Extras Episódio 06

LAUDO PSIQUIÁTRICO
O exame psiquiátrico forense de Amailton Madeira Gomes foi realizado no final de janeiro de 1993 pelo doutor Guido Palomba, um dos maiores nomes da área no Brasil. Ele é conhecido por atuar em casos de grande repercussão, como o do menino Pesseghini e do Maníaco do Parque. Não raramente seu trabalho é acompanhado de polêmicas.
Em 1993, o médico já era uma figura conhecida e, por isso, foi acionado para atuar no caso dos meninos emasculados. Em entrevista ao podcast, Palomba diz que quem solicitou o exame de Amailton foi o secretário de Segurança Pública do Pará na época. O psiquiatra, então, prontamente atendeu ao pedido e a polícia escoltou o suspeito até São Paulo, onde Palomba atuava.
Matéria do Jornal O Liberal – “Polícia depende do laudo psiquiátrico de Amailton”
“É sempre assim: no perfil psicológico, você não afirma que o indivíduo praticou determinado delito, mas pode perfeitamente dizer que aquela pessoa não faz parte daquele crime”, explica Palomba. “No caso do Amailton, ele não foi excluído, de forma alguma. Existia uma série de elementos que não o isentaram da possibilidade de prática do delito”.
De acordo com ele, o laudo se baseou em diferentes fatores que se encaixavam uns nos outros, como um quebra-cabeça. Ele conta que, em um determinado momento do exame, surgiu a suspeita de que os órgãos sexuais das vítimas poderiam ser utilizados em rituais de magia negra.
“Mas por quê? Por uma série de motivos que foram levantados na época. Eu lembro que fiz uma pesquisa profunda nas magias negras e descobri que, de fato, existem poções em que se usa, por exemplo, olho de gata no cio. Enfim, determinados bichos têm atividade sexual muito forte e são utilizados para dar potência nesse sentido. A minha conclusão é que os órgãos das crianças e dos adolescentes poderiam ser elementos que entravam nesses rituais”, diz o psiquiatra.
Durante a entrevista, ele também cita como fonte do laudo a suposta existência de indígenas canibais no Pará. Entre os seus ritos, eles utilizariam um pedaço de madeira enrijecido na fogueira para golpear a pessoa capturada. “Provavelmente por um mecanismo de reflexo neurológico, o órgão sexual do prisioneiro ficava rijo e as mulheres índias os retiravam e comiam”, completa.
Para além dessas questões, o que chamava a atenção de Palomba era o fato de Amailton ser arredio e não querer conversar muito. “Quando o suspeito não cometeu o crime do qual é acusado, existe na psiquiatria forense o que chamamos de ‘a garra do inocente’. Ou seja, a pessoa não aceita a acusação. Aquilo causa um mal-estar interior e ela vai para cima para provar a sua inocência, para saber quem de fato é o culpado. E ele não tinha isso. Ele não tinha a garra do inocente. Claro que só isso não condena ninguém, mas volto a insistir: o exame é como um quebra-cabeça em que as peças vão se encaixando”, completa.
Para elaborar o laudo, o médico conversou até mesmo com os agentes que fizeram a escolta do suspeito. Segundo ele, uma das guardas lhe falou sobre a orientação sexual de Amailton e explicou que o rapaz não era bem visto em Altamira. “Ele tinha uma má fama por gostar de felação. Além disso, respondia a um processo ou algo nesse sentido por coagir um determinado indivíduo com um revólver para praticar esse tipo de coisa”.
No entendimento de Palomba, tudo se encaixava: os órgãos sexuais das crianças que não eram encontrados, o canibalismo da região e a falta da garra do inocente. “Depois eu também fiquei sabendo que ele tinha dois únicos livros na casa dele: ‘Perfume’, de um mago que fazia poções, e outro do Castañeda, aquele que usa alucinógenos. Eu achei que essas obras não eram discrepantes no conjunto geral dos fatos”, declara.
