Extras Episódio 14

Em 23 de fevereiro de 1995, ocorre o primeiro movimento que alteraria parte da tese acusatória: José Amadeu Gomes, pai de Amailton, é despronunciado por decisão do Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA). Ou seja, ele deixa de ser réu no processo.
Para recapitular, o juiz José Orlando de Paula Arrifano havia decidido que Amadeu deveria ir a júri por conta das suspeitas de que ele seria o mandante dos crimes contra os meninos. Aqueles que acreditam na culpa dos acusados defendem essa tese até os dias de hoje. Mas, ao menos nos autos, a única fonte que liga o fazendeiro ao caso é o relato da conselheira tutelar Sueli de Oliveira Matos. Em uma carta, ela escreve que a informação lhe foi repassada durante uma conversa com o ex-policial militar Carlos Alberto dos Santos Lima.
Apesar da decisão do TJ-PA, Amadeu foi mantido no processo por um tempo e teve testemunhas de defesa ouvidas na terceira fase de juízo. Eventualmente, ele saiu do rol de réus. Como se pode imaginar, isso aumentou o sentimento de indignação das famílias das vítimas, que acreditavam na culpa do fazendeiro.
Aqui, é importante relembrar de que forma os parentes e amigos dos meninos atacados eram informados. Como já mencionado em episódios anteriores, eles não confiavam nos agentes locais e afirmam que só foram atendidos com atenção e seriedade pela Polícia Federal (PF).
Decisão do TJ-PA de despronunciar José Amadeu Gomes
Em março de 1995, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o caso deveria voltar à fase de instrução e concedeu habeas corpus aos acusados. O ex-PM Carlos Alberto foi o único que permaneceu preso, pois nenhum defensor entrou com o pedido de liberdade.
Matéria do jornal Província do Pará – “Altamira reage contra soltura dos acusados de matar meninos”
REVIRAVOLTA
Enquanto os documentos estavam em Brasília para análise do STF, um conhecido personagem do caso reaparece: Edmilson da Silva Frazão. A importante testemunha prestou um novo depoimento em 24 de março de 1995, perante a promotora Ociralva de Souza Farias Tabosa.
Edmilson era a única pessoa que ligava Valentina de Andrade aos crimes, ao citar um “culto macabro” que teria presenciado na chácara de Anísio Ferreira de Souza.
Agora, ele dava um relato completamente diferente: negou tudo o que disse antes sob a alegação de que havia sido pressionado pelos policiais federais a inventar toda a história. Edmilson explicou que teria sido procurado pelos agentes a partir de um depoimento anterior que deu à Polícia Civil sobre um desentendimento com o ex-PM Carlos Alberto. Não há detalhes sobre o motivo da briga entre os dois. O que se sabe é que o evento não teria conexão nenhuma com o caso dos emasculados.
A partir de então, justamente pela testemunha ter citado A. Santos, os agentes federais passaram a interrogá-lo sobre os demais acusados dos crimes contra os meninos. De todos eles, Edmilson admitiu conhecer apenas Anísio, pois o seu irmão já tinha trabalhado com o médico.
Mesmo assim, os policias teriam feito ameaças para que ele ligasse todos os suspeitos ao caso a partir da história do culto. Com receio de ser preso ou sofrer outras consequências, ele cedeu e acabou falando. No final, assinou o depoimento sem ler.
Na época, após falar em juízo, Edmilson decidiu sair da cidade, pois estava com medo da reação dos familiares daqueles que ele havia incriminado. Quando, enfim, retornou à Altamira, procurou o advogado Hercílio Pinto de Carvalho para contar a verdade e pedir por orientações.
Hoje já falecido, o doutor Hercílio representava quatro réus: Amailton Madeira Gomes; Carlos Alberto; Aldenor Ferreira Cardoso, que estava foragido; e Valentina de Andrade, que não chegou a se apresentar naquela etapa do processo.
Termo de declaração de Edmilson em 24 de março de 1995
Esse novo testemunho de Edmilson negando tudo significaria uma mudança drástica para todo o processo.
WASSEF
Nesse mesmo período, início de 1995, Valentina já contava com advogados próprios, que participariam mais ativamente da terceira fase de juízo a partir de setembro daquele ano. Um deles era um homem chamado Frederick Wassef. Hoje, ele é conhecido por representar o presidente Jair Bolsonaro e os filhos Flávio e Jair Renan.
