Extras Episódio 02

A mobilização social em Altamira começou após a emasculação do Segundo Sobrevivente em novembro de 1989 e se intensificou com a morte do garoto indígena Judirley da Cunha Chipaia em janeiro de 1992. Mas o estopim para que as famílias se organizassem em um movimento mais forte e para que a população saísse massivamente às ruas aconteceria depois da morte de Jaenes da Silva Pessoa, em outubro do mesmo ano. Com isso, tornou-se impossível para o poder público continuar a ignorar as mortes na cidade, especialmente em época eleitoral.
Em depoimento, Juarez Gomes Pessoa, o pai de Jaenes, dizia que o vice-governador Carlos José Oliveira Santos esteve presente no funeral do menino e lá lhe prometeu que tomaria medidas para que o responsável pelo crime fosse preso. Como a população local não confiava nos policiais da cidade, a Secretaria de Segurança do Pará designou um renomado delegado de Belém para conduzir as investigações: seu nome era Brivaldo Pinto Soares Filho. Na época, ele ocupava o cargo de diretor de Policiamento do Interior do estado. É para ele que Juarez presta o seu primeiro depoimento em 15 de outubro, poucos dias após o investigador ter chegado na cidade.
Brivaldo faleceu em 2017. Por isso, sempre será um personagem-chave cheio de mistérios. O que ficou claro ao longo da pesquisa, no entanto, é que a sua entrada no caso significou um ponto de virada para as famílias das vítimas. Pela primeira vez, após quatro anos de crimes, alguém parecia estar disposto a fazer alguma coisa. Ao mesmo tempo, é surpreendente descobrir que, quando chegou em Altamira, ao contrário do esperado, poucas pessoas quiseram falar com ele.
Para entender essa resistência por parte da população, muitos elementos precisam ser considerados. Além da segurança pública ser um problema sério no Brasil, há ainda questões mais profundas quando os envolvidos não são brancos ou vêm de uma classe social mais baixa. A invisibilidade dos casos, inclusive, faz com que seja difícil até hoje estabelecer qual era a raça ou etnia das vítimas. Diversas crianças não tinham certidão, documento ou até mesmo foto. Mas pode-se afirmar que muitas delas não seriam hoje identificadas como brancas e que, ao menos uma, Judirley, era indígena. Diante disso, é impossível compreender as dinâmicas sociais envoltas no caso sem mergulhar na história de Altamira.
ALTAMIRA
Altamira fica localizada no Norte do país, no estado do Pará, a cerca de 830 km da capital, Belém. O rio Xingu, que passa pelo município e é muito importante para toda a região, é um forte símbolo do local. Os diversos cursos de água que entrecortam o Norte obrigam que estradas tenham longos desvios ou, em determinadas áreas, fazem com que elas sequer sejam construídas. Em estados como o Amazonas, por exemplo, é comum que as pessoas se desloquem para municípios do interior não de ônibus, mas sim de barco. No Pará, o transporte fluvial também é utilizado, porém em menor quantidade.
Desde o século XVI, com a colonização europeia por todo o continente, o Pará foi visto como área de extração de diversas matérias-primas. No século XIX, a região tornou-se local de interesse por causa do látex dos seringais, utilizado para a produção de borracha – esse período é conhecido como “O Ciclo da Borracha”. Após um declínio, um novo ciclo do látex se iniciou na década de 1940, por conta da Segunda Guerra Mundial. Com o fim do conflito, outras matérias-primas passaram a chamar a atenção, o que deixou a borracha em segundo plano.
Para transportar tanto material, eram necessárias estradas que conectassem a região ao restante do país. Essa é a visão que foi construída ao longo dos séculos de colonização: o Norte, com a exuberante Floresta Amazônica, era um oásis da natureza com tanta riqueza natural, mas era também uma terra que precisava ser habitada e interligada ao resto do Brasil. E é por isso que, na década de 1970, no auge da ditadura militar, Altamira virou palco de um projeto nacional ambicioso: a construção da rodovia Transamazônica.