Como o psiquiatra respondeu às perguntas de Ivan apenas de memória, sem consultar os autos, algumas correções são necessárias:
- A polícia não apreendeu apenas dois livros na casa de Amailton, mas sim nove. No auto de busca e apreensão, o delegado Brivaldo Pinto Soares Filho dividia as obras em dois grupos. Um era composto pelos títulos: “A 3ª Visão”, um romance esotérico bastante popular na época; “Holocausto”, “A Senhora da Magia”, da famosa série “As Brumas de Avalon”; “Aids – A Epidemia”, “A Fúria”; “A Erva do Diabo”, de Carlos Castañeda; e os romances policiais “Perfume – História de um Assassino” e “O Satanista – Uma História de Magia Negra”. Já a outra categoria era chamada de “livros pornográficos”, com as obras “Êxtase em Quadrinhos” e “Os Amantes”.
- Também foram encontradas na casa de Amailton três fitas VHS com os seguintes filmes: “Querelle”, “My Beautiful Laundrette” e “The Alchemist”.
- Brivaldo incluiu em seu relatório final outros materiais de mídia do suspeito, que não constavam no auto de busca e apreensão: “Shibumi”, “O Oitavo Passageiro” e outros livros da coleção “As Brumas de Avalon”.
- Não é possível saber se as obras listadas eram as únicas que Amailton possuía, como comentado pelo doutor Guido.
- Sobre todo esse material, Brivaldo concluiu: “sua leitura e vídeos são sempre voltados para a prática do mal, sexo com sadismo ou da magia negra”.
Resultado da busca e apreensão na casa de Amailton
Relatório final de Brivaldo Pinto Soares Filho
Sobre a metodologia do exame, Guido Palomba afirma que toda perícia tem hora para começar, mas não para terminar, pois o trabalho leva o tempo que for necessário. No caso do filho de José Amadeu Gomes, o exame teria durado “certamente uma manhã toda”. “O médico não necessita de dias ou semanas para examinar um paciente. Se ele precisar de tudo isso, é porque não sabe nada. Você vai em um cardiologista. Se ele não matar o seu diagnóstico imediatamente com boas perguntas e objetividade, não é um bom cardiologista”, afirma.
Não se sabe a data exata da elaboração do laudo psiquiátrico forense de Amailton. Tudo indica que foi por volta do fim de janeiro de 1993. A pedido da defesa do suspeito, no entanto, esse documento foi posteriormente retirado dos autos. Isso porque o laudo não foi solicitado pela juíza, como deveria ser, mas sim pela própria Polícia Civil.
E aqui há divergências de narrativas. O delegado Brivaldo dizia que a realização do exame tinha sido ideia dele. Por outro lado, Palomba conta que o requerimento veio do secretário de Segurança Pública do Pará na época. É possível que a verdade seja uma mistura das duas versões.
“MAGIA NEGRA”
Sobre as falas de Guido Palomba acerca da magia negra, Ivan Mizanzuk perguntou quais as fontes utilizadas para embasar o laudo. O psiquiatra respondeu que, devido à passagem do tempo e do tamanho significativo da sua biblioteca, não se lembra dos autores ou obras citadas no documento.
Ivan procurou por especialistas que poderiam confirmar o que o psiquiatra disse sobre magia negra e as práticas de grupos indígenas, mas não obteve sucesso. Além disso, boa parte dos comentários que recebeu sobre o assunto é que tais ideias são bastante problemáticas: estariam desatualizadas ou simplesmente erradas.
A teoria de “índios canibais no Pará que faziam rituais” sendo usada para fundamentar uma tese de psiquiatria ou a ideia de que Amailton seria perigoso por gostar de “felação” provavelmente chamou a atenção dos ouvintes. Inclusive, sobre a questão dos indígenas levantada pelo psiquiatra, até onde se sabe, não há registro desse tipo de prática na região nos últimos séculos. Mesmo se ela existisse, dificilmente Amailton seria um praticante. Afinal, era natural de Fortaleza, cidade de onde veio toda a sua família, e não do Pará.