A primeira vez que Ivan Mizanzuk ouviu falar de Wassef foi durante a produção da temporada anterior do Projeto Humanos, o Caso Evandro. A história completa está no episódio 35 e pode ser ouvida aqui.
Em resumo, houve um momento em que Valentina foi considerada suspeita no desaparecimento de Leandro Bossi em Guaratuba, no litoral do Paraná, em fevereiro de 1992. Ela entrou no radar da polícia a partir de confissões feitas sob tortura pelos suspeitos presos.
Na época, Valentina estava na cidade com o marido, José Alfredo Teruggi, e alguns seguidores, a quem ela chamava de “filhos”. Os comportamentos considerados “incomuns” daquelas pessoas atraíram a atenção do gerente do hotel onde elas se hospedaram. Isso foi suficiente para que o grupo fosse notado pelo delegado Luiz Carlos de Oliveira, que acreditava na tese de seita satânica. Por isso, mesmo sem qualquer prova, o Lineamento Universal Superior (LUS) passou a ser visto com desconfiança.
Nesse contexto, Wassef, um jovem advogado que acompanhava Valentina em Guaratuba, também não escapou das acusações. Mais tarde, porém, a juíza do caso, Anésia Edith Kowalski, afirmou que não havia nada que sustentasse a hipótese de seita e revogou o mandado de prisão contra a líder do LUS – contra Wassef, o documento sequer chegou a ser emitido.
Hoje em dia, Luiz Carlos de Oliveira admite que errou nas investigações. Em entrevistas que concedeu a outros canais, ele chegou a pedir desculpa a Valentina pelo o que fez na época.
O próprio Wassef procurou as autoridades na ocasião para esclarecer que tudo não passava de um mal entendido. Datado de 14 de outubro de 1992, o depoimento traz detalhes sobre a relação dele com a líder do LUS.
De acordo com o relato, no fim de 1988, Wassef comprou um livro intitulado “Deus, a Grande Farsa” em uma banca de jornais. A obra descrevia a biografia da autora, Valentina de Andrade, e as experiências que ela dizia ter com seres alienígenas que lhe revelavam as verdades sobre o mundo.
Após a leitura, o jovem advogado teve curiosidade em conhecer Valentina e, por isso, começou a se comunicar com ela por cartas. Por ser amigo do jornalista Goulart de Andrade, Wassef foi além: combinou com Valentina de divulgar o livro no programa de televisão “Comando da Madrugada”.
A autora aceitou a ideia e viajou com Teruggi de Londrina, onde morava, a São Paulo para fazer a entrevista. Wassef acompanhou o casal até a casa de Goulart, onde o material para o programa foi gravado. No fim, a reportagem nunca foi ao ar e o advogado não soube o motivo.
A partir daí, o contato entre eles continuou por meio de fitas gravadas e enviadas um para o outro. Até que, em novembro de 1991, Valentina convidou Wassef para visitá-la em Londrina durante um fim de semana. Passados alguns meses, eles viajaram juntos para Guaratuba em duas ocasiões diferentes, em fevereiro e abril de 1992, na companhia de vários argentinos seguidores do LUS. Foi aí que tudo teve início.
Depoimento de Frederick Wassef
No Pará, a líder do Lineamento foi formalmente acusada pelos crimes de Altamira com o aditamento da denúncia do Ministério Público, de 06 de setembro de 1993. Mesmo morando em São Paulo, Wassef passou a acompanhar o processo com a ajuda de Marco Antônio Sadeck, dono do escritório onde ele trabalhava, e do colega Luiz Fernando Maria Sobrinho, de Londrina.
Já em terras paraenses, Valentina contou com o serviço dos advogados Américo Leal e Luciel Caxiado, que chegaram a defender Amailton na época das investigações de Brivaldo Pinto Soares Filho.
Após conflitos com o juiz Arrifano, no entanto, ambos deixaram de representar a ré em 24 de janeiro de 1994. A gota d’água teria sido a ausência de Valentina em uma audiência, o que fez com que o magistrado nomeasse para ela um novo defensor: Hercílio Pinto de Carvalho, que já havia atuado para outros acusados. Essa confusão é relatada em uma reportagem do jornal O Liberal de 22 de dezembro de 1993.