Quando se fala em rodovias, geralmente o que vem à cabeça são ruas asfaltadas. Mas aqui não é o caso. Até pouco tempo – e até hoje em alguns trechos -, a Transamazônica era uma enorme estrada de terra no meio da floresta. Esse é o cenário de Altamira na época do caso dos meninos emasculados.
Quem ajuda a ilustrar ainda mais a cidade nesse período é a professora Maria Ivonete Coutinho da Silva, mais conhecida como Professora Netinha. Docente na Universidade Federal do Pará, ela é conhecida pelo seu ativismo social no campo da educação e dos direitos humanos.
Nordestina, Netinha se mudou para Altamira com a família no início do projeto de colonização da Transamazônica, na década de 1970. “Não tinha escola, não tinha posto de saúde, não tinha cemitério, não tinha nada. Tinha terra para trabalhar. E a gente foi contando com a graça de Deus que ninguém adoecia, porque nós fomos sete filhos e nunca tivemos nenhum problema de saúde grave. Sobrevivemos. Não tinha escola na época, tanto que eu fui fazer o ensino médio com 19 anos”, diz ela em entrevista ao podcast.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1970, Altamira contava com 15 mil habitantes. Dentre eles, havia indígenas de diversas etnias, que habitavam aquela terra muito antes dos homens brancos a colonizarem. Lá residiam também descendentes dos colonizadores europeus, além da população negra e quilombola, que vinha de gerações de escravizados levados ao Norte para realizar trabalho forçado e sustentar os ciclos de exploração de matéria-prima. Havia ainda na cidade migrantes de diversas regiões do Brasil, como colonos do Sul e Minas Gerais, mas principalmente do Nordeste, com destaque para Rio Grande do Norte e Ceará. Eles tinham se mudado para o Norte em busca de trabalho, seja no ciclo da borracha ou na construção da grande estrada.
Para construir uma estrada, precisa-se de homens. Após o início das obras da construção da Transamazônica, em 1980 a cidade já possuía 46 mil habitantes. Ou seja, em 10 anos, a população triplicou. Altamira é um dos maiores municípios do mundo em extensão territorial. Chega a ser maior que alguns estados brasileiros e pode ser comparada a países como Portugal e Grécia em questão de tamanho. Apesar disso, ela é pouco povoada: atualmente, conta com cerca de 115 mil moradores e tem um centro urbano concentrado na região nordeste do município. Ali é onde a maior parte da população vive, um local que se assemelha a uma pequena cidade.
Nos últimos 50 anos, Altamira nunca teve um crescimento populacional gradual. Esse processo sempre aconteceu na base de saltos descontrolados, sem planejamento algum, resultado de grandes obras governamentais. A mais recente, que colocou a cidade no noticiário nacional, foi a construção da barragem de Belo Monte, por volta de 2011, um projeto que vem desde o período dos governos militares. A iniciativa foi um fracasso e deu vez a um novo boom populacional, que aumentou o número de habitantes da cidade para além dos 100 mil. Hoje, Altamira ocupa a triste estatística de um dos municípios mais violentos do Brasil.
Segundo a professora Netinha, um fator inerente ao processo de ocupação conduzido pelo Estado é o espalhamento e separação das pessoas. “Em todos os governos que fazem colonização, eles quebram os laços de familiaridade, de parentesco, para também não ter qualquer possibilidade de organização de enfrentamento”, afirma.
Junto a esse fenômeno, cria-se outro bastante conhecido no Norte do país: o chamado “consórcio da morte”. O conceito é explicado por Kátia Maria dos Santos Melo, graduada em Serviço Social pela Universidade da Amazônia e mestre e doutora pela Universidade de Brasília. Filha de trabalhadores e indígenas da Amazônia, ela também trabalha junto aos movimentos sociais da região.
“O consórcio da morte era organizado pelos donos de terras ou de garimpos, pessoas que se viam incomodadas, por exemplo, com indígenas, pescadores, quilombolas e com os movimentos sociais que lutam pelo direito ao território”, esclarece. Segundo ela, esses indivíduos pagam um preço para que quem estiver “importunando” seja assassinado. “E aí tem os caras que matam, os profissionais, os jagunços. Eles matam mesmo”, completa.
