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Extras Episódio 04

KLEBSON CALDAS

Em 13 de novembro de 1992, mais uma criança desapareceu em Altamira: Klebson Ferreira Caldas, de 12 anos. O caso aconteceu enquanto Amailton Madeira Gomes, o principal suspeito do delegado Brivaldo Pinto Soares Filho, estava fora da cidade.

No mesmo dia do sumiço, os familiares do menino foram à delegacia para registrar a ocorrência. Quem se destaca nesse esforço é a mãe, dona Maria Ferreira Caldas Sobrinho, de 50 anos. Klebson era um dos seus 10 filhos. Uma das irmãs do garoto, Maria Esther Ferreira Queiroz, também se tornou bastante ativa nas buscas pelo menor. O depoimento dela traz informações importantes sobre o dia do desaparecimento.

Esther conta que eram cerca de 19h30 quando a sua mãe chegou em casa e avisou que Klebson havia sumido. O menino saiu às 14h com o objetivo de encontrar alguns colegas para apanhar manga e não voltou mais. Preocupada com os casos de mortes de crianças em Altamira, ela chamou a mãe para ir até a delegacia e relatar o desaparecimento à polícia. De acordo com o depoimento, as duas teriam sido imediatamente atendidas pelas autoridades, que iniciaram as buscas pelo garoto. No dia seguinte, os policiais foram até a casa da família para saber se o menino havia aparecido. Como esse não era o caso, a procura continuou, com Esther guiando os agentes por locais onde havia mangueiras, já que o irmão tinha saído para pegar frutas.

Depoimento de Maria Esther Ferreira Queiroz

Três dias depois do sumiço, em 16 de novembro, Brivaldo recebeu um ofício de outro investigador, Otávio Torres Filho, da delegacia do porto de Vitória do Xingu – cidade localizada a 50 quilômetros de Altamira. No documento, o delegado atesta que Amailton havia sido visto no município em um domingo, no dia 25 de outubro, acompanhado de outra pessoa não identificada. Ambos teriam feito uma ligação telefônica e em seguida entrado em um carro, seguindo rumo à Altamira.

Ofício do delegado Otávio Torres Filho

Se isso fosse verdade, o filho de José Amadeu Gomes não estaria em uma longa viagem de moto em direção à Argentina naquele período, como a família dele afirmava. Em teoria, os cartões postais juntados mais tarde pelos advogados do suspeito provavam que ele esteve no Sul do Brasil. Brivaldo, no entanto, notou que o primeiro postal datava de 19 de novembro. Para o delegado, esse fato indicava duas possibilidades: a primeira de que Amailton ainda estava em Altamira, provavelmente protegido pela família – por isso, poderia ser o autor do crime contra Klebson. Já a segunda hipótese reforçava a suspeita de que ele não agia sozinho e tinha cúmplices que tentavam confundir as investigações, matando as crianças junto ou a mando dele.

Enquanto o delegado ponderava as alternativas, uma nova descoberta movimentou o caso. No dia 17 de novembro, uma equipe de jornalistas do SBT acompanhava diligências da Polícia Militar perto da Transamazônica quando foi surpreendida pela notícia de que um corpo havia sido encontrado por ali. Era o cadáver de Klebson, deixado no meio do mato, em uma área de difícil acesso, completamente emasculado. No vídeo, que está anexado aos autos do processo, o repórter destaca que o local é próximo do posto de gasolina da família Gomes.

“Olha só a situação. Cobriram com umas folhas e jogaram o menino dentro do matagal. Olha só a situação em que o garoto foi encontrado, já está em decomposição. As moscas voando e a cabeça completamente raspada. Foi um ritual satânico. Podemos dizer que foi um ritual satânico, um ritual macabro”, completa o repórter, enquanto aponta para o corpo do menino.

O comentário do jornalista merece destaque. A suspeita de que os crimes envolviam ritual satânico era uma ideia levantada não exatamente por Brivaldo, mas pelo contexto da época. É possível entendê-lo melhor por meio de um documento datado de 9 de junho de 1994: o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar a exploração e prostituição infanto-juvenil no país. Os trabalhos tiveram início em Brasília em maio de 1993 e, em 9 de novembro do mesmo ano, uma equipe da comissão foi até Altamira para analisar os casos de violência registrados por lá. Um trecho do documento diz o seguinte:

De início, acreditaram os altamirenses estar diante de caso de serial killer, algum anormal que seria o responsável por todos os casos. Porém, essa ideia foi afastada pelas evidências de participação de mais de uma pessoa nos crimes. A existência de dois sobreviventes confirma essa hipótese. A ideia seguinte da população foi a de que haveria utilização médica dos órgãos extirpados. Quando a situação foi esclarecida, de que não é possível transplante que utilize órgãos sexuais de crianças, cristalizou-se a ideia de que os órgãos são usados em algum ritual satânico.