Matéria do jornal O Liberal – “Valentina não vai ter prisão relaxada”
Sobre a defesa de Valentina no Pará, Ivan Mizanzuk entrevistou Frederick Wassef em 2022 para a produção desta temporada do Projeto Humanos. O advogado conta que teve uma participação importante no caso quando Edmilson da Silva Frazão decidiu mudar o depoimento e negar tudo em março de 1995.
“A certa feita, o meu telefone toca”, começa Wassef. Ele afirma não se recordar da data exata. “Era o doutor Hercílio, de Altamira, pessoa essa que eu não conhecia, não tinha amizade, nem nada. Eu não sei como ele conseguiu o meu número. Absolutamente nervoso e alterado, ele me diz: ‘doutor Frederick, eu preciso te contar uma coisa e você têm de nos ajudar aí de São Paulo’”, complementa.
Wassef perguntou o que tinha acontecido e o colega respondeu que havia acabado de receber a visita de Edmilson no escritório dele. Em pânico, a testemunha revelou ter sido ameaçada por policiais federais para inventar a história da reunião na chácara.
Segundo Wassef, fontes que ele prefere não revelar lhe confidenciaram que o doutor Hercílio estava sendo grampeado pela Polícia Federal naquele momento. “Eu estou falando de grampo ilegal, sem conhecimento ou autorização judicial, de um advogado. Eu não estou falando de investigado, de acusado. É a prerrogativa da nossa classe sendo violada”.
Não é possível verificar a veracidade dessa informação. Mesmo assim, esse é um acontecimento comentado por vários moradores de Altamira, inclusive por familiares de vítimas. Segundo eles, muitos suspeitos de participar do grupo de poderosos tiveram telefonemas interceptados.
De qualquer forma, ao descobrir que os agentes federais poderiam ter ouvido a conversa sobre Edmilson, Wassef se apressou a dar uma orientação a Hercílio. Sugeriu que ele saísse imediatamente da cidade junto com a testemunha, familiares dela e alguns jornalistas, e seguisse até Brasília. Lá, ele deveria acompanhar o rapaz até o Ministério Público Federal para prestar depoimento e, posteriormente, conceder entrevista para a imprensa.
Isso, no entanto, não aconteceu. Quatro dias depois do relato bombástico acusando os policiais, Edmilson foi ouvido novamente. Desta vez, sem a presença de Hercílio, ele invertia a situação: afirmava que não havia sido pressionado pela Polícia Federal e que a história do culto era verdadeira.
Segundo a testemunha, o que a levou a mentir no último depoimento foi uma ameaça que recebeu, na verdade, da família de Amailton. Edmilson disse que foi obrigado por Amadeu, o irmão Arnaldo Gomes, e o advogado Hercílio, a inventar que sofreu ameaças da PF e a mudar de versão. Caso contrário, “eles botariam uma bala na cabeça do rapaz”, como afirma o relato. Por isso, naquele mesmo dia, 24 de março de 1995, ele procurou o Ministério Público para depor.
Ainda faria parte do acordo que Edmilson fosse até São Paulo e concedesse uma entrevista à imprensa inocentando Valentina. Se o fizesse, prometeu Hercílio, receberia em troca R$ 5 mil de Frederick Wassef.
Em 27 de março, a testemunha teria sido apanhada novamente por Arnaldo para acertar os detalhes da viagem. Em certo momento, Edmilson escutou uma conversa entre o irmão de Amadeu e Hercílio: ambos planejavam matá-lo assim que ele retornasse da entrevista. Em seguida, deixariam R$ 3 mil com a esposa do rapaz e mentiriam que ele tinha ido passar alguns dias em Belém.
Com medo, Edmilson decidiu escapar da tal viagem e contar tudo à promotoria de justiça.
Termo de declaração de Edmilson em 28 de março de 1995
Para Wassef, tudo isso não passa de mentira. “Como a conversa [com Hercílio] foi interceptada, Edmilson da Silva Frazão foi cooptado novamente por esses policiais criminosos e ameaçado de morte. Eles o forçaram a voltar ao Ministério Público e dizer que a retratação era falsa”, defende o advogado.