Entre as vítimas do consórcio da morte, está Dorothy Stang, uma missionária norte-americana naturalizada brasileira que, desde os anos de 1970, militava junto à pastoral da terra e aos trabalhadores no Xingu – comum aliança já citada no episódio anterior, em que as lideranças católicas se somavam aos movimentos de base. Dorothy, assim como a professora Netinha, a ativista Antônia Melo e Rosa Maria Pessoa, mãe de Jaenes, era uma das mulheres que venceram o medo para lutar por justiça. E por isso, incomodava. Ela foi assassinada em 2005 com seis tiros por pistoleiros a mando de um poderoso fazendeiro em Anapu, município vizinho de Altamira – o mesmo do “Anônimo de Anapu”, criança vítima do caso dos emasculados e até hoje desconhecida.
Outro caso bastante conhecido é o de Dema, apelido de Ademir Federicci, que atuou em diversos movimentos e lutas sociais no Norte do país até ser assassinado em 2001 na cidade de Altamira. Na ocasião, ele liderava um movimento de resistência à construção da usina de Belo Monte.
“Hoje os conflitos continuam, né? A finalização da obra deixou um passivo socioambiental sem precedentes. Nessa geração, Altamira e região não se recuperam. Os piores índices, considerando o número de habitantes, estão concentrados no município. Assassinato contra a mulher, violência contra crianças e adolescentes. Está tudo lá”, destaca Kátia Melo.
Nesse cenário de abandono, em que qualquer reivindicação por direitos pode resultar em assassinato, muitas vezes comandado por pessoas poderosas, só havia uma alternativa para quem queria alguma melhoria de vida: organizar-se socialmente. Se não fossem as famílias e o apoio dos movimentos sociais, o delegado Brivaldo jamais teria sido designado para Altamira. Além disso, foi graças à sistematização feita por elas que o investigador teve acesso às informações sobre os crimes anteriores.
Na época, a cidade não contava com nenhum órgão que pudesse olhar com atenção para a situação dos meninos atacados. Na delegacia, os poucos inquéritos que existiam estavam fora de ordem ou eram abandonados. Por isso, o trabalho dos familiares, que segue até hoje por meio do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses, é uma importante fonte primária para entender o caso. Frente à ausência das autoridades, existe a dificuldade de estabelecer informações simples, como raça, idade, nome ou filiação das crianças. E mais ainda: não é possível estabelecer qual o número exato de vítimas.
De acordo com a professora Netinha, é muito provável que outros garotos tenham sido atacados, mas que nunca foram identificados ou encontrados. “Imagina, naquela época era muito mais difícil. Não tinha telefone, não tinha celular, não tinha internet. Então, é possível. A gente ouvia muito dizer que as famílias iam embora com vergonha. O sentimento era de vergonha pelo seu filho ter sido castrado, como eles diziam”, afirma.
Para ela, o interesse geral cresceu após o caso do Segundo Sobrevivente, emasculado em novembro de 1989. Isso acontece porque o pai do menino era vigilante da Associação Atlética Banco do Brasil (AABB), bastante conhecida pelos moradores da cidade. “É o Banco do Brasil, ali estavam os empresários, a juíza… O filho do caseiro foi emasculado e o menino volta com vida para contar a história”, comenta.
Além do ataque ao Segundo Sobrevivente, outro crime que chamou a atenção dos movimentos foi a morte de Ailton Fonseca do Nascimento, a terceira vítima listada na carta citada no episódio anterior. Ele foi o primeiro menino encontrado sem vida, em 1991. A sua ossada foi enviada para análise em Belém, mas o laudo jamais foi emitido pelo Instituto Médico Legal (IML). O corpo nunca foi devolvido para que a família pudesse enterrá-lo e, até hoje, é dado como perdido. O descaso do Estado com as crianças não acabava no momento em que elas morriam.
