Extras Episódio 20

DEPOIMENTOS DOS SOBREVIVENTES
Os depoimentos dos sobreviventes parecem ter sido essenciais para a condenação dos homens nos júris. Com tantas narrativas cheias de pontas soltas, essas duas vítimas montavam uma história fechada. Wandicley Oliveira Pinheiro afirmava ter sido atacado por um grupo de pessoas e não apenas um indivíduo, o que reforçava a ideia de seita. Além disso, tanto ele quanto o Segundo Sobrevivente diziam ter sentido uma sensação de anestesia no momento da agressão, ligando os médicos ao crime.
Esses elementos foram, sem dúvida, eficientes nos julgamentos. Mas hoje, quase 20 anos depois das condenações, é possível analisar os relatos com mais profundidade, longe da pressão política da época. Esse é o objetivo deste episódio: comparar cada depoimento dos sobreviventes ao longo do processo para entender melhor o que aconteceu nos júris.
É preciso, porém, deixar claro: ambos são vítimas e devem ser respeitadas como tais. Por isso, a ideia aqui não é desacreditar o que elas dizem, mas sim mostrar como as suas declarações foram construídas dentro de cada contexto. Quais são, portanto, as contradições evidentes? Como elas podem ser confrontadas com o discurso nos júris?
Para começar, é importante relacionar o número de testemunhos prestados pelas vítimas.
O Segundo Sobrevivente, que foi atacado em 16 de novembro de 1989, deu apenas dois depoimentos. O caso dele possui um inquérito próprio, o que provavelmente foi determinante para ele ter sido incluído como uma das vítimas no processo.
Antes mesmo de dar qualquer depoimento, ele forneceu a descrição física do homem que o levou para o matagal. Esse retrato falado foi produzido uma semana após o crime. Apesar de bastante detalhadas, as características relatadas foram incorporadas em um desenho de baixa qualidade.
Retrato falado com base na descrição do Segundo Sobrevivente
O primeiro depoimento prestado pela vítima é datado de 28 de maio de 1991, cerca de um ano e meio depois do ataque. O documento consta no inquérito policial específico deste caso.
O segundo relato oficial foi registrado em 30 de novembro de 1993, durante a segunda fase de juízo presidida pelo juiz José Orlando de Paula Arrifano. Neste ponto, já haviam se passado quatro anos do crime.
Depoimento do Segundo Sobrevivente na fase de inquérito
Depoimento do Segundo Sobrevivente na fase de juízo
No caso de Wandicley Oliveira Pinheiro, há nos autos quatro depoimentos tomados antes dos júris, além de um retrato falado. O menino, atacado em 23 de setembro de 1990, é ouvido pela primeira vez de forma oficial em 17 de julho de 1991, cerca de 10 meses depois. Na ocasião, ele auxiliou na elaboração de um retrato falado do homem que o sequestrou.
O segundo relato, de 21 de outubro de 1992, faz parte do inquérito que investiga a morte de Jaenes da Silva Pessoa. O terceiro é prestado quase três anos após o ataque, em 30 de junho de 1993, ao delegado Éder Mauro. É neste momento que ele reconhece o ex-PM Aldenor Ferreira Cardoso como o agressor. Por fim, o seu último termo de declaração é registrado em 30 de novembro de 1994.
Primeiro depoimento de Wandicley
Retrato falado com base na descrição de Wandicley
Segundo depoimento de Wandicley
Terceiro depoimento de Wandicley
Auto de reconhecimento de Aldenor por Wandicley
Quarto depoimento de Wandicley
Depois de todos esses relatos, os sobreviventes só falam novamente nos júris de 2003, quando as suas histórias são contadas de outra forma.
No julgamento de Valentina de Andrade, que ainda será abordado no podcast, as duas vítimas repetem o que disseram nos júris anteriores. Por isso, essas declarações também foram incluídas na análise de Ivan Mizanzuk para este episódio.
Depoimento de Wandicley no júri de Amailton e Carlos Alberto
Depoimento de Wandicley no júri de Anísio
Depoimento de Wandicley no júri de Césio
Depoimento de Wandicley no júri de Valentina
Depoimento do Segundo Sobrevivente no júri de Amailton e Carlos Alberto
Depoimento do Segundo Sobrevivente no júri de Anísio
Depoimento do Segundo Sobrevivente no júri de Césio
Depoimento do Segundo Sobrevivente no júri de Valentina
MEMÓRIA
Antes de partir para a comparação, é necessário esclarecer os critérios utilizados. A ideia é a seguinte: quanto mais antigo um relato, mais fiel ele tende a ser. Essa afirmação tem como base os conceitos científicos de como a memória humana funciona. Infelizmente, ela não é como uma foto ou vídeo que você abre de alguma pasta escondida do seu cérebro, como um arquivo de computador.
