Extras Episódio 19

LIGAÇÃO COM GUARATUBA
O médico Anísio Ferreira de Souza foi o terceiro condenado no caso dos emasculados de Altamira, no início de setembro de 2003. Antes dele, Amailton Madeira Gomes e o ex-PM Carlos Alberto dos Santos Lima também foram considerados culpados pelo júri.
Dos acusados, restavam agora serem julgados Césio Flávio Caldas Brandão e Valentina de Andrade. A então líder do Lineamento Universal Superior (LUS) estava naquele momento presa por ordem do juiz Ronaldo Valle, após um aviso da Polícia Federal de que a ré teria tentado fugir do Brasil.
Paralelo a isso, do outro lado do país, no estado do Paraná, ocorria um importante desdobramento no caso de Evandro Ramos Caetano, morto em Guaratuba no ano de 1992.
Nesse contexto, suspeitava-se que Valentina liderava uma seita satânica que sacrificava crianças em todo o país. Em julho de 1992, ela foi acusada de envolvimento no sumiço de Leandro Bossi, também na cidade litorânea paranaense.
No caso Evandro, sete pessoas foram presas no Paraná. A líder do LUS chegou a ser apontada como suspeita, mas logo foi descartada. Entre os acusados estavam a esposa e a filha do prefeito de Guaratuba, Celina e Beatriz Abagge. Em 1998, elas foram julgadas no que ficou conhecido como o júri mais longo da história do Brasil, com 34 dias de duração. Essa história foi contada em detalhes na temporada passada do Projeto Humanos.
Após a absolvição das duas, o Ministério Público entrou com um recurso pedindo a anulação do julgamento, sob a alegação de que a escolha dos jurados teria sido contrária às provas dos autos.
Coincidência ou não, o parecer sobre a anulação saiu justamente em 5 de setembro de 2003, um dia depois da condenação de Anísio. A cobertura da imprensa no período mostra que ambos os casos – Guaratuba e Altamira – se misturavam, e um parecia influenciar o outro.
Uma evidência disso é o comentário do apresentador Ricardo Chab durante o extinto programa Tribuna na TV, da afiliada paranaense do SBT, na época dos júris. “Será que agora vão estabelecer uma ligação entre a família Abagge e essa mulher no Pará, que morou em Guaratuba? Fica a interrogação. Essa é a pergunta que toda a sociedade faz”, afirmou o jornalista.
Como já explicado na temporada passada, nenhum dos acusados no Paraná teve qualquer participação nas mortes de Evandro e Leandro. Todos foram torturados para confessar um crime que não cometeram. Além disso, nunca foi provada nenhuma conexão entre os suspeitos de Guaratuba e Altamira.
Mesmo assim, muitas pessoas acreditam até hoje que esses casos possuem alguma relação, e que células de uma seita satânica estariam espalhadas pelo Brasil, sob o comando de Valentina de Andrade.
JÚRI DE CÉSIO
O júri de Césio Flávio Caldas Brandão teve início em 8 de setembro de 2003. Logo no primeiro dia, os advogados de Valentina já tentavam tirá-la da prisão. Segundo eles, a ré era vítima de uma perseguição repleta de mal-entendidos. Um deles, por exemplo, seria a alegação da Polícia Federal de que ela usava um nome falso.
A defesa explicou que a líder do LUS estava casada com um argentino chamado Walter Muñoz e, por isso, utilizou esse sobrenome ao se hospedar em São Paulo, antes da prisão.
Os advogados também negavam a versão da Polícia Federal de que ela tentou fugir do país. Com esses argumentos, eles buscavam revogar a prisão da ré, o que de início não foi concedido pelo juiz.
Enquanto isso, o júri começava com o interrogatório de Césio, que era defendido pelo doutor Jânio Siqueira. Como era esperado, o acusado repetiu o conteúdo das declarações anteriores: reforçou que estava de plantão no hospital quando Jaenes da Silva Pessoa foi morto, em primeiro de outubro de 1992, e que tinha testemunhas para comprovar o seu álibi.
No dia seguinte, 9 de setembro, os jurados ouviram as pessoas arroladas pela acusação – as mesmas presentes nos demais júris. Entre elas, as mais relevantes contra Césio eram os dois sobreviventes, que sugeriam o uso de anestesia durante o ataque; e Agostinho José da Costa, que afirmava ter visto o médico sair do matagal no dia e local em que Jaenes foi morto.
Em seguida, prestaram depoimento as testemunhas de defesa, usadas para corroborar o álibi do réu. Estavam na lista:
- Rita Evangelina Anchieta Pereira, professora do filho de Césio em 1992, que confirma a rotina do médico em buscar o menino na escola.
- Paulo Eduardo Feitosa Pereira, que alternava os dias com Césio para levar os filhos de ambos para casa depois da aula.
Tanto Rita quanto Paulo reiteraram que, em primeiro de outubro de 1992, perto das 12h, o réu passou no colégio para pegar as crianças. Essa afirmação contrariava diretamente o relato de Agostinho, que dizia ter visto o médico saindo do matagal com um facão nesta mesma janela de tempo.