Relatório final da CPI de 1994

A ideia de ritual satânico é sempre fundamentada na crença de que os crimes eram praticados por um grupo de pessoas. Essa teoria, por sua vez, tinha como base o relato de Wandicley Oliveira Pinheiro, o terceiro sobrevivente, que apontava a participação de quatro homens no seu ataque.

No vídeo da equipe de reportagem do SBT ainda é possível ver o desespero de Esther, irmã de Klebson, ao descobrir que o corpo do irmão havia sido encontrado. “Eu [estava] procurando o meu irmão e ainda teve gente que disse que ele não existia porque não tinha registro. Ai meu Deus, por quê, meu Deus?”, desabafa, chorando muito.

Aqui entra uma contradição ao que está registrado no depoimento dela, tomado em 18 de novembro de 1992. Na tese de Paula Mendes Lacerda, Esther nega que tenha sido atendida imediatamente pelas autoridades ao registrar a ocorrência na delegacia. Segundo ela, Brivaldo ouviu o seu relato e logo em seguida ligou para Amadeu Gomes, pai de Amailton, perguntando se ele estava com a criança. O fazendeiro disse que não e, por isso, o investigador teria passado a achar que a família de Klebson estava mentindo.

De acordo com Esther, Brivaldo ainda lhe pediu a certidão de nascimento do menino. Como o garoto nunca tinha sido registrado, o delegado insistiu que o desaparecimento havia sido forjado.

Por outro lado, em entrevista para a tese, o investigador não chegou a comentar sobre essa possível desconfiança na história de Esther. Ele confirmou, porém, que havia de fato ligado para a família Gomes. “Rapaz, cadê a criança que desapareceu? Rapaz, se morrer alguma criança aqui em Altamira… Vocês estão querendo dissimular a situação, não vai ser pra mim não”, teria dito ele.

Em 18 de novembro de 1992, além da irmã de Klebson, outras duas pessoas foram ouvidas por Brivaldo: Maria de Nazaré Vieira da Costa e Jeferson Cícero dos Santos, moradores de Vitória do Xingu. Essas eram as testemunhas que teriam visto Amailton no município no dia 25 de outubro, como o delegado Otávio Torres havia relatado. Por conhecerem a família Gomes, eles perceberam que o rapaz estava acompanhado da mãe, Zaila. Na esperança de encontrar Amailton, o investigador de Altamira chegou a enviar uma equipe de policiais até a cidade, mas não obteve sucesso.

Depoimento de Maria de Nazaré

Depoimento de Jeferson Cícero dos Santos

BUSCA E APREENSÃO

Enquanto isso, a pressão da população para que os casos fossem resolvidos só aumentava. Assim, Brivaldo se viu obrigado a tomar outras medidas. Pediu, então, à juíza da cidade, Maria Filomena Buarque Camacho, que fosse realizada uma busca e apreensão na casa de alguns membros da poderosa família: Amailton, Amadeu, e os irmãos Geraldo e Arnaldo. O promotor da época, Synval de Castro, concordou com a solicitação, mas citava apenas Amailton como suspeito.

Em 18 de novembro de 1992, o requerimento foi aceito e as buscas foram feitas na residência onde o jovem membro da família Gomes vivia com o pai. Fotos anexadas no processo mostram o quarto dele: há pilhas de livros, discos de vinil e um quadro de colagem com ícones pop – nada de muito incomum para um rapaz de 22 anos de idade. Alguns títulos, no entanto, chamaram a atenção dos policiais, como “O Satanista” e “A Erva do Diabo”, por exemplo. Essas obras serviram para alimentar o imaginário de que Amailton poderia fazer parte de uma seita satânica.

Brivaldo estranhou também o teto do quarto, que estava cheio de pingos de tinta, como se tivesse sido pintado há pouco tempo, e uma mancha rosa que escorria em uma das paredes. Tais detalhes nunca foram explorados na fase de inquérito, mas em momentos futuros, o delegado chegou a dizer que achava o cômodo “sombrio”.