Na realidade, à medida que o tempo passa, quanto mais falamos sobre um evento específico ou nos forçamos a lembrá-lo, mais essa memória ganha contornos de invenção, até mesmo de forma inconsciente. Isso não é proposital, mas sim um processo natural que torna relatos simples mais complexos e detalhados.
Agora, imagine que você é uma criança de 9 ou 10 anos que passou por um trauma, como os sobreviventes. Imagine como tudo é assustador e confuso, e como é enorme a pressão para ajudar a polícia e explicar o acontecido para a família. O constrangimento é constante – por dias, meses e anos. Quantas vezes essas histórias foram contadas? Quantos sentimentos incompreensíveis para uma criança surgiram? Quantas perguntas foram feitas no espaço entre um depoimento e outro?
As pessoas esperam que as vítimas deem versões fidedignas do crime, mas é injusto exigir isso delas. Justamente por isso, em todos os julgamentos os sobreviventes prestaram depoimento na condição de informantes. Ou seja, eles não tinham a obrigação de falar a verdade, como uma testemunha. Esse não seria um modo de incentivar a mentira, mas sim de compreender que memórias de traumas tão grandes e antigos podem não corresponder 100% com a realidade.
Além disso, há outro ponto essencial: o modo como os depoimentos foram colhidos apresenta uma série de problemas, que só podem ser apontados hoje graças à proteção fornecida pela legislação aos menores de idade.
Quem explica isso melhor é a psicóloga Flávia Cézari, que já atuou na área de assistência social e trabalhou com adolescentes em medidas socioeducativas. “Essa é uma lei de 2017, que trata dos direitos da criança e do adolescente vítimas de violência. Não que essas questões já não existissem antes, acho que elas vêm desde o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente]. Lembrando que o ECA é de 1990. Mas, de alguma forma, ela sistematiza a abordagem que deve ser feita dentro das políticas públicas e do próprio sistema judiciário”, disse ela em entrevista ao podcast.
De acordo com a psicóloga, todo o atendimento deve ser realizado com o intuito de evitar a revitimização. Para isso, regras foram estabelecidas. “A prioridade é você colher esse relato uma vez só e não precisar fazer várias perguntas para a criança. É importante também evitar transcorrer muito tempo entre a data da violência e o depoimento”, esclareceu.
Como se sabe, nenhum desses pontos foi respeitado quando as vítimas de Altamira foram ouvidas pelas autoridades. Além disso, a forma como as perguntas eram feitas também é bastante questionável. A psicóloga cita, por exemplo, um trecho do depoimento prestado pelo Segundo Sobrevivente em 1993:
[…] Perguntado ao informante vítima se é comum se fazer acompanhar de pessoas estranhas […].
“Esse é um exemplo claro de revitimização. Porque a gente está falando de um menino de 9 ou 10 anos na época. Ele estava lá e o convidaram para colher manga ou alguma coisa assim. Então, qual é a pertinência de perguntar se ele é acompanhado por pessoas estranhas? Essa foi a primeira coisa que me chamou bastante a atenção”, comentou.
Ainda assim, os depoimentos dos sobreviventes foram profundamente usados pela acusação, que estava ciente das contradições que eles traziam. A justificativa repetida pela promotoria era de que as vítimas haviam omitido informações por medo e, agora, tinham criado coragem para falar a verdade.
Mas, afinal, essa explicação se sustenta? Os detalhes mencionados nos júris estavam presentes em depoimentos anteriores?
DEPOIMENTOS DO SEGUNDO SOBREVIVENTE
Relembrando, o primeiro depoimento do Segundo Sobrevivente foi tomado em 28 de maio de 1991, um ano e meio após o crime. Isso já configura um problema grave em relação à preservação de memória, já que o tempo decorrido entre os eventos é longo.
Em 8 de janeiro de 1992, a vítima identificou o andarilho Rotílio Francisco do Rosário como o homem que o sequestrou. O auto de reconhecimento afirma, inclusive, que o garoto ficou bastante transtornado ao ser colocado frente a frente com o suspeito, que morreu na prisão poucos dias depois.
Auto de reconhecimento de Rotílio pelo Segundo Sobrevivente
Já o segundo depoimento foi quatro anos depois do ataque, em 30 de novembro de 1993, na segunda fase de juízo.