A versão de Wassef é impossível de ser verificada. Por outro lado, não há nos autos nenhum tipo de investigação que confirme as acusações de Edmilson contra os Gomes e os advogados. Amadeu, Arnaldo, Hercílio e o próprio Wassef jamais foram procurados para falar sobre isso.
VALDETE
Em 25 de setembro de 1995, iniciou-se a terceira fase de juízo no processo, após determinação do ministro Marco Aurélio do STF. Nesta etapa, presidida pelo juiz Paulo Roberto Ferreira Vieira, apenas testemunhas de defesa foram ouvidas.
Eram sete acusados: Amailton, os médicos Anísio e Césio, os ex-PMs Carlos Alberto e Aldenor, Valentina, e Amadeu – que ainda pôde arrolar testemunhas, mesmo despronunciado. Nesta época, por conta do habeas corpus concedido pelo STF, apenas A. Santos continuava preso.
No mês seguinte à abertura dessa nova fase, outubro de 1995, a história de Valdete Rodrigues Barroso, descrita pela carta de Rosa Maria Pessoa, teria um novo desdobramento.
Como mencionado no episódio anterior, Rosa dizia que Valdete estava sendo ameaçada por um homem por conta de informações que ela tinha sobre o caso dos emasculados.
Eis, então, que a testemunha é finalmente localizada e ouvida pela justiça em 18 de outubro de 1995. O depoimento é tomado por um promotor de Altamira chamado Gessinaldo A. Santana.
Valdete conta que, entre fevereiro e março de 1988, estava à espera do seu namorado Isaías em uma calçada próxima ao Banco do Brasil de Altamira. De repente, um carro cinza Gol ou Escort se aproximou e ela viu no bagageiro um menino com as mãos e os pés amarrados.
Quem dirigia o veículo era Amailton e ao seu lado estava Isaías. No banco traseiro, havia ainda outro homem, que ela não soube identificar. Ela acenou com a mão para que o automóvel parasse e, ao passar por trás dele para falar com o namorado, viu que o garoto amarrado estava morto e com o olho estalado.
Assustada, Valdete deu um grito. Tentando acalmá-la, Isaías disse que mais tarde lhe contaria tudo. Em seguida, a testemunha saiu andando em direção à rodoviária, mas Amailton a alcançou com o carro. O namorado, então, saltou do veículo e a convidou para ir com ele até o cais, onde lhe explicaria o que tinha acontecido.
Isaías, porém, não esclareceu nada. Disse apenas coisas sobre “certas atitudes que um homem tem que fazer na vida” e salientou que se Valdete falasse para alguém o que tinha visto, seria morta.
Anos se passaram até que, no início de 1995, ela começou a ser ameaçada por um homem chamado Maurício Ribeiro do Nascimento, que vivia armado com um revólver. Um dia, Valdete foi até o Conselho Tutelar para resolver algumas questões sobre os filhos e Maurício deduziu que ela tinha contado tudo para as autoridades de lá. Por isso, ele a vigiava e a pressionava para que procurasse a polícia e voltasse atrás no depoimento. Na época, Amailton já estava preso.
Essa situação obrigou Valdete a sair de Altamira. Mesmo assim, ela diz ter sido perseguida por todo o trajeto até Santarém e depois para Belém, quando pegou um barco. O destino final foi São Paulo, onde a testemunha finalmente foi localizada pela Polícia Federal e levada de volta ao Pará para depor.
Termo de declaração de Valdete Rodrigues Barroso
A busca por Maurício é descrita em um relatório da Polícia Federal. De acordo com o documento, o rapaz foi encontrado em uma ilha a uma hora de barco de Santarém. Ao ser questionado sobre a história de Valdete, ele negou tudo. Ainda no local, a PF achou uma série de notas promissórias que indicavam que o suspeito atuava como um pistoleiro, cobrando dívidas.
Essas informações foram, então, repassadas para o agente José Carlos de Souza Machado, chefe da Operação Monstro de Altamira. Apesar disso, as investigações não foram aprofundadas. Não há, por exemplo, qualquer menção nos relatórios a uma tentativa de localizar o namorado de Valdete para depor.
Relatório da PF sobre a busca por Maurício
O que aparece nos autos é um documento sobre Maurício feito por um agente da Polícia Federal nomeado apenas como “Xangô”. O texto é datado de 19 de outubro de 1995 e, apesar de parecer um depoimento, não é de papel timbrado e não possui a assinatura do depoente ou do policial.
