegou, foi informado pela esposa, Lucimar Ferreira Lima de Souza, dos rumores que corriam pela cidade. Os moradores diziam que Anísio tinha fugido logo após a morte de Jaenes da Silva Pessoa e levado os órgãos sexuais do menino consigo.

Assustado, Anísio teria pedido orientações de um amigo, o deputado Domingos Juvenil, para saber o que fazer. Buscou autoridades, mas ninguém conseguiu lhe dar uma solução efetiva.

Neste mesmo relato, o médico comentou que chegou a ir na casa da família de Jaenes quando o garoto foi encontrado, mas o corpo já havia sido retirado de lá. Esse detalhe contraria o depoimento de Juarez da Silva Pessoa, pai da vítima, de que o cadáver do filho havia sangrado na presença do suspeito.

Anísio alegou também que não estava em Altamira quando Flávio Lopes da Silva foi assassinado em março de 1993. De acordo com o interrogado, no fim de 1992, ele saiu do município para trabalhar no garimpo de Creporizão, pois precisava de dinheiro, já que havia gastado todas as economias com a campanha política. Ele retornou à cidade por uma semana em janeiro ou fevereiro e, em maio, foi para Manaus. O médico afirmou que só voltou em definitivo para o Pará em julho de 1993, pouco antes de ser preso.

Depoimento de Anísio em juízo

Voltando ao depoimento de Anísio coletado por Éder Mauro, na mesma data, houve uma acareação – um confronto de versões – entre o médico e o ex-PM Carlos Alberto. Afinal, o policial afirmava que, na época em que foi segurança na casa de Zaila, o doutor a visitava, o que Anísio sempre negou. Durante a acareação, ambos mantiveram as suas histórias.

Acareação entre Carlos Alberto e Anísio

O primeiro indício mais comprometedor contra Anísio, porém, viria a acontecer no dia seguinte ao interrogatório, em 15 de julho de 1993. Foi nessa ocasião em que ele passou por um auto de reconhecimento de uma importante testemunha já citada no podcast: Agostinho José da Costa, o lavrador que colocava Amailton e Césio na cena do crime contra o menino Jaenes.

Esse auto de reconhecimento é essencial pelo seguinte: em 12 de julho de 1993, Agostinho passou por uma acareação com Césio. Naquele momento, a testemunha explicou que o reconheceu, pois, a primeira vez que o viu teria sido na miniclínica do doutor Anísio, quando precisou ir até lá se consultar. Ou seja, o lavrador estabelecia uma relação entre os dois médicos, o que era importante para a acusação.

Na acareação com Anísio, Agostinho repetiu a mesma história. Relatou também que no fim de 1990 e início de 1991 foi tratado pelo médico porque estava com um problema nas pernas que quase o deixou paralítico. Foi graças a Anísio que a sua situação não piorou.

O médico se recordava do procedimento feito em Agostinho, mas continuava afirmando que Césio nunca havia estado em sua clínica.

Auto de reconhecimento de Agostinho José da Costa

Depoimento de Anísio Ferreira de Souza a Éder Mauro

NOVAS TESTEMUNHAS

Se, por um lado, testemunhos indicavam uma ligação entre os suspeitos, ainda faltavam elementos que fundamentassem a tese de que as crianças eram mortas em rituais macabros. É nesse contexto que duas novas testemunhas prestam depoimento ao delegado Éder Mauro. A primeira delas era uma mulher chamada Orlandina Silva de Souza, de 30 anos de idade, ouvida em 27 de julho de 1993.

Sobre os suspeitos, ela disse que sabia quem era o doutor Césio, que considerava uma pessoa bastante antipática; e também Amadeu Gomes, descrito como “o todo poderoso nesta cidade”. O acusado mais citado por Orlandina, contudo, é Anísio, que dizia conhecer desde 1978, quando ela tinha apenas 15 anos de idade e trabalhava na clínica dele.

Em certa passagem, a testemunha detalhou práticas de Anísio que sustentariam as suspeitas de que ele seria um cirurgião espírita: como entrar em um suposto quarto secreto todo vestido de branco e, após a operação, sair de lá com o semblante mudado, os olhos vermelhos e a voz diferente.

Mas a parte mais importante do depoimento de Orlandina é quando ela menciona a história de uma mulher conhecida apenas como Ana Paula. Esse trecho em específico foi extensivamente citado por quase todas as manifestações produzidas pelo Ministério Público no decorrer do processo – inclusive pela promotora Rosana Cordovil, que atuou nos júris em 2003.

