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Extras Episódio 18

RECONHECIMENTOS

Como explicado no episódio anterior, o júri dos acusados pelos crimes em Altamira foi desmembrado. Os primeiros réus a serem julgados, no final de agosto de 2003, foram Amailton Madeira Gomes e Carlos Alberto dos Santos Lima. Na ocasião, a grande surpresa da promotoria envolveu o depoimento de dois sobreviventes, que reconheceram o ex-policial militar como o homem que os sequestrou.

No entanto, essa já era a terceira vez que as vítimas apontavam alguém como o criminoso. Por isso, é preciso explicar todo o processo das identificações a partir de uma linha do tempo.

O ataque ao Segundo Sobrevivente aconteceu em novembro de 1989. Por conta dos tratamentos médicos necessários, ele só prestou depoimento formal sobre o ocorrido em maio de 1991, cerca de um ano e meio depois do crime. 

Apesar disso, ainda na época do ataque, ele auxiliou a Polícia Civil do Pará na produção de um retrato falado. É um desenho bastante simples, com pouca técnica, mas um detalhe se destaca: o suspeito teria uma verruga no pescoço. 

Retrato falado com base na descrição do Segundo Sobrevivente

Primeiro depoimento do Segundo Sobrevivente

Wandicley Oliveira Pinheiro foi emasculado em setembro de 1990. Assim como o Segundo Sobrevivente, ele também passou por várias cirurgias, o que o impediu de ser ouvido de maneira formal logo depois do crime. Diferente da outra vítima, porém, a polícia não chegou a fazer um retrato falado tão rapidamente neste caso. Isso só foi acontecer em julho de 1991, quando Wandicley prestou depoimento pela primeira vez. 

Esse retrato falado, feito a partir de recortes de fotografias, é bem diferente daquele produzido pelo Segundo Sobrevivente: no caso de Wandicley, o suspeito parecia ser um homem branco de olhos claros; enquanto que, no anterior, o agressor seria um rapaz negro. 

Retrato falado com base na descrição de Wandicley

Primeiro depoimento de Wandicley

Ou seja, só com base nisso, o reconhecimento de Carlos Alberto no júri de 2003, mais de 10 anos após os eventos, já seria questionável. Mas a situação como um todo é muito mais complexa.

Em janeiro de 1992, o menino indígena Judirley da Cunha Chipaia foi assassinado e emasculado. As investigações realizadas na época resultaram na prisão do andarilho Rotílio Francisco do Rosário, que morreu dias depois na cadeia sob fortes suspeitas de violência policial. 

Um detalhe importante ainda não citado no podcast é que, antes de morrer, Rotílio foi identificado como o agressor tanto pelo segundo quanto pelo terceiro sobreviventes. O auto de reconhecimento feito por Wandicley afirma:

Colocado várias pessoas à sua frente, o menor vítima, sem titubear, apontou para ROTÍLIO FRANCISCO DO ROSÁRIO […] como sendo o […] autor do crime do qual foi vítima. 

Auto de reconhecimento de Rotílio feito por Wandicley

O documento elaborado no caso do Segundo Sobrevivente é ainda mais dramático:

Foram colocadas algumas pessoas à sua frente, como seja, à frente do menor vítima, que, sem titubear, apontou ROTÍLIO FRANCISCO DO ROSÁRIO como sendo elemento que […] lhe CORTOU os ÓRGÃOS GENITAIS. A vítima, ao se deparar com o referido elemento durante a lavratura do auto, entrou em estado de tensão elevada, chorando, tendo inclusive proferido palavras de baixo calão. 

Auto de reconhecimento de Rotílio feito pelo Segundo Sobrevivente

Além das duas vítimas, uma terceira pessoa também reconheceu Rotílio como o agressor: Lucilene da Cunha Chipaia, umas das irmãs de Judirley. No documento, ela afirma ter visto o andarilho próximo ao local onde o menino desapareceu e depois foi encontrado morto.

Auto de reconhecimento de Rotílio feito por Lucilene Chipaia

Aqui é interessante lembrar as idades dos garotos quando tudo isso aconteceu:

  • O Segundo Sobrevivente tinha 10 anos de idade na época do ataque. Quando reconheceu Rotílio, tinha 12 anos. No júri, ao apontar Carlos Alberto como o sequestrador, estava com 24.
  • Wandicley foi emasculado aos nove anos de idade. Reconheceu o andarilho aos 10 e, no júri, estava com 22. 