Nesse curto informe, Maurício admitia que de fato tinha um revólver com carregamento rápido e dizia conhecer um comerciante chamado Isaías – não fica claro, porém, se ele seria o namorado de Valdete.
Informe sobre Maurício feito pelo agente Xangô
O curioso é que, um dia antes da data do informe, Maurício prestou depoimento diante de um delegado da Polícia Federal, Paulo Leandro Lôla da Costa, em Santarém. Aqui, além das informações dada a Xangô, ele explicou que trabalhava como cobrador de dívidas no tempo livre.
Entre os nomes e empresas para quem prestava esse tipo de serviço, um deles se destacava: Araquém Gomes, tio de Amailton, de quem Maurício tinha a intenção de arrendar terras. As notas promissórias encontradas com o rapaz também foram anexadas ao processo.
Termo de declaração de Maurício
Notas promissórias em posse de Maurício
Portanto, os indícios são vários de que Maurício seria realmente um pistoleiro e que poderia ter sido contratado pela família Gomes para silenciar uma testemunha contra Amailton. Isso precisava ser averiguado.
No mesmo dia do depoimento ao delegado da PF, 18 de outubro de 1995, o Ministério Público pediu a prisão temporária de Maurício. O juiz Vieira, então, determinou que o rapaz ficasse detido pelo período de cinco dias, que poderia ser prorrogado.
Quando o suspeito estava prestes a ser liberado, o MP requisitou a conversão da prisão temporária para a preventiva, o que evitaria que o detido tivesse prazo para ser solto.
Por fim, o juiz decidiu:
O pedido tem embasamento legal, porém, não antevejo ainda os requisitos para a decretação da prisão preventiva do suspeito. Necessário se faz maiores investigações para que se faça a ligação com o caso das emasculações de menores. Para tanto, hei de prorrogar por mais dez dias a prisão temporária do suspeito.
Decisão do juiz Vieira de prorrogar a prisão temporária de Maurício
Esse é o fim do caso de Valdete no processo. Não há mais nenhum relatório, informe, nada. Maurício desapareceu e Isaías nunca foi procurado.
Próximo dos julgamentos, o Ministério Público tentou convocar Valdete para testemunhar, mas o oficial de justiça não conseguiu localizá-la. Os boatos davam conta de que ela teria voltado para São Paulo, estaria em um programa de proteção a testemunhas e teria mudado de nome. Não é possível saber se tudo isso é verdade.
Aqui, novamente, a presença da PF no que seria a terceira fase da Operação Monstro de Altamira chama a atenção. As mesmas perguntas levantadas na história de Eudilene Pereira da Costa se repetem: O que os agentes federais foram fazer lá? A mando de quem e com que intuito? Por que essas investigações não avançaram?
A princípio, todos esses casos – dos emasculados, de Valdete, de Eudilene – deveriam ser trabalho da Polícia Civil. Uma justificativa legal é necessária para que a PF se envolva, independente do motivo. Isso incluiu determinação do Ministério da Justiça, publicação de portaria, depoimentos e relatórios que descrevem todos os procedimentos tomados. Mas nada disso aparece nesse processo. Tudo o que se sabe sobre a atuação dos agentes federais em Altamira vem de matérias da imprensa, de nomes citados em documentos ou de relatos dos envolvidos.
ROSA COELHO
O caso dos meninos de Altamira é repleto de histórias mal explicadas. Para facilitar a narrativa, o Projeto Humanos classificou quatro mistérios que jamais foram solucionados:
– O primeiro inclui o caso da Ana Paula, suposta funcionária de Anísio que viu um vidro com testículos na mesa do médico. Depois disso, ela teria sido morta e reconhecida apenas pelo seu braço, que foi jogado em um matagal sem o resto do corpo.
– O segundo mistério é o de Eudilene, a adolescente de 13 anos que denunciou uma série de crimes violentos contra meninos ocorridos em uma chácara. Além disso, acusou Césio de estupro.
– O terceiro é o depoimento de Valdete e as investigações envolvendo Maurício, o homem que a ameaçava.
De alguma forma, esses três eventos estão ligados à atuação da Polícia Federal em Altamira. Já o quarto e último mistério é o único, até onde se sabe, que foge dessa regra. Ele tem a ver com uma investigação feita pela Polícia Civil em 1995 sobre uma morte ocorrida três anos antes.