Não é possível afirmar nada com 100% de certeza, mas a leitura desses exames mostra que a lógica utilizada aparenta ser extremamente frágil. A ideia teria sido associar um rapaz suspeito de cometer emasculação em menores a livros que supostamente falam sobre canibalismo no Pará, o que não parece fazer muito sentido.
Já em relação à metodologia descrita por Palomba, a jornalista Isabela Cabral, da equipe do Projeto Humanos, conversou com psiquiatras forenses. De fato, os métodos conferem: raramente esse tipo de exame dura mais do que um dia. Apenas casos muito específicos e complexos levam um período maior para serem concluídos. Além disso, os profissionais têm liberdade para utilizar como base a literatura que julgarem pertinente.
Na entrevista que concedeu para a tese de Paula Mendes Lacerda, o delegado Brivaldo falou sobre a atuação de Palomba:
Quando o laudo ficou pronto, o Dr. Guido Palomba teria lhe dito que “não viu o Amailton cometer os crimes, mas que foi ele, foi!”. Uma mãe lésbica e uma infância solitária teriam sido salientadas no laudo que, depois de incluído nos autos, foi “desentranhado” por determinação da juíza que alegou não ter solicitado qualquer tipo de perícia. Mesmo achando que o laudo só contribuía para o esclarecimento do caso, o delegado não se importou com sua exclusão. Ao contrário, afirmou “aquilo não era pra justiça, aquilo era pra mim. Aquilo ratificava toda a minha investigação”.
NOVO LAUDO
Em julho de 1993, Amailton passou por uma nova perícia psiquiátrica, por determinação da juíza Vera Araújo de Souza. Desta vez, o exame foi realizado pelo Setor de Psiquiatria da Coordenadoria de Polícia Científica da Secretaria de Segurança Pública do Pará. Esse laudo concluiu que o suspeito era portador de “Transtorno Esquizoide de Personalidade”. Segundo o documento, Amailton era alguém “capaz de entender o caráter delituoso dos fatos, mas não era inteiramente capaz de se determinar de acordo com esse entendimento”.
O novo exame foi assinado por dois psiquiatras: Elizabeth Maria Pereira Ferreira e Samuel Gueiros Pessoa Júnior, ambos do Pará. Mais uma vez, a sexualidade de Amailton aparece diversas vezes como ponto de reflexão. Assim como no laudo de Palomba, há um comentário sobre ele ter uma suposta “mãe lésbica” como elemento motivador de comportamentos inadequados. Não há, porém, nenhuma confirmação nos autos de que Zaila Madeira Gomes fosse homossexual. O que se sabe é que, na época em que o filho passou a ser procurado pela polícia, o casamento dela com Amadeu já ia mal e toda essa situação acabou por acelerar a separação dos dois.
Já nas argumentações legais, os especialistas apontavam, de acordo com a bibliografia científica da época, quais seriam os índices de periculosidade de uma pessoa:
O estudo do caso mostra que o periciando apresenta alguns desses indicadores, quais sejam, inadaptação escolar e profissional, comportamento homossexual, envolvimento com drogas e um distúrbio de personalidade, este último já identificado em exames psicodiagnósticos apensos ao Processo. Além disso, embora o periciando tenha aludido a que essas experiências com drogas e homossexuais sejam do passado, não se pode asseverar se a prática continua ou não. As personalidades psicopáticas e esquizoides, embora tenham as funções mentais íntegras, não apresentam testemunho fidedigno, visto que possuem um código moral próprio, diferente da comunidade onde vivem e, por ele, julgam os seus atos e os de outros. O próprio periciando, durante a entrevista psiquiátrica, declarou sentir-se um ser superior em relação aos demais.
Por fim, os psiquiatras concluem que o exame não seria o suficiente para determinar se Amailton era ou não o autor dos crimes. Caso fosse culpado, no entanto, a análise indicava que ele teria noção dos delitos, mas não tinha condições de se autocontrolar. De acordo com o documento, Amailton apresentava “dados biográficos, exames psicodiagnósticos e psiquiátricos que evidenciam comportamento desviante em relação aos valores culturais e morais da sua comunidade, como o uso de drogas e o ‘homossexualismo’”.