Rotílio não era o responsável pelos crimes, mas foi oficialmente reconhecido por esses dois sobreviventes. 

A história se complica ainda mais quando o ex-PM Aldenor Ferreira Cardoso entra em cena. Também acusado de pertencer à “seita satânica”, ele nunca foi encontrado e acabou sendo considerado foragido durante todo o processo. Aldenor só foi envolvido no caso por conta de um reconhecimento realizado por Wandicley e o irmão, Vandivaldo Oliveira Pinheiro, no final de junho de 1993. O procedimento ocorreu no início do inquérito conduzido pelo delegado Éder Mauro.

Fora essa identificação, não há mais nada contra Aldenor nos autos. Ela foi suficiente para que o ex-PM fosse denunciado e pronunciado. Se tivesse sido encontrado, certamente também teria ido a júri.

Auto de reconhecimento de Aldenor feito por Wandicley

Auto de reconhecimento de Aldenor feito por Vandivaldo

Portanto, antes de Carlos Alberto ser apontado pelos sobreviventes no tribunal, outros dois indivíduos já haviam sido igualmente reconhecidos: Rotílio e Aldenor. A acusação tinha plena consciência dessas contradições. Durante o julgamento, o advogado Clodomir Araújo, que auxiliava a promotoria, questionou o Segundo Sobrevivente sobre Rotílio.

Em resposta, a vítima esclareceu que só reconheceu o andarilho na época porque estava com medo e se sentia perseguido por Carlos Alberto. Ele negou que Rotílio fosse o culpado e disse ter plena certeza que o homem que o levou até o matagal foi, na verdade, o ex-PM. Ele comentou que o rapaz estava em uma bicicleta vermelha, da marca Monark, quando o abordou. 

O Segundo Sobrevivente ainda relatou que só depois de adulto criou coragem para denunciar Carlos Alberto. Esse seria o motivo pelo qual nunca havia identificado o réu até o momento.

O argumento, claro, incomodava as defesas. Afinal, a vítima chegou a prestar depoimento em juízo, em novembro de 1993, quando todos os acusados estavam presos. Por que esperar o júri para denunciar as perseguições que estava sofrendo?

Depoimento do Segundo Sobrevivente no júri de Amailton e Carlos Alberto 

Durante o julgamento, Wandicley relatou que estava na companhia do irmão mais novo, Vandivaldo, e do primo Jailson Oliveira Pinheiro, no dia do ataque. A acusação queria, inclusive, arrolar Vandivaldo como testemunha, mas nessa época ele já havia falecido.

Assim como o Segundo Sobrevivente, a vítima descreveu ter sido sequestrada por um homem em uma bicicleta vermelha, que ele agora identificava como Carlos Alberto. De acordo com Wandicley, o réu presente no júri era a mesma pessoa que o convidou para caçar papagaio naquele setembro de 1990. 

Questionado sobre Aldenor, ele respondeu que ambos os suspeitos eram parecidos e, por isso, pode ter se confundido. Declarou ainda que estava bastante nervoso na ocasião e que só agora havia identificado Carlos Alberto, quando deu de cara com ele no plenário. 

Neste depoimento, o terceiro sobrevivente não recebeu nenhuma pergunta acerca de Rotílio. Em certo trecho, ele chega a afirmar que o irmão Vandivaldo não identificou Aldenor na época do crime porque “ele era muito pequeno”. Isso é estranho, já que nos autos do processo há um documento com o reconhecimento realizado por ambos. 

Depoimento de Wandicley no júri de Amailton e Carlos Alberto

Como é possível notar, os depoimentos dos dois sobreviventes no júri são completamente diferentes dos encontrados nos autos ao longo do processo. E as novidades não estavam apenas na questão dos reconhecimentos. No julgamento, pela primeira vez, as vítimas mencionaram uma “sensação de dormência nos pés após os ataques”.

O advogado Clodomir Araújo Júnior, que auxiliava o pai na assistência de acusação, citou esse elemento nas entrevistas que concedeu durante o júri. “Eles [os sobreviventes] chegaram a comparar essa dormência com a sensação que tiveram quando foram operados pelo doutor Lourival Barbalho. Então, é um grande indício de que houve aplicação de anestesia nessas emasculações”, afirmou.