De cara, é preciso dizer que, no plano geral, os depoimentos do Segundo Sobrevivente são consistentes. Ele relata que, em uma tarde, estava perto de casa quando um homem apareceu em uma bicicleta vermelha e o convidou para apanhar mangas. O menino aceitou acompanhá-lo e o seguiu por aproximadamente 500 metros. Em seguida, eles entraram em uma mata, onde andaram por cerca de 20 a 30 minutos.
Em algum momento, o homem o atacou. A vítima, então, desmaiou e só acordou no dia seguinte, no mesmo matagal. Estava nu e emasculado, mas não sangrava muito, graças à lama de tabatinga que cobria o ferimento.
O garoto se levantou com dificuldade e usou o som que ouvia dos carros para chegar na estrada. Lá, caminhou em direção a uma casa próxima, para pedir um copo de água. Foi quando um entregador de leite da região o reconheceu e chamou o pai da criança, que finalmente o levou ao hospital.
O pai, Amadeu (AABB), trabalhava na Associação do Banco do Brasil. Os funcionários do local, ao descobrirem o que tinha acontecido, fizeram uma vaquinha e fretaram um avião para o menino ser atendido em Belém. O médico Lourival Barbalho conduziu, então, o tratamento.
O próprio cirurgião comentou, em um prontuário escrito à mão às vésperas do júri, a situação da vítima ao chegar no hospital. Segundo ele, o garoto ainda estava “envolto por uma lama tipo tabatinga, que o salvou da morte”. Isso porque a substância teria ajudado a estancar o sangue da lesão.
Declaração de Lourival Barbalho sobre o Segundo Sobrevivente
Outro ponto consistente em todos os relatos é a descrição física do sequestrador fornecida pela vítima. Anexado ao retrato falado, há uma ficha que lista as características do suspeito. Ela contém todas as palavras-chave que o Segundo Sobrevivente usaria em seus depoimentos futuros, inclusive nos júris:
Cabelo: enrolado – curto – escuro
Rosto: comprido – fino
Orelhas: pequenas – encobertas
Cor: moreno
Olhos: amendoados – castanhos
Nariz: comprido – achatado
Sobrancelhas: finas-longas
Lábios: finos
Boca: alongada
Pescoço: médio
Testa: encoberta – curta
Sinais particulares: uma verruga no lado direito, boqueiras (feridas nos cantos da boca), camisa ao ombro de cor vermelha
Bigode: muito ralo
Um detalhe sempre citado pelo menino é a verruga no lado direito do pescoço, que está ilustrada no retrato falado. Nos júris, porém, ele muda um pouco o discurso: diz que poderia ser uma verruga, uma espinha ou uma cicatriz.
Curiosamente, o andarilho Rotílio, que foi reconhecido pelo Segundo Sobrevivente em janeiro de 1992, não tinha nenhuma marca no pescoço. Pelo menos é o que mostram as fotos disponíveis nos autos e em matérias da época.
Carlos Alberto dos Santos Lima, apontado pelas vítimas como o criminoso no júri em 2003, também não possuía nenhum tipo de sinal na região. Então, ao mudar o relato e afirmar que a marca podia ou não ser uma verruga, o Segundo Sobrevivente evidencia uma imprecisão nas memórias do evento, o que é totalmente compreensível. Apesar desse apontamento ser feito 14 anos após o crime, ele é bastante razoável e não pode ser descartado.
Em um primeiro momento, a descrição completa feita por ele parece ser bem detalhada. Na prática, no entanto, ela se torna mais genérica, já que poderia se encaixar tanto em Rotílio quanto em Carlos Alberto – ou até mesmo em grande parte da população de Altamira, que apresentava esses mesmos traços.
O ATAQUE
Enquanto a descrição física do criminoso é consistente nos relatos do Segundo Sobrevivente, os detalhes relacionados ao ataque que ele sofreu têm algumas mudanças. A primeira pergunta a ser feita é: a vítima saberia dizer qual foi o objeto usado para feri-la?
O único depoimento em que o menino cita um instrumento cortante é o de 28 de maio de 1991, ainda na fase de inquérito. Na ocasião, ele afirma que, em um certo momento, o agressor tirou do bolso uma navalha, que estava enrolada em um pano.
Apesar de não aparecer em nenhuma outra declaração oficial do garoto, esse mesmo detalhe é citado pela imprensa. Uma matéria do jornal Diário do Pará publicada dois dias após o ataque fala sobre o uso da navalha.
Além disso, a reportagem afirma que um suspeito teria sido preso. Essa informação foi confirmada na edição do dia seguinte, 19 de novembro, mas a identidade do homem não foi revelada. No inquérito do caso não há qualquer menção a uma pessoa detida logo depois do ataque. Portanto, essa é mais uma dúvida que fica sem resposta.