INQUÉRITO DE JAENES
O inquérito sobre a morte de Jaenes da Silva Pessoa foi aberto em 4 de outubro de 1992, um dia depois de seu corpo ter sido encontrado. Em ofício de 14 de outubro, o delegado Brivaldo requisitou a exumação do cadáver para um novo exame mais detalhado.
A resposta veio no dia seguinte, assinada pelo médico legista Armando Aragão. As fotos do procedimento já indicavam que o estado do corpo havia se deteriorado bastante. Por conta disso, Aragão não conseguiu responder a todos os quesitos solicitados pelo investigador.
Nos autos, há um prontuário escrito à mão pelo médico, que diz o seguinte:
“Ao Delegado Brivaldo Pinto,
1) Se o corpo apresenta lesão?
Resposta: ferida incisa com amputação parcial do pênis (a 1cm da base de implantação) e amputação total da bolsa escrotal.
2) Se houve ato libidinoso anal?
Resposta: prejudicada em virtude do avançado estado de decomposição do cadáver, impedindo avaliação precisa.
3) Se foi encontrada alguma substância tóxica?
Resposta: idem acima.
4) Se o corte efetuado na vítima tem características de profissional?
Resposta: não.
5) Qual o instrumento cortante que poderia ter sido utilizado?
Resposta: navalha, faca bem afiada, etc.
6) Se o órgão retirado pode servir para ser implantando em outra pessoa e qual o tempo necessário para isso?
Resposta: não.
Comentário final: possivelmente a causa da morte não decorreu da emasculação (indeterminada, devido adiantado estado de putrefação).”
Prontuário do doutor Armando Aragão
Em entrevista concedida para a pesquisadora Paula Lacerda em 2010 para a produção da sua tese, Brivaldo relatou que era muito difícil obter informações no município naquela época. “Ele me dizia: ‘olha, Paula, em Altamira, como em qualquer cidade do interior, você não tem nenhuma estrutura para quem chega lá. Ou você bota a tua rede em cima da mesa e dorme, ou você aceita a oferta do prefeito de dormir no hotel da cidade com a prefeitura pagando’”, conta ela.
Para a pesquisadora, isso mostra a profunda conexão entre as autoridades locais: prefeitura, juízes, e pessoas que não necessariamente possuem um cargo, mas que talvez sejam donas do hotel, da pousada ou do posto de gasolina do município. “Eu acredito que é uma configuração e concentração de poder econômico e político o que ele me relatou. Eu acho que ajuda muito fortemente a entender um pouco o medo da população e também esse abafamento dos casos”.
Nesse contexto, a população desamparada chegava a uma conclusão: se os crimes ocorriam por tantos anos sem ninguém fazer nada, os criminosos só poderiam ser gente poderosa. Teriam provavelmente pistoleiros, policiais, juízes e promotores em sua folha de pagamento não-oficial.
A hipótese de que se tratava de um grupo e não de apenas um agressor ganha forças com o relato do terceiro sobrevivente, Wandicley Oliveira Pinheiro, atacado aos nove anos de idade em 1990. Em depoimentos que prestou, ele diz ter visto quatro pessoas na cena do crime.
A partir do histórico dos casos, Brivaldo passou a desenhar o perfil de um maníaco sexual que agiria em Altamira. De acordo com o investigador, ele teria prazer em abusar dos meninos com o uso da violência. Além disso, o suspeito não agiria sozinho e provavelmente teria algum prestígio social.
No mesmo dia em que Juarez Gomes Pessoa prestou seu primeiro depoimento, uma importante testemunha também foi ouvida pelo delegado Brivaldo. Seu nome era Josivaldo Aranha da Silva, de 22 anos de idade. Na ocasião, o jovem narrou uma estranha situação que teria vivenciado enquanto catava lenha em uma estrada na área rural de Altamira, no dia 3 de janeiro de 1992 – dia em que o corpo do garoto indígena Judirley Chipaia havia sido encontrado.