A acusação defendia a tese de que o uso de apenas uma substância aplicada ao nariz, como éter, não seria suficiente para mascarar a dor provocada no ataque. De acordo com a promotoria, os médicos também utilizavam métodos mais potentes. “Não é qualquer anestesia. É uma anestesia raquidiana, que tem um efeito apenas da coluna para baixo”, disse Araújo Júnior em outra entrevista.

Aqui vale relembrar o processo de busca e apreensão realizado na casa do acusado Césio Flávio Caldas Brandão, em julho de 1993, no período das prisões. Na ocasião, a polícia encontrou no local alguns equipamentos médicos – entre eles, agulhas. Segundo o réu, elas lhe foram dadas por um colega de profissão antes da mudança para Altamira, para suprir uma eventual falta do recurso na cidade. 

Agora, pela primeira vez no processo, as vítimas contavam uma história que parecia ligar esses pontos: elas teriam sido anestesiadas antes da agressão. Essa, pelo menos, era a tese da promotoria, que nunca se preocupou em explicar melhor o tipo de substância ou o equipamento utilizado.

O Projeto Humanos conversou com diversos especialistas para saber se os efeitos e as sensações relatadas pelos sobreviventes no júri teriam algum fundamento. A resposta, no geral, é que tudo depende de uma série de informações que não estão disponíveis nos autos. Isso significa que não é possível verificar nenhum desses detalhes.

No fim, os novos testemunhos dos sobreviventes são esquisitos em vários sentidos, mas se encaixavam como uma luva para a tese da acusação. Eles reforçavam a crença na presença de médicos nos ataques e apontavam diretamente para um dos acusados, sentado naquele momento no banco dos réus, como o sequestrador. 

Então, por mais que Amailton tivesse boas testemunhas de defesa, o quadro geral não era nada favorável a ele. Enfim, em 29 de agosto de 2003, no terceiro dia do júri, vinha a sentença:

Um detalhe na sentença de Amailton é que ele foi considerado culpado também pela morte de Flávio Lopes da Silva, em março de 1993. Isso é esquisito, já que o comerciante estava preso na época do assassinato. Essa contradição, contudo, jamais foi explicada pela promotoria.

Atas e votos do júri de Amailton e Carlos Alberto 

As condenações de Amailton e Carlos Alberto ocorreram em 29 de agosto de 2003. Neste mesmo dia, Américo Leal, então advogado de Valentina de Andrade, pediu ao juiz Ronaldo Valle o adiamento do júri da ré, pois ele estaria em viagem na mesma data. Pouco tempo depois, o magistrado negou o requerimento. Logo, ficou acordado que seriam julgados em 2 de setembro os outros três acusados: Valentina e os dois médicos, Césio Flávio Caldas Brandão e Anísio Ferreira de Souza

Ofício de Américo Leal pedindo o adiamento do júri de Valentina

Resposta do juiz Ronaldo Valle a Américo Leal

MATERIAIS ANEXADOS

Ainda sobre o dia 29 de agosto de 2003, há nos autos um ofício da Superintendência da Polícia Federal (PF) do Pará, informando o envio de novos documentos à promotora Rosana Cordovil:

  • O primeiro material é um dossiê com cópias de peças pertencentes ao inquérito de Leandro Bossi, garoto que desapareceu em Guaratuba, no litoral do Paraná, em fevereiro de 1992.   
  • O segundo é um compilado de materiais referentes à investigação do caso Michel Mendes, menino de quatro anos morto na cidade de Goiânia em 1989, no qual também havia a suspeita de sacrifício humano em ritual satânico. Pouco citado no processo, esse inquérito parece ter sido juntado com o intuito de fundamentar a tese de que esse tipo de crime ocorria em todo o Brasil. Curiosamente, o caso de Michel também está anexado no processo de Evandro Ramos Caetano.
  • O terceiro é uma seleção de materiais diversos, como receituários, notas fiscais, identidades e recortes de jornais.

O que realmente chama a atenção, no entanto, são os outros três documentos citados no ofício. Todos são relacionados às investigações que a Polícia Federal fez em Altamira na década de 1990. 