Matéria do jornal Diário do Pará – “Tarado ataca e mata 3 crianças em Altamira”
Matéria do jornal Diário do Pará – “Até o Exército ajuda na caça ao Monstro”
O fato é que a navalha só está presente no primeiro depoimento do menino e na matéria publicada dois dias depois do crime. Nos relatos seguintes, ele passou a dizer que o agressor o sufocou até desmaiar e, quando acordou, já estava emasculado.
Sobre isso, surge a dúvida: como o garoto desmaiou? O relato da fase de inquérito dá conta de que o criminoso teria colocado a própria camisa na boca da vítima. Na etapa de juízo, o menino repete a informação e complementa: o homem passou a peça de roupa com tanta força no seu rosto que logo ele perdeu os sentidos. A camisa, no entanto, não tinha cheiro nenhum.
Mas nos júris, isso muda bastante. O Segundo Sobrevivente afirma que o agressor o sufocou com um pano que tinha um cheiro forte, contrariando os relatos anteriores.
Para tornar a história ainda mais estranha, há outra versão do crime descrita em uma matéria do jornal O Liberal, de 18 de novembro de 1989. Segundo a reportagem, após ser medicada e atendida no hospital, a criança contou tudo o que aconteceu ao pai, que repassou o relato aos jornalistas. Ou seja, essa seria a narrativa mais completa e próxima do dia do ataque, visto que o primeiro depoimento oficial só foi prestado em maio de 1991.
A reportagem diz o seguinte:
O homem tirou um lenço do bolso, onde estava escondida uma navalha, com a qual ele obrigou o menino a tirar a roupa, e depois lhe cortou os órgãos genitais com um único golpe, indo embora logo depois, deixando-o abandonado no local.
O menino contou ainda ao seu pai que, após o golpe, devido à dor e à quantidade de sangue que perdeu, acabou desmaiando, só recobrando os sentidos na manhã do dia seguinte.
Matéria do jornal O Liberal – “Garoto emasculado pelo maníaco”
É preciso deixar claro que uma matéria de jornal em teoria não possui o mesmo rigor que um documento oficial. Considerando, porém, a precariedade de informações, essa reportagem se torna uma das fontes mais próximas da época do crime. E ela impressiona pela divergência dos relatos anteriores.
Afinal, o menino não teria desmaiado antes do ataque, ao ser sufocado com um pano ou uma camisa. De acordo com a matéria, ele teria sido ameaçado pelo homem com uma navalha, que o mandou tirar a roupa e o emasculou. A dor e o pânico fizeram, então, com que ele desmaiasse.
Essa versão é totalmente contrária à tese da promotoria de que médicos teriam sedado a criança e realizado, em seguida, cortes cirúrgicos. Inclusive, em relação à participação de mais pessoas no crime, o Segundo Sobrevivente nunca disse nada que apontasse para isso nos primeiros depoimentos. Ele sempre fala em um homem, que o sequestrou e o emasculou.
Nos julgamentos, contudo, a narrativa ganha mais detalhes. A vítima passou a dizer que acordou meio zonza à noite e se deparou com o sequestrador agachado na sua frente. Avistou também luzes em cima dele, como se fossem de lanternas, indicando a atuação de um grupo de criminosos. Cerca de 10 segundos depois, a criança apagou de novo e só despertou no dia seguinte. Nada disso havia sido mencionado antes no processo.
Por fim, o trecho mais chocante dos depoimentos do Segundo Sobrevivente nos júris se refere à sensação de dormência no corpo ao acordar. Ele dizia ter sentido um formigamento nas pernas muito parecido com o que vivenciou após as cirurgias de reconstrução conduzidas pelo doutor Barbalho – naquele momento, ele já havia passado por cerca de 14 procedimentos.
Analisando o tema “dor”, além da já citada matéria do Jornal O Liberal, há outra passagem importante a ser relembrada. Ela está presente na segunda declaração oficial da vítima, de 30 de novembro de 1993:
Porém, como a dor era pequena, assim como era pouca a perda de sangue, o informante vítima ouviu um barulho de carro na estrada e caminhou até alcançar a estrada.
Ao considerar todos esses elementos, é possível concluir que o relato do Segundo Sobrevivente nos júris é muito mais detalhado do que os prestados em anos anteriores. Nessa nova versão, pela primeira vez, ele apresenta fortes indícios da participação de médicos no crime, o que provavelmente foi determinante para a condenação dos acusados.