As outras duas testemunhas eram referentes à manhã daquele dia:
- Gracinda Lima Magalhães, paciente de Césio, afirmou ter sido atendida por ele naquela ocasião, quando passou por uma cirurgia de emergência.
- Liliane Tabosa Arraes, médica, relatou ter trabalhado com Césio no hospital e visto o atendimento à Gracinda.
O depoimento de Liliane Tabosa foi marcado por muita polêmica. Para explicar tudo o que aconteceu, ela aceitou conceder uma entrevista para o podcast. Segundo a médica, o clima no plenário era bastante tenso, e a acusação não media esforços para intimidá-la.
“Eu tinha certeza absoluta de que o que eu estava falando era verdade, porque eu não sou louca. Eu estava lá no dia”, disse ela ao Projeto Humanos sobre a ocasião em que Gracinda foi atendida no hospital.
“Aí o que acontece? Em um julgamento desses, parece que as testemunhas de defesa já são inimigas da promotoria, porque ela está lá para acusar. Como eu tinha muita certeza do que eu estava dizendo, isso gerou uma certa antipatia do promotor, pois ele não conseguiu me manipular”, completou. O “promotor” a quem Liliane se refere é o assistente de acusação Clodomir Araújo, que a interrogou no tribunal.
A situação se complica ainda mais com a suspeita da promotoria de que a médica faria parte da seita e teria até mesmo examinado algumas vítimas, com o intuito de esconder evidências. O foco da acusação estava em supostos procedimentos realizados no Segundo Sobrevivente e em Wandicley Oliveira Pinheiro.
Em ambos os casos, porém, a doutora Liliane tinha provas de que não trabalhou nestes períodos. Quando o Segundo Sobrevivente foi atacado, ela havia saído de férias; já no evento que vitimou Wandicley, ela estava em licença-maternidade.
As suspeitas, no entanto, não param por aí. Havia também dúvidas em relação aos meninos assassinados: teria a médica conduzido alguma perícia? De acordo com os autos, ela assinou um laudo cadavérico de Jaenes, junto com outro colega, Aroldo Rodrigues Alves. Esse documento é curioso pois nenhum dos dois eram legistas. Quem cumpria essa função na cidade era o doutor Armando Aragão, já citado no podcast. Por que então eles assinaram o exame?
De acordo com Liliane, o único legista concursado para atender a população de Altamira era de fato Aragão. Antes de se mudar para lá, porém, não era incomum que ele fosse chamado para examinar corpos na cidade, mesmo morando na capital do estado.
Mas, antes disso, a precariedade era ainda maior. “Eu cheguei em Altamira em 1987. Nessa época, a gente não chamava ninguém de Belém ou de qualquer outro lugar. Nós mesmos fazíamos. Quando um corpo era encontrado com uma causa mortis que não fosse natural, ele acabava sendo levado para o Hospital do Sesp, onde eu trabalhava”, explicou a médica.
No local, havia apenas um necrotério, sem uma estrutura ou equipamentos adequados para uma perícia completa. Foi exatamente nesse contexto que ela auxiliou a elaboração do laudo de Jaenes. “Sobre esse caso eu não tenho muitos detalhes porque o procedimento foi executado mais pelo doutor Aroldo. Eu participei, na verdade, dos momentos finais”, afirmou.
Laudo cadavérico de Jaenes assinado por Liliane e Aroldo
Jaenes, contudo, não foi o único garoto examinado na presença de Liliane. Segundo ela, mais forte na lembrança está o laudo de Judirley da Cunha Chipaia, morto em janeiro de 1992. A médica confirma que fez uma primeira análise do corpo do menino e se lembra com nitidez de um detalhe específico.
“Ele tinha uma lesão que a gente chama de ‘contusa’ na fronte, na testa. Como nós não tínhamos equipamentos para abrir a cabeça dele, não havia como determinar se isso provocou um traumatismo craniano ou não, indicando uma possível causa da morte. Por causa disso, ele foi exumado depois”, completou.
Curiosamente, esse primeiro laudo mencionado pela médica não consta nos autos. Apenas o exame de exumação, assinado por Aragão e José Maria Feitosa, foi incluído no processo.
Laudo de exumação de Judirley assinado por Aragão e José Maria Feitosa
“FALSO TESTEMUNHO”
Os ânimos foram se exaltando cada vez mais ao longo do depoimento de Liliane Tabosa no júri. Ela tem marcado na memória, por exemplo, um momento em que confrontou o assistente de acusação Clodomir Araújo.
Tudo começou quando ele apontou que o atendimento à Gracinda naquele primeiro de outubro de 1992 não ficou registrado no hospital. O juiz Valle, então, perguntou à Liliane se era possível que esse tipo de coisa acontecesse no dia a dia da profissão.