Logo após o júri de Amailton e Carlos Alberto, a PF teria enviado à promotoria uma resolução intitulada “Despacho Número 7”, do Departamento de Direitos Humanos da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Esse documento não está nos autos, mas tudo indica que ele seria uma espécie de formalização da ida dos agentes federais para Altamira em 1993.

Os outros dois materiais são os relatórios da Polícia Federal, produzidos em 1993 e 1996, que também não estão anexados ao processo. 

Ofício da Superintendência da PF do Pará sobre o envio de documentos

Em resumo, logo após o primeiro julgamento, a promotora do caso recebeu materiais muito importantes sobre a ação da PF em Altamira. Mas ela decidiu não incluí-los nos autos. O motivo? Não é possível saber. 

Em um ofício, Rosana Cordovil cita quais documentos ela gostaria de anexar: os inquéritos de Leandro Bossi e Michel Mendes; além de uma denúncia do Ministério Público do Maranhão contra o doutor Anísio, datado de 2002. 

Este último material era uma novidade e dizia respeito ao período em que o acusado atuou como médico naquele estado, após ser solto da prisão e antes dos júris. Nele, Anísio era acusado de má prática médica que levou uma paciente à morte dias depois de uma cesariana. Nos autos, não é possível saber se essa denúncia avançou de alguma forma. 

Ofício da promotora Rosana Cordovil sobre os documentos anexados

Denúncia contra Anísio no Maranhão

Nesta mesma época, havia também no Maranhão casos de morte e emasculação de meninos. Por se tratar de um estado vizinho do Pará e por Anísio ser natural de lá, isso chamava a atenção da população e, claro, da promotoria. É essencial esclarecer, contudo, que não existe nenhuma denúncia contra o médico referente aos crimes contra crianças no Maranhão. 

SEGUNDO JÚRI

Como previsto, em 2 de setembro de 2003, teve início em Belém o segundo júri do caso dos meninos emasculados de Altamira. Na ocasião, deveriam ser julgados os médicos Césio e Anísio, além de Valentina de Andrade. Só que ela não apareceu.

Ao que tudo indica, já havia nos bastidores uma articulação da defesa para que o júri fosse novamente desmembrado. Ainda assim, a ré deveria ter se apresentado no primeiro dia da sessão. Por isso, o juiz Ronaldo Valle deu um aviso: se Valentina não comparecesse até o fim do julgamento, ele decretaria prisão preventiva contra ela.

Havia uma tensão no ar: estaria a acusada tentando fugir? Por que ela não teria aparecido? Sem Valentina, seriam julgados apenas os médicos Anísio e Césio. No entanto, uma manobra da defesa envolvendo o número de jurados garantiu mais uma vez a divisão das sessões.

Agora, cada um dos réus seria julgado separadamente. Naquele dia 2 de setembro, apenas Anísio enfrentaria o Tribunal do Júri. Na defesa, estava o advogado Edilson Norões Santiago, que contou também com o auxílio do doutor Jânio Siqueira.

Do lado da acusação, é necessário relembrar de três testemunhas específicas. A primeira é a Orlandina Silva de Souza, já citada com mais profundidade no episódio 9 do podcast. Ela trouxe à tona a história de Ana Paula, a suposta funcionária de Anísio que teria desaparecido após avistar um órgão sexual dentro de um isopor no consultório do médico. Posteriormente, um braço decepado foi encontrado em uma estrada, e Orlandina dizia que ele pertencia à amiga. Como já mencionado, a veracidade desse relato jamais foi checada. Nunca sequer descobriram se Ana Paula realmente existia. 

Já Orlandina chegou a ser convocada para o júri. Por algum motivo desconhecido, porém, não compareceu. A promotoria tinha apenas os dois depoimentos que ela prestou ao longo do processo: um na fase de inquérito do delegado Éder Mauro, e o outro na fase de juízo conduzida por José Orlando de Paula Arrifano.

Depoimento de Orlandina na fase de inquérito 

Depoimento de Orlandina na fase de juízo 

A segunda testemunha importante para a acusação era Loidenne Sabino de Jesus, uma adolescente de 16 anos que trabalhou como doméstica na chácara de Anísio. Ela foi ouvida apenas uma vez, na fase de inquérito também de Éder Mauro. Na ocasião, ela descreveu acontecimentos estranhos que presenciou no local, como rituais macabros, a existência de uma sala secreta, e vestes estranhas usadas pelas filhas do médico para assustá-la.