Tudo começou ainda em janeiro de 1991, quando Tito Mendes Vieira, de 12 anos, saiu para tomar banho em um igarapé e nunca mais voltou para casa. O tempo passou sem que a família tivesse qualquer tipo de resposta. Até que, em outubro de 1992 – época das eleições -, algo estranho ocorreu.
Uma mulher levemente embriagada apareceu na residência de Tito e, ali mesmo no quintal, começou a conversar com o irmão dele. Ao ouvir as vozes, Zuilda Mendes Vieira, mãe dos garotos, saiu para o jardim. A visitante parecia bastante nervosa, como se estivesse sendo perseguida por alguém.
A moça misteriosa recomendou que Zuilda e a família tomassem cuidado e não saíssem de casa. Comentou, ainda, que ela própria estava fugindo da polícia, mas não disse o motivo. Revelou apenas que seu nome era Rosa e que trabalhava para a campanha do candidato a vereador João Matogrosso.
Depois de um tempo, a mulher decidiu ir embora e seguiu rumo ao igarapé Ambé. Após o anoitecer, a mãe de Tito avistou um carro de polícia indo para a mesma direção e logo ouviu tiros.
No dia seguinte, um senhor contou à Zuilda que estava próximo do igarapé quando viu uma pessoa fugindo e policiais atirando em direção à água. Mais tarde, o corpo de Rosa Souza Coelho, a mulher que havia visitado a mãe de Tito, foi encontrado no local.
Isso tudo foi relatado por Zuilda ao delegado Raimundo Benassuly Maués Júnior, da Polícia Civil, em novembro de 1995, quando o inquérito da morte de Rosa finalmente foi aberto.
Depoimento de Zuilda Mendes Vieira
O laudo de necropsia de Rosa, datado de 08 de outubro de 1992, apontou a causa da morte como “asfixia mecânica por submissão em líquido – afogamento”. Não há nada que indique lesões provocadas por arma de fogo, como várias pessoas relataram.
Laudo de necropsia de Rosa Coelho
Laudo de exumação de Rosa Coelho
Para a família das vítimas, esse é mais um indício de que a polícia teria acobertado o assassinato de uma informante no caso dos emasculados. O relato de Raimunda Coelho Adriano, outra testemunha no inquérito do delegado Benassuly, é exemplo disso. Segundo ela, antes de morrer, Rosa fez vários comentários sobre os desaparecimentos das crianças em Altamira. Ela se dizia bastante revoltada com a situação e afirmava não estar convencida do envolvimento de Luiz Kapiche Neto nos crimes – o radialista e advogado que frequentemente resolvia problemas para a família Gomes.
Depoimento de Raimunda Coelho Adriano
Mas, afinal, o que Rosa sabia exatamente sobre as emasculações? Quem dá mais pistas sobre isso é Antônio Afonso da Silva Barros, amigo da vítima. Em depoimento, ele afirma que, certa noite, Rosa estava sozinha em um carro na Transamazônica, próximo a um posto de gasolina, quando avistou Amailton, Anísio e mais dois homens encapuzados em atitude suspeita.
Ela parou o veículo a cerca de 20 metros de distância e viu que o quarteto emasculava uma criança. Amailton e Anísio perceberam a presença do veículo e reconheceram Rosa, que foi embora depressa. Posteriormente, ela teria ido até a delegacia para registrar o que viu.
Ainda segundo Antônio, um dia antes de morrer, a moça participou de uma festa em comemoração à vitória eleitoral de João Matogrosso. Durante o evento, ela lhe disse que aquele era o seu último dia de vida, mas não revelou quem tinha interesse em matá-la.
Além disso, Antônio menciona outro detalhe interessante em seu relato: a história da empregada Fátima, que trabalhava para os Gomes. Ele comenta que ouviu da própria funcionária os detalhes sobre a camisa suja de sangue de Amailton. Só que Antônio não chama a mulher de Fátima, mas sim de Madalena.
Depoimento de Antônio Afonso Barros
De fato, os Gomes tinham uma empregada com esse nome: Madalena da Silva Brito foi ouvida pelo delegado Benassuly em 26 de novembro de 1995. À polícia, ela admitiu que trabalhou para Amadeu por quatro anos como lavadeira e cozinheira. Mas negou que tenha visto Amailton com a camisa suja de sangue ou presenciado qualquer outra atividade suspeita na residência.