Além de livros e filmes em fitas VHS, a polícia apreendeu fotos pessoais do suspeito. Há imagens de Amailton tocando violão, falando ao telefone e sentado em frente a paisagens naturais. Outras são consideradas mais “exóticas”, como a que mostra ele brincando com uma cobra ou completamente nu, com o rosto pintado de branco, em meio a algumas pedras. Há também uma fotografia na qual ele parece fumar um baseado.

Durante a busca e apreensão, um detalhe se destacou: os agentes encontraram oito fotos iguais, que mostram várias crianças em uma espécie de apresentação musical. Elas aparentam ter entre oito e 12 anos de idade e não estão identificadas.

Resultado da busca e apreensão na casa de Amailton

Nos autos, as imagens do corpo do Klebson aparecem misturadas àquelas apreendidas no quarto do suspeito, como se o objetivo fosse causar confusão. “Então, há uma associação aí. Porque eu escutei inclusive de pessoas que investigaram o caso, a partir da promotoria, que era para quem pegasse o processo entender que aquelas fotos [do cadáver] estavam no quarto do Amailton”, explica o pesquisador Rubens Pena Júnior ao podcast.

ANÁLISE DO CORPO

As imagens do corpo de Klebson são bastante chocantes. O que mais causa impacto é o estado da cabeça, que está completamente sem pele. Além disso, segundo relatos da irmã Esther, ele não tinha os órgãos genitais e os olhos, e apresentava um grande buraco na região do estômago.

Em reportagem do SBT juntada ao processo, o médico legista Armando Aragão fala sobre a situação em que o garoto foi achado. “O que acontece é que após algum tempo decorrido de morte, acima de 72 horas, as partes moles, o couro cabeludo, os olhos, começam a se soltar devido à decomposição cadavérica. Então, não houve ali traumatismo, não tinha fratura na calota craniana ou sinais de corte na cabeça”, afirma.

O laudo da análise do cadáver de Klebson foi concluído no dia 23 de novembro. Nele, Aragão revela que, apesar de algumas semelhanças com os casos anteriores, dessa vez as lesões pareciam mais agressivas, como se o assassino estivesse mais violento. Ou, segundo Brivaldo, como se outra pessoa tivesse tentado emular o crime original.

Se nas primeiras ocorrências a emasculação era feita apenas com instrumento cortante, agora havia sido um pouco diferente. Havia o uso de um objeto como faca ou navalha, por exemplo, mas só até certo ponto. Após o corte, a marca na pele indicava que o pênis e a bolsa escrotal teriam sido arrancados à força, assim como o ânus da vítima. Por fim, o laudo conclui: “Causa mortis indeterminada, em virtude do estado de decomposição cadavérica (3 a 4 dias da morte)”.

Laudo de análise do corpo de Klebson

A mãe de Klebson, Maria Ferreira Caldas Sobrinho, prestou depoimento no dia 24 de novembro. Na ocasião, ela repetiu as informações repassadas pela filha Esther. De acordo com os relatos do Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses, cerca de dois meses após a morte de Klebson, dona Maria sofreu um derrame e faleceu. Ela não aguentou a dor da perda do próprio filho. O pai do menino também morreu pouco tempo depois e os irmãos acabaram se separando. Restou, então, à Maria Esther assumir a luta por justiça. Ao lado de dona Rosa Maria Pessoa, mãe de Jaenes, ela viria a se tornar mais um símbolo de força para os familiares das vítimas.

Depoimento de Maria Ferreira Caldas Sobrinho

A morte de Klebson causou muita comoção na cidade. No mesmo vídeo em que o médico legista dá entrevista, há o registro de uma multidão reunida na entrada no necrotério, aguardando o corpo do menino. Durante o enterro, os moradores clamam por justiça. “Dai-nos força, Senhor, e ilumina as autoridades. Ilumina todas as pessoas para que elas possam sanar esses problemas que estão trazendo muita tristeza em nossos lares”, reza uma moradora.

PRISÃO

Em 24 de novembro de 1992, mesmo dia em que a mãe de Klebson foi ouvida pela polícia, outro evento importante aconteceu: Amailton Madeira Gomes foi preso na cidade de Mundo Novo, no Mato Grosso do Sul. Alguns dias depois, foi levado à Belém do Pará para finalmente ser interrogado por Brivaldo.

Matéria do Jornal O Liberal – “Polícia bota a mão em Amailton”

Em depoimento, Amailton negou qualquer participação nos crimes ocorridos em Altamira. Entre outras coisas, ele explicou que era acostumado a fazer muitas viagens, especialmente para Fortaleza, cidade de origem da sua família. Além disso, relatou que já havia se relacionado sexualmente com homens e mulheres. Ao ser questionado se era homossexual, negou.