A adolescente nunca mais apareceu no processo, e a chácara jamais foi vasculhada.

Depoimento de Loidenne Sabino de Jesus

Por fim, a terceira testemunha-chave contra Anísio é Edmilson da Silva Frazão, que dizia ter presenciado uma “missa negra” na chácara do réu, inclusive com a presença de Valentina. Além de contraditórios, os seus depoimentos tornam-se ainda mais problemáticos a partir dos eventos de março de 1995 – quando ele denunciou uma suposta coação da Polícia Federal para inventar toda a história e voltou atrás na decisão alguns dias depois.

Termo de declaração de Edmilson Frazão acusando a PF de pressioná-lo 

Termo de declaração de Edmilson Frazão voltando atrás na acusação

A acusação tentou convocar Edmilson para depor nos júris, mas não o encontrou. Há nos autos uma certidão emitida em 5 de agosto de 2003 sobre a tentativa de localizá-lo. No documento, o oficial de justiça informa que, segundo outra testemunha, Frazão estaria preso por roubo e estelionato no presídio de Santana, no Amapá.

Certidão sobre a tentativa de encontrar as testemunhas 

Apesar da fragilidade dos relatos e das três testemunhas não estarem presentes nos julgamentos, o que elas diziam era considerado prova contundente pela acusação. A promotora e os assistentes sempre mencionavam o teor desses depoimentos durante entrevistas para a imprensa.

No Programa “Sem Censura” da TV Cultura do Pará, Clodomir Araújo defende que, no caso de mandantes ou acusados “poderosos”, existe a necessidade de provas indiciárias, pois evidências concretas são mais difíceis de serem encontradas.

“É preciso que o povo saiba que, na cultura brasileira, os mandantes, os organizadores, os mentores dos crimes de morte sempre ficam de fora. Por quê? Porque não vai se esperar que um autor intelectual assine um recibo ou uma escritura pública de que mandou matar alguém”, disse o assistente.

Foi a partir dessa lógica que a acusação trabalhou para provar a culpabilidade de Anísio. O primeiro dia do julgamento foi marcado pelo interrogatório do médico e leituras de peças. No plenário, o réu se disse inocente e alegou ser vítima de perseguição.

Desde que foi preso, Anísio já havia sofrido pelo menos um AVC, o que teria afetado parte da sua memória. Isso fica evidente, por exemplo, quando o juiz lhe pergunta sobre o paciente Jeanes da Silva, atendido pelo réu em 1992 por conta de um ferimento no braço. Ao ser ouvido em 1993, na época das prisões, o médico soube explicar a situação do garoto. Agora, dez anos depois, ele não conseguia responder ao magistrado. “A qualquer instante eu posso apagar aqui, eu estou com um vaso no cérebro rompido”, afirmou o médico no júri.

TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO

Em 3 de setembro de 2003, dia seguinte ao interrogatório do acusado, as primeiras testemunhas a serem ouvidas estavam do lado da acusação. Sem Orlandina, Loidenne ou Edmilson, os convocados foram os mesmos do julgamento anterior, com exceção de Sueli de Oliveira Matos. A conselheira tutelar foi dispensada pois o seu relato tinha mais relevância para o caso contra Carlos Alberto, já condenado.

No geral, os depoimentos foram similares aos do primeiro júri, com um direcionamento maior para algumas questões pertinentes às acusações contra Anísio:

  •  Os sobreviventes deram ênfase à sensação de dormência que teriam sentido no dia do ataque, indicando o uso de anestesia por um médico. 
  • Agostinho José da Costa relatou que já havia frequentado o consultório de Anísio, ocasião em que Césio fez uma visita ao local. Esse encontro, por outro lado, sempre foi negado por ambos os réus.
  • Juarez Gomes Pessoa, pai de Jaenes, reafirmou que Anísio foi ao velório do seu filho – o que era contestado pelo médico. A testemunha repetiu ainda o curioso fato do corpo do menino ter sangrado no momento em que o réu apareceu. Segundo Juarez, isso indicaria que o assassino estava no local. Esse detalhe foi bastante divulgado pela imprensa e pareceu ter um efeito considerável no júri e nos jurados.

Enquanto as testemunhas de acusação falavam, outra expectativa pairava no ar: a presença de Valentina, que ainda não havia se apresentado ao juiz e corria o risco de ser presa. Para a promotoria, a ausência da ré representava um atestado de culpa. 