Depoimento de Madalena da Silva Brito
Recapitulando: Rosa Souza Coelho morreu em outubro de 1992. O inquérito que investiga o caso só foi aberto três anos depois, devido às especulações que surgiram ao longo do tempo sobre um possível assassinato.
Entre aqueles que negavam a hipótese de afogamento, estava Jaciara Silva Barros, amiga de Rosa, que prestou dois depoimentos à polícia. No segundo, de 21 de novembro de 1995, ela disse que recebeu a visita de Amadeu Gomes durante o velório da amiga.
Na ocasião, ele lhe perguntou o que o legista havia concluído acerca do caso. Jaciara respondeu que a causa oficial da morte era afogamento, mas que ela não acreditava naquilo. O fazendeiro reagiu e recomendou que ela aceitasse o laudo de necropsia e ficasse calada sobre o assunto. Em seguida, ele foi embora.
No dia seguinte, Jaciara foi até a delegacia denunciar as suspeitas em cima do caso e registrar uma ocorrência. Os policiais, porém, debocharam da testemunha e a ignoraram.
Primeiro depoimento de Jaciara Silva Barros
Diante da estranha visita descrita por Jaciara, seria importante que Amadeu fosse ouvido pela polícia para dar explicações. Não há, entretanto, nenhum depoimento dele no inquérito.
Por outro lado, quem traz um novo elemento para as investigações é o delegado Roberto Carlos Macedo Lima, que atuou em Altamira entre abril e dezembro de 1992. Em seu testemunho, prestado em 1995, ele fala que Rosa Coelho jamais procurou a delegacia para denunciar qualquer tipo de ocorrência. Isso contraria a informação repassada por Antônio Afonso Barros de que ela teria contado à polícia que viu Amailton e Anísio emasculando uma criança.
Depoimento de Roberto Carlos Macedo
O problema aqui é que ninguém confiava nas autoridades de segurança. Na verdade, as pessoas acreditavam que a polícia estava diretamente envolvida na morte de Rosa. Isso é reforçado pelo depoimento de duas mulheres: Margarida Bezerra e Ubelina Bezerra.
Segundo o relatório da polícia sobre o caso, na manhã de 08 de outubro de 1992, ambas lavavam roupa no igarapé Ambé quando avistaram o corpo de Rosa. Na ocasião, elas conversaram com um senhor que disse ter visto a vítima momentos antes da morte. Rosa teria falado um pouco com ele e seguido para a estrada.
Logo depois, o homem ouviu barulho de tiros que, segundo ele, teriam sido disparados pela polícia. Assim que falou isso para Margarida e Ubelina, ele pareceu mudar de ideia e começou a gaguejar, alegando que os policiais atiraram para cima.
Na sequência, o relatório afirma que a polícia se empenhou para encontrar essa testemunha, inclusive com a ajuda do Conselho Tutelar e da Prelazia do Xingu. Mesmo assim, ela não foi localizada.
Por fim, a conclusão do trabalho conduzido pelo delegado Raimundo Benassuly era a seguinte:
A suposição de que ROSA foi assassinada não pode ser abandonada, mas ainda não podemos fazer essa afirmação. Para que isso ocorra, devemos encontrar o cidadão que alega ter presenciado policiais atirando no Igarapé Ambé, local onde ROSA foi encontrada morta. Caso se consiga localizá-lo, deve-se ouvir o seu depoimento e proceder o reconhecimento dos policiais envolvidos. Localizar o cidadão em questão somente será possível com a colaboração da população.
A testemunha-chave jamais foi encontrada. Na frieza dos autos, esse é mais um caso que não chega a lugar nenhum.
Relatório do delegado Raimundo Benassuly
Depoimento de Margarida Bezerra
A terceira fase de juízo se encerraria em outubro de 1996, mesmo período em que as famílias das vítimas seriam ouvidas em Brasília durante uma audiência na Comissão de Direitos Humanos do Congresso.
No mesmo mês, algo inédito aconteceu: Valentina de Andrade finalmente viajou até Altamira para ser interrogada em juízo. O depoimento dela será abordado no próximo episódio.