Extras Episódio 08

Nos autos do processo, não há registros de quando exatamente Éder Mauro foi designado para atuar em Altamira. O que se sabe é que em 30 de junho de 1993 – quatro dias após a saída da Polícia Federal – ele passou a fazer algumas diligências. Também nessa ocasião, um novo promotor, Sérgio Tibúrcio dos Santos Silva, entrou no caso.
Os primeiros atos de Éder Mauro foram as coletas de dois relatos: o de Wandicley Oliveira Pinheiro, o terceiro sobrevivente, e o de seu irmão, Vandivaldo Oliveira Pinheiro. Eles prestaram depoimento em 30 de junho na capital Belém.
Vandivaldo fazia companhia ao irmão no dia do crime em 23 de setembro de 1990. Na ocasião em que falou à polícia, ele tinha nove anos de idade. Em seu testemunho, ele relatou que viu um homem de bicicleta vermelha sequestrar Wandicley.
Já a vítima, nesse novo relato, repetiu basicamente a mesma história que havia contado outras duas vezes anteriores. Alguns detalhes divergentes serão aprofundados no futuro. Por ora, o importante é que ambos, Wandicley e Vandivaldo, diziam que se vissem o sequestrador, seriam capazes de identificá-lo.
Depoimento de Wandicley Oliveira Pinheiro
Depoimento de Vandivaldo Oliveira Pinheiro
Por isso, aos garotos foram apresentadas seis fotografias, todas de homens, aparentemente policiais militares ou soldados. Não há nos autos qualquer informação sobre a origem das imagens ou o motivo pelo qual elas foram escolhidas. É possível que isso tenha sido resultado de dados coletados pela Polícia Federal, mas não se sabe com certeza.
O fato é que, entre essas fotos, os dois meninos apontaram para o homem que teria sequestrado Wandicley: seu nome era Aldenor Ferreira Cardoso. Ele é um verdadeiro mistério para o caso. O processo dá a entender que o rapaz seria um ex-policial militar, assim como Carlos Alberto dos Santos Lima, citado no último episódio. No entanto, Aldenor nunca foi encontrado. Até hoje, não há nenhuma informação sobre o seu paradeiro. O reconhecimento feito pelos irmãos é a única vez em que ele aparece no processo.
Fotos de suspeitos mostradas para Wandicley e Vandivaldo
Auto de reconhecimento de Wandicley Oliveira Pinheiro
Auto de reconhecimento de Vandivaldo Oliveira Pinheiro
É preciso ter em mente o que parecia se formar nas investigações. Primeiro, havia por parte dos policiais e do Ministério Público a certeza de que Amailton Madeira Gomes era o autor de vários casos de mortes de garotos em Altamira. Mas ele não agiria sozinho – tanto que, mesmo após a sua prisão, os crimes não cessaram, levando a polícia a crer que os responsáveis queriam bagunçar o caso contra o rapaz.
Amailton era filho do poderoso José Amadeu Gomes que já estava listado, de certa forma, como um suspeito na época das investigações de Brivaldo Pinto Soares Filho.
Como citado no episódio anterior, no início de junho de 1993, aparece a carta da conselheira tutelar Sueli de Oliveira Matos, moradora de Macapá. No texto, ela relata uma conversa chocante que teve com o ex-policial militar Carlos Alberto, que lhe confessou ter trabalhado como segurança para Amadeu. Segundo ele, o rico fazendeiro e empresário estaria por trás dos casos dos emasculados, que teria inclusive médicos da cidade envolvidos. Nesse ponto das investigações, faltava agora descobrir quem eram os profissionais de saúde que faziam parte desse grupo criminoso. É aí que o trabalho da Polícia Federal em Altamira passou a ter efeito direto no processo.
TESTEMUNHA-CHAVE
No dia primeiro de julho de 1993, um lavrador de 70 anos prestou depoimento em Belém ao delegado Éder Mauro, que estava acompanhado do promotor Sérgio Tibúrcio. Nesse primeiro relato, a testemunha chegou a ser identificada apenas como AJC, mas logo se revelou como Agostinho José da Costa.
Para muitos, o depoimento de Agostinho é considerado a peça mais importante do processo. Morador de uma pequena chácara a seis quilômetros de Altamira, ele contou um acontecimento intrigante que presenciou em uma quinta-feira do mês de outubro de 1992, próximo das eleições, justamente na ocasião da morte de Jaenes da Silva Pessoa.