Entre as perguntas do investigador, o filho de Amadeu admitiu que os livros apreendidos eram de fato seus e afirmou que não tinha o costume de tirar fotos nus. Sobre as imagens de uma apresentação musical infantil, ele disse que as recebeu de várias pessoas e que não se lembrava exatamente do que se tratavam. Já em relação à mancha rosa na parede, comentou que teria sido o resultado de um vidro de Merthiolate quebrado.

Dos fatores mais incriminadores existentes contra o suspeito, as viagens se destacavam. Amailton, no entanto, reiterou que as saídas da cidade não tinham qualquer relação com os casos dos meninos. Ele relatou, por exemplo, que na época do desaparecimento de Jaenes da Silva Pessoa, seu parente distante, ninguém imaginava que o menino teria sido vítima de violência. Por isso, não se preocupou e não adiou os seus planos.

Brivaldo também lhe perguntou o motivo pelo qual não permaneceu na cidade no dia das eleições para votar no seu tio, Arnaldo, candidato a vereador. Ele apenas respondeu que não votava em Altamira.

Durante o interrogatório, um comentário de Amailton chama a atenção. Em certo momento, ele comentou que a polícia sempre suspeitava de homossexuais nos crimes contra os meninos e que vários deles já haviam inclusive sido presos, como Luiz Kapiche – figura conhecida em Altamira, muito próxima da família Gomes.

Nenhuma dessas informações, porém, podem ser verificadas nos autos do processo. Pelo menos de acordo com os documentos, Amailton foi o primeiro homem não-heterossexual detido. Já sobre a orientação sexual de Kapiche, ele mesmo negou ser gay no depoimento que prestou. Apesar de não terem confirmação, essas passagens ajudam a entender como os casos eram interpretados na época, cercados de preconceito.

O delegado Brivaldo também aproveitou o interrogatório para tentar colher mais informações sobre a tal empregada Fátima, que teria flagrado Amailton chegando em casa sujo de sangue. Porém, o rapaz negou o ocorrido e disse que não tinha nenhuma funcionária com esse nome.

O suspeito confirmou, no entanto, que de fato dirigia uma caminhonete Pampa cor vinho no início de 1992. Esse era o mesmo veículo visto no local do crime contra Jurdiley da Cunha Chipaia.

Questionado sobre o álibi que teria para a ocasião do sumiço de Jaenes em primeiro de outubro, Amailton respondeu que passou o dia se preparando para a longa viagem até o Sul do país. Pela manhã, horário do crime, ele teria ido até um estúdio para gravar fitas de música. Lá, foi atendido por um rapaz paraplégico. Esse fato facilitaria a identificação do tal funcionário para confirmar o álibi de Amailton. Mas, por algum motivo, ele nunca apareceu nos autos do processo.

Em outra passagem do depoimento, Brivaldo pede para o suspeito tentar traçar um perfil de como ele definiria o assassino das crianças. “O criminoso é um animal, não é um ser humano, talvez de Altamira ou talvez vindo de outro lugar. Tem uma personalidade de maníaco sexual, o qual precisa matar para poder ter prazer na vida”, afirmou.

A pergunta de Brivaldo era como uma pegadinha. Afinal, ele questionou se Amailton tinha o costume de praticar “felação” e o suspeito disse que sim – prática que o delegado considerava depravada. Logo, por mais que o filho de Amadeu não admitisse, para o investigador era claro que ele descrevia a si mesmo: “um pervertido que tinha prazer em matar e abusar de garotos”.

Ainda em interrogatório, Amailton negou que havia estado em Vitória do Xingu no fim de outubro, diferente do que afirmava o investigador Otávio Torres Filho, mais conhecido como Tavico. Por fim, afirmou que não voltou para Altamira antes porque só se preocupou ao saber que havia um mandado de prisão contra si. Ele ainda descreveu todas as cidades pelas quais passou do Norte ao Sul do país, chegando ao Uruguai e, finalmente, à capital argentina de Buenos Aires – onde permaneceu por 12 dias. Foi na viagem de retorno que acabou sendo preso em Mato Grosso do Sul.