Ana Paula seria uma moça jovem, com cerca de 25 anos, morena, de cabelos cacheados e pretos. Teria aproximadamente 1,65 m de altura e olhos castanhos. De acordo com Orlandina, ela trabalhou na clínica do doutor Anísio por volta do mês de setembro de 1992. Certo dia, próximo desta data, a testemunha se encontrou com a funcionária do médico, que estava bastante nervosa.

Ela, então, lhe confidenciou algo terrível: enquanto limpava o consultório, Anísio chegou com uma caixa de isopor e a colocou em cima da mesa. Por curiosidade, Ana Paula resolveu abrir o objeto e lá dentro avistou um órgão sexual masculino infantil, o que a deixou apavorada – principalmente porque o médico percebeu o que ela havia feito. No mesmo dia, a funcionária pediu as contas.

Ao ouvir tudo isso, Orlandina orientou que a jovem fosse até a delegacia e relatasse tudo. A moça, porém, disse chorando que não faria nada, pois tinha medo de morrer. A última vez que a testemunha voltou a ver a ex-funcionária da clínica foi em outubro de 1992, na época das eleições, já que ambas votavam no mesmo lugar. Na ocasião, Orlandina questionou se Ana Paula tinha ido à polícia, mas ela disse que não.

No fim do mesmo mês, um garoto andava por uma área de matagal quando se deparou com um braço caído no chão, separado do corpo. Orlandina ficou sabendo da situação e, por curiosidade, foi até o local. Incrédula, ela notou que o membro pertencia a uma mulher morena, de unhas grandes e pintadas de esmalte na cor de beterraba, justamente o que Ana Paula costumava usar. Apesar de acreditar no seu íntimo que o braço era mesmo da amiga, ela não relatou nada disso para a polícia. O resto do corpo nunca teria sido encontrado.

Depoimento de Orlandina Silva de Souza a Éder Mauro

A história contada por Orlandina é impressionante. No entanto, não há, nos autos, qualquer outro indício de que Ana Paula realmente existiu: nenhuma declaração de funcionários da clínica de Anísio, de parentes, nem mesmo de alguém da casa onde ela supostamente alugava um quarto. Não existe ainda nenhum Boletim de Ocorrência ou inquérito policial que confirme o relato sobre o braço encontrado. Interrogado em juízo, Anísio afirmou que nunca teve nenhuma funcionária com o nome Ana Paula.

Mais adiante no processo, Orlandina chegou a dar o mesmo relato também perante à Justiça. Mas, depois disso, ela desapareceu. Não prestou nenhum depoimento em júri, apesar de ter sido convocada – e, de acordo com os autos, de ter comparecido a pelo menos um dos julgamentos em 2003.

Depoimento de Orlandina em juízo

A segunda testemunha de grande importância na acusação contra Anísio é Loidenne Sabino de Jesus, uma adolescente de 16 anos. Apesar de ser menor de idade, ela não estava acompanhada de representante legal, advogado ou até mesmo de assistente social quando foi ouvida em 28 de julho de 1993.

Em seu relato, Loidenne contou que trabalhou como doméstica na chácara de Anísio de julho a dezembro de 1992. A sua principal função era cuidar dos filhos dele e da esposa, Lucimar.

Ao delegado Éder Mauro, a adolescente deu detalhes sobre supostos rituais que aconteciam na chácara: em um compartimento completamente fechado, diversas pessoas se reuniam para participar dos atos. Entre os envolvidos, ela se recordava apenas do nome de uma mãe de santo conhecida como Mãezinha e de Zamo, que trabalhava como segurança nos cultos. Certa vez, ele teria levado um tiro e chegado quase morto na miniclínica, ocasião em que Mãezinha e Anísio o curaram.

Ainda de acordo com Loidenne, os filhos do médico costumavam amedrontá-la usando capaz pretas grandes, com mangas compridas, e capuzes vermelhos. Além disso, algumas vezes, Anísio chegava na chácara com um isopor debaixo do braço, que ela não sabia dizer o que continha.

Outro fator determinante no depoimento da garota é a ligação que ela faz entre Césio e Anísio. Segundo ela, ambos se conheciam e já haviam se encontrado na miniclínica.

E as passagens interessantes para a polícia não param por aí: em novembro de 1992, dois homens que falavam uma língua estrangeira teriam ficado por um mês na chácara e na clínica de Anísio. A adolescente não entendia nada do que aquelas pessoas falavam, mas o médico conseguia se comunicar com elas.