Era manhã e ele empurrava seu carrinho de mão pela rodovia Transamazônica com algumas frutas que revenderia na cidade. No caminho, entre 11h30 e 12h, Agostinho viu uma pessoa saindo do mato de bicicleta na beira da estrada, passando pelo arame. Ela carregava um facão sujo de sangue e um saco plástico com algo pequeno embrulhado, que não soube identificar. Ao ver o lavrador, o desconhecido se assustou e desviou o caminho, atravessando para o outro lado da estrada. Passou a bater com o facão em alguns galhos, o que causou estranheza em Agostinho, pois parecia que o rapaz queria disfarçar alguma coisa.
Cerca de um quilômetro dali, o lavrador se deparou com outro homem segurando um cavalo na beira da Transamazônica. Esse jovem ele reconheceu: seria Amailton, filho de Amadeu, que já lhe era familiar. Inclusive, isso o deixou até mais calmo caso precisasse de ajuda para alguma situação.
Agostinho, então, seguiu viagem até a cidade, onde vendeu as suas frutas. Entre os clientes, ouviu comentários de que Jaenes da Silva Pessoa, filho de um conhecido seu, havia desaparecido naquele mesmo dia.
Na sexta-feira, já em casa, o lavrador recebeu a visita de um cabo do Exército chamado Antônio Delmiro e de mais dois soldados. Eles lhe perguntaram se ele tinha visto algo diferente nas redondezas, principalmente urubus sobrevoando a área. Foi então que o lavrador contou o que presenciou à beira da Transamazônica. Em seguida, o cabo convidou Agostinho para montar em sua moto e juntos seguirem até o lugar onde a testemunha avistou o homem com o facão. Após rápida averiguação no local, o idoso voltou para a chácara onde vivia.
Um dia depois, na ocasião das eleições, Agostinho finalmente ficou sabendo que o corpo de Jaenes havia sido encontrado no mesmo lugar onde ele tinha encontrado o desconhecido saindo do mato.
Ao ser perguntada pela polícia se conhecia aquela pessoa, a testemunha respondeu que não lembrava o nome, mas tinha certeza absoluta de que se tratava de um médico de Altamira. Se o visse pessoalmente ou por meio de fotografias, disse ele, certamente o reconheceria.
Depoimento de Agostinho José da Costa
Nesse ponto, em primeiro de julho de 1993, as suspeitas de participação de médicos nos crimes de Altamira só aumentavam. Mas esse fato não era novo. Ele vinha sendo formado desde a morte de Judirley da Cunha Chipaia em janeiro de 1992 e do início das investigações de Brivaldo, em outubro do mesmo ano.
Aqui, uma história já citada no podcast merece ser relembrada: o relato de Juarez Gomes Pessoa, pai de Jaenes, sobre o velório do filho. No documento, datado de 15 de outubro de 1992, ele conta como o corpo do menino havia começado a sangrar na presença do assassino.
De acordo com o testemunho, durante o funeral, um homem vestido todo de branco se aproximou e colocou a mão sobre o ombro de Juarez. Ele lhe disse: “ô, meu amigo, é isso mesmo. Tenha fé em Deus, que outros casos já aconteceram com outras pessoas”. Assim que essa pessoa foi embora, alguém comentou que aquele era o doutor Anísio Ferreira de Souza, médico e dono de uma pequena clínica em Altamira. Justamente após a saída dele, segundo Juarez, o cadáver do garoto parou de sangrar.
Um dos irmãos de Amadeu, Geraldo Gomes, também contou esse mesmo acontecimento ao delegado Brivaldo.
Depoimento de Juarez Gomes Pessoa
Antes mesmo de Amailton aparecer como suspeito no inquérito de Jaenes, Anísio já havia sido mencionado por algumas testemunhas. Na época com 51 anos de idade, ele era dono de uma clínica na cidade e, pelos relatos coletados, fazia um pouco de tudo: partos naturais, cesáreas, clínica geral, ginecologia e pediatria. Considerado um profissional polêmico no município, seu foco era atender pessoas de baixa renda. Alguns diziam que ele era uma pessoa bastante caridosa. Outros alertavam para supostas práticas negligentes – assunto que será abordado mais adiante.