Laudo psiquiátrico de Amailton Madeira Gomes
Há aqui uma pergunta importante acerca da orientação sexual do suspeito: será que elas seriam feitas por um perito hoje em dia? Segundo os especialistas consultados pela jornalista Isabela Cabral, a resposta é: dificilmente. Ao menos não deveriam, já que não condizem com a literatura médica vigente e com as diretrizes da Organização Mundial de Saúde.
A psiquiatra forense Thatiane Fernandes, que atua em São Paulo, aponta, por exemplo, que os manuais de diagnóstico da época já não previam esse tipo de associação entre sexualidades não heteronormativas e fatores de periculosidade. Já o doutor Talvane de Moraes, do Rio de Janeiro, compreende o uso dessa questão para situar o suspeito como alguém dissonante de seu contexto cultural. Ele reconhece, no entanto, que essas alegações não têm fundamento.
O contexto realmente era difícil nesse ponto. No início da década de 1990, a epidemia da Aids era um grande desafio da saúde pública global e a doença era muito vinculada pela sociedade aos homens gays. É claro que o preconceito contra a comunidade LGBTQIA+ tem raízes mais profundas e segue ainda hoje muito presente, mas pode-se dizer que aquele era um período especialmente delicado.
Além disso, sobre a análise como um todo, o doutor Talvane comenta que sentiu falta de mais atenção aos próprios crimes, em vez do laudo quase que se limitar a um perfil do suspeito. Quanto ao diagnóstico de transtorno esquizoide de personalidade, a médica Thatiane vê com desconfiança, diante do comportamento de Amailton descrito por ele mesmo e por seus familiares, e observado pelos autores do documento.
Ela esclarece que o transtorno por si só não é evidência de condutas criminosas. A estigmatização de pessoas com diagnósticos psiquiátricos inclusive é algo que outra fonte ouvida pelo podcast, o psiquiatra forense Daniel Barros, fez questão de destacar. “Transtorno mental não é sinônimo de violência e violência não é sinônimo de transtorno mental”, afirma.
Aqui é importante deixar claro uma coisa: boa parte dessas problemáticas com tantas discussões e nuances jamais chegaram às famílias das vítimas. As autoridades só repassavam para elas algumas partes específicas e de forma verbal. Por mais engajados que os familiares fossem, dada a complexidade do processo, que naquela época só estava disponível em papel, eles nem teriam como ter acesso a todas essas informações.
Um exemplo disso é uma fala de Rosa Maria Pessoa durante a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em Brasília no dia 15 de outubro de 1996 – quatro anos após o assassinato de seu filho Jaenes: “disse a médica que fez o laudo da cabeça do Amailton: ‘dona Rosa, lute o quanto puder para que ele nunca seja solto porque é um psicopata, e o Brasil e o mundo correm grande perigo com ele solto”. Esse comentário revela muito sobre o tipo de mensagem que era repassada às famílias.
Voltando a fevereiro de 1993, a fase de instrução estava quase no fim. Testemunhas de defesa e acusação já haviam sido ouvidas. Todos aguardavam agora a decisão da juíza para saber se Amailton seria ou não julgado no Tribunal do Júri pela morte de Jaenes e talvez de outras vítimas.
Entre as pessoas que prestaram depoimento, há algo que chama a atenção: no inquérito de Brivaldo, é notório que a convicção de culpa do suspeito foi formada pelo o que ele considerava serem fortes indícios referentes ao caso de Judirley da Cunha Chipaia. Relembrando, duas testemunhas se destacavam: Josivaldo Aranha da Silva, que dizia ter sido ameaçado por três homens em uma picape de cor vinho no dia e local em que o corpo do menino foi encontrado, no início de 1992; e Lúcia da Cunha Chipaia, irmã da vítima, que afirmava que Amailton era um suspeito para a família há muito tempo, justamente por causa do veículo que dirigia. Nenhum dos dois prestou depoimentos na fase de instrução judicial.