Ainda nos bastidores, ocorria uma mobilização encabeçada pelos observadores enviados pelo Governo Federal, sobretudo pela Procuradora Geral Maria Eliane Menezes, e o Secretário Especial dos Direitos Humanos Pedro Montenegro. Ambos pressionavam para que outros casos em Altamira fossem devidamente investigados. Afinal, vale lembrar que o processo e os júris em si diziam respeito a apenas cinco vítimas. Na época, esses agentes falavam sobre a necessidade de apurar outros 14 crimes contra crianças na cidade. 

TESTEMUNHAS DE DEFESA

Na tarde do segundo dia de julgamento, o juiz Ronaldo Valle ouviu as testemunhas de defesa. Anísio havia arrolado três pessoas para depor a seu favor. A estratégia era demonstrar que o médico jamais se envolveria em casos criminais dessa natureza. Falaram ao júri:

Na terceira testemunha, um acontecimento inesperado abalou a defesa e beneficiou a acusação. Enquanto o júri aguardava pelo depoimento de Ivan Souza Reis, quem apareceu no plenário foi o irmão dele, Hildebrando. Ao ser questionado pelo juiz, o homem disse que estava ali a pedido da esposa de Anísio, já que Ivan não tinha condições de depor, por ter passado mal.  

Essa confusão foi suficiente para a promotoria dobrar a acusação em cima do réu. Afinal, uma testemunha de defesa não compareceu e, pior, outra pessoa tentou se passar por ela. 

“Eu entendo que o ato praticado foi fraudulento porque essa testemunha não estava arrolada. Consequentemente, poderia causar a anulabilidade do processo”, comentou o assistente de acusação, Clodomir Araújo, em entrevista à TV Liberal.

Na mesma reportagem, o advogado Jânio Siqueira, que representava o réu, alegou que tudo não passava de um mal-entendido. “Como é que um homem de má-fé vai exibir sua identidade, com a sua foto e seu nome real, em uma corte de justiça? Sabendo que não era ele, se for o caso?”, rebateu.

Após as discussões, o juiz Ronaldo Valle decidiu que o júri continuaria normalmente no dia seguinte, já que a testemunha falsa havia sido descoberta a tempo. Hildebrando Souza Reis foi orientado a prestar esclarecimentos na delegacia. 

A esposa de Anísio, Lucimar Ferreira Lima de Souza, também falou à polícia sobre a situação. “Ele veio como Hildebrando e apresentou a identidade na hora que entrou. Ele não chegou dizendo que era o irmão dele”, defendeu ela, durante entrevista à TV Liberal. 

No final, o caso ficou esclarecido como um mal-entendido, que não levou a nada. Foi assim que o segundo dia do julgamento terminou, com um clima desfavorável a Anísio e ainda sem a presença de Valentina. 

Interrogatório e depoimentos do júri de Anísio

SENTENÇA

Em 4 de setembro, ocorreriam os debates entre defesa e acusação e, enfim, os votos dos jurados. Essa era a última oportunidade para Valentina se apresentar – o que aconteceu no final da manhã, com bastante estardalhaço da mídia.

De acordo com a imprensa, a ré havia sido interceptada dias antes no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, tentando embarcar para a cidade de Buenos Aires, na Argentina. Com a justificativa de garantir o andamento do júri, o juiz Ronaldo Valle decretou a prisão preventiva de Valentina, que chegou a Belém acompanhada de advogados. Após se apresentar, a acusada foi encaminhada a uma penitenciária. Ela negou que havia tentado fugir do país.

Paralelo a isso, os jurados finalmente decidiram o destino de Anísio: o médico foi considerado culpado e acabou condenado a 77 anos de prisão, a maior pena até então. “Isso é surpreendente. Contra o Anísio não se tem nada. As pessoas que teriam não foram falar. Me diga, qual testemunha de acusação disse alguma coisa contra ele?”, questionou o advogado e pesquisador Rubens Pena Júnior, que auxiliou a produção do podcast.

Restavam agora dois réus para serem julgados: Césio Flávio Caldas Brandão e Valentina de Andrade

Atas e votos do júri de Anísio

*Este episódio usou reportagens da Rede Globo, TV Record, SBT, TV Cultura e TV Bandeirantes.