De qualquer modo, Anísio era conhecido em Altamira. Por isso, nas eleições de outubro de 1992, concorreu ao cargo de vereador, mas não chegou a ser eleito. Após perder o pleito, viajou para o Maranhão, seu estado de origem, para lidar com assuntos familiares, e permaneceu por meses fora do Pará. Esse foi o motivo pelo qual nunca chegou a depor durante as investigações de Brivaldo.
Várias pessoas relataram coisas estranhas sobre o Anísio ao delegado. Entre elas, Raimunda Gomes da Silva, que denunciou más práticas durante atendimento com o médico; e Domingos de Morais, que comentou sobre a época em que Anísio teria servido o Exército e participado da Guerrilha do Araguaia no combate a grupos subversivos. Segundo ele, o médico teria colaborado na tortura de guerrilheiros. Nada disso, porém, chegou a ser comprovado.
Depoimento de Raimunda Gomes da Silva
Depoimento de Domingos de Morais
Ainda sobre os comportamentos do suspeito, Brivaldo anexou uma foto específica do médico ao inquérito de Jaenes. Não há informações sobre a data e local de onde ela foi tirada ou obtida. Na imagem, há um grupo de mulheres, uma ao lado da outra, todas vestidas de branco. Na frente delas, algumas crianças sentadas e, no meio, um homem de camisa escura. Desenhada à caneta, uma seta indica a sua identidade: Anísio Ferreira de Souza. Há também outra inscrição na fotografia, com a palavra “Mãezinha”.
“Eles relacionam a figura do Anísio a uma mãe de santo famosa em Altamira, conhecida como ‘Mãezinha’”, explica o advogado e antropólogo Rubens Pena Júnior. De acordo com ele, ela aparece no processo como uma amiga do médico que, supostamente, o ajudava com determinados rituais na chácara dele. Essas informações, repassadas por testemunhas à Brivaldo, nunca foram confirmadas.
O próprio médico negou esses fatos, já que sempre se disse espírita kardecista e não praticante da umbanda ou do candomblé. Para o pesquisador, é muito comum que haja confusão entre esses termos, principalmente devido ao preconceito. Muitas vezes, uma pessoa pode se declarar espírita, por exemplo, simplesmente por conta do contexto de opressão, mesmo que siga religiões de matriz africana.
Apesar dos comentários desfavoráveis ao doutor Anísio sobre a sua prática médica e a suposta ligação com rituais, o delegado Brivaldo nunca chegou a ir atrás dele efetivamente. Isso por acreditar que os maiores indícios de culpa vinham de Amailton.
Voltando agora ao dia primeiro de julho de 1993, ao depoimento de Agostinho. Segundo o relato do lavrador, era possível que, se o homem do facão de fato fosse o assassino, o órgão sexual da vítima estivesse no saco plástico que ele carregava. E mais: a testemunha dizia que aquele rapaz era médico e que poderia reconhecê-lo com facilidade.
Diante dessas informações, Éder Mauro e Sérgio Tibúrcio apresentaram a Agostinho alguns vídeos gravados em fitas VHS. Esses registros haviam sido feitos pela Polícia Federal (PF) entre maio e junho de 1993.
Por todo o contexto, o lavrador talvez tivesse visto Anísio saindo do mato da Transamazônica. Mas, para a surpresa de todos, a pessoa que ele reconheceu foi Césio Flávio Caldas Brandão, diretor do Hospital da Fundação Sesp – hoje conhecido como Hospital da Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
Segundo o próprio Césio em uma conversa com o pesquisador Rubens Pena Júnior, as fitas VHS foram gravadas durante uma visita da PF ao escritório em que ele trabalhava. Os agentes lhe disseram que queriam apenas checar alguns documentos, mas não entraram em detalhes. Justamente por isso, o médico aparece descontraído, conversando, sem saber que poderia ser um suspeito.
As pessoas que estão por trás das câmeras nunca aparecem totalmente. É possível ver apenas uma delas de relance: José Carlos de Souza Machado, agente da PF que comandou a operação em Altamira. Nos vídeos, é ele quem geralmente conversa com o médico.
Auto de reconhecimento de Agostinho José da Costa
Como já mencionado, tudo o que envolve a investigação da Polícia Federal em Altamira é um mistério. Após a leitura e pesquisa nos autos, porém, tudo indica que a gravação com Césio não foi acidente. Provavelmente os agentes da PF já haviam chegado ao nome dele.