DEPOIMENTOS DE WANDICLEY
Wandicley Oliveira Pinheiro sofreu o ataque em 23 de setembro de 1990, aos 9 anos de idade. No total, ele foi ouvido quatro vezes ao longo do processo, antes dos júris em 2003.
O primeiro depoimento ocorreu 10 meses após o crime, em 17 de julho de 1991, no inquérito do caso. Na ocasião, a vítima ajudou na produção de um retrato falado composto por recortes de imagens. Diferente da investigação envolvendo o Segundo Sobrevivente, no entanto, não há aqui uma ficha com a descrição completa do suspeito.
Em janeiro de 1992, Wandicley reconheceu Rotílio Francisco do Rosário como a pessoa que o havia atacado. O procedimento ocorreu no inquérito referente ao assassinato do menino Judirley da Cunha Chipaia.
Auto de reconhecimento de Rotílio por Wandicley
Nove meses depois, com a morte de Jaenes da Silva Pessoa, Wandicley foi chamado novamente para prestar depoimento, em 21 de outubro de 1992. Já o terceiro relato oficial data de 30 de junho de 1993 e faz parte das investigações conduzidas pelo delegado Éder Mauro – na ocasião, ele apontou o ex-PM Aldenor como o sequestrador. Por fim, o último relato antes do julgamento ocorreu na fase de juízo, em 30 de novembro de 1993.
A análise dos quatro depoimentos mostra que apenas um fator se repete: a pessoa que levou a vítima para o mato tinha uma bicicleta vermelha. Esse detalhe, inclusive, também aparece nas declarações do Segundo Sobrevivente.
De resto, todos eles são repletos de contradições, seja em maiores ou menores detalhes. É muito difícil saber exatamente qual é o relato mais próximo do que aconteceu de fato. Além do trauma, a demora para colher o primeiro depoimento contribuiu para isso.
Além disso, fica claro que nenhuma autoridade parece ter se preocupado em compreender o motivo dessas diferenças. A impressão é que, a cada nova declaração, promotores e delegados entendiam que o menino estava “lembrando melhor” e, por isso, a narrativa não era consistente.
Algumas das incongruências mais relevantes estão relacionadas à abordagem feita pelo criminoso:
- Nos dois primeiros depoimentos, Wandicley diz ter sido levado à força pelo homem. Ou seja, não teria sido um convite amigável que o levou a acompanhar o desconhecido, mas sim um sequestro.
- No terceiro depoimento, aparece pela primeira vez a história de que o agressor o chamou para caçar papagaio. Mesmo assim, o garoto ainda teria sido levado à força, após não responder ao convite.
- A narrativa de que a criança aceitou o chamado do homem sem confronto algum só está presente no quarto relato oficial. Ela se manteve assim até os julgamentos.
Entre essas versões, por conta de materiais que ainda serão apresentados pelo podcast, Ivan Mizanzuk tende a acreditar mais no último depoimento, que menciona o convite amigável.
Se foi esse o caso, por que, então, o menino teria mentido antes? A melhor explicação inclui o fato de que a vítima era apenas uma criança, extremamente traumatizada, que provavelmente tinha medo de ser julgada se falasse que saiu com o homem por vontade própria.
Em relação à descrição física do suspeito, há bastante confusão entre os relatos, o que mostra como Wandicley devia se sentir pressionado a dar informações que ajudassem a polícia:
- Cor da pele: Nos dois primeiros depoimentos, o menino afirma que o homem era branco. No terceiro, não cita a cor da pele. No quarto, passa a dizer que o desconhecido era “moreno” – tom de pele que ele também cita no júri, quando aponta o ex-PM Carlos Alberto como o criminoso.
- Altura: Antes dos júris, Wandicley descreve a altura do suspeito como “mediana”. Nos julgamentos, ressalta que ele seria “um pouco baixo e forte”, justamente a descrição do porte físico do ex-PM.
- Cabelo: No primeiro depoimento, a vítima diz que o sequestrador tinha cabelo curto e preto. No segundo, ela fala em cabelo preto, liso e penteado para trás, o que pode ser um complemento à descrição anterior. No terceiro relato, o garoto descreve um cabelo baixo e liso, com uma espécie de franja. No quarto, as características citadas são “preto e crespo”. Por fim, no júri, Wandicley reforça que o suspeito tinha cabelo crespo, o que mais uma vez coloca Carlos Alberto na cena do crime.
As contradições não param por aí. No primeiro depoimento, a vítima afirma que chegou a ser amarrada duas vezes pelo agressor, no momento em que foi levada à força e também ao ser atacada. Esses detalhes, porém, não se repetem da mesma forma nos demais relatos.