“Eu respondi que sim, que isso já havia ocorrido outras vezes. Quando você está diante de uma urgência ou emergência, você corre para salvar a vida do paciente. Não importa se ele se chama João ou Maria, ou qual é o sobrenome dele. Eu tenho um foco ali, eu faço o que tenho que fazer e converso essa questão administrativa depois. Se conversar, conversou. Se não, o importante é você salvar aquela vida”, comentou.
De acordo com Liliane, o assistente de acusação se mostrou irritado com a resposta. “Para ele, os médicos eram os maus elementos, os bandidos. O Césio era o assassino e eu a mentirosa. O foco era descaracterizar e arruinar a nossa imagem”.
Depois da reação de Araújo, a médica pediu para falar e o juiz lhe concedeu a palavra. Ela retrucou diretamente ao magistrado: “Excelência, se eu bem me lembro, o senhor me perguntou se era possível, não se era correto. Existe uma diferença muito grande entre as duas coisas. Eu não disse que isso era correto. Eu disse que isso era possível”.
Se o assistente já se mostrava impaciente, o tom da médica teria piorado a situação. Segundo ela, isso foi determinante para o que aconteceu logo em seguida. E é aqui que a história de Liliane ter supostamente atendido os sobreviventes se torna relevante.
No depoimento em juízo, em 14 de outubro de 1993, Césio menciona uma discussão que teria tido com outros médicos sobre o Segundo Sobrevivente:
Inclusive a respeito [do ataque sofrido pelo garoto], chegou a discutir o fato clinicamente com os Drs. Aroldo Rodrigues Alves e Liliane Tabosa Arraes, médicos da Fundação SESP que estavam de plantão e atenderam a vítima, chegando inclusive a ser fotografada, cuja fotografia foi vista e analisada pelo denunciado.
Como citado anteriormente, no entanto, a médica estava de férias quando o Segundo Sobrevivente foi atacado, em novembro de 1989. É bem provável que, neste relato, Césio tenha confundido as vítimas, pois o laudo assinado por Liliane e Aroldo presente nos autos é, na verdade, de Jaenes. Mas nada disso importou: Araújo entendeu o erro do Césio como uma contradição entre os depoimentos do réu e da testemunha.
“Eu não vi essas fotos, eu não participei dessa reunião. Eu estava inclusive de férias nessa época. Você acredita que, nesse momento que eu neguei tudo, ele [Clodomir Araújo] disse que eu estava mentindo? Não existe na lei essa história de falso testemunho entre testemunha e réu. O réu não está na obrigatoriedade de falar a verdade. Ele pode mentir, pode dizer que é inocente e não ser. É um direito dele. Mas eu não, eu não posso mentir”, disse a médica.
Ela apontou ainda um curioso contrassenso na tese defendida pelo assistente de acusação. “Então, raciocina. Se o Césio estava falando a verdade quando mencionou essa tal reunião, ele também estava falando a verdade quando disse que é inocente”, concluiu.
A partir daí, a confusão já estava instaurada. No meio de tantos detalhes difíceis de seguir, a promotoria passava um recado para os jurados: a médica estava sendo acusada de prestar falso testemunho. Logo, toda a tática da defesa foi colocada em xeque.
Interrogatório e depoimentos no júri de Césio
Diante de tudo isso, somado à pressão das três condenações anteriores, em 10 de setembro, os jurados votaram pela condenação do réu. A sentença estipulada foi de 56 anos de prisão.
Liliane Tabosa recebeu a sentença de falso testemunho e foi em seguida encaminhada para a delegacia. Como não havia uma acusação formal registrada em papel, o delegado responsável liberou a médica, após entrar em contato com o juiz. Um inquérito foi aberto para investigar o caso e, posteriormente, a testemunha acabou inocentada pelo Tribunal de Justiça.
Até agora, a sentença dos julgamento foi a seguinte:
- Amailton Madeira Gomes: 57 anos de prisão;
- Carlos Alberto dos Santos Lima: 32 anos de prisão;
- Anísio Ferreira de Souza: 77 anos de prisão, a pena mais longa de todas;
- Césio Flávio Caldas Brandão: 56 anos de prisão.
Os acusados estavam soltos desde 1995, e após as condenações, nenhum deles pôde responder em liberdade.
Naquele momento, Valentina de Andrade ainda estava presa. Seu júri deveria acontecer em 22 de setembro, 12 dias após o de Césio.
Enquanto isso, as famílias de Altamira faziam o que podiam e lutavam para se manter em Belém para acompanhar os julgamentos, já em número bastante reduzido.
À primeira vista, é difícil dizer exatamente o que levou à condenação dos homens acusados. Talvez o elemento determinante tenha sido os depoimentos dos sobreviventes, que se tornaram o grande trunfo da acusação. Ao mesmo tempo, neles também estão as maiores estranhezas desse caso. Por isso, o próximo episódio analisará esses relatos em detalhes.
*Este episódio usou reportagens da Rede Globo, TV Record, SBT e TV Bandeirantes.