Para a Polícia Civil, o círculo parecia finalmente estar se fechando e a lista de suspeitos já estava maior: Amailton Madeira Gomes e seu pai, José Amadeu Gomes; os ex-PMs Carlos Alberto dos Santos Lima e Aldenor Ferreira Cardoso; e agora os médicos Césio Flávio Caldas Brandão e Anísio Ferreira de Souza.
O próximo passo seria pedir a prisão dessas pessoas, o que o delegado Éder Mauro fez a partir de 05 de julho de 1993. Na mesma data, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará designou uma nova juíza para o município: Elisabete Pereira de Lima, que vinha de Tucuruí, localizada a 400 quilômetros de Altamira.
Ou seja, após um mês de investigações da PF, em questão de dias, o caso dos meninos ganhou um novo delegado, um novo promotor e uma nova juíza, todos de outras cidades. E isso não é nada comum. Aparentemente, frente a suspeita do envolvimento de poderosos locais nos crimes e a própria desconfiança da população nas autoridades, o estado do Pará achou essa mudança necessária.
Em 07 de julho de 1993, a juíza Elisabete aceitou os pedidos de prisão solicitados pelo delegado Éder Mauro. Eles foram cumpridos nos dias seguintes, assim como o processo de busca e apreensão na residência de alguns dos suspeitos.
Na casa de Anísio, os policiais encontraram algo que de cara chamou a atenção: a mesma fotografia de uma apresentação musical infantil achada na casa de Amailton tempos antes. Posteriormente, a explicação seria de que a foto se tratava do cartão postal de uma escola, distribuído para a maioria dos moradores de Altamira.
Além disso, foram também apreendidos um livro intitulado “O Homem Violento”, romance do autor A. E. Van Vogt; e uma nota promissória suja de sangue, que o médico alegou ser de alguém que se cortou ao manipular o grampeador.
Auto de busca e apreensão na casa de Anísio
Já na residência de Césio, na presença da esposa e da filha dele, que era apenas um bebê, a polícia achou diversos materiais médicos. Entre eles, espéculos vaginais; bisturis; pinças; agulhas de anestesia raquidiana; uma baioneta e drágeas de um remédio chamado Valmane, um calmante natural.
Os utensílios mais suspeitos, na visão dos investigadores, eram as agulhas de anestesia raquidiana, usadas normalmente para que o paciente não sinta o corpo da cintura para baixo. Afinal, para o Ministério Público, isso batia com alguns relatos de sobreviventes que se diziam “anestesiados” durante a emasculação. Os demais objetos, no entanto, não foram tão explorados pela acusação.
Auto de busca e apreensão na casa de Césio
INTERROGATÓRIOS
Os suspeitos foram interrogados alguns dias após a prisão. Em 12 de julho, foi a vez de Amailton, que já estava preso, e de Césio serem ouvidos. Ambos foram também confrontados pelo lavrador Agostinho, que afirmava tê-los visto à beira da Transamazônica próximo ao local em que o corpo de Jaenes foi encontrado. Cara a cara com os dois acusados, a testemunha reafirmou o reconhecimento.
Em seu novo interrogatório, na presença do advogado de defesa Américo Leal e do delegado Éder Mauro, Amailton disse que o encontro com o lavrador nunca aconteceu. Ele alegou que, naquele primeiro de outubro de 1992, estava totalmente concentrado em deixar a sua moto pronta para a viagem que faria no dia seguinte. Sobre Agostinho, o suspeito comentou: “esta pessoa pode estar louca”.
Durante depoimento, Amailton também negou conhecer os médicos Anísio e Césio; e o ex-PM Carlos Alberto dos Santos Lima. Por fim, informou que era católico não praticante e nunca participou de qualquer tipo de culto ou seita. De acordo com ele, o livro relacionado à “magia negra” apreendido em sua casa teria sido emprestado de uma amiga apenas por curiosidade.
A obra citada no relato é “O Satanista – Uma História de Magia Negra” do escritor Dennis Wheatley, lançado no Brasil pela editora Record. Publicado originalmente em 1960, no Reino Unido, o livro é uma ficção, um romance policial misturado com terror. Apesar de ser apenas uma história fictícia, para o delegado Éder Mauro, o título parecia ser algo importante dentro das investigações.