Josivaldo contou que viu um carro tipo picape, com uma carroceria de madeira, parado debaixo das árvores. Dentro do veículo havia dois homens, enquanto um terceiro indivíduo estava parado do lado de fora, encostado na porta. Ele era alto, magro, tinha cabelos lisos e loiros. Assim que Josivaldo passou por perto, esse rapaz apontou uma arma para ele e disse: “olha, se tu contares que nos vistes aqui ou que vistes alguma coisa, vamos te matar aonde quer que tu te escondas, em qualquer estado do Brasil”. Assustado, o jovem respondeu: “descobrir o quê?”. O homem loiro retrucou: “cala a boca”. Quando Josivaldo se afastou do grupo, um deles gritou: “olha o que eu falei pra você”.
A testemunha, então, continuou a caminhada com a lenha até voltar para casa. Lá, encontrou sua mãe de criação, que lhe perguntou se ele já sabia de um crime que havia acontecido perto do local onde ia apanhar lenha. Segundo ela, o corpo de um menino tinha sido encontrado justamente naquela região. Josivaldo respondeu que até então não sabia de nada, mas também não comentou sobre o trio na picape e a ameaça que recebeu.
Em março de 1992, o rapaz estava de bicicleta quando viu novamente os mesmos homens em um lugar conhecido na cidade como “a entrada da Betânia”. Os três fizeram Josivaldo parar. Um deles lhe mostrou uma arma e falou: “estás lembrado daquele dia que nós dissemos que se tu falasses alguma coisa, nós te matávamos?”. Em seguida, soltaram a bicicleta e ordenaram: “some, some, some”.
Essa, no entanto, não foi a última vez que a testemunha encontrou essas pessoas. Em uma terceira ocasião, em Porto de Vitória, um homem baixo, gordo, moreno, de cabelos lisos e sem barba se aproximou de Josivaldo. Ele comentou: “tu és aquele com quem tiramos uma brincadeira lá na entrada da Betânia, quando tu vinhas de bicicleta”. O jovem assentiu, no que o outro completou: “aquele loiro tem uma granja e uma horta lá perto do posto Gomes”.
Depoimento de Josivaldo Aranha
O relato de Josivaldo Aranha era relevante para o delegado Brivaldo por uma série de motivos. Em primeiro lugar, as pessoas que encontraram ou viram os corpos dos meninos emasculados sempre diziam que parecia que eles tinham sido deixados nos locais, já que não havia presença nítida de sangue no solo.
Aqui é importante ressaltar que em nenhum dos crimes existe um laudo de exame do local do achado do corpo. Há nos autos apenas fotos de algumas das vítimas na ocasião em que foram encontradas. Mas, para além do choque que geram, elas não dizem muita coisa tecnicamente. De qualquer forma, a impressão que elas passam é que, de fato, as crianças teriam sido mortas em outro lugar antes de serem jogadas em tais pontos.
O segundo motivo da importância do depoimento de Josivaldo é o seguinte: aqui há o relato de uma pessoa que diz ter sido ameaçada no dia e local próximo em que o corpo de Judirley foi encontrado. Um desses suspeitos, que aparentava ser o líder do grupo, seria jovem, magro, loiro e teria uma propriedade perto do posto da família Gomes – que tinha como dono José Amadeu Gomes, primo de Juarez, pai de Jaenes.
Essas eram algumas pistas para Brivaldo. Oficialmente, ele estava a cargo da investigação da morte de Jaenes, em outubro de 1992. Mas ao notar que conseguiu uma informação valiosa no caso de outra criança, Judirley Chipaia, o delegado suspeitava que teria mais respostas se olhasse para os demais crimes. Foi aí que ele decidiu ir atrás dos sobreviventes.
WANDICLEY PINHEIRO
Enquanto Brivaldo fazia as suas investigações, encontravam-se em Belém Cezário Loiola Pinheiro, de 65 anos, e seu filho Wandicley, na época com 11 anos de idade. Atacado em 23 de setembro de 1990, Wandicley era conhecido como o terceiro sobrevivente emasculado. Assim como o Segundo Sobrevivente, ele teve o pênis e a bolsa escrotal completamente removidos – diferente da primeira vítima, José Sidney, que sofreu pequenos cortes na região genital, sem danos permanentes. O caso de José Sidney sequer possui inquérito aberto no processo. O garoto nunca prestou depoimento e tudo o que se sabe sobre ele é decorrente de materiais produzidos pelo Comitê.