Josivaldo Aranha simplesmente desaparece do processo e nunca mais é ouvido. Não se sabe que fim ele levou. Pode ser que essa ausência na fase de instrução contra Amailton tenha se dado pelo fato do processo ser referente à vítima Jaenes, e não a Judirley. Mas isso é apenas uma suposição. Ainda assim, duas testemunhas de acusação tão fortes terem sumido nessa etapa do processo é algo que certamente chama a atenção. Pois a impressão que dá é que, pelos relatos que permaneceram, sobram poucos elementos contra Amailton.
FLÁVIO LOPES
No dia 27 de março de 1993, o caso dos meninos de Altamira mudaria para sempre. Enquanto o filho de Amadeu estava preso em Belém, mais uma criança desaparece: Flávio Lopes da Silva, de 10 anos de idade.
O inquérito do garoto está anexado aos autos do processo, mas neles não consta o Boletim de Ocorrência do caso. Todas as informações sobre o dia que ele sumiu são provenientes dos depoimentos de familiares prestados tempos mais tarde. Um trecho da tese da pesquisadora Paula Lacerda traz um bom resumo sobre o ocorrido:
De acordo com o termo de declarações prestadas pelo pai da vítima à polícia, com menos de um mês de vida, uma senhora de nome Helena entregou seu filho para que Maria Luiza Lopes da Silva, sua mulher, o criasse. Maria Luiza, então com 23 anos de idade e uma filha, registrou o menino como Flávio, dando-lhe seu sobrenome e o de seu marido, o lavrador Moacir Silva. Até os 10 anos de idade, Flávio vivia com seu pai na comunidade rural conhecida como Arroz Cru, ajudando na roça e estudando na Colônia Agrícola. Algumas vezes, durante a semana, ia até Altamira levar alimentos para sua mãe. Quinze dias antes de seu desaparecimento, Flávio tinha ido viver na cidade, longe da zona rural. Poucos dias depois de chegar, o menino começou a trabalhar com uma senhora que vendia milho e espetinhos em uma barraca em frente ao ponto de táxi do bairro da Brasília. A patroa tinha o mesmo nome de sua mãe e era ajudada por uma moça de nome Marinalva.
Nos primeiros dias, Maria Luiza, a patroa, apanhou Flávio na casa de sua mãe para que ele a ajudasse a transportar os alimentos, acender o fogo, vigiar a barraca etc. No dia 27 de março de 1993, o menino, pela primeira vez, fez sozinho o trajeto entre a casa de sua mãe e a casa da patroa, onde chegou às 7 horas da manhã. Trabalharam juntos durante a manhã e a tarde de sábado. Por volta das 19 horas, retornou para jantar e banhar-se na casa da patroa. Marinalva foi encarregada de ir até a casa de Flávio buscar uma muda de roupa para ele trocar. Entre a saída da banca de espetinhos e a chegada na casa da patroa, Flávio desapareceu. Uma senhora de nome Alice, comerciante local, teria visto o menino quando ele entrou em sua lanchonete para assistir televisão. Conforme declaração na polícia, Alice afirmou ter dado um pedaço de bolo para Flávio e o orientou a ir para casa.
Marinalva foi até a casa da mãe de Flávio, mas esta lhe disse que a outra única peça de roupa do menino estava molhada. Ao retornar à casa da patroa, notou que Flávio ainda não havia chegado. Dirigiu-se à banca de espetinhos, onde ele também não estava. A patroa começou a procurar o menino nas redondezas e verificou que ele não tinha voltado para a casa da mãe. A mãe do menino então tomou conhecimento de que seu filho estava desaparecido. Começaram a procura que se estendeu madrugada adentro. No dia seguinte, elas foram à delegacia registrar o caso e noticiaram o desaparecimento na rádio da cidade. Moacir, o pai do menino, escutou a notícia na rádio e imediatamente seguiu para a casa de sua esposa.
Dois dias depois do desaparecimento, um vigia chamado Luiz Arcanjo de Morais encontrou o corpo de Flávio em uma região de matagal. De acordo com matérias de imprensa da época, o trabalhador chegou a ser suspeito do crime e teria inclusive sofrido agressões de policiais. Nada disso, porém, está nos autos.