Interrogatório de Amailton Madeira Gomes

No mesmo dia do depoimento, em 2 de dezembro de 1992, os advogados de defesa do suspeito, Américo Leal e Luciel Caxiado, requisitaram um exame de lesões corporais. De acordo com eles, o rapaz teria sido “exaustivamente espancado na prisão”. O laudo, que saiu no dia seguinte, está quase ilegível nos autos do processo. Em um trecho grifado, é possível ler apenas “nas mucosas dos olhos”. Uma imagem gravada na época pela TV Liberal mostra Amailton chegando em Belém logo após a prisão. Na cena, ele está com o olho direito completamente vermelho. Segundo os autos do processo, contudo, a denúncia sobre maus-tratos e espancamento não avançaram.

ATUALIZAÇÃO 28/04/2022: O ouvinte André Cadete, perito criminal de São João del Rei-MG, entrou em contato conosco por email dizendo que conseguiu extrair as seguintes informações do laudo de Amailton:

“DESCRIÇÃO: Ao exame observa-se: Equimoses avermelhadas nas mucosas dos olhos. Feridas contusas, superficiais, em fase de cicatrização disseminadas pelas regiões glúteas, de tamanhos e formas variáveis. Escoriações arredondadas e lineares.”.

Laudo de lesão corporal de Amailton

Além de todos os elementos que despertaram a atenção de Brivaldo para Amailton, há ainda outro bastante curioso citado por uma reportagem do Jornal A Província do Pará de 2 de dezembro de 1992: uma agenda que ele usava como diário de viagem. Nela, no campo onde há informações pessoais, lê-se: “Tipo de sangue: HIV”.

Sobre isso, a matéria afirma:

Entre os  pertences de Amailton, foram apreendidos literaturas de cunho satânico, fitas cassetes contendo filmes eróticos e de violência encimados por Silvester Stallone e uma agenda em cujas páginas está anotado: “Passaporte falso; Cartão de Crédito Vencido; Em caso de acidente, avisar o demônio; Tipo de sangue: HIV”.  

O último detalhe faz com que o delegado envie Amailton, ainda hoje, a exame de sangue para constatação se ele é portador do vírus da Aids, resultado que será anexado ao processo. O auto de pergunta e resposta, ao seu encerramento, contou com a presença do advogado Américo Leal, defensor do Monstro de Altamira, que contestou o procedimento policial, subjugando que “a Polícia está fabricando um criminoso”. 

Matéria do Jornal A Província do Pará – “Monstro de Altamira é amante do demônio”

Nos autos do processo, não há qualquer menção de que Amailton tenha passado por um exame de sangue para verificar se possuía o vírus HIV. Para muitos, o fato de ele ter preenchido a agenda dessa forma poderia ser visto apenas como uma brincadeira questionável de um jovem no início da década de 1990. Não foi assim que Brivaldo e parte da imprensa interpretou essa informação na época. De qualquer modo, é impossível dissociar a prisão do rapaz de sua sexualidade.

RELATÓRIO FINAL

O relatório final de Brivaldo é datado de 7 de dezembro de 1992 e conta com 17 páginas. Apesar de ter sido enviado à Altamira para investigar somente o crime contra Jaenes, Brivaldo incluiu no documento outros meninos que teriam sido vítimas de Amailton:

José Sidney, que ele acreditava ter sido morto em julho de 1989, mas que na verdade estava vivo, sendo escondido pela família;

– O Segundo Sobrevivente, atacado em novembro de 1989;

Wandicley Oliveira Pinheiro, emasculado em setembro de 1990;

Ailton Fonseca do Nascimento, morto em julho de 1991;

Judirley da Cunha Chipaia, assassinado em janeiro de 1992;

Jaenes da Silva Pessoa, morto em outubro de 1992;

Klebson Ferreira Caldas, assassinado em novembro de 1992.

Além de citar as crianças, o investigador alertou sobre a necessidade de cada um desses casos ter um inquérito individual. É provável que essa recomendação tenha sido feita porque algumas dessas vítimas sequer possuíam investigação aberta, enquanto outros casos eram pobres em informações. Além disso, Brivaldo tinha a crença de que, ao menos em alguns dos crimes, Amailton não havia agido sozinho. 

A recomendação de Brivaldo, porém, nunca foi seguida. Uma das juízas de Altamira na época, Maria Filomena Buarque Camacho, chegou a pedir a abertura dos inquéritos, mas a ordem não parece ter sido cumprida.

Entre todos os casos, o mais desolador é o de Klebson. Não há nos autos do processo qualquer tipo de diligência com o objetivo de buscar testemunhas e investigar a morte dele de forma mais aprofundada. Tudo o que se sabe sobre a história do garoto está nos trabalhos feitos no inquérito de Jaenes.