Nos júris, ele ainda adiciona novos elementos: o homem teria usado um pano com um cheiro forte para sufocá-lo. Ele, então, desmaiou e acordou logo em seguida, muito brevemente. Nessa hora, notou que estava amarrado, e que havia mais três pessoas ali, além do sequestrador. Por estar atordoado, ele não conseguiu reconhecer ninguém no local.
O detalhe do “pano com cheiro” remete imediatamente à cenas de filmes em que o vilão usa éter para fazer a vítima desmaiar. Wandicley nunca afirmou que essa teria sido a substância utilizada. Mesmo assim, a imagem de cinema ficou na mente dos jurados. E o problema disso é o seguinte: de acordo com especialistas em anestesias consultados pelo podcast, essa cena tão emblemática não corresponde com a realidade. Na verdade, para ter efeito, o pano com éter teria que ficar alguns minutos na boca da pessoa para que ela perdesse a consciência. Não seria algo instantâneo. Um sufocamento sem a substância poderia, inclusive, levar o mesmo tempo.
Independente disso, a narrativa de Wandicley nos júris é relevante para a acusação não só por relacionar os médicos ao crime, mas também por indicar a participação de mais pessoas. Assim como o Segundo Sobrevivente, no tribunal, a vítima conta que foi atacada por quatro indivíduos. O que os relatos anteriores falam sobre isso?
No primeiro depoimento, o menino conta que viu com clareza apenas o homem da bicicleta, mas notou a presença de outros três indivíduos ao espiar por debaixo da venda que lhe tampava os olhos.
Nesse sentido, o que chama a atenção é um trecho do segundo relato de Wandicley, anexado ao inquérito de Jaenes. Na ocasião, o garoto afirma:
Que foi então conduzido a um matagal, não sabendo precisar o local, aonde foi então desamarrado pelo desconhecido e obrigado a descer um barranco; QUE, ao chegar em uma clareira, encontrava-se mais um homem, que o homem descreve como tendo olhos escuros, cabelos pretos e ondulados, sobrancelhas fartas, com bigode, de rosto fino, estatura média; QUE nessa ocasião teve seus olhos vendados; QUE, logo após ter seus olhos vendados, chegaram ao local mais dois homens desconhecidos, pois pôde perceber através de uma falha no tecido que cobria seus olhos, fazendo um total de quatro homens.
Aqui, o menino diz que, além do sequestrador, viu também outro homem no mato, e chega até a descrevê-lo. Mas esse é o único depoimento em que essa informação aparece.
É também neste momento que ele narra um desmaio diferente daquele com o pano ou a camisa do agressor. Logo após notar os dois indivíduos através da venda, a criança teria recebido uma pancada na cabeça, dada pelo rapaz da bicicleta. O segundo homem, aquele que esperava no matagal, tirou a bermuda da vítima e a emasculou. O garoto só desmaiou depois do ataque, por causa da dor:
Após o golpe em sua cabeça, caiu ao chão. Foi neste momento que o desconhecido moreno de bigode segurou no braço do informante, ocasião em que o desconhecido de cor branca retirou a sua bermuda e, com a faca que possuía, cortou-lhe seus órgãos genitais. Que neste momento, devido à dor, o informante perdeu os sentidos.
Somente veio recobrar os sentidos algum tempo depois, sendo que, ao retornar, encontrava-se sozinho e todo ensanguentado. Que, apesar da dor que sentia, levantou-se e passou a caminhar dentro do mato em busca de ajuda.
Aqui não há nenhuma história de formigamento, de sensação anestésica ou de pisar nos espinhos e não sentir os pés. Tudo isso só aparece na época dos julgamentos.
A narrativa da dor surge também na quarta declaração oficial, quando o menino afirmou que, ao acordar:
Viu-se com dores nas partes genitais e sangrando muito, tendo em vista ter sido emasculado.
Afinal, por que Wandicley falou no júri que não sentiu dor nenhuma? Por que ele alterou tanto os relatos no decorrer dos anos? Qualquer resposta é mera especulação.
Apesar de ignorar boa parte dessas incongruências, a acusação tinha ciência delas, e dava uma explicação para os jurados em 2003: Wandicley, assim como todas as testemunhas de acusação, tinha finalmente perdido o medo de falar. Inclusive, essa seria a justificativa dos próprios sobreviventes para negar os reconhecimentos anteriores e apontar Carlos Alberto como o agressor.