Por fim, Loidenne também citou um livro que havia visto na casa. Ele tinha uma capa vermelha e estampava o título “Magia Negra”. Conforme o relato, para assustá-la, a filha de Anísio o segurava em mãos, vestida com as vestes pretas, e corria atrás dela. A doméstica ficava com muito medo e se segurava para não chorar.

Depoimento de Loidenne Sabino de Jesus

Em um primeiro momento, o relato de Loidenne é muito forte, ainda mais diante do contexto das investigações. Aqui, porém, vale um comentário: mesmo que tudo isso fosse verdade, ainda assim, não seria um crime.

O que mais se destaca neste depoimento, contudo, é a quantidade de nomes citados que jamais foram investigados. Mãezinha e Zamo, por exemplo, nunca foram ouvidos no processo. Eles são personagens importantes, constantemente mencionados, mas que não falam por si mesmos.

Mesmo referido em diversas peças produzidas pelo Ministério Público, o testemunho de Loidenne não se repetiu nas demais etapas do processo. Ela sumiu após ser ouvida por Éder Mauro, apesar de, posteriormente, ter sido convocada para a fase de juízo no fim de 1993. Um ofício afirma que ela não foi localizada e, por isso, precisou ser substituída.

Outro fato estranho é que Anísio e a esposa, Lucimar, jamais foram questionados sobre Loidenne. Somado ao fato de que a polícia nunca realizou uma busca e apreensão na chácara de Anísio, esse depoimento parece perder qualquer sustentação.

Mas isso não significa que a história da adolescente não teve importância. De certa forma, ela parecia fazer eco com o depoimento de outra testemunha, que ajudaria a fechar a investigação de Éder Mauro.

Ao lado de Agostinho como uma das pessoas mais importantes para a acusação está um jovem de apenas 20 anos. O seu nome era Edmilson da Silva Frazão e o seu primeiro depoimento é datado de 16 de julho de 1993.

O trecho mais marcante do seu relato inclui um estranho convite que ele teria recebido de Anísio no ano de 1991. De acordo com Edmilson, o médico o chamou para participar de um culto na chácara onde morava. Ao chegar lá, a testemunha se deparou com uma cena nada convencional: em uma sala, um grupo de pessoas vestia capas pretas e capuzes, e eram iluminadas por algumas velas. O rapaz descreveu aquilo tudo como uma “missa negra” e disse que quem a comandava era uma mulher de sotaque paranaense.

Edmilson não conhecia essa pessoa na época, mas em uma nova declaração à polícia, em 28 de julho de 1993, ele conseguiu identificá-la por meio de uma edição da revista Veja publicada cerca de um ano antes: a mulher era Valentina de Andrade.

A matéria apresentada para a testemunha reportava os crimes contra crianças ocorridos em Guaratuba, no litoral do Paraná, em supostos rituais de magia negra. Isso por si só já era surpreendente. Seria possível que Valentina realmente estivesse em Altamira?

Primeiro depoimento de Edmilson da Silva Frazão

Transcrição do primeiro depoimento de Edmilson

Segundo depoimento de Edmilson

No mesmo dia, 28 de julho, um senhor de 61 anos também foi ouvido por Éder Mauro. Duílio Nolasco Pereira morava em Altamira desde a década de 1970 e, para a surpresa de todos, havia sido casado com Valentina entre os anos de 1953 e 1973. Segundo ele, a sua mudança para o Pará teria sido o motivo da separação do casal.

Mesmo após o término, a sua ex-esposa apareceu em Altamira em 1987. Mas, desta vez, ela estava diferente: acompanhada de argentinos que pareciam venerá-la como se fosse uma grande autoridade.

Depoimento de Duílio Nolasco Pereira

Os casos de emasculação de meninos haviam começado em 1989. Assim, a conclusão da polícia foi rápida e tudo parecia estar se encaixando. Os crimes teriam iniciado, então, após Valentina ter passado pela cidade. E, segundo Edmilson, ela esteve presente na chácara de Anísio para fundar uma nova religião, que adorava o “Senhor das Trevas”.

Já Anísio teria vínculos com Césio, suspeito visto por Agostinho saindo do mato com um facão. Na mesma estrada, pouco tempo depois, Amailton também foi avistado pelo lavrador. José Amadeu, seu pai, segundo as informações repassadas pelo ex-PM Carlos Alberto, seria o mandante dos crimes, praticados pelos médicos. Enquanto isso, A. Santos e o colega Aldenor Ferreira Cardoso seriam os seguranças do grupo. Todos eles eram comandados por uma líder espiritual, a cabeça de toda a organização criminosa: Valentina de Andrade.