Flávio estava deitado de lado, curvado e usava apenas um calção preto. O rosto apresentava lesões e possuía algumas marcas de putrefação – mas não tão avançadas a ponto de dificultar a sua identificação.
Um detalhe que se destaca no caso do Flávio é comentado até mesmo por um repórter do SBT que cobriu o achado do corpo. “Vejam que a situação realmente não tem nada a ver com aqueles outros crimes que vinham acontecendo em Altamira. Completamente diferente o caso do corpo que foi encontrado. Não há emasculação nenhuma e aparentemente o garoto foi morto a paulada”, diz o jornalista.
As diferenças estão anotadas no relatório de conclusão da investigação sobre o caso de Flávio, assinado pelo médico Evando Guimarães Martins, então delegado titular de Altamira. O documento é datado de 28 de abril de 1993, um mês após a morte do menino.
Em resumo, os pontos principais eram os seguintes: primeiro, a criança estava vestida de shorts, diferente das vítimas anteriores, que eram sempre encontradas nuas.
Segundo, o garoto não havia sido emasculado. O laudo definitivo do exame de Flávio não estava finalizado na época da conclusão do relatório, mas depois ele confirmaria algumas das informações citadas: o pênis tinha sido retirado, mas a bolsa escrotal permanecia. Por causa disso, tecnicamente, não seria um caso de emasculação. Ele apresentava, no entanto, um corte no testículo esquerdo. Além disso, as bordas da lesão no órgão sexual não eram regulares como nos casos anteriores, o que indicava o uso de instrumento cortante. De acordo com o documento, o ferimento possuía bordas de aparência imprecisa em todo o seu contorno.
A terceira diferença seria o fato de que a criança teria morrido com uma forte pancada na cabeça. Segundo o relatório, isso seria “radicalmente diferente dos casos anteriores”.
Laudo de exame do corpo de Flávio Lopes da Silva
A partir da análise de todo o processo, porém, essa era uma constatação equivocada. Tudo indica que o delegado do inquérito não teve acesso aos laudos anteriores. Nos casos que possuíam esse documento, não há um modus operandi específico ou repetido para a morte das vítimas. Os exames dos garotos mortos em 1992 mostram o seguinte:
- Judirley da Cunha Chipaia: a causa da morte é definida como “choque hipovolêmico devido à hemorragia aguda por lesão de vasos sanguíneos no pescoço”;
- Jaenes da Silva Pessoa e Klebson Ferreira Caldas: ambos têm causa da morte indeterminada por conta do avançado estado de decomposição em que seus corpos foram encontrados.
Esses três laudos – de Judirley, Jaenes e Klebson – possuem participação do mesmo legista, o doutor Armando Aragão. Já no caso de Flávio, o documento é assinado pelo médico Luiz Loureiro.
Laudo e ata de exumação do corpo de Judirley da Cunha Chipaia
Laudo provisório de exumação do corpo de Jaenes da Silva Pessoa
Laudo e ata de exumação do corpo de Jaenes
Laudo de exame do corpo de Klebson Ferreira Caldas
Apesar dessa confusão, o fato é que a impressão de que esse era um crime diferente dos outros era o pensamento dominante na Polícia Civil de Altamira. Isso fica bem claro em alguns trechos do relatório:
Comparando esses aspectos com os referentes aos casos anteriores de emasculação, é possível constatar que nenhuma semelhança há no modo de agir dos autores, tanto de um como do outro. O autor dos casos de emasculações sempre agiu de forma mais requintada e revestida de profissionalismo. Enquanto que no caso do menor FLÁVIO nota-se indícios de amadorismo, nos levando a crer que há alguém agindo com o intuito de desvirtuar a atenção sobre AMAILTON MADEIRA GOMES que se encontra preso, com o fito de fazer-se entender que ele não é o responsável pelos casos anteriores.
[…]
Diante do que foi exposto acima é fácil concluir que neste caso na realidade ocorreu o crime de homicídio com requinte de perversidade contra um menor. E o autor deste homicídio tentou usar o álibi de retirar o pênis do menor objetivando causar confusão do raciocínio à Polícia, ao Judiciário e a sociedade em geral, porém os indícios deixados eliminam qualquer dúvida em se afirmar que não se trata na verdade de caso de emasculação.