Isso, porém, é difícil de acreditar. As contradições de Wandicley vão muito além de qualquer receio de represálias. Elas são o retrato de um garoto sem qualquer assistência, que passou por um trauma terrível e sofreu uma pressão imensa. Por isso, tomar depoimentos de crianças é algo tão delicado. É muito comum que elas falem qualquer coisa que os adultos queiram ouvir, especialmente diante de figuras de autoridade.
OUTRAS TESTEMUNHAS
Para uma análise mais profunda do ataque a Wandicley, Mizanzuk decidiu olhar com mais atenção para outras testemunhas presentes no inquérito. A primeira delas é um motorista chamado José Silva de Castro. Ele falou à polícia em 24 de setembro de 1990, no dia seguinte ao crime.
Na ocasião, relatou que estava em casa por volta das 14h, quando foi avisado que havia um menino sentado ao batente de uma porta na residência vizinha. José foi até a criança e notou que ela estava completamente despida e ensanguentada. Ao examiná-la, percebeu o ferimento entre as pernas e a carregou até em casa.
Aproveitou, então, para lhe perguntar quem havia feito aquilo. Com muita dificuldade, o garoto informou que o criminoso era um rapaz alto, de cabelo enrolado e barba. José preferiu não insistir no assunto e procurou ajuda para levar a vítima até o Hospital da Fundação Sesp. Lá, a criança foi encaminhada à sala de emergência e mais uma vez questionada sobre o ataque. Ela respondeu debilmente a mesma coisa que havia falado para o motorista, acrescentando que o indivíduo era magro.
Em seguida, uma viatura chegou ao local e José acompanhou os policiais até o ponto onde o menino havia sido encontrado. A equipe percebeu que havia uma trilha de sangue deixada pelos ferimentos, que seguia por uma distância de 500 metros da casa da testemunha. A partir daí, as polícias Civil e Militar realizaram diligências na tentativa de localizar o autor do crime.
Depoimento de José Silva de Castro
O primeiro ponto que merece destaque aqui é o fato de Wandicley ter dito que havia sido atacado por apenas um homem – contrariando os seus relatos futuros.
O segundo elemento interessante levantado pela testemunha é o rastro de sangue que levava até o local do crime. Pelo depoimento, é possível supor que os policiais foram até lá. Nesse contexto, se o menino tivesse realmente sido vendado e amarrado, as cordas ainda estariam no mato. No entanto, não há nenhum registro que indique a descoberta de qualquer objeto nas redondezas.
Apesar da recorrente precariedade e do mal trabalho da polícia em Altamira, no caso específico de Wandicley existe algo único: um Boletim de Ocorrência, escrito pelo policial civil Otávio Torres Filho. O documento é de 25 de setembro de 1990, dois dias após o crime:
A Autoridade Policial, imediatamente ao conhecimento desta notícia de crime, deslocou-se ao lugar onde o fato se deu e tomou conhecimento in loco que aquela criança teria sido conduzida por um elemento desconhecido que, tendo as características de um homem de aproximadamente 40 anos de idade, de barba, trajando calça jeans e camiseta, dirigindo uma bicicleta, convenceu-lhe a lhe acompanhar às matas das imediações daquela estrada, e ali, escondido, fazendo uso de um objeto cortante, teria seccionado totalmente os órgãos genitais do menor.
[…]
Em razão das dificuldades encontradas para prender o autor, sobretudo as de precariedade de informações, posto que ninguém viu o acusado, mas apenas a vítima àquela altura, [que estava] fora de si em razão do traumatismo e de seu estado de quase coma, diligências continuaram sendo feitas com esse objetivo.
Além de falar em apenas um agressor, o policial também aponta o estado da vítima, que estava em choque e profundamente traumatizada. É possível que isso explique o motivo pelo qual a criança só prestou um depoimento formal 10 meses mais tarde.
Otávio Torres Filho, o autor do B.O., já foi citado em episódios passados do podcast, na época das investigações da morte de Jaenes. Na ocasião, ele teria forjado depoimentos de testemunhas sobre a localização de Amailton Madeira Gomes na cidade de Vitória do Xingu, próxima à Altamira.
Se por um lado, esse Boletim representa uma peça importante para a análise do crime contra Wandicley, por outro, ele pode não ser totalmente confiável. Para Ivan Mizanzuk, contudo, não há nenhum motivo claro para que o policial tenha forjado esse documento. Por isso, ele tende a acreditar na sua veracidade.
Boletim de Ocorrência do ataque a Wandicley
Diante de tudo isso, a questão é: quando surge a história de que Wandicley foi atacado por quatro pessoas?