Interrogatório de Amailton Madeira Gomes
Matéria do jornal Diário do Pará – “Monstro de Altamira foi depor e negou os crimes”
Com seis páginas, o depoimento de Césio é mais extenso. Na ocasião, ele também estava acompanhado de um advogado, o doutor Dino Raul Cavet. À polícia, o médico negou participação nos casos dos meninos. Reforçou, inclusive, que morava no distrito de Brasil Novo quando os crimes começaram a ocorrer. Ele só se mudou para Altamira, que ficava a cerca de 40 minutos de carro da sua antiga casa, em janeiro de 1990, após passar em um concurso que prestou para a Fundação Sesp.
Sobre o assassinato de Jaenes, Césio confrontou diretamente o relato de Agostinho. Segundo ele, o trabalho no hospital pela manhã começava às 7h30 e seguia até 11h30. Aquele primeiro de outubro era uma quinta-feira, dia que apanhava o seu filho na escola, o que afirmava ter feito. O expediente reiniciava, então, às 13h30 e terminava às 17h30, quando finalmente retornava para casa.
Apesar de diretor do hospital, Césio afirmou que nunca teve contato com nenhum dos corpos das vítimas, tampouco curiosidade em vê-los. Ele disse que, mesmo sendo médico, não gostava de lidar com cadáveres.
Em depoimento, contou também que era evangélico presbiteriano, oriundo do estado do Espírito Santo, e que jamais participou de qualquer outro tipo de culto.
Sobre os demais suspeitos, o médico comentou que conhecia José Amadeu Gomes porque certa vez precisou falar com ele sobre o abastecimento de viaturas da Fundação Sesp – o que teria ocorrido no ano de 1991. Já Amailton só lhe era familiar de vista, pois nunca tinha tido um contato mais próximo com ele.
Em relação à Anísio, Césio explicou que o encontrou uma vez em seu gabinete na Fundação. Ele havia ido até lá para lhe pedir apoio à sua candidatura a vereador. Essa reunião nunca foi explicada por nenhum dos dois, mas é possível presumir que Césio, como diretor da instituição, seria um importante aliado para Anísio. Aparentemente, porém, essa cooperação nunca aconteceu.
Já sobre o ex-PM Carlos Alberto, Césio negava conhecê-lo.
O delegado Éder Mauro também questionou o médico sobre os materiais encontrados na casa dele. De acordo com o suspeito, as agulhas raquidianas eram utilizadas para anestesiar os pacientes da cintura para baixo, enquanto que o remédio Valmane servia para o combate à ansiedade. Ele afirmou que os utensílios haviam sido adquiridos anos antes – sendo as agulhas presente de uma amiga -, com o objetivo de usá-los no trabalho.
A próxima pergunta do investigador foi sobre a função e os efeitos do anestésico halotano. Césio respondeu que a substância induz ao sono, mas que, como anestesia, teria de ser complementada com outras drogas. Segundo ele, ao ser colocada em um lenço e levada à narina de uma pessoa, por exemplo, ela não causaria efeito imediato, mas sim em cerca de 10 minutos.
Na residência do suspeito não foi encontrado o halotano e, por isso, no depoimento, não fica claro o motivo pelo qual o delegado fez esse questionamento. A resposta talvez esteja em um dos vídeos gravados pela Polícia Federal durante a visita ao escritório de Césio. Nele, o chefe da missão, José Carlos de Souza Machado, menciona a substância. É provável que as investigações levaram os agentes a crer que esse teria sido o suposto anestésico usado nas vítimas – especialmente a partir dos relatos do segundo e do terceiro sobreviventes, que diziam ter desmaiado depois que o sequestrador colocou um pano na boca deles.
Nesse contexto, a tese mais forte era de que um grupo praticante de cultos satânicos era responsável pela morte dos garotos. E ele contava com a participação de PMs, empresários e médicos.
Por mais que houvesse livros de nomes chamativos nas casas de alguns suspeitos, essa hipótese ainda parecia não se encaixar no perfil deles. Anísio era espírita e isso poderia sim resultar em preconceito – talvez similar com o que os pais de santo em Guaratuba sofreram no Caso Evandro. Já Amailton se dizia católico não praticante, enquanto Césio era evangélico e frequentador da igreja. Nesse sentido, Amadeu Gomes talvez trouxesse mais suspeitas na visão de alguns moradores da cidade, já que muitos sabiam que ele era maçom.