Sobre essa ausência, diversas explicações são levantadas, mas nenhuma passível de comprovação. Uma delas é de que a polícia alegava não poder abrir um inquérito próprio porque o menino não possuía certidão de nascimento. Outra é de que como o principal suspeito, Amailton, já estava preso, a investigação ocorreria na fase de instrução judicial. Nenhuma justificativa é satisfatória. Klebson é mais um garoto pobre que morreu esquecido pelo sistema. Mesmo quando o processo avançou, ele jamais foi considerado uma vítima oficial.

Relatório final de Brivaldo Pinto Soares Filho

IMPRESSÕES SOBRE BRIVALDO

Após encerrar o inquérito de Jaenes, Brivaldo retornou para Belém e nunca mais atuou no caso de Altamira. Apesar do empenho, alguns elementos na sua investigação foram considerados problemáticos pelas famílias das vítimas.

“Entre outras coisas, ele acreditava que a dona Rosa, mãe de Jaenes, tinha se afastado da luta por justiça por ter recebido dinheiro da família do Amailton. Essas concepções eu posso afirmar com certeza serem equivocadas e motivadas por uma falta de compreensão mais ampla da realidade e até mesmo dos desdobramentos na vida da Rosa”, comenta a pesquisadora Paula Lacerda.

De acordo com ela, outro preconceito carregado por ele também se tornou evidente: Brivaldo acreditava que o desaparecimento de crianças no interior era algo normal, pois as mães não ficavam muito preocupadas quando os filhos andavam sozinhos pelas ruas. “Ele me disse: ‘uma mãe nessa situação de fome, de miséria, só vai se dar conta do filho três dias depois que ele não voltar para casa’. Isso não era real. Até mesmo porque eu já conhecia as narrativas das mulheres, das mães, de familiares, de modo mais amplo”, diz a antropóloga.

Para ela, o delegado não conseguiu estabelecer uma relação de parceria com as famílias dos meninos, mas sim de antagonismo. “Os familiares têm essa memória não só pela questão do mal atendimento, mas sobretudo porque ele não os viu como aliados, como pessoas que também estavam interessadas na elucidação do crime”.

DENÚNCIA

Depois da entrega do relatório final para o Ministério Público, a promotora Ociralva de Souza Farias Tabosa apresentou o pedido de abertura de ação penal pública contra Amailton. A juíza Maria Filomena aceitou a denúncia naquele mesmo dia, em 15 de dezembro de 1992.

Iniciava-se, assim, a chamada fase de instrução, posterior à investigação policial. Ela é considerada sempre a mais relevante para o processo, pois é o momento em que o acusado vira réu e presta depoimento em juízo. É também quando entram as testemunhas de acusação e defesa.

Na denúncia do Ministério Público, a promotora dizia que gostaria de ouvir quatro testemunhas:

  1. Gilberto Denis da Costa, amigo de infância de Amailton, que o denunciou para a polícia como o autor dos crimes;
  2. Benedito Roberto de Oliveira, o Bené, que diz ter ouvido a história sobre o filho de Amadeu ter chegado em casa com a roupa suja de sangue;
  3. Irene, funcionária de uma lanchonete/sorveteria, que contou a história para Bené;
  4. Empregada Fátima, que teria visto essa cena.

Pedido de abertura de ação penal contra Amailton

No inquérito de investigação de Jaenes, é possível notar que Brivaldo tentou localizar Fátima, mas nunca conseguiu um depoimento dela. Ela teria medo? Teria fugido? Agora, cabia ao Ministério Público tentar achá-la para ouvir a sua história.

MAPA DOS CRIMES

Para acessar o mapa dos crimes atualizado com o caso de Klebson, clique aqui.

O mapa indica os locais onde as vítimas sobreviventes foram resgatadas (verde), onde os corpos das vítimas fatais foram encontrados (amarelo) e onde os desaparecidos foram vistos pela última vez (roxo). Os locais são aproximados. Também são informadas a idade que os meninos tinham e as datas dos crimes.

Como às vezes há divergências em detalhes entre o que está em documentos policiais e judiciais e o que o Comitê em Defesa da Vida das Crianças Altamirenses indica, foram priorizadas as informações que estão em autos processuais. Já nos casos em que não existem registros oficiais, os dados do Comitê são utilizados. Há ainda casos apontados pelo Comitê cuja localização é desconhecida, portanto, não são apresentados neste mapa.

O mapa exibe a geografia atual de Altamira. Na época do caso dos emasculados, alguns aspectos eram diferentes.