Devido ao grau de violência que sofreram, o segundo e o terceiro sobreviventes foram atendidos por anos por um renomado médico cirurgião de Belém, o doutor Lourival Barbalho. Irmão do então governador Jader Barbalho, ele fez o tratamento de ambas as vítimas de forma gratuita. O seu objetivo era realizar uma reconstrução peniana nos dois meninos, com o uso de próteses.
O Segundo Sobrevivente ficou em Altamira com a família, indo para Belém de tempos em tempos. Já Wandicley se mudou para a capital depois do ataque e praticamente morou no hospital por um longo período. Por esse motivo, ele e o pai não estavam em Altamira nos dias 20 e 21 de outubro de 1992, quando prestaram depoimento no inquérito do garoto Jaenes. Eles foram ouvidos em Belém pela delegada Nilma Nazaré de Almeida Alves, como forma de auxiliar as investigações que Brivaldo conduzia a 800 km da capital.
Na ocasião, o menino contou tudo o que lembrava: no dia do ataque, ele brincava com um primo de nome Jailson, antes do horário de almoço, quando um homem desconhecido se aproximou. O agressor teria o agarrado por trás e o carregado até uma bicicleta. O primo ainda tentou intervir, jogando uma pedra em direção ao indivíduo, mas de nada adiantou.
Wandicley relata que teve as mãos amarradas na garupa da bicicleta por um fio grosso. Ele se recorda que o agressor era branco, tinha estatura média, cabelos lisos e pretos penteados para trás, sobrancelhas fartas e rosto cheio e forte. Esse homem estava armado com uma faca, que usava para ameaçar a criança. O garoto, então, foi conduzido até uma região de matagal, onde foi desamarrado e obrigado a descer um barranco. Ao chegar em uma clareira, viu mais um homem de estatura média, que tinha olhos escuros, cabelos pretos e ondulados, sobrancelhas fartas, bigode e rosto fino.
A criança foi vendada, momento em que teriam chegado ao local mais dois indivíduos desconhecidos. Wandicley diz que conseguiu notá-los por meio de uma falha no tecido que cobria os seus olhos. Logo em seguida, o indivíduo da bicicleta deu uma pancada na cabeça dele com um pedaço de pau, o que fez com que o menino caísse no chão. Nessa hora, o rapaz moreno de bigode o segurou no braço, enquanto o outro, de cor branca, retirou o calção do garoto e usou a faca para a emasculação. A dor foi tão forte que a vítima perdeu os sentidos e só acordou bem depois, já sozinha e completamente ensanguentada. Apesar do horror, ele se levantou e passou a caminhar dentro do mato em busca de ajuda. Após muito tempo, conseguiu chegar em uma casa, onde pediu socorro e acabou sendo levado ao hospital.
Anexado ao relato de Wandicley, há um retrato falado que aparenta ter sido feito com fotografias de partes de rostos de diferentes pessoas, como um quebra-cabeça. Ao que tudo indica, foi feito pela polícia com base nos relatos do garoto.
Retrato falado com base no relato de Wandicley
Em depoimento prestado no dia anterior, o pai da vítima comenta que mostrou uma cópia do retrato para outro filho, que lhe disse que conhecia alguém com um rosto muito parecido: um homem de nome “Luiz Capricho”, que morava ali no mesmo bairro. Por conta própria, Cezário começou a observar o suspeito e descobriu que se tratava de um pistoleiro que morava sozinho.
“Luiz Capricho” seria, na verdade, Luiz Kapiche Neto, um empresário de Altamira, mais conhecido por atuar também como radialista e advogado na cidade. Mas ele não tinha formação em Direito, apesar de exercer a profissão. Na verdade, isso não era incomum para a época, especialmente em cidades mais isoladas e com falta de estrutura como Altamira. Na história do Direito, esse tipo de ocupação tinha até um nome: rábula. Kapiche era, então, um rábula que frequentemente resolvia problemas para uma família em especial: os Gomes.