Até aí, não há nada concreto que sirva como base para a teoria da seita satânica. Mas eis que uma passagem no depoimento de Césio chama bastante a atenção: três nomes que nunca haviam sido citados no processo. O trecho afirma:
QUE perguntando ao depoente se conhece a Sra. Valentina de Andrade, respondeu negativamente. QUE perguntado ao depoente se conhece o Sr. José Alfredo Teruggi, respondeu negativamente. Que perguntado ao depoente se conhece o Sr. Duílio Nolasco Pereira, respondeu negativamente.
Interrogatório de Césio Flávio Caldas Brandão
É aqui que acontece, nos autos, a primeira ligação com o Caso Evandro relatado na quarta temporada do Projeto Humanos. Antes de Evandro Ramos Caetano desaparecer em abril de 1992, outra criança já havia sumido em Guaratuba, no litoral do Paraná: um menino chamado Leandro Bossi.
Em julho do mesmo ano, sete pessoas foram presas, acusadas de participar de uma seita satânica que teria sacrificado Evandro. Duas delas eram Celina Abagge e Beatriz Abagge, esposa e filha do prefeito do município.
Parte dos acusados admitiu o crime. Há inclusive uma fita de confissão das mulheres, que sempre foi uma peça estranha no processo. Como demonstrado na temporada passada, todos esses relatos foram feitos sob tortura e coação.
O fato é que, nos primeiros dias em que estiveram detidos, alguns dos suspeitos afirmaram que haviam sequestrado e matado Leandro Bossi em um suposto ritual para Iemanjá. Essa foi a primeira versão contada por eles, que nunca chegou a ser oficialmente registrada no inquérito policial. Mais tarde, aos autos, os acusados falaram que Leandro teria sido na verdade raptado e vendido para uma mulher estrangeira.
Nenhuma dessas versões é verdadeira e ambas foram feitas após sessões de tortura. As fitas reveladas por Ivan Mizanzuk no episódio 25 do Caso Evandro são as provas definitivas disso. As gravações são reveladoras e demonstram um trabalho policial desastroso.
Mas tudo isso foi escondido da imprensa e da população do Paraná na época. O que apareceu oficialmente foi que o grupo preso teria confessado que sequestrou e vendeu Leandro para uma “gringa, loira e gorda”. Foi aí que Valentina de Andrade se tornou uma suspeita. Afinal, ela estava em Guaratuba com um grupo de 40 argentinos na época em que os dois garotos desapareceram. Como consequência, o seu nome passou a circular por toda a imprensa nacional.
No entanto, além das confissões terem sido invenções criadas sob tortura, havia outro problema muito mais básico: Valentina não se encaixava na descrição dada pelos acusados. Apesar de estar acompanhada de argentinos, ela não era gringa, mas sim brasileira. Além disso, não era loira ou gorda.
Após meses de matérias sensacionalistas, a juíza de Guaratuba acabou derrubando o mandado de prisão que havia autorizado contra Valentina e alguns de seus seguidores. A magistrada chegou a dizer que a situação teria sido um grande equívoco, fruto de um questionável trabalho policial. O próprio delegado da época, Luiz Carlos de Oliveira, mais tarde se pronunciou sobre o caso e pediu desculpas pelo engano que cometeu.
Valentina nunca foi acusada formalmente de nada em Guaratuba. O mesmo ocorreu com José Alfredo Teruggi, seu marido. Mas seria no Pará, no Norte do Brasil, pouco mais de um ano depois, que o seu nome voltaria a circular em torno de novos casos de assassinatos de crianças.
Quando o garoto Jaenes da Silva Pessoa foi assassinado em outubro de 1992, Amailton estava fora de Altamira, em uma longa viagem até o Sul do Brasil. Ele chegou a ir também a dois países vizinhos: Uruguai e Argentina. Isso não passou despercebido pelo Ministério Público.
Em argumentações posteriores, os promotores do caso diziam que o suspeito não tinha ido à Argentina por conta de uma simples aventura de moto, mas para encontrar-se com Valentina. Contudo, nenhuma evidência comprova essa suposta ligação entre os dois.
Os advogados de defesa, por sua vez, anexaram aos autos declarações de amigos do rapaz que viviam no país vizinho. Eles afirmavam que Amailton tinha passado um tempo na casa deles. De qualquer modo, para a promotoria, esse seria um indício forte que poderia conectar todos os acusados.
Declarações de amigos de Amailton
A tentativa de fazer essa ligação continuou nos interrogatórios de Anísio e do ex-PM Carlos Alberto, assunto do próximo episódio.