Nesse contexto, duas reportagens da época chamam a atenção: uma do jornal O Liberal, de 25 de setembro, e a outra do jornal A Província do Pará, de 26 de setembro. Ambas afirmam que o menino teria sido atacado por dois homens. As matérias não falam quem passou essa informação, mas mostram que, no meio de todo o terror, outra versão estava sendo contada.
Matéria do jornal O Liberal – “Menino foi castrado em Altamira”
Matéria do jornal A Província do Pará – “Menor ainda está no hospital”
Em 16 de outubro de 1990, quase um mês após o ataque, o pai de Wandicley prestou um depoimento. O agricultor Cezário Loiola Pinheiro tinha 52 anos de idade e afirmava ser analfabeto. Esse talvez seja o primeiro momento em que a história da participação de mais pessoas aparece, mas é difícil afirmar com certeza.
Em certo trecho, Cezário diz:
O autor da emasculação teria sido um homem alto, cabeludo, de cabelos enrolados, de barba e bigode.
No entanto, uma passagem anterior, muito breve, coloca em dúvida essa afirmação:
[…] que resultou na perda total de seus órgãos genitais, pela ação de corte praticado por elementos desconhecidos.
Por se declarar analfabeto, o pai da vítima não teria condições de conferir o conteúdo do depoimento e corrigir um eventual erro. E, mesmo que alguém lesse o texto para ele, é improvável que esse detalhe chamasse a atenção.
Depoimento de Cezário Loiola Pinheiro
Portanto, em resumo, o momento em que a versão dos quatro homens surge é no primeiro relato de Wandicley, quase um ano após o ataque. O fato é que, depois de tudo isso, ele prestou depoimentos contraditórios e reconheceu três pessoas diferentes como o agressor: Rotílio, Aldenor e Carlos Alberto.
Em vez das autoridades garantirem que a vítima recebesse toda a assistência possível, elas apenas criaram um ambiente de pressão inimaginável para uma criança. Diante desse quadro, incapaz de encontrar respostas consistentes, o menino começou a criá-las. Ele não estava mentindo ou inventando coisas de forma proposital a fim de confundir, mas sim de lidar com a tensão e buscar soluções para si mesmo.
Um trecho do depoimento do Segundo Sobrevivente é evidência disso. Durante o julgamento de Césio, questionado sobre o reconhecimento de Rotílio em 1992, ele responde:
Que soube que Rotílio ficou preso por causa do reconhecimento; QUE soube que Rotílio morreu na Delegacia; QUE reconheceu porque era criança e estava pressionado; QUE a pressão que sofria não era das pessoas. Era uma pressão de si.
Segundo a psicóloga Flávia Cézari, as chamadas falsas memórias são um fenômeno natural do ser humano. “Isso acontece quando a pessoa se recorda de algum evento da sua vida, mas, factualmente, ele não ocorreu naquele determinado momento ou jamais ocorreu”, explicou.
Esse tipo de situação se torna ainda mais comum em casos de episódios traumáticos. “Por vezes, isso dificulta a fixação da memória. Então, você não pode cobrar uma fidedignidade muito grande passado todo esse tempo, até pensando no caráter traumático e violento do evento”.
Na prática, é difícil conciliar aquilo que o mundo jurídico exige – uma narrativa linear, cronológica, correta – com o modo pelo qual a memória opera. “Um exemplo clássico disso é o sonho. Na maioria das vezes, você não consegue contar um sonho como uma história. Essa é uma necessidade que a gente tem para conseguir se comunicar. Mas tem um limite da própria condição humana e da nossa vivência, das coisas que não seguem uma cronologia, que o direito não acessa mesmo, por essa necessidade da verdade como ela é, como um fato puro”, completou.
Diante de todas essas análises e reflexões, algumas dúvidas permanecem: o que levou os sobreviventes a mudarem tanto os depoimentos nos júris? Aconteceu algo nos bastidores? A pressão que eles sofreram durante toda a infância os acompanhou até a idade adulta?
Provavelmente essas perguntas jamais serão respondidas com exatidão. Mas o resultado é claro: o impacto nos júris foi tão grande que Amailton, Carlos Alberto, Anísio e Césio foram condenados. A tese da acusação funcionou.
Mas ainda faltava um julgamento, o mais esperado de todos. Valentina de Andrade finalmente sentaria no banco dos réus em 19 de novembro de 2003, quase dois meses depois de Césio.
TABELA COMPARATIVA
Para facilitar a compreensão de tudo o que foi discutido neste episódio, Ivan Mizanzuk criou uma tabela que detalha as semelhanças e diferenças entre os relatos dos sobreviventes. Confira abaixo:
Tabela comparativa dos depoimentos
*Este episódio usou reportagens da Rede Globo.