LUIZ KAPICHE
O nome de Kapiche aparece pela primeira vez no inquérito do menino indígena Judirley da Cunha Chipaia. Ele foi interrogado em 8 de janeiro de 1992, cinco dias depois do corpo da vítima ter sido encontrado. O motivo que o levou a ser chamado para prestar depoimento é incerto, mas é provável que esteja ligado a uma suspeita em torno do carro que ele tinha na época. O veículo teria sido visto por algumas testemunhas no local onde Judirley desapareceu e, mais tarde, foi achado morto.
Em depoimento, ao ser perguntado se já teve problemas com a justiça no estado do Pará, Kapiche respondeu que sim. Entre o fim de 1980 e o início de 1981, ele teve prisão decretada pela juíza da comarca de Altamira, juntamente com outros dois companheiros: José Amadeu Gomes e Araquém Gomes. Na ocasião, os três foram transferidos para o presídio São José, em Belém do Pará. Segundo ele, o motivo teria sido uma suposta ameaça de morte à juíza. Diante dessa situação, Kapiche conseguiu sair da cadeia por determinação judicial e resolveu voltar à Altamira. Na ocasião, teve prisão novamente decretada por desacato à autoridade contra outra juíza que, posteriormente, revogou o mandado.
Para o delegado Brivaldo, havia agora algo de muito estranho em torno da família Gomes, principalmente do poderoso Amadeu. Kapiche poderia ser um pistoleiro a mando de Amadeu, que fazia pose de advogado mesmo sem formação e com coragem suficiente para ameaçar de morte a juíza da cidade. Amadeu era primo de Juarez Gomes Pessoa, o pai da vítima Jaenes. Seria ele capaz de estar por trás da morte de um parente?
Envolver o nome dos poderosos Gomes era arriscado e a população de Altamira sabia bem disso. A própria professora Netinha, por exemplo, conta algo estranho pelo qual passou enquanto atuava nos movimentos sociais em busca por justiça no caso dos emasculados. O ano era 1992. Já era noite e ela estava no centro pastoral junto com o padre Sávio Corinaldesi. Eles organizavam alguns documentos que levariam para uma audiência pública, com o objetivo de denunciar os crimes para as autoridades.
Assim que terminaram os trabalhos, o padre avisou que tomaria um banho e se dirigiu até o banheiro. Netinha ficou sozinha na sala, ocupada com seus afazeres. “De repente, a luz apagou. Aí eu fiquei apavorada. Tinha uma escada do centro pastoral que dava para a rua. E era exatamente a rua da delegacia, dos Gomes, tudo. Na hora que apagou a luz, o telefone tocou. Aí sim, foi muita ameaça. A pessoa disse: ‘não pense que eu não estou te vendo, vagabunda, nós vamos te pegar. Quando tu tiveres um filho, tu vais ver. Eu sempre te acompanho, te vejo indo para Brasília’”, relata.
Assustada, a professora começou a chamar pelo padre Sávio, mas ele não ouviu. Netinha resolveu, então, bater na porta do banheiro, momento em que ele saiu de lá e ela ficou mais aliviada. “Aquele dia foi o que eu tive o maior medo porque as palavras eram… O tom de voz, o jeito de falar, foi realmente de muita ameaça”. Ela, no entanto, jamais descobriu quem era o autor das ameaças.
O fato é que, quando ninguém mais o fez, coube à população procurar pelo monstro de Altamira. Nessa busca, parecia sempre se deparar com um mesmo sobrenome: Gomes. Com Brivaldo parecia haver, pela primeira vez, uma autoridade capaz de escutar. Mas estariam os Gomes por trás de um consórcio da morte, responsável por aterrorizar a população e matar crianças? E se sim, quem era a pessoa loira referenciada por Josivaldo Aranha? Essas são perguntas para o próximo episódio.