Relatório sobre o caso Flávio elaborado pelo delegado Evando Guimarães
Matéria do Jornal Diário do Pará – “Morte de menor pode ser ligada a monstro”
A informação do relatório de que o autor das emasculações sempre agiu “de forma mais requintada” não condiz com os laudos anteriores. Segundo o laudo do corpo de Jaenes, o médico legista afirmava que o corte não possuía características de profissional. Já no caso de Klebson, em entrevista dada à televisão, Aragão dizia que qualquer pessoa com um instrumento cortante bem afiado poderia causar uma lesão desse tipo.
O caso de Flávio demonstra algo que, apesar de não se saber exatamente quando surgiu, é muito forte no processo todo: de que os cortes teriam características profissionais. É nesse momento, então, que a seguinte hipótese começa a circular pela cidade:
- Amailton não cometia os crimes sozinhos;
- Alguém devia estar tentando confundir o processo contra ele, provavelmente uma pessoa de seu convívio social;
- Os cortes das vítimas anteriores demonstravam precisão. Logo, devem ter sido praticados por pessoas com habilidades cirúrgicas;
- Esses indivíduos vão continuar cometendo crimes.
Essas suspeitas não eram novas, mas a morte de Flávio as renovou. Se Amailton era realmente culpado, como a imprensa, a polícia e o Ministério Público afirmavam, então era necessário agora ir atrás dos comparsas dele.
O ponto chave tornou-se as características dos cortes. Essa era a pista que a população usava para descobrir o responsável ou responsáveis. E é nesse sentido que se passou a desconfiar do seguinte: se de fato os poderosos estavam agindo e os cortes tinham precisão cirúrgica, era muito provável que havia a participação de médicos.
Antes de avançar nesse ponto, é preciso voltar para o início das investigações de Brivaldo no caso de Jaenes, encontrado morto no dia 3 de outubro de 1992. Lá aparece uma ponta solta que voltará a ser olhada com maior atenção.
“O que me chamou bastante a atenção no que consta nos autos é um pedido do doutor Brivaldo para uma companhia aérea, que na época era a Vasp. É um ofício de 15 de outubro, que quer saber todos os deslocamentos do doutor Anísio Ferreira de Souza”, explica o pesquisador e advogado Rubens Pena Júnior.
Ofício de Brivaldo para a companhia de aviação Vasp
Além desse documento, há também em meio à investigação contra Amailton outros elementos sobre o tal doutor Anísio. Um deles é uma foto em que ele está em um terreiro, local de prática de religiões de matriz africana.
“Eu fiquei curioso do porquê o Anísio apareceu ali. E a Paula fala na tese dela que, quando conversou com o Brivaldo, ele disse que não via o Anísio nos crimes, tanto que não o indiciou. Mas ele escutava coisas que o relacionavam aos casos”, diz o pesquisador.
A figura do doutor Anísio inaugura uma nova fase das investigações em Altamira. Essa é a etapa que transforma esse caso em algo completamente diferente.
MAPA DOS CRIMES
Para acessar o mapa dos crimes atualizado com o caso de Flávio, clique aqui.
O mapa indica os locais onde as vítimas sobreviventes foram resgatadas (verde), onde os corpos das vítimas fatais foram encontrados (amarelo) e onde os desaparecidos foram vistos pela última vez (roxo). Os locais são aproximados. Também são informadas a idade que os meninos tinham e as datas dos crimes.
Como às vezes há divergências em detalhes entre o que está em documentos policiais e judiciais e o que o Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses indica, foram priorizadas as informações que estão em autos processuais. Já nos casos em que não existem registros oficiais, os dados do Comitê são utilizados. Há ainda casos apontados pelo Comitê cuja localização é desconhecida, portanto, não são apresentados neste mapa.
O mapa exibe a geografia atual de Altamira. Na época do caso dos emasculados, alguns aspectos